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SAÚDE E SOCIEDADE1 Autoria: IPOJUCAN CALIXTO FRAIZ INTRODUÇÃO Começamos este capítulo com Mark Lalonde, ministro da saúde do Canadá, que analisou, em 1974, os determinantes do nível de saúde naquele país. A importância para nós do Informe Lalonde é que suas conclusões influenciaram, nas décadas seguintes, os sistemas de saúde dos países em que as doenças crônico-degenerativas representavam importante causa de morbi-mortalidade. O Brasil se insere nesse contexto pois as transições demográfica e epidemiológica trouxeram um perfil de morbi-mortalidade onde coexistem as doenças infecto-contagiosas (chamadas de “doenças da pobreza”) e as doenças crônico degenerativas (chamadas de “doenças da civilização”). Segundo Lalonde os determinantes do nível de saúde das populações são: a biologia humana, os serviços de saúde, os estilos de vida e o meio ambiente. A partir da análise epidemiológica atribui-se um maior valor aos componentes estilos de vida e meio ambiente. O paradoxo encontrado é que, quando se estudou o nível de investimentos nos quatro grupos de determinantes, os investimentos maiores eram nos serviços de saúde. Além disso, verificou-se uma estreita relação entre o meio ambiente e os estilos de vida. (GIL, 1988, p.849-850) 1 Capítulo do livro Saúde da Família na Atenção Primária, Curitiba: Editora IBPEX, 2007. Fig. 1. Efeito relativo do meio ambiente, o estilo de vida, os serviços de saúde e a biologia humana sobre a saúde pública (de M.Lalonde, 1974) Fig. 2. Proporções relativas do dinheiro público destinadas ao meio ambiente, ao estilo de vida, aos serviços de saúde e à biologia humana (de M. Lalonde, 1974) É de especial interesse colocar uma pergunta a respeito do trabalho citado acima: os estilos de vida, que levam ao adoecimento, são de natureza individual ou coletiva? Estamos frente a mais uma dicotomia, entre tantas antinomias que constroem a nossa visão de mundo. Como profissionais da saúde estamos acostumados, desde a nossa formação, a conviver com polarizações como individual-coletivo, curativo-preventivo, corpo-mente, biológico-social, público-privado. A primeira grande questão que se coloca quando se discute a relação entre saúde e sociedade é se a saúde é um bem individual ou coletivo. Não é possível pensar em saúde sem pensar na sociedade. Lalonde expressa isso quando admite a relação entre estilos de vida e ambiente. Esta relação está clara na Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, a Lei Orgânica da Saúde, no seu artigo 3: A saúde tem como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do país. (BRASIL, 1990) A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, coloca em seu artigo 196: A saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 1988) Gostaríamos de ressaltar três aspectos do artigo 196 da constituição brasileira: 1. O papel do Estado – ao se reconhecer saúde como um direito da condição humana e como dever do Estado nos remete ao papel que o Estado brasileiro desempenhou na organização dos serviços de saúde, principalmente, após o advento da República. O Estado sempre esteve presente na ordenação dos serviços de saúde, como veremos adiante, porém nunca, até a criação do Sistema Único de Saúde, tratou-se de acesso igualitário. 2. Saúde como resultante das políticas sociais e econômicas – o reconhecimento de que não bastam os serviços de saúde para que se tenha saúde, leva à necessidade de atuar sobre o ambiente, incluindo a sua dimensão social. Já citamos o trabalho de Mark Lalonde e aqui vale lembrar a importância que este autor deu aos estilos de vida e ao meio ambiente. Ao longo deste capítulo poderemos também resgatar a relação entre este tema e a Determinação Social do Processo Saúde Doença, trazendo autores como Asa Cristina Laurell e Jaime Breilh. 3. O acesso aos serviços de saúde – pela primeira vez na história das políticas públicas de saúde no Brasil se propõe acesso universal aos serviços de saúde, estes organizados de tal forma a garantir a integralidade das ações como promoção, proteção e recuperação da saúde. Estava plantada a semente do que seria o Sistema Único de Saúde. Único, pois realizaria o sonho dos militantes do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira em ver, num só sistema, ligado a um só ministério, as ações preventivas e curativas. BREVE REVISÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL Para se compreender o Sistema Único de Saúde é necessário recuar no tempo e entender que o SUS é fruto da luta de setores da sociedade brasileira que, em plena ditadura militar, se constituíram em críticos dos serviços públicos de saúde da época e propositores de uma nova organização do sistema de saúde. Estes setores da sociedade militaram no que chamamos o Movimento da Reforma Sanitária Brasileira. O ideário da Reforma Sanitária apontava para a necessidade de se repensar o sistema de saúde no Brasil, revertendo a tendência histórica baseada em três características: a flagrante dicotomia entre as ações preventivas e curativas; o atendimento a certos setores da sociedade, negligenciando a idéia de universalidade do sistema e a crescente centralização do sistema de saúde. Veremos, de forma breve, esta trajetória, para entendermos as proposições da Reforma Sanitária: 1. Dicotomia entre as ações preventivas e curativas: o sistema de saúde brasileiro, até a década de 1990, caracterizou-se pela separação entre as ações de promoção e proteção da saúde e as ações de recuperação da saúde. Duas vertentes estiveram presentes: a vertente do sanitarismo campanhista e a da medicina previdenciária. Na vertente do sanitarismo campanhista a Diretoria Geral de Saúde Pública fora criada em 1897 e estava ligada ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, Oswaldo Cruz foi importante figura nesta diretoria, tendo sido protagonista de campanhas de erradicação da febre amarela, peste bubônica e varíola no Rio de Janeiro, no início do século XX. É muito conhecido o episódio da Revolta da Vacina, em 1904, no Rio de Janeiro, por ocasião da tentativa de regulamentação da lei que tornava obrigatória a vacina contra a varíola. Mais tarde, em 1920, a Diretoria Geral de Saúde Pública se transforma no Departamento Nacional de Saúde Pública, tendo Carlos Chagas à sua frente (Oswaldo Cruz falecera em 1917). Em 1930 é criado o Ministério da Educação e Saúde. O Ministério da Saúde só passa a existir a partir de 1953, quando são separadas as áreas de educação e saúde. O novo ministério, dedicado à saúde, fica com um terço das verbas do antigo ministério. A vertente da medicina previdenciária tem a sua origem com a Lei Elói Chaves de 1923. A partir desta lei criaram-se as Caixas Aposentadoria e Pensões (CAPs) que, além das aposentadorias e pensões, oferecia assistência médica aos seus beneficiários. Em 1933 iniciam-se sucessivas criações de Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs) e em 1966 foi criado o Instituto Nacional da Previdência Social (INPS) com um braço assistencial, em 1978, que se chamará Instituto Nacional de Assistência Médicada Previdência Social (INAMPS). Esta estrutura ficará ligada ao Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), criado em 1974, ocupando-se da medicina curativa, enquanto o Ministério da Saúde ocupa-se da prevenção das doenças e promoção da saúde. As estruturas citadas, ligadas à Previdência Social, ficam com a concentração dos recursos disponíveis para investimento em saúde. 2. A universalidade negligenciada – este mesmo período analisado no item anterior pode ser visto como uma sucessão de escolhas do poder público optando por setores da sociedade a serem atendidos pelas políticas públicas de saúde, em detrimento da universalização. Estes setores representavam os interesses econômicos do país. Quando da criação das CAPs eram atendidos somente os trabalhadores das empresas e seus dependentes. A própria Lei Elói Chaves surgiu como resposta do Estado às reivindicações dos trabalhadores urbanos, durante as greves do final da década de 1910, principalmente em São Paulo, e não como uma política de Estado, para garantir o direito à saúde ao conjunto da população. Quando criados os IAPs, manteve-se a cobertura apenas para trabalhadores formais, só que, agora, organizados por categoria profissional e não por empresas. Isto atendeu ao interesse de industrialização do país. Mesmo com a criação do INPS e INAMPS o conjunto da sociedade brasileira não foi contemplado. Estes institutos mantiveram a setorialização do atendimento, garantindo o direito à saúde, somente aos trabalhadores com carteira assinada e excluindo grande parte da população brasileira. 3. Crescente centralização dos serviços de saúde – Das CAPs ao INAMPS assistiu- se a uma crescente centralização dos serviços de saúde no Brasil. As CAPs eram organizadas por empresas e tinham uma participação ativa dos trabalhadores na sua gestão. Durante o governo de Getúlio Vargas a centralização administrativa e política ocorreu com a unificação das CAPs em IAPs, agora organizados por categoria profissional. Os trabalhadores perderam, com isso, a possibilidade de interferir na gestão dos recursos financeiros dos institutos, inclusive, sendo os presidentes dos IAPs indicados diretamente pelo Presidente da República. Durante a ditadura militar, instaurada no país a partir de 1964, houve mais um passo na centralização, quando os IAPs, em 1966, foram unificados no INPS. O Movimento da Reforma Sanitária Brasileira passa, então, a propor, a partir do final da década de 1970, um sistema de saúde que unificasse as ações presentes no Ministério da Saúde e Ministério da Previdência e Assistência Social, garantindo, desta forma a integralidade das ações. Propõe também a universalidade do atendimento, garantindo a todos os residentes no país o direito à saúde e a descentralização do sistema de saúde com aumento do papel dos municípios e, ainda, a garantia da participação popular na formulação e fiscalização das estratégias e políticas de saúde. O MOVIMENTO DA REFORMA SANITÁRIA Uma reviravolta na saúde era necessária, para a reversão do modelo assistencial, dicotomizado entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Previdência e Assistência Social, centralizado no governo federal e muito longe de ser justo e eqüitativo, principalmente por atender somente os setores da sociedade formalmente empregados. Este sistema era o INAMPS e não se ficava apenas nas críticas a ele, mas se propunha um sistema de saúde universal, descentralizado e integral. Sarah ESCOREL (1999), resgata essa história no livro “Reviravolta na Saúde: origens e articulação do movimento sanitário”. Desempenharam papel central na articulação do movimento diversos atores sociais, os quais ESCOREL (1999, p.67-68) divide em três vertentes. A primeira vertente é representada pelo movimento estudantil e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), os quais difundiram análises críticas da medicina, e apresentaram propostas transformadoras. A segunda vertente é representada pelos movimentos de Médicos Residentes e de Renovação Médica (REME). Estes dois movimentos discutiram a realidade das condições de trabalho do médico atuando na regulamentação da Residência Médica, tentando garantir os direitos trabalhistas para os médicos residentes e atuando nos sindicatos médicos. A terceira vertente estava nas universidades, fazendo uma revisão crítica do modelo preventivista. Como representante desta última vertente citamos o trabalho de Sérgio Arouca, recentemente publicado: “O Dilema Preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva” (AROUCA, 2003). Arouca e outros autores estão, nesta época fazendo uma crítica ao discurso preventivista. Asa Cristina Laurell no México e Jaime Breilh no Equador, estão elaborando o que chamamos de modelo da Determinação Social do Processo Saúde-Doença. Asa Cristina Laurell, quando da publicação, por Jaime Breilh, do livro “Epidemiologia, Economia, Medicina y Política”, em maio de 1989, escreve no prólogo: De uma ou de outra forma tem surgido a proposição de que a doença não pode ser entendida à margem da sociedade na qual ocorre. [...] Hoje, há um reconhecimento quase universal da importância do social no processo de geração da doença. No entanto, esse reconhecimento não teve maiores repercussões práticas. A medicina continua sendo exercida nos hospitais com um enfoque puramente clínico-biologicista. (LAURELL, 1991) Estavam plantadas as idéias para uma reviravolta na saúde. O Movimento da Reforma Sanitária Brasileira havia cumprido um papel de resistência política à ditadura militar no setor saúde e quando da redemocratização do país, estes atores sociais puderam influenciar de forma decisiva a Reforma Sanitária. O ano de 1986 tornou-se um marco para que a reviravolta na saúde acontecesse, é neste ano que ocorre a mais importante conferência de saúde do país. A VIII CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE O relatório final da VIII Conferência Nacional de Saúde, ocorrida em Brasília em 1986 com a participação de aproximadamente cinco mil representantes dos diversos setores interessados na questão saúde, traz um modelo de determinação do processo saúde-doença, muito próximo do que estaria, mais tarde, em 1990, contemplado na já citada Lei Orgânica da Saúde, a Lei 8.080/90: Em seu sentido mais abrangente, saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde. É assim antes de tudo, o resultado das forças de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida. Saúde não é um conceito abstrato, define-se no contexto histórico em determinada sociedade, em um dado momento de seu desenvolvimento, devendo ser conquistada pela população em suas lutas cotidianas. (CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 1986) Nesta conferência prevaleceram as idéias do movimento sanitário. Além do reconhecimento da determinação social do processo saúde-doença o relatório final sinalizou para a construção de um sistema de saúde único, de acesso universal, descentralizado e com ações integrais, rompendo quase cem anos de centralização e exclusão social. Nos anos que se seguirão, iremos assistir a criação do arcabouço legal do Sistema Único de Saúde. A Constituição de 1988, e mais tarde, em 1990, a Lei Orgânica da Saúde vão estabelecer os princípios e diretrizes do novo sistema de saúde, que irá substituir o então INAMPS. Antes, porém, do SUS teremos experiências bem sucedidas precursoras da descentralização. Sem a intenção de discuti-las, neste momento,gostaríamos apenas de citar as Ações Integradas de Saúde (AIS), implantadas em 1983 e os Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde (SUDS), implantados em 1987. OS PRINCÍPIOS E DIRETRIZES DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE Iremos abordar aqui sete princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde. A escolha é parcial, pois outros princípios e diretrizes podem ser encontrados na legislação do SUS. Para simplificar a apresentação, não faremos diferenciação entre princípios e diretrizes. Um alerta é que não podemos tomar quaisquer dos princípios ou diretrizes de forma isolada. A consolidação do SUS só se dará se reconhecermos a indissociabilidade dos princípios e diretrizes. Discutiremos: 1. Universalidade 2. Equidade 3. Integralidade 4. Hierarquização 5. Descentralização 6. Regionalização 7. Participação popular O SUS deve atender a todos. Este é o princípio da universalidade. As políticas públicas de saúde, a partir da Constituição de 1988, devem ser pensadas e planejadas para o conjunto da população. Saúde passa a ser um direito fundamental da pessoa, independente da forma como ela se coloca no mercado de trabalho. “A saúde é um direito de todos e dever do Estado” – está expressão abre a seção II – Da Saúde, do Capítulo II – Da Seguridade Social da Constituição Federal. O novo sistema de saúde, regulamentado em 1990, terá um grande desafio pela frente: “A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”. (BRASIL, 1990) O SUS desta forma passa a cuidar da saúde de todos, promovendo a justiça, na medida em que, ao planejar suas ações, deve levar em conta as necessidades das pessoas. Mais do que a igualdade, o que seria atender a todos da mesma forma, o SUS passa a ter por princípio a promoção da justiça. Equidade é mais que igualdade. A igualdade pode ser apenas formal, enquanto a equidade é o reconhecimento das diferenças e das necessidades especiais dos grupos sociais mais vulneráveis socialmente. Não basta atender a todos se a natureza do atendimento não incorporar o princípio da integralidade. Atender de forma integral é garantir a promoção, a proteção (prevenção) e recuperação da saúde. Antes os serviços de saúde ligados ao Ministério da Saúde priorizavam a promoção da saúde e prevenção das doenças, enquanto o INAMPS, ligado ao Ministério da Previdência e Assistência Social, focava seu objetivo na recuperação da saúde, assistindo à doença. Agora, ambas estas ações devem ser garantidas no SUS. Também não basta garantir a universalidade e a integralidade apenas na atenção básica à saúde (ou atenção primária à saúde). É preciso que a promoção da saúde, prevenção das doenças e recuperação da saúde estejam presentes em níveis de hierarquização do sistema. O sistema de saúde deve ser organizado de forma a oferecer uma ampla rede de atenção básica (atenção primária à saúde), porta de entrada do sistema, com nível de resolutividade em torno de 80%. Os serviços ambulatoriais mais especializados e o atendimento hospitalar estão organizados nos níveis de atenção secundária e terciária à saúde. Nem sempre isso acontece. Em estudo anterior o autor teve oportunidade de demonstrar o sofrimento de mulheres gestantes, ao peregrinarem, pelo SUS, em busca de garantia de internação em maternidades da cidade de Curitiba, Paraná. (FRAIZ, 2001). Contrariando a tradição da crescente centralização do sistema de saúde, o SUS apresentou-se num momento de tentativas de descentralização (AIS e SUDS entre outras). Talvez a maior marca do sistema de saúde brasileiro a partir da década de 1980 seja a descentralização. Isto aconteceu, por um lado, pelos anseios do Movimento da Reforma Sanitária e, por outro, como uma saída para a crise da previdência anunciada no início da daquela década. A descentralização fortaleceu o papel dos municípios na gestão do sistema e permitiu que se levasse em conta a epidemiologia local no planejamento dos serviços. Além disso, a descentralização acompanhou o processo de redemocratização do país. Como conseqüência da descentralização e hierarquização do sistema temos a regionalização. Os serviços básicos de saúde passam a estar organizados com base territorial e os serviços secundários e terciários necessários devem estar à disposição de regiões organizadas na forma de distritos sanitários. Para se garantir a universalização é preciso dotar as regiões dos meios necessários para a promoção, proteção e recuperação da saúde nos níveis primário, secundário e terciário. E por último, mas não menos importante, temos a participação popular. Todos os itens abordados anteriormente foram garantidos no texto da Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990, porém o mesmo não aconteceu com a participação popular. Os artigos que tratavam da participação popular, entre outros, foram vetados pelo então Presidente da República, Fernando Collor de Melo. Uma nova lei teve que ser votada no Congresso Nacional, a Lei 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Esta lei prevê instâncias colegiadas para o controle social do SUS. São elas os Conselhos de Saúde e as Conferências de Saúde. Ambas têm a representação dos usuários do SUS paritária em relação aos demais segmentos. Também estão representados os profissionais de saúde, os prestadores de serviço privado e público. (BRASIL, 1990a) AS NORMAS OPERACIONAIS A descentralização do sistema de saúde no país não ocorreu de forma abrupta, tampouco homogênea. Alguns municípios brasileiros tinham plenas condições de assumir uma organização de um sistema municipal de saúde, mas a grande parte deles precisava de mecanismos indutores da descentralização. Sucessivas Normas Operacionais foram sendo elaboradas pelo Ministério da Saúde, as quais apresentaremos num quadro sinóptico, com informações extraídas de publicação da Associação Paulista de Medicina (SUS, 2002, p.175- 177): NORMA OPERACIONAL BÁSICA 01/91 Cria a AIH (Autorização de Internamento Hospitalar); o SIH (Sistema de Informação Hospitalar); o FEM (Fator de Estímulo à Municipalização). Promove avanços na criação dos conselhos estaduais e municipais. NORMA OPERACIONAL BÁSICA 01/93 Foram criadas as Comissões Intergestores. Os modelos de gestão se dividiam em: Gestão Incipiente, Parcial e Semiplena. Foram criados os FAE (Fator de Apoio ao Estado), FAM (Fator de Apoio ao Município) e o SIA (Sistema de Informação Ambulatorial). NORMA OPERACIONAL BÁSICA 01/96 As gestões municipais passam a ser duas: Gestão Plena da Atenção Básica e Gestão Plena do Sistema Municipal. A atenção básica passa a receber recursos por habitante, através do PAB (Piso da Atenção Básica). Os sistemas de informação passam a ser alimentados mensalmente e entre eles o Siab (Sistema de Informações de Atenção Básica de Saúde da Família e/ou Agentes Comunitários. NORMA OPERACIONAL DA ASSISTÊNCIA ( NOAS – SUS 01/2001 e NOAS – SUS 01/2002) Procura romper com a dicotomia Gestão Plena do Básico x Plena do Sistema. Incentiva a microregionalização. Amplia a atenção básica. Muitos avanços foram possíveis com a adesão dos municípios brasileiros às normas operacionais, principalmente nos aspectos que se referiam à capacidade dos municípios em assumir as responsabilidades decorrentes da descentralização do sistema de saúde e em relação à forma de financiamento do sistema. Quase a totalidade dos municípios brasileiros aderiram à NOB 96, com a grande maioria deles no modelo de Gestão Plena da Atenção Básica. Isto provocou uma polarização no sistema, ou seja, o município só tinha duas opções:ou assumia a Plena da Atenção Básica ou a Plena do Sistema. Como muito poucos municípios puderam assumir a Gestão Plena do Sistema, os outros municípios não tinham estímulos financeiros para um modelo de gestão que ficasse entre os dois pólos. De uma certa maneira a NOAS-SUS 01/2001, atenua este problema ao criar a Atenção Básica Ampliada e incentivar a microrregionalização. A EMENDA CONSTITUICIONAL 29/2000 Preocupado com o que chamou de “a gangorra orçamentária”, Eduardo Jorge, deputado federal ligado ao movimento sanitário, propôs uma emenda à constituição, a qual foi aprovada no ano de 2000. Entende-se como “gangorra orçamentária” o fato de que, na ausência de limites mínimos para investimentos em saúde, aconteceria situações onde quando aumentasse repasses de recursos da união, ou do estado, o município, por exemplo, deixaria de investir em saúde para investir em outras áreas. Ou seja, aumentando os recursos de um lado, poderiam diminuir o de outro, sem garantias de aumento efetivo dos recursos. Esta Emenda Constitucional estabeleceu limites mínimos de investimentos em saúde por parte dos estados e municípios. Após uma progressão, como mostra a tabela 1, os limites ficaram em 12% do orçamento para os estados e 15% para os municípios, sendo que a União passou a ter a obrigatoriedade de corrigir seus investimentos segundo a variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB). (JORGE; GOUVEIA, 2002, p. 235-238) TABELA 1 – SUGESTÃO DE PERCENTUAIS PARA APLICAÇÃO POR ESTADOS E MUNICÍPIOS – 2000 - 2004 Ano Estados Municípios 2000 7% 7% 2001 8% 8,6% 2002 9% 10,2% 2003 10% 11,8% 2004 12% 15% Muitos estados e municípios brasileiros ainda não cumprem a EC 29 /2000 e existe iniciativa no Congresso Nacional para se estabelecer um porcentual mínimo também para a União. O PROGRAMA DE AGENTES COMUNITÁRIOS DE SAÚDE (PACS) Em 1991, o Ministério da Saúde implantou na região nordeste do Brasil o Programa de Agentes Comunitários da Saúde. Inicialmente pensado para regiões com baixa cobertura de assistência médica, os resultados positivos fizeram com que, mais tarde, este programa se estendesse para todo o Brasil além de ser inspirador do Programa de Saúde da Família. O PACS consolidou a base territorial do sistema de saúde brasileiro, na medida em que o trabalho do Agente Comunitário de Saúde (ACS) se dá, principalmente, fora dos limites prediais da Unidade Saúde, na comunidade, com cadastramento de famílias por microrregião e vinculação do ACS com aproximadamente 100 famílias. O ACS, desta forma, passa quase toda a sua jornada de trabalho no território, visitando as famílias, vivenciando a dinâmica social das famílias inseridas no seu ambiente e estabelecendo uma ponte com a Unidade de Saúde. Além disso o ACS é escolhido entre os moradores do território da Unidade de Saúde. O PROGRAMA DE SAÚDE DA FAMÍLIA (PSF) Em 1994, O Ministério da Saúde, propôs aos municípios brasileiros a adesão ao Programa de Saúde da Família. Em documento de 1997 o Ministério da Saúde chama a atenção de que o PSF vem para a reorientação do modelo assistencial. (BRASIL, 1997) A rede básica do SUS vinha reproduzindo o paradigma flexneriano 2 , com serviços centrados no atendimento à doença, sem muitas possibilidades de realizar, com ênfase a promoção da saúde e a prevenção das doenças. O processo de trabalho na equipe de saúde era pautado na separação das funções por categoria profissional. A territorialização se restringia à delimitação geográfica da área a ser atendida pela Unidade de Saúde, sem muita possibilidade de incrementar as visitas domiciliares. Com o PSF se pretendeu reverter do modelo centrado no atendimento da demanda para um modelo que priorizasse a vigilância à saúde, sem, no entanto, descuidar da demanda. Desta forma fazendo promoção, prevenção e recuperação da saúde estaria se garantindo a integralidade das ações. O trabalho em equipe colocou os profissionais de saúde na perspectiva de construção de uma abordagem avançando da multiprofissional para a interdisciplinar. O foco do trabalho da equipe de saúde deixou de ser o indivíduo, para ser a família inserida numa dada comunidade e sociedade. O PACTO PELA SAÚDE 2006 – CONSOLIDAÇÃO DO SUS O Ministério da Saúde, em 22 de fevereiro de 2006, divulga, através da Portaria n. 399, o Pacto da Saúde 2006 – Consolidação do SUS. As Diretrizes Operacionais do Pacto 2 Abraham Flexner, educador norte americano publicou um relatório, em 1910, sobre a educação médica nos Estados Unidos da América. As propostas de mudanças nas escolas de medicina implantaram um modelo baseado no mecanicismo, biologicismo, individualismo, especialização, tecnificação e curativismo, o que chamamos de paradigma flexneriano. pela Saúde foram aprovadas em reunião da Comissão Intergestores Tripartite 3 e do Conselho Nacional de Saúde. Este documento vem extinguir o processo de habilitação para estados e municípios, conforme estabelecido na NOB SUS 01/96 e NOAS SUS 2002. O Pacto pela Saúde, deve ser renovado ano a ano, através de um Termo de Compromisso de Gestão, assumido pelas instâncias federal, estaduais, municipais e do Distrito Federal. O Pacto pela Saúde envolve três componentes: Pacto pela Vida, Pacto em Defesa do SUS e Pacto de Gestão. O Pacto pela Vida envolve compromissos sanitários, com explicitação de compromissos orçamentários e financeiros. O Pacto em Defesa do SUS reafirma os princípios da Reforma Sanitária, principalmente a universalidade, a necessidade de cumprimento da EC 29/2000 e garantia do orçamento do SUS. O Pacto de Gestão substitui os modelos de gestão Plena do Sistema e Plena da Atenção Básica. (BRASIL, 2006) Ainda, é muito cedo, para avaliar o impacto desta portaria, no processo de descentralização e municipalização do sistema de saúde, já que os municípios ainda estão tomando conhecimento do conteúdo do documento. CONCLUSÃO O nascimento do SUS foi possível no momento da redemocratização do país. O SUS é uma construção da sociedade brasileira, representada, no setor saúde, pelo Movimento da Reforma Sanitária. As idéias que vão transformar o sistema de saúde brasileiro representaram a resistência da sociedade organizada no setor saúde ao modelo centralizado, ineficiente e injusto implantado durante a Ditadura Militar (1964-1985). Uma mudança no modelo de determinação do processo saúde-doença foi necessária para se articular o novo modelo assistencial, reconhecendo a determinação social da saúde e da doença. A partir deste reconhecimento, se considera a saúde um direito fundamental da condição humana, e portanto, um dever de todos, aqui representados pelo Estado. Cabe, portanto, a toda a sociedade a responsabilidade pela garantia da saúde para todos. 3 A Comissão Intergestores Tripartite é formada por representantes do Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS). O SUS encontra inúmeras dificuldades na sua implantação. O processo de descentralização é heterogêneo nos municípios brasileiros. As normas operacionais e agora o Pacto pela Saúde são medidas para a consolidação da municipalização. O Programa de Agentes Comunitários de Saúde e a Estratégia de Saúde da Família 4 são formas de garantir os princípios e diretrizes do SUS. A cumprimento da EC 29/2000 e a sua regulamentação são necessários para que o SUS supera as dificuldades na sua consolidação. Além disso, aparticipação popular garantirá incorporação da condição de saúde como condição de cidadania. REFERÊNCIAS AROUCA, S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo: Editora UNESP; Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2003. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1988. BRASIL. Lei n. 8080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília, 1990. BRASIL. Lei n. 8142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde – SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Brasília, 1990a. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 399, de 22 de fevereiro de 2006. Brasília, 2006. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Coordenação de Saúde da Comunidade. Saúde da Família: uma estratégia para a reorientação do modelo assistencial. Brasília: Ministério da Saúde, 1997. CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 8., 1986, Brasília. Relatório Final. Brasília, 1986. 4 A partir da Portaria n. 399, a terminologia Programa de Saúde da Família tende a ser substituída por Estratégia de Saúde da Família. ESCOREL, S. Reviravolta na saúde: origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1998. FRAIZ, I. C. Gestação, itinerário terapêutico e peregrinação: um estudo sociológico da perda do bebê no bairro Sítio Cercado -Curitiba. Curitiba, 2001. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. GIL, G. P.et al.. Medicina preventiva e salud publica. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. JORGE, E.; GOUVEIA, R. Para entender a Emenda Constitucional 29/2000. In: SUS: O que você precisa saber sobre o Sistema Único de Saúde. São Paulo: Editora Atheneu, 2002. LALONDE, M. A new perspective on the health of Canadians. Office of the Canadian Minister of National Health and Welfare. Ottawa, 1974. LAURELL, A. C. Prólogo da primeira edição. In: BREILH, J. Epidemiologia: economia, política e saúde. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista : Fundação para o Desenvolvimento da UNESP : HUCITEC, 1991. SUS: O que você precisa saber sobre o Sistema Único de Saúde. São Paulo: Editora Atheneu, 2002.
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