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Sistemas de Política Criminal no Brasil

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Cadernos CEDES/IUPERJ n.2 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SISTEMAS DE POLÍTICA CRIMINAL NO BRASIL: 
RETÓRICA GARANTISTA, INTERVENÇÕES SIMBÓLICAS 
E CONTROLE SOCIAL PUNITIVO 
 
 
 
 
 
Miriam Guindani* 
 
 
 
* Pesquisadora visitante do CEDES e bolsista Pós-Doc FAPERJ. 
 2
I. Introdução 
 
 Neste trabalho apresento uma parte dos resultados preliminares da pesquisa que 
venho realizando sobre os sistemas (penal e não penal) da política criminal vigente no Brasil. 
Faço uma descrição analítica (seguindo as referências de Delmas-Marty, 2004), através do 
qual identifico os componentes mais significativos do sistema penal e as relações que 
estabelecem entre si. Pretendo, assim, assinalar os diferentes objetos das disputas que, hoje, 
atravessam a sociedade brasileira, em matéria de política criminal penal. 
No modelo de análise adotado, está sendo possível decifrar alguns elementos que 
constituem o quadro babélico nessa área. As divergências se multiplicam sem que haja um 
mínimo de consenso sobre as razões do dissenso, sobre os motivos das discordâncias ou 
mesmo sobre os temas que são objetos dos conflitos de idéias. Os interlocutores se atacam 
uns aos outros, os críticos entram em confronto ideológico, político, intelectual, sem que 
saibam pelo menos sobre o quê estão discutindo. As diferenças de opinião ou de posições 
políticas mudam de grau e têm conseqüências bastante diferentes, quando partem de um 
consenso sobre qual é o objeto da disputa e quando não se entendem nem sobre esse ponto 
básico. 
Uns dizem que é preciso aprimorar alguns mecanismos de algumas instituições, como 
as prisões terapêuticas, e outros respondem com críticas, sustentando que só o direito penal 
mínimo garantirá os direitos sociais, ao que outros respondem com outras críticas, 
sustentando que sem a participação comunitária não chegaremos a lugar algum, ao que outros 
respondem com mais críticas, sustentando que errado é o sistema econômico. 
Nesse exemplo hipotético, os temas sobre os quais as pessoas divergem são 
diferentes, os objetos sobre os quais se desentendem são diferentes. A tal ponto são 
diferentes, que não seria impossível imaginar que todos estejam de acordo quanto aos 
seguintes pontos: (a) é necessário aprimorar alguns mecanismos das organizações prisionais; 
(b) o direito penal mínimo deve ser defendido, porque é menos mal do que as demais opções; 
(c) a participação popular é condição necessária, ainda que insuficiente, para que um sistema 
de política criminal justo e democrático funcione; (d) o sistema econômico é perverso. 
Por outro lado, seria possível (e tem sido possível, nos encontros e desencontros do 
cotidiano, que testemunho nos debates que pude acompanhar em vários estados brasileiros) o 
 3
inverso, quer dizer, uma situação em que todos concordem, referindo-se a objetos diferentes, 
mas supondo que se referem aos mesmos temas e objetos. Nesse caso, o consenso poderia ser 
apenas aparente e ocultar uma divergência de fundo. Por exemplo: (a) alguém diz que a 
violência policial está insuportável e propõe uma manifestação popular contra a polícia e a 
política de segurança; (b) outra pessoa concorda e defende a punição rigorosa dos policiais 
acusados de violência, abusos e violações; (c) uma terceira pessoa concorda e propõe que o 
Ministério Público seja convocado a cumprir suas obrigações constitucionais, fiscalizando as 
atividades policiais; (d) uma quarta pessoa também concorda e propõe que câmeras sejam 
instaladas nas viaturas policiais, para que todas as operações policiais sejam registradas e 
controladas. 
Apesar da concordância nas opiniões emitidas e até nas propostas práticas 
encaminhadas, as quatro pessoas do exemplo acima podem ter concepções divergentes e 
contraditórias, que passam desapercebidas porque todos os interlocutores compartilham a 
ilusão de que falam sobre o mesmo tema, sobre o mesmo objeto. Na verdade, os objetos e 
temas são diferentes, o que significa que as posições coincidem, mas, no fundo, são respostas 
a perguntas diferentes e, por esse motivo, têm conteúdos distintos e até opostos: 
(a) A primeira pessoa que vocifera contra a violência policial não a considera um 
desvio que deve ser evitado e que não tem sido evitado por incompetência ou cumplicidade 
das autoridades responsáveis. Ela considera, ao contrário, que a brutalidade policial é 
constitutiva da polícia e dos policiais, e que toda política de segurança é uma política de 
controle repressivo, que atenta contra as liberdades individuais e coletivas, em nome de um 
sistema panóptico e opressivo. Ela define as polícias como aparelhos repressivos do Estado, 
cuja função é manter o domínio de classe na sociedade capitalista. Reformar as polícias 
significaria apenas aperfeiçoar os instrumentos de dominação de classe. Torná-las menos 
brutais significaria mascarar a dominação de classe, para torná-la ainda mais perversa e 
eficiente. A opção dessa pessoa é a denúncia e o aproveitamento da revolta popular como 
combustível para a organização política. Mesmo o direito penal mínimo lhe parece uma 
capitulação ao direito burguês, que acaba por legitimar a ordem burguesa, suas instituições 
repressivas. 
(b) A segunda pessoa que protesta contra a violência policial e defende a punição 
rigorosa dos policiais violentos o faz em nome do fim da impunidade, que considera a 
 4
principal causa da criminalidade e da violência. Ela defende uma política séria e dura de lei e 
ordem, e acredita que a polícia deve dar o exemplo, respeitando a lei e só usando a força nos 
limites da lei. Ela crê que as leis devem se tornar mais duras, as penas mais extensas e as 
ações policiais mais rigorosas, mas, sempre dentro da lei e, portanto, sem violência –essa 
pessoa entende que não há violência quando a força empregada é aquela necessária para que 
a lei seja aplicada e se justifica quando há resistência, desde que corresponda à intensidade 
desta resistência. 
(c) A terceira pessoa rejeita a violência policial ilegal e também rejeita, seja a idéia de 
que toda polícia é intrinsecamente comprometida com a opressão de classe, seja a tese de que 
as penas devem aumentar e o rigor policial deve ser intensificado. Essa pessoa é contrária aos 
marcos legais atualmente vigentes no Brasil. Ela prefere o direito penal mínimo. Ela propõe 
que se cobre do Ministério Público o cumprimento de suas atribuições constitucionais –nem 
mais, nem menos- e prefere ver o MP fiscalizando a polícia do que vê-lo investigando. 
(d) A quarta pessoa defende o atual modelo legal e institucional, mas acredita que 
reformas pontuais serão necessárias para que as leis vigentes –que considera positivas- sejam 
realmente aplicadas, o que tornaria os crimes mais raros, as polícias menos violentas e mais 
eficientes, a impunidade menor e a sociedade mais justa e segura. Por isso, sustenta não só a 
implantação do monitoramento visual das operações policiais, como a implantação de um 
sistema amplo de vigilância e monitoramento nas vias públicas, especialmente nas áreas 
conflagradas, para que tanto os policiais quanto os criminosos sejam identificados. 
O mais revelador é que essa imensa confusão acontece em todas as esferas, nos 
debates mais diversos, inclusive entre especialistas, em todas as regiões do país. É claro que a 
opinião pública participa e sofre em meio a essa babel. Em parte, acredito que essa seja uma 
das razões para a inconsistência dos discursos e das práticas de políticos, autoridades e 
gestores, para o zigue-zague das políticas de segurança, para as interrupções que impedem a 
consolidação das reformas e para a enorme confusão que caracterizaessa área, na qual todos 
se sentem conhecedores e para a qual todos têm propostas, sem que ninguém se entenda e 
sem que nada seja acumulado. 
 
 
 
 5
II. A importância central das críticas garantistas 
 
Entre as disputas que se travam no campo penal da política criminal –e não apenas no 
Brasil-, destaca-se o conflito que opõe os “garantistas” aos seus adversários ideológicos ou 
filosóficos, ou políticos. O foco exclusivo do garantismo penal é a proteção dos direitos 
individuais contra as invasões punitivas do Estado, contra as exacerbações do controle 
estatal, contra os avanços do direito penal sobre a liberdade individual. 
Alguns dos adversários do garantismo são os que defendem a prioridade do controle 
democrático e os que valorizam, positivamente, as funções da pena, seja como instrumento 
de inibição do crime, a serviço dos interesses maiores da sociedade, seja como retribuição ao 
mal cometido, seja como reparação indireta dos sofrimentos e prejuízos impostos às vítimas, 
seja como mecanismo de ressocialização dos apenados. 
Vamos acompanhar algumas das formulações do garantismo. Darei ênfase, aqui, ao 
garantismo penal, porque acredito que se trata da posição mais radicalmente comprometida 
com os princípios fundamentais consagrados na Constituição de 1988. O garantismo tem sido 
pensado e elaborado como uma crítica forte ao direito penal, em suas formulações 
tradicionais, demonstrando a subordinação dessas formas tradicionais de pensar e agir aos 
mecanismos de opressão social. 
Não é por acaso que alguns dos principais pensadores do garantismo penal são 
oriundos da criminologia crítica (Baratta,1997; Carvalho,2001; Zaffaroni,1997). Mesmo 
havendo diferenças com o marxismo autores como Melosso & Pavarini (1996) ou L. 
Wacquant (2001), com a sociologia crítica de um autor como David Garland (1999) e com a 
visão mais extremada de um Michel Foucault (1979) ou L.Houlsman(1996) , o fato é que o 
garantismo, provavelmente mais do que qualquer outra perspectiva de pensamento sobre 
política criminal, absorveu ou, pelo menos, dialogou e dialoga, sobretudo na América Latina, 
na França e na Itália, com os estudiosos que denunciam o comprometimento do direito penal 
e das políticas criminais com as desigualdades, a dominação de classe, a exclusão da 
cidadania, a discriminação, a estigmatização, a construção social das carreiras criminais, a 
criminalização das “classes perigosas” e a marginalização e o controle dos grupos sociais 
mais vulneráveis. 
 
 6
II.1. A política criminal e o sistema de justiça penal, segundo o garantismo 
 
O debate sobre a política criminal sempre esteve vinculado aos campos do direito 
penal e da criminologia. Muitos autores (Andrade,1997; Roxin,1972; Barata,1997 ; 
Pavarini,1996a ) defendem que essas disciplinas deveriam caminhar a partir de um modelo 
integrado de referência, imposto pela necessidade de um saber interdisciplinar. Nessa linha, a 
criminologia forneceria o substrato analítico do fenômeno criminal (análise do 
crime/criminoso) aos operadores sistema penal (polícias, ministério público, juízes, agentes e 
técnicos penitenciários); enquanto a política criminal se responsabilizaria por transformar as 
análises e orientações criminológicas em opções e estratégias concretas de controle da 
criminalidade; e por último, o direito penal encarregar-se-ia de converter em proposições 
jurídicas, gerais e obrigatórias, o saber criminológico aplicado pela política criminal. 
Como o delito não tem consistência material ou ontológica, pois é constituído 
socialmente (teoria do etiquetamento- Larrauri,1992 ), delegam-se, nesse enfoque, ao direito 
penal e aos criminólogos papéis importantes na “rotulação” do que seja crime e criminoso, já 
que são eles que fornecem a “ferramenta conceitual” aos que operam no sistema penal. 
Assim sendo, direito penal e saber criminológico estão inscritos, no marco legal, como 
referências centrais das decisões dos operadores do sistema penal (polícias, ministério 
público, juízes, agentes e técnicos penitenciários), que desenvolvem uma atividade seletiva, 
orientada pela definição do que seja criminalidade e pela identificação dos criminosos –
observe-se que entre a seleção abstrata da lei e a seleção concreta realizada pelos operadores 
há um complexo e dinâmico processo de relações. 
Nesse enfoque, o campo do direito penal deveria estar orientado por um sistema de 
políticas criminais, seguindo os preceitos do Estado Democrático de Direito, sendo-lhe 
conferido, um caráter estritamente instrumental. Isto é, as normas e ações penais sempre 
expressam um dado modelo de política criminal - liberais ou conservadores - (Delmas-Marty, 
2004) e falar de direito penal é falar, portanto, de um modelo de política normatizado que, 
em razão das múltiplas possibilidades de interpretação no contexto sócio-cultural, jamais será 
um modelo estático, mas dinâmico sempre, em permanente transformação. 
 Por exemplo, na prisão de um jovem, reincidente, por porte ilegal de pequena 
quantidade de cocaína para uso pessoal (Lei 6.368/76, art. 16), se oferece ao juiz (assim 
 7
como acontece em todas as esferas do sistema, nas quais os operadores sempre se confrontam 
com esse repertório de interpretações e valores) os seguintes argumentos: 1)absolver o 
jovem, por entender inconstitucional o art. 16, face à proteção outorgada à liberdade; 
2)absolver o jovem, por julgar que, embora constitucional o artigo em questão, insignificante 
é a quantidade apreendida; 3)condenar o jovem à pena máxima, em razão de reincidência, 
etc; não admitindo pena alternativa, por julgar esta medida “socialmente não recomendável” 
(CP, art. 44); 4)condenar à pena mínima ou pena “média”, admitindo a substituição por pena 
alternativa, não obstante a reincidência, por entender “socialmente recomendável” a 
substituição; etc. Seguindo o conflito imanente à sua decisão, o juiz, com o argumento de 
“cumprir a lei”, estará realizando, necessariamente “dentro da lei”, segundo a sua formação 
(liberal, conservadora etc.), uma política criminal, no caso concreto. 
É interessante observar que a dúvida do juiz (assim como dos demais operadores) ou 
a margem de manobra que ele tem não será ocupada e decidida apenas por sua filiação 
teórica ou por sua identidade ideológica ou filosófica a uma ou outra linha do direito penal. 
Haverá outros argumentos presentes na cena da decisão subjetiva - e não me refiro aos traços 
psicológicos ou emocionais do magistrado, ainda que isso também pese, de alguma maneira. 
Os outros argumentos são aqueles que formam as linhas em que se divide o campo da cultura 
penal e os sistemas de política criminal – que ultrapassam o espaço da dogmática penal. 
Vejamos alguns argumentos a seguir. 
O ordenamento jurídico-penal brasileiro diz que o juiz deve aplicar a pena necessária 
e suficiente para a prevenção e a reprovação de um crime (art. 59, CP). A sanção penal terá, 
portanto, caráter: retributivo (como medida da culpabilidade), preventivo especial (como 
medida de reabilitação e neutralização do condenado) e preventivo geral (como exemplo e 
intimidação aos outros cidadãos) ( Pavarini, M.1996 ; Santos, J. 1997) 
O discurso retributivo da pena argumenta que é legítima a função dada ao sistema 
penal de realizar o castigo aos infratores, via privação de direitos, em especial a privação da 
liberdade. Contudo, a retribuição torna-se um fato indemonstrável, pois o domínio subjetivo 
da vontade do apenado, que é indevassável, inviabiliza qualquer possibilidade de constatação 
sobre a “realidade” da purgação da culpa. 
O discurso que legitima a função de prevenção especial da pena está diretamente 
vinculado aos atores responsáveispela aplicação e execução da pena. Exemplo: o programa 
 8
de prevenção especial é sempre definido pelo juiz, no momento da imputação da sanção 
penal (suficiente para prevenir o crime). Tal programa deveria ser realizado por técnicos da 
execução penal (assistentes sociais e psicólogos), objetivando a “harmônica integração social 
do condenado” (conforme LEP, art. 1o). Além disso, a aplicação/execução concreta da pena 
cumpriria a função simbólica de estabilizar as expectativas normativas da comunidade. 
Estaria, assim, demonstrada a utilidade do sistema penal para a proteção da sociedade: a 
reabilitação do criminoso reforçaria a confiança da sociedade nas leis e instituições, 
reafirmando a legitimidade do Estado, ao reduzir a criminalidade. Por outro lado, a não-
punição do criminoso reduziria a confiança da população na “inquebrantabilidade” do 
sistema penal, estimulando a criminalidade. 
Contudo, ao lado da falência do projeto institucional (sobretudo do modelo prisional), 
a pena privativa de liberdade, atualmente, vive uma crise na base de sua fundamentação. O 
conceito de reabilitação foi totalmente desmistificado, nos anos 80, e as teorias que 
assumiam a punição como forma de tratamento e ressocialização foram desmascaradas 
(Foucault, 1979; Garland, 1999, Christie, 1985, Thompson,1998) diante de argumentos 
ambíguos sobre a execução penal, que deveria ser um dos pilares para a construção de um 
Estado Democrático de Direito, mas que se mostra muitas vezes ilegítima e irracional. Mas, 
se a função preventiva especial da punição perdeu o seu principal ponto de sustentação, que 
residia na estrutura institucional, cuja ideologia da reabilitação está sendo criticada de 
maneira irreversível, o que poderia ser preservado das funções da punição? 
 Resta, ainda, o discurso que legitima a função da prevenção geral. Isto é, argumenta-
se que a sanção e execução penal desestimulariam a prática do crime, pelo menos na 
proporção da certeza da punição. Contudo, o desestímulo ao crime pela intimidação recebe 
duras críticas decorrentes de dois problemas imediatos: 1)pode transformar-se em terrorismo 
estatal, porque a prevenção geral não possui o critério limitador das modalidades de punição; 
2) e pode violar o princípio da dignidade humana, porque o condenado é punido como um 
exemplo para influenciar a coletividade, ou seja, aumenta-se o sofrimento de um indivíduo 
para influir no comportamento de outros. 
 Segundo a crítica do garantismo penal, o discurso que legitima a importância das 
funções preventivas (citadas anteriormente) do sistema de justiça penal vem reforçando o 
advento do “direito penal simbólico”, que se manifesta pelas políticas de criminalização da 
 9
pobreza. Em outras palavras, segundo a perspectiva garantista, as políticas penais estariam 
focalizando as áreas/setores definidas como mais problemáticas da sociedade, para as quais o 
Estado não pareceria interessado em oferecer soluções alternativas, via sistema de justiça 
social, bastando, portanto, soluções penais simbólicas. Esse sistema penal, dito simbólico, 
estaria incidindo na psicologia popular, produzindo efeitos de legitimação do poder político e 
do próprio direito penal. A legitimação do poder político ocorreria, nesse sentido, pela 
ostentação de eficiência repressiva, que tenderia inclusive a proporcionar vantagens político-
eleitorais. 
A legitimação do sistema penal, além disso, vem se efetivando não somente através 
de intervenções simbólicas, mas também instrumentais. Isto é, a intervenção simbólica ocorre 
porque problemas sociais recebem soluções repressivas penais, como uma satisfação à 
opinião pública; mas é também instrumental, porque revigora o sistema penal como um 
sistema desigual de controle social seletivo, dirigido contra favelas e bairros pobres das 
periferias urbanas, especialmente contra a força de trabalho excluída do mercado, sem função 
na reprodução do capital e já punida pelas condições de vida. 
Para aqueles de defendem o garantismo penal, seria esse discurso eficientista, da 
prevenção geral, que estaria na origem da redução de todas as garantias constitucionais de 
liberdade, igualdade, presunção de inocência entre outras, relativas ao processo penal, cuja 
supressão vem ameaçando converter o Estado Democrático de Direito em Estado policial 
repressivo. Nessa ótica garantista, o discurso da prevenção geral escamoteia a relação da 
criminalidade com estruturas produtoras de desigualdades da sociedade brasileira, instituídas 
sob o manto legitimador do direito e garantidas pelo poder do Estado. Por isso, os teóricos 
inscritos nessa tradição, cuja identidade se constrói pela busca de alternativas à 
criminalização, afirmam, em síntese, o seguinte: não se precisa de um direito penal melhor, 
mas de qualquer coisa melhor do que o direito penal. 
Dito de outra forma acredita-se que a exigência incondicional da prevenção acaba 
subordinando o sistema penal a manobras arbitrárias do poder, pois erosão do direito penal 
democrático somente pode ser evitada pelo abandono das responsabilidades preventivas do 
direito penal simbólico, em favor de formas adequadas de governo, nas áreas dos direitos 
civis e sociais. 
 10
 Os defensores de políticas criminais progressistas argumentam que o sistema penal 
preventivo1 é incapaz (sem trair-se) de controlar os perigos e risco da violência criminal – 
entre outras razões, porque a efetividade da sua proteção acaba por violar os direitos 
fundamentais. Assim sendo, a elaboração técnica de tipos e políticas penais deveria ser a 
expressão legal de um programa de política criminal desenvolvido como componente 
orgânico de uma concepção de política social definida pelo Estado e, assim, a materialização 
de um processo democrático de deliberação política – nunca o contrário. 
Mudar a clave do sistema penal, da tecnologia punitiva para o sistema de garantias do 
indivíduo contra o poder punitivo do Estado, é uma opção ético-político do “garantismo 
penal”, que defende “...um esquema tipológico baseado no máximo grau de tutela dos 
direitos e na fiabilidade do juízo e da legislação, limitando o poder punitivo e garantindo a(s) 
pessoa(s) contra qualquer tipo de violência arbitrária, pública ou privada (...) O garantismo se 
propõe a estabelecer critérios de racionalidade e civilidade para a intervenção penal, 
deslegitimando qualquer modelo de controle social maniqueísta que coloca a ‘defesa social’ 
acima dos direitos e garantias individuais” (Carvalho, 2001, p. 17-19). 
Nessa perspectiva, acredita-se que o discurso prevalecente no campo do sistema penal 
poderá ser tensionado por um discurso que permita submeter o sistema punitivo e as políticas 
criminais vigentes à perspectiva crítica. Isto é, ao ser invalidado segundo preceitos 
constitucionais, os discursos tenderiam a ser deslegitimados. Seguindo esta perspectiva, 
tratar-se-ia de construir um novo sistema de conceitos para uma nova política criminal 
(Garland,1999), atribuindo prioridade à proteção dos direitos individuais, sobretudo diante do 
Estado (e de seu poder punitivo). 
Para isso, Carvalho (2001) sustenta que a dogmática penal seja exercida com um 
caráter marcadamente garantista e destaca que o papel dos operadores do sistema penal 
(polícias, ministério público, advogados e defensores, juízes, agentes e técnicos 
penitenciários) já não é, como no velho paradigma positivista, sujeição à lei, qualquer que 
seja o seu formato, mas sujeição à lei enquanto coerente com os preceitos da Constituição 
Federal. 
 
1 Atenção para este ponto, que tem gerado muito ruído na comunicação entre os interlocutores que 
disputam idéias sobre políticacriminal: a teoria que atribui papel preventivo à pena nada tem a ver com 
concepções que sustentam a eficiência e a legitimidade democrática de ações e políticas preventivas (não 
penais) da criminalidade. 
 11
 
II.2. Os limites do garantismo e a confusão sobre os objetos do dissenso 
 
O garantismo avança em suas críticas, ampliando os seus alvos. Não se restringe a 
criticar o direito penal, o sentido social da criminalização seletiva e a política criminal em sua 
dimensão repressiva e punitiva. Atinge também a dimensão preventiva da política criminal, 
denunciando o que poderia ser chamado de “securitização das políticas sociais”, ou seja, a 
subordinação das políticas sociais à retórica de lei e ordem ou, dito de outra forma, a 
transformação dos direitos sociais em mecanismos de controle, ou ainda, a conversão de 
benefícios em estigmas. 
Quando realizam essa expansão do horizonte de suas críticas, os autores garantistas 
demonstram as limitações de suas próprias posições e mostram que também caem nas 
armadilhas das confusões sobre quais são os objetos do consenso e do dissenso. 
Autores que defendem a necessidade de equilibrar os direitos individuais com o 
controle democrático, chamam a atenção para a filiação liberal do garantismo e afirmam que 
seu radicalismo tem pés de barro. Para justificar essa crítica, lembram o caso dos direitos 
difusos e as dificuldades que os garantistas têm para lidar com o conflito entre direitos, 
quando a mera perspectiva individualista e a preservação unilateral -e a qualquer preço- dos 
direitos individuais não são suficientes para dirimir confrontos entre os direitos fundamentais 
e os direitos sociais. 
 Os críticos do garantismo que também partem de premissas progressistas, dizem que 
a democracia numa sociedade complexa exige muito mais do que o samba-de-uma-nota-só 
das garantias dos direitos individuais, constitucionalmente consagrados, por mais que eles 
sejam sagrados e devam ser respeitados. Isso porque, para que eles sejam respeitados, seria 
preciso valorizar a política criminal, tanto na dimensão repressiva e propriamente penal, 
quanto na dimensão preventiva. 
Para os críticos progressistas do garantismo (Selmini,1996; Streck,1999; Soares, 
2005), ações de prevenção da criminalidade não podem ser facilmente rotuladas e 
descartadas como securitização do social, até porque, muitas vezes, as ações preventivas se 
apresentam, exatamente, como alternativas aos processos de criminalização e têm o mérito de 
evitá-los ou de, pelo menos, reduzir os seus danos. Eles dizem que a população sofre com a 
 12
criminalidade, particularmente com a criminalidade violenta. Lembram, inclusive, que os que 
mais sofrem com a criminalidade violenta (especialmente a letal) são os mais pobres, 
especificamente os jovens pobres e negros. Dizem que, se o controle social –preventivo e 
repressivo- não for eficiente, de forma democrática e nos marcos constitucionais, uma 
demanda por ordem autoritária trará riscos muito mais graves aos direitos individuais do que 
as ações preventivas e as ações repressivas legalmente realizadas. Ressaltam, também, que as 
populações das cidades têm se envolvido em políticas públicas e ações sociais bastante bem 
sucedidas, no que diz respeito à prevenção da criminalidade violenta, e que esse sucesso, 
envolvendo a participação cidadã, tem colaborado para a afirmação crescente da consciência 
dos direitos e de sua defesa prática, por movimentos sociais e entidades da sociedade civil. 
Os críticos mais ásperos da retórica garantista chegam a dizer que ele não passa de 
ideologia dos advogados elitistas de criminosos de colarinho branco, advogados que foram 
espertos o bastante para criar uma aura de nobreza em torno do que fazem. 
De toda maneira, qualquer que seja a posição de cada um, todos temos de reconhecer 
que o debate não tem avançado ou tem avançado muito pouco e, certamente, muito menos do 
que poderia avançar, porque perdura a confusão sobre, afinal de contas, em cada caso e 
diante de cada disputa, o que é que se está discutindo, qual é o objeto da divergência, quanto 
de consenso se está supondo e sobre quê haveria consenso, e em que termos se poderia 
melhor conduzir o debate. 
 O garantismo é uma ideologia, uma teoria, uma perspectiva política, uma visão a 
respeito de que temas? E quais são os temas focalizados por seus críticos? Seus críticos se 
dizem defensores da primazia da democracia e de sua viabilidade prática, e admitem o 
controle social em nome da defesa das condições políticas que viabilizem a manutenção de 
uma institucionalidade que proteja os direitos coletivos e individuais. Mas será que estão 
falando sobre a mesma coisa, os mesmos problemas, os mesmos fenômenos, os mesmos 
conceitos, os mesmos valores? Será que estão de acordo sobre o que estão divergindo? 
 
 
 
 
 
 13
III. Um modelo descritivo do sistema penal da política criminal: circunscrevendo o 
dissenso 
 
Vamos, então, para a anatomia dde uma parte da confusão. Passo ao que denominei 
quadro analítico de nosso sistema de justiça da política criminal vigente no Brasil. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 Os componentes do sistema, como ocorre em qualquer sistema social, são as regras, 
os atores, suas ações e suas disputas político-ideológicas e intelectuais (em sentido mais 
amplo). Cada uma dessas categorias remete a sub-categorias, que, por sua vez, remetem a 
campos, valores, lógicas de funcionamento, mecanismos e dinâmicas. Há ainda duas 
categorias importantes: as relações que os componentes estabelecem entre si e a posição em 
Sistema de justiça criminalè Prevenção do Crime
Poder executivo
União
Ministério da Justiça
DEPEN/FUNPEN
SENASP/FNSP
Polícias Federais/Presídios
SE Direitos Humanos
Gov.Estadual
Defensoria Pública 
Secretaria da Justiça
Secretaria Segurança
Polícia Militar
Polícia Civil
Sistema Penitenciário
Administração das Casas 
Prisionais
Poder judiciário
STJ
TSJ
TRJ
Comarca
Vara Criminal
Vara de Execuções 
Penais
e Medidas Alternativas
Poder legislativo
Congresso (leis 
penais, 
CPIM,fiscalização, 
orçamento)
Assembléia 
Legislativa
CDH
(fiscalização do 
sistema prisional)
Leis 
Estaduais(ex.admini
stração,orçamento)
Câmara Municipal
Comissão DH
Leis Municipais
(ex: políticas 
afirmativas para 
mulheres egressas)
Ministério 
Público
MPF
MPE
Promotorias 
de Execuções
Criminais
CNPC
CONSEPEN
Conselho da 
Comunidade
Execução
Das penas
Alternativas
PSC
LFS
Controle do 
processo
Da execução penal 
(progressões de 
regimes
e Livramento 
condicional)
Acompanhamento 
do Livramento 
Condicional
Criminalização Primária
x 
políticas de prevenção 
primária da violência 
criminal
Criminalização secundária 
x 
políticas prevenção 
secundária da violência 
criminal
Criminalização terciária
X
políticas de prevenção 
terci ária da violência 
criminal
Sistema de justiça social èAções Sociais de Prevenção da Violência 
Políticas Públicas (Estado/sociedade civil) (federais, estaduais e municipais
Saúde/Assistência Social/Educação/ Trabalho
E
N
T
R
A
D
A
S
A
I
D
A
Defensoria 
pública
 14
que se situa o observador, da qual se faz a descrição dos demais componentes e do conjunto 
que se forma pela articulação dos componentes. 
Não vou tratar de todos esses elementos. Pretendo focalizar apenas alguns. A intenção 
é chamar a atenção para a importância de uma descrição desse tipo, seja do ponto de vista da 
compreensão do sistema penal da política criminal que adotamos, seja para a compreensão 
de seufuncionamento prático, seja para a compreensão de nossa babel político-ideológica e 
intelectual, nessa área, seja para o conhecimento das razões pelas quais ainda é tão reduzida a 
consciência dessa complexidade. 
Repito: as categorias chave são as regras, os atores, suas ações e suas relações 
disputas. 
As regras incluem os marcos mais amplos, como a Constituição Federal e as 
Constituições Estaduais, as legislações infra-constitucionais (como a LEP, o código penal e o 
ECA), as portarias institucionais, as medidas internas às instituições e até as normas que 
estão embutidas nas culturas profissionais dos operadores, seja da segurança, seja da justiça, 
em cada um dos setores. São também pertinentes as normas embutidas na cultura e nas sub-
culturas que servem de referência e orientação para a sociedade civil (as organizações, os 
grupos e os indivíduos), em todas as suas áreas. 
Sob as regras estão, consciente ou inconscientemente, concepções teórico-filosóficas 
e valores, ou ideologias, os quais, quando conscientes, se organizam em discursos e se 
referem a obras, personagens, tradições, produzindo agregações e identidades, mas quando 
não são conscientes, não se referem a autores e obras, mas evocam tradições e argumentos 
mais ou menos padronizados, e também produzem agregações e identidades. 
Os atores são: os operadores do Poder Judiciário, nas esferas nacional e estaduais, 
com suas várias instâncias e sub-divisões; os promotores e procuradores, operadores do 
Ministério Público, também nas esferas nacional e estaduais, com suas respectivas divisões 
de trabalho, segundo questões ou tipos de direitos a defender. É claro que tanto os indivíduos 
quanto as instituições, em seu conjunto, são atores ou podem agir como atores relevantes. A 
Defensoria Pública, enquanto instituição, e os defensores, enquanto profissionais. Os 
advogados e a OAB. Os especialistas, pesquisadores e professores universitários. O 
Ministério da Justiça e as secretarias de segurança e da justiça (ou de defesa social), federal 
(a SENASP e o Fundo Nacional de Segurança Pública), estaduais e municipais, assim como 
 15
os governos federal, estaduais e municipais, de que participam. O sistema de execução penal, 
particularmente o sistema penitenciário, com seus respectivos operadores, nas diferentes 
instâncias, inclusive o DEPEN, o Fundo Penitenciário, o Conselho Nacional de Política 
Criminal, os Conselhos Penitenciários estaduais e os Conselhos da Comunidade (em suas 
conexões com as Varas de Execução). O sistema sócio-educativo e seus operadores, assim 
como os Conselhos Tutelares e os Conselhos da Criança e do Adolescente (em suas conexões 
com as Varas da Criança e da Juventude). As polícias e os policiais. As guardas municipais e 
seus agentes. As organizações da sociedade civil, voltadas para as questões pertinentes, direta 
ou indiretamente. 
As relações entre os atores institucionais, no contexto legal vigente, configuram a 
institucionalidade do estado Democrático de Direito, que a Carta de 1988 consagrou. No 
entanto, isso está longe de esgotar o assunto, porque os dispositivos normativos e as relações 
formais entre os atores, na prática, podem realizar uma política criminal bem distinta daquela 
que se deduziria dos elementos formais do sistema (ainda que, evidentemente, esta forma 
seja de grande importãncia e nunca seja apenas forma, seja sempre também substãncia e 
prática). Por isso, a própria diferença entre forma e substância, a rigor, não se sustenta. O que 
desejo sublinhar é a necessidade de que sejam incorporadas as ações ao nosso modelo. É 
preciso saber como funcionam as regras e as instituições, como agem os atores coletivos e 
individuais, como se relacionam, no dia a dia, da sociedade barsileira. 
Devemos atentar para o seguinte: algumas normas têm validade geral, mas outras 
constituem sub-conjuntos que dizem respeito a atores específicos. A LEP e o ECA são 
exemplos de leis que interessam a certo conjunto de atores. 
Além disso, também devemos atentar para o fato de que os atores são agentes e 
pacientes, dependendo da situação. Os policiais são operadores e aplicam as leis, e o fazem 
segundo filtros de classe, de cor, faixa etária e outros. Mas são também alvos das leis e de 
sua aplicação, como foi o caso no exemplo que mencionei sobre as opiniões convergentes e 
divergentes a respeito da violência policial. 
De todo modo, enquanto agentes, os atores que fazem parte do sistema de política 
criminal ou que intervém em seu campo, transformam a legalidade e a institucionalidade em 
política concreta, objetiva, implantada, com resultados práticos, com conseqüências. 
 16
Examinar essas ações, pelo menos aquelas que são típicas e mais relevantes, é indispensável 
para descrever o sistema de política criminal “realmente existente”. 
 As leis são práticas padronizadas, mas as práticas, mesmo as padronizadas, não 
necessariamente correspondem à letra da lei. Os operadores são protagonistas que possuem 
alguma margem de liberdade e maior ou menor discricionaridade na aplicação das leis, assim 
como aqueles que são objeto dessa aplicação reagem, não apenas recorrendo às leis ou às 
mesmas versões. 
As relações de disputas entre os atores, aqui, não mais do ponto de vista de suas 
relações funcionais, mas enquanto agentes políticos, cujas ações exercem impacto e podem 
mudar a própria moldura institucional e os marcos legais. Ou seja, aqui, não importa a 
relação entre polícia militar e comunidade favelada, na prática das operações policiais, mas 
suas disputas político-ideológicas, filosófico-morais, diretamente ou através de seus 
representantes, em torno da política de segurança ou, mais amplamente, da política criminal. 
É nesse ponto que a babel se instala. Profissionais, operadores, especialistas, 
pesquisadores, militantes de movimentos sociais, líderes de ONGs, autoridades, gestores, 
jornalistas, políticos, todos falam, escrevem, formulam, denunciam, criticam, demandam, 
acusam e se acusam mutuamente. Nesse sentido acredito que o mapeamento que tome esse 
modelo como referência pode ser não só intelectualmente rico, como politicamente relevante. 
Para ilustrar o modelo analítco, segue abaixo a descrição de algumas disputas 
relativas às regras: 
O Artigo 144 da Constituição está na berlinda. Há propostas de mudança e de 
manutenção. As corporações policiais desejam mantê-lo inalterando, mas cobram dos 
congressistas regulamentações. Especificamente, cobram a promulgação da lei orgânica das 
polícias. Os críticos da promulgação da lei orgânica temem a cristalização de um modelo que 
consideram irarcional, ineficiente, anti-democrático, resíduo da ditadura, assim como temem 
a autonomização das corporações, que se fechariam ainda mais intensamente em si mesmas, 
dificultando ainda mais as reformas. 
As propostas de mudança deste Artigo variam da unificação das polícias à 
desconstitucionalização, acompanhada da normatização do SUSP, Sistema ùnico de 
segurança pública –que não se confunde com unificação das instituições policiais (previstas e 
defendidas, a desconstitucionalização e a normatização do SUSP, no Plano Nacional de 
 17
Segurança Pública do governo Lula, arquivada depois de outubro de 2003). Outra proposta 
de mudança vem da associação nacional dos guardas municipais, que defende a 
transformação das guardas em polícias. Nesse mesmo sentido, há 35 projetos de emenda 
constitucional, hoje, no Congresso Nacional. 
O ECA (promulgado em 1990) vem sendo sistematicamente burlado. Há projetos de 
alteração, no Congresso Nacional, voltados, sobretudo, para a redução da idade de 
imputabilidade penal. A LEP remete a regulamentações estaduais, que poucos estados 
realizaram. Ela nãotem sido cumprida. A LEP, ainda, foi promulgada em 1984 e apresenta 
algumas incompatibilidades pontuais com a Constituição. O mesmo vale, em escala bastante 
ampliada, para o Código Penal, promulgado em 1940 e muito problemático, isto é, muito 
polêmico, sendo que boa parte dos problemas na legislação penal têm origem bem mais 
recente, como é o caso da lei dos crimes hediondos. Segundo vários protagonistas do campo, 
haveria aí indícios de inconstitucionalidade. O inquérito policial é outro tema central, isto é, 
estratégico, no sentido de que divide o campo e marca identidades e alianças. É estratégico 
também em outro sentido: uma decisão a seu respeito alterando o status quo exerceria grande 
impacto sobre o conjunto do sistema. 
Estão também em pauta: a unificação das polícias federal e rodoviária federal, que 
são departamentos do ministério da Justiça; a criação de fonte fixa de recursos para a 
segurança pública; a regulamentação do estatuto do desarmamento. 
Ao nível dos estados, há diversas questões relevantes, como a inscrição institucional 
da perícia, a adoção ou não do Termo Circunstanciado pela PM, a criação das Ouvidorias, o 
regimento disciplinar das PMs, a estrutura das carreiras na PM e na Polícia Civil, a 
integração dos dados e da formação policial, a integração das corregedorias. 
O poder de investigação criminal do Ministério Público é outro ponto polêmico de 
extrema importância, que divide os atores, marca profundamente o campo das disputas e se 
projeta sobre o conjunto do sistema. A matéria está no STF e ainda é objeto de disputa no 
Congresso. 
Para ilustrar a disputa relativa aos atores e às suas ações: 
Estão sob o fogo cruzado dos questionamentos mais diversos todos os atores 
institucionais (e suas múltiplas relações), em todos os níveis, e seria possível, aqui, descrever 
as principais questões em disputa sobre as limitações do atual formato institucional, 
 18
relativamente a cada ator institucional (claro que essas disputas envolvem também a 
dimensão normativa). 
As principais cobranças são: 
a) sobre a Justiça: o acesso é desigual; a lentidão gera injustiça e impunidade; os 
procedimentos espelham a desigualdade social; a transparência é precária; 
b)sobre a Defensoria Pública: há poucas defensorias estaduais e, onde existem, estão 
desaparelhadas e com pessoal insuficiente; 
c) sobre o MP: a autonomia dos operadores é uma virtude, mas traz problemas, porque 
pulveriza a instituição. Além disso, o viés criminalizante predomina. A fiscalização da 
polícia civil não se realiza. Sua não participação efetiva nas investigações que instruem os 
inquéritos reduze sua qualidade e os torna mais demorados. 
c) sobre as polícias: são ineficientes, corruptas e violentas, isto é, freqüentemente violam os 
direitos humanos, sobretudo dos pobres e negros. Aplicam seletivamente as leis, com viés de 
classe e cor. 
d)sobre o sistema de execução penal: não cumpre as determinações da LEP, viola direitos, 
não garante a segurança dos apenados e da sociedade, e não aplica, suficientemente, as penas 
alternativas à privação da liberdade. Não apoia o egresso. 
e) sobre o sistema sócio-educativo: não cumpre as determinações do ECA e viola direitos. 
Relativamente à própria disputa: não se distinguem as posições, relativamente às 
questões, gerando confusão e a síndrome que denominei babel. A falta de clareza sobre o 
sistema de política criminal dificulta a identificação das posições e a delimitação das 
disputas, com as conseqüências já mencionadas sobre as políticas públicas. 
 
*** 
Para concluir, gostaria de voltar a um ponto especialmente importante: a disputa entre 
garantistas e defensores do controle democrático, do direito penal como inibidor e reparador 
simbólico, defensores, enfim, da política criminal. Em especial, quero retomar sua 
divergência em torno das políticas e ações sociais preventivas da criminalidade. São ou não 
são democraticamente legítimas e positivas? Representam a expansão do discurso de lei e 
ordem, que passaria a colonizar o discurso social e o campo das políticas sociais? Ou 
 19
correspondem a iniciativas que visam, justamente, evitar a criminalização seletiva, que 
reproduz desigualdades? 
Aplicando o modelo talvez se possa entender o que está em jogo, nessa disputa. Uma 
interpretação possível para o debate sobre a prevenção seria a seguinte: o discurso garantista 
tem como foco as regras (os direitos individuais consagrados na Constituição); o discurso do 
controle democrático tem como foco os atores, seja os grupos sociais mais vulneráveis aos 
processos de criminalização, seja as instituições –que também são atores- democráticas 
(guardiães políticas das próprias regras, especialmente da Constituição). Não estariam, 
portanto, falando sobre a mesma “coisa”. Em certa medida, ambos estão preocupados com a 
preservação dos direitos, mas as mediações são diferentes. Para os garantistas, o Estado não 
pode violar direitos individuais, qualquer que seja a justificativa. Do ponto de vista dos 
críticos, para que os direitos individuais e coletivos não sejam violados, o Estado tem de ser 
preservado (as instituições e as regras) e tem de ser preservado através da aplicação de uma 
política criminal, em que o controle só implica violação se a leitura das regras for estreita, 
unilateral, descontextualizada e formalista. Os críticos do garantismo diriam que o 
garantismo politiza a dimensão das regras, mas despolitiza o sistema criminal (porque não o 
considera, como realidade social e política, historicamente construída e sujeita a abalos e 
mudanças). 
O que importa não é definir quem está com a razão na disputa entre garantistas e seus 
críticos à esquerda, nem saber se a prevenção é legítima ou não, do ponto de vista 
democrático e progressista. O interesse está em demostrar que o esforço de organização e 
mapeamento do debate pode ser relevante para a sistematização de uma nova política 
criminal penal e não penal no país . 
Acredito que o modelo de análise possa contribuir, também, para facilitar a 
participação, nos debates, de outros profissionais, formados em outras tradições e em outras 
disciplinas. Estou convencida de que a vasta problemática dos sistemas da política criminal é 
importante demais, complexa demais, para ficar restrita aos operadores e pensadores do 
sistema penal. Ela é e deve ser, cada vez mais, matéria para o conjunto das ciências sociais. 
 
 
 
 20
IV.Referências Bibliográficas 
 
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