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Roberto Busato QUESTÃO DE ORDEM DIRETORIA Roberto Antonio Busato : Presidente Aristoteles Dutra de Araújo Atheniense : Vice-Presidente Raimundo Cezar Britto Aragão : Secretário-Geral Ercílio Bezerra de Castro Filho : Secretário-Geral Adjunto Vladimir Rossi Lourenço : Diretor Tesoureiro CONSELHOS FEDERAIS AC: Marcelo Lavocat Galvão, Roberto Ferreira Rosas, Sergio Ferraz; AL: João Tenório Cavalcante, Marcelo Henrique Brabo Magalhães, Marilma Torres Gouveia de Oliveira; AP: Adamor de Sousa Oliveira, Guaracy da Silva Freitas, Sebastião Cristovam Fortes Magalhães; AM: Alberto Simonetti Cabral Neto, João Thomas Luchsinger, José Paiva de Souza Filho; BA: Antônio Luiz Calmon Navarro Teixeira da Silva, Jeferson Malta de Andrade, Newton Cleyde Alves Peixoto; CE: Antônio Cézar Alves Ferreira, José de Albuquerque Rocha, Paulo Napoleão Gonçalves Quezado; DF: Amauri Serralvo, José Eduardo Rangel de Alckmin, Marcelo Henriques Ribeiro de Oliveira; ES: Antonio José Ferreira Abikair, Ímero Devens, Luiz Cláudio Silva Allemand; GO: Ana Maria Morais, Felicíssimo José de Sena, Thales José Jayme; MA: José Brito de Souza, Raimundo Ferreira Marques, Ulisses César Martins de Sousa; MT: Ana Lúcia Steffanello, Elarmin Miranda, Oclécio de Assis Garrucho; MS: Afeife Mohamad Hajj, Elenice Pereira Carille, Vladimir Rossi Lourenço; MG: Aristoteles Dutra de Araújo Atheniense, Gustavo de Azevedo Branco, Paulo Roberto de Gouvêa Medina; PA: Frederico Coelho de Souza, Maria Avelina Imbiriba Hesketh, Sérgio Alberto Frazão do Couto; PB: Delosmar Domingos de Mendonça Junior, José Edísio Simões Souto, Marcos Augusto Lyra Ferreira Caju PR: Edgard Luiz Cavalcanti de Albuquerque, José Hipólito Xavier da Silva, Lauro Fernando Zanetti; PE: Ademar Rigueira Neto, Aluísio José de Vasconcelos Xavier, Cláudio Soares de Oliveira Ferreira; PI: Fides Angélica de Castro Veloso Mendes Ommati, Marcelino Leal Barroso de Carvalho, Nelson Nery Costa; RJ: Alfredo José Bumachar Filho, Márcio Eduardo Tenório da Costa Fernandes, Ronald Cardoso Alexandrino; RN: Francisco Soares de Queiroz, Heriberto Escolástico Bezerra, Luiz Gomes; RS: Cezar Roberto Bitencourt, Reginald Delmar Hintz Felker, Roberto Sbravati RO: Celso Ceccato, Pedro Origa Neto, Romilton Marinho Vieira; RR: Dircinha Carreira Duarte, Ednaldo Gomes Vidal, Francisco das Chagas Batista; SC: Gisela Gondin Ramos, Jefferson Luis Kravchychyn, Marcus Antonio Luiz da Silva; SP: Alberto Zacharias Toron, Mauro Lúcio Alonso Carneiro, Orlando Maluf Haddad; SE: Edson Ulisses de Melo, Manuel Meneses Cruz, Raimundo Cezar Britto Aragão; TO: Dearley Kühn, Ercílio Bezerra de Castro Filho, Manoel Bonfim Furtado Correia. EX-PRESIDENTES: 1. Levi Carneiro (9.3.33 a 11.8.38), 2. Fernando de Melo Viana (11.8.38 a 11.8.44), 3. Raul Fernandes (11.8.44 a 11.8.48), 4. Augusto Pinto Lima (11.8.48 a 31.8.48), 5. Odilon de Andrade (14.9.48 a 11.8.50), 6. Haroldo Valladão (11.8.50 a 11.8.52), 7. Attílio Viváqua (11.8.52 a 11.8.54), 8. Miguel Seabra Fagundes (11.8.54 a 11.8.56), 9. Nehemias Gueiros (11.8.56 a 11.8.58), 10. Alcino de Paula Salazar (11.8.58 a 11.8.60), 11. José Eduardo do P. Kelly (11.8.60 a 11.8.62), 12. Carlos Povina Cavalcanti (11.8.62 a 6.4.65), 13. Themístocles M. Ferreira (6.4.65 a 28.5.65), 14. *Alberto Barreto de Melo (15.6.65 a 7.4.67), 15. Samuel Vital Duarte (7.4.67 a 1.04.69), 16. *Laudo de Almeida Camargo (1.4.69 a 1.4.71), 17. *José Cavalcanti Neves (1.4.71 a 1.4.73), 18. José Ribeiro de Castro Filho (1.4.73 a 1.4.75), 19. Caio Mário da Silva Pereira (1.4.75 a 1.4.77), 20. Raymundo Faoro (1.4.77 a 1.4.79), 21. *Eduardo Seabra Fagundes (1.4.79 a 31.3.81), 22. *J. Bernardo Cabral (1.4.81 a 3.4.83), 23. *Mário Sérgio Duarte Garcia (4.4.83 a 1.4.85), 24. *Hermann Assis Baeta (1.4.85 a 31.3.87), 25. *Márcio Thomaz Bastos (1.4.87 a 1.4.89), 26. *Ophir Filgueiras Cavalcante (1.4.89 a 1.4.91), 27. *Marcello Lavenère Machado (1.4.91 a 1.4.93), 28. *José Roberto Batochio (1.4.93 a 1.4.95), 29. *Ernando Uchoa Lima (1.4.95 a 31.1.98), 30. *Reginaldo Oscar de Castro (1.2.98 a 31.1.2001), 31. *Rubens Approbato Machado (1.2.2001 a 31.1.2004) ________________________ *Membros Honorários Vitalícios Ordem dos Advogados do Brasil Conselho Federal Roberto Busato QUESTÃO DE ORDEM Brasília, DF - 2007 CONSELHO FEDERAL © Ordem dos Advogados do Brasil Conselho Federal Distribuição: Biblioteca da OAB,CF Setor de Autarquias Sul - Q. 5 - Lote 2 - Bl. N - Sobreloja Brasília - DF CEP 70070-438 Fones: (061) 3316-9663 e 3316-9605 Fax : (061) 3316-9632 e-mail: biblioteca@oab.org.br Tiragem: 3.000 exemplares Capa: Rodrigo Pereira Foto Capa: Eugênio Novaes SUMÁRIO PREFÁCIO de Fábio Konder Comparato ................................. 11 INTRODUÇÃO ................................................................. 25 A POSSE ............................................................................. 35 A OAB PERANTE OS TRÊS PODERES ........................ 47 • Posse de Edson Vidigal no STJ (2004) ............................ 49 • Posse de Nélson Jobim no STF (2004) ............................ 54 • Posse de Raphael de Barros no STJ (2006) ..................... 62 • Posse de Ellen Gracie Northfleet no STF (2006) .......... 67 • Posse de Marco Aurélio Mello no TSE (2006) ............... 74 REFORMA DO JUDICIÁRIO .......................................... 81 • Controle externo ................................................................. 82 • Instalação do Conselho Nacional de Justiça ................... 88 • Súmula vinculante ............................................................... 90 • Processo Civil ...................................................................... 93 • A Nova Ordem Jurídica ..................................................... 96 DEFESA DAS PRERROGATIVAS DA ADVOCACIA • Advocacia e Cidadania ...................................................... 103 • A Personalidade Jurídica da OAB ................................... 108 • O Abuso das Custas Judiciais .......................................... 111 EDUCAÇÃO E DIREITO ................................................117 • A Crise Universal – e a Nacional .................................... 118 • Falando aos Bacharéis ...................................................... 120 • A Importância do Exame de Ordem ............................. 125 EM DEFESA DA REPÚBLICA E DA DEMOCRACIA .133 • O Lançamento da Campanha Nacional ........................ 134 • A XIX Conferência Nacional dos Advogados ............. 138 • A Carta de Florianópolis .................................................. 147 A CRISE E OS ESCÂNDALOS POLÍTICOS .................151 • O Caso Waldomiro Diniz ................................................ 152 • A Omissão Diante dos Escândalos ................................ 155 • Corrupção Sistêmica ......................................................... 163 • Sanguessugas e Dossiês Eleitorais .................................. 166 O IMPEACHMENT QUE NÃO HOUVE......................175 • A Contextualização da Proposta ..................................... 177 • O Voto de Sérgio Ferraz .................................................. 180 • A Proposta de Fábio Konder Comparato .................... 191 • Notícia-Crime contra o Presidente da República ......... 194 A PATOLOGIA ELEITORAL ..........................................201 • As Eleições e a Crise ......................................................... 202 • A Campanha (mais uma) por Ética nas Eleições ......... 205 A REFORMA POLÍTICA .................................................211 • A Urgência das Urgências ................................................ 212 • A OAB e a Miniconstituinte ............................................ 215 • Instalação do Fórum para a Reforma Política .............. 219 • Exposiçãode Motivos ao Governo e ao Congresso ... 222 • Propostas Aprovadas pelo Conselho Federal ............... 226 A QUESTÃO SOCIAL COMO CASO DE POLÍCIA .....233 • Segurança Pública e Cidadania ........................................ 234 • Violência e Inoperância Institucional ............................. 242 • A Advocacia contra o Crime ........................................... 245 • O Drama Social do Desemprego ................................... 248 • O Assassinato da Freira Norte-Americana ................... 252 • O Abril Vermelho do MST ............................................. 257 A (IN) JUSTIÇA TRIBUTÁRIA.......................................261 • A Nova Derrama .............................................................. 262 • A Voracidade Fiscal do Estado ....................................... 264 A OAB NO MUNDO ........................................................269 • Cooperação Internacional ............................................... 271 • A Paranóia Antiterrorista ................................................. 283 • Questão Palestina: O Avesso da Razão. ......................... 286 • Auto-Regulamentação dos Serviços Jurídicos e Transfronteiriços ........................................... 292 • Os Colégios de Advogados Como Garantias do Estado de Direito. ............................................................. 297 • Direitos Humanos e Meio Ambiente ............................. 308 • Carta ao Presidente do Colegio de Abogados de Bolívia ............................................................................ 312 DA TRIBUNA DE RUY BARBOSA...........................317 PREFÁCIO 11Questão de Ordem O ADVOGADO E A POLÍTICA Fábio Konder Comparato Os discursos, propostas e manifestações aqui reunidos são de caráter político, no sentido original do qualificativo: eles dizem respeito, direta ou indiretamente, à organização global da sociedade, ao plano superior em função do qual se desenrola, inevitavelmente, a vida de cada um dos seus integrantes. Não se cuida, portanto, como se adverte na INTRODUÇÃO, de reduzir os atos e pronunciamentos aqui coligidos, à política na acepção moderna e encolhida do vocábulo, vale dizer, à atividade competitiva dos que disputam a posse de parcelas do poder estatal, para exercê-la, na maior parte das vezes, em proveito próprio. Dito isto, uma indagação irrompe espontaneamente na mente do leitor. Como conciliar a profissão advocatícia com a atividade política? No caso específico da Ordem dos Advogados do Brasil, ao tomar posição em tais assuntos, não estaria transpondo abusivamente os limites de seu território próprio de competência? As reflexões que se seguem visam a esclarecer essa questão, mostrando o vínculo natural que prende a advocacia à política. A ação política dos advogados através da História Na verdade, a condição essencialmente geminada de ambas essas atividades funda-se num pressuposto necessário: a existência, no meio social, de um clima de liberdade. É por isso que os primeiros advogados só puderam surgir na Grécia com os alvores do regime democrático, e em Roma com a instituição da república. As diferentes tiranias e oligarquias sempre foram inimigas da atividade advocatícia. 12 Questão de Ordem Foi graças à proteção da liberdade, como apanágio natural da cidadania, que a arte específica dos retores pôde desenvolver-se em Atenas, tanto nos pretórios judiciais, quanto nas assembléias políticas. O talento excepcional de um Demóstenes ou de um Isócrates jamais teria podido manifestar-se fora do ambiente democrático. Importa lembrar, nesse sentido, que a sofística, tão injustamente depreciada na crítica socrática, foi uma criação de advogados que, havendo assumido nas cidades gregas da Sicília a defesa de réus em processos políticos, foram constrangidos ao exílio, decidindo fixar-se em Atenas, onde passaram a ensinar a arte da argumentação ao público jovem, desejoso de exercer um papel relevante na pólis democrática. Eis a verdadeira razão pela qual Platão, adversário dos sofistas como seu mestre Sócrates, e grande crítico da democracia, propôs a proibição do exercício da advocacia, na pólis ideal descrita no diálogo As Leis.1 Em Roma, Cícero reconheceu que a atividade própria dos oratores exercia-se não só nos tribunais, mas também perante o povo reunido em comícios, ou durante as sessões do senado.2 Da arte oratória dependeriam em grau máximo, não hesitou ele em afirmar pela boca de um dos personagens do mesmo diálogo, a defesa da dignidade individual, assim como a salvação da res publica.3 O longo período imperial, que pôs fim à experiência democrática e republicana no mundo greco-romano, fez cessar, como lógica conseqüência, a livre atividade advocatícia. Os advogados só voltaram a atuar, no foro judicial e arbitral, ou na arena política, com o surgimento das primeiras comunas livres na Baixa Idade Média européia. Mas esse restabelecimento das liberdades não durou muito tempo. Em Portugal, por exemplo, onde sempre prevaleceu o centralismo decisório, a experiência das franquias comunais foi breve e modesta, e seu desaparecimento coincidiu com a instituição, já em fins do século XV, em quase toda a Europa Ocidental, da monarquia absoluta de direito divino. Em lugar dos advogados, passaram a ocupar a cena política os legistas, conselheiros privilegiados dos reis e justificadores da sua soberania ilimitada, perante o imperador e o papa, os senhores feudais e os dignitários eclesiásticos. O eclipse da advocacia só veio a cessar com o advento da era revolucionária. A Inglaterra, como sempre, deu o exemplo, com a 1 937d e ss. 2 De oratore I, 35. 3 I, 34. 13Questão de Ordem promulgação, logo após a Glorious Revolution de 1688, do Bill of Rights, restaurador das liberdades tradicionais. Foi preciso, porém, aguardar um século para que o exemplo inglês repercutisse na América do Norte e na França. Restabeleceu-se, com a nova era, a liderança política dos advogados. Dos 55 membros da Convenção Constitucional de Filadélfia, em 1787, 34 eram advogados. Na França revolucionária, a Convenção que instituiu o regime republicano contava com um só proletário e alguns poucos empresários, mas uma expressiva maioria de advogados. O avanço da economia capitalista e do sistema industrial no mundo todo, a partir do século XIX, não deixou de transformar substancialmente a prática política, em especial no concernente à atividade parlamentar. Pela primeira vez na História, o grupo social dominante, a classe burguesa, não tinha condição de assumir pessoalmente o poder político, pois o exercício do controle empresarial não admite delegação. A solução desde logo encontrada, como salientou Max Weber, foi a de recrutar advogados para o ingresso nos partidos e o exercício da função parlamentar, em prol dos interesses empresariais.4 Foi preciso, porém, aguardar um bom tempo para que o mesmo ocorresse, e ainda assim em muito menor grau, em relação aos partidos e movimentos de defesa dos trabalhadores assalariados. O impacto de duas guerras mundiais, na primeira metade do século XX, deu início a um processo de grandes transformações sócio-econômicas, que acabaram por provocar sensíveis mudanças no campo da prática política. Iniciara-se a era da globalização. No campo industrial, grupos transnacionais de empresas, organizados em rede mediante controle externo, lograram superar o esquema original da luta de classes, fruto da primeira vaga de industrialização. Doravante – e a China é bem o paradigma dessa mudança radical – os trabalhadores já não enfrentam diretamente, em suas reivindicações, o titular do efetivo poder de controle em última instância, pois este se acha sediado no estrangeiro e não participa do capital da sociedade empregadora. Hoje, mais do que nunca, a defesa dos interesses vitais dos que vivem exclusivamentedo seu próprio trabalho depende de uma sindicalização internacional efetiva, que ainda está por fazer-se. Os advogados não podem deixar de prestar a sua colaboração técnica nesse campo. Acontece que no mundo contemporâneo a globalização capitalista já ultrapassou a fase industrial e se encontra, cada vez mais fortemente, 4 Wirtschaft und Gesellschaft, 5ª ed., Tübingen, J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1972, pág. 880. 14 Questão de Ordem marcada pela hegemonia do empresariado financeiro, cujos interesses estão desligados do sistema produtivo, e se alimentam da especulação pura e simples. Em vários países subdesenvolvidos, notadamente o nosso, esse novo perfil do capitalismo provocou, no interesse dos agentes financeiros e de uma classe puramente rentista, um colossal endividamento público, cujos encargos acabaram por travar o crescimento econômico. Tais mudanças não deixaram de provocar, no campo político, fundas transformações. Para o macro-empresariado internacional, a vida política no interior dos Estados deixou de ser relevante. O que importa é dominar as organizações internacionais que regulam a atividade econômica, como o FMI, o Banco Mundial ou a Organização Mundial do Comércio, e impor no mundo todo a livre movimentação de capitais e de mercadorias, sem qualquer proteção aos trabalhadores. Os partidos tradicionais, oriundos da luta de classes suscitada pelo primeiro industrialismo, e originalmente orientados pelo embate ideológico, tornaram-se, em todos os quadrantes do espectro político, agremiações profissionais dedicadas com exclusividade à conquista e à exploração do poder estatal para os seus correligionários. Transformaram-se, um após o outro, em “partidos de patronato” (Patronage-Parteien), como os denominou Max Weber,5 seguindo o exemplo pioneiro das duas grandes agremiações políticas norte-americanas. Com isso, o recurso tradicional aos advogados independentes, para atuarem como representantes parlamentares, foi sendo aos poucos posto de lado. O empresariado passa a servir-se, sempre mais, do concurso de economistas, técnicos financeiros, ou profissionais da comunicação de massa; quando não recorre aos seus próprios funcionários de alto escalão (os “executivos”), entre os quais podem aparecer ainda alguns advogados, mas despidos da qualificação de profissionais independentes. Do lado dos trabalhadores, a representação política passou a fazer-se, predominantemente, pelos próprios líderes sindicais, que, no entanto, é forçoso reconhecer, raramente se revelam imunes à tentação do poder pessoal ou da defesa exclusiva de interesses corporativos. Toda essa evolução histórica evidencia que a corporação dos advogados não pode jamais encasular-se na defesa das prerrogativas profissionais, pois a manutenção desta está sempre intimamente vinculada à garantia geral de preservação da liberdade pelo regime político. É esta a razão pela qual o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, objeto da 5 Op. cit., pág. 168. 15Questão de Ordem Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, põe como primeira finalidade da instituição a defesa da Constituição, da ordem jurídica do Estado democrático de direito, dos direitos humanos e da justiça social (art. 44, I). Trata-se, incontestavelmente, de um dever e não de simples faculdade. As relações entre advocacia e política na História do Brasil Nos tempos da colônia, foram os advogados os grandes paladinos da liberdade. No território do Distrito Diamantino, onde a Metrópole impôs medidas implacáveis e de rigor inédito em terras portuguesas, o Regimento baixado com o alvará de 23 de maio de 1772 determinou que as questões litigiosas fossem sentenciadas pelo intendente de modo sumário, verbal e de plano, “pela verdade sabida e sem figura alguma de juízo”. Em conseqüência, houve por bem o mesmo alvará proibir “que dentro do distrito das terras diamantinas possa residir bacharel algum formado, debaixo das penas de ser remetido à sua custa ao Rio de Janeiro e de seis meses de cadeia debaixo de chave nas prisões daquela Relação”. Excluía, porém, dessa medida “os que forem naturais das referidas terras, contanto que nelas não exercitem a advocacia, porque, exercitando-a, incorrerão nas sobreditas penas”. Em quase todas as insurreições políticas que eclodiram no ocaso do nosso período colonial, os bacharéis – advogados ou clérigos – estiveram na linha de frente. Como bem salientou Gilberto Freyre, a Inconfidência Mineira foi uma revolução de bacharéis, como da mesma forma o foram as duas revoluções pernambucanas de 1817 e 1824.6 Durante todo o Império e a República Velha, foi absoluto o predomínio dos bacharéis em direito, tanto na burocracia estatal, quanto na vida política. No período imperial, dos 23 presidentes do Conselho, 18 eram bacharéis em direito. O mesmo ocorreu com 67% dos titulares do cargo de ministro do império. Como salientou Joaquim Nabuco, em frase tantas vezes citada, as nossas Faculdades de Direito, sob o regime imperial, foram ante-salas da Câmara de Deputados. Igual cenário reproduziu-se durante a República Velha, não só em relação ao Congresso Nacional, mas também na própria chefia do Estado. 6 Sobrados e Mucambos, 5ª edição, 2º tomo, Livraria José Olympio Editora em convênio com o Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1977, pág. 579. 16 Questão de Ordem Daí não se há de concluir, todavia, como tantos o fizeram de modo superficial, que os decantados males do bacharelismo na velha política brasileira devam ser imputados aos advogados. Em primeiro lugar, pelo fato óbvio de que nem todos esses bacharéis em direito exerceram a atividade advocatícia. Em segundo lugar, porque foram sobretudo os advogados – e é este o seu título de glória – que sustentaram com raro denodo, nos pretórios judiciais, na imprensa e nas assembléias políticas, a luta pela abolição da escravatura. Essa defesa intrépida da liberdade, no plano individual e institucional, voltou a ocorrer no período republicano. Logo após a proclamação do novo regime, como sabido, a multiplicidade de desmandos militares, com prisões arbitrárias e destituições truculentas de chefes do Poder Executivo estadual, teve em Ruy Barbosa o seu mais firme opositor. Foi graças ao seu empenho que o Supremo Tribunal Federal, sob a liderança de Pedro Lessa, o qual, aliás, proveio da classe dos advogados, acabou por firmar a chamada doutrina brasileira do habeas- corpus, estendendo a proteção dessa garantia constitucional muito além da simples liberdade de locomoção. Em 11 de setembro de 1936, a criação do Tribunal de Segurança Nacional pela Lei nº 244 ecoou como o prelúdio do regime ditatorial, efetivamente instaurado no ano seguinte com o chamado Estado Novo. Ora, essa lei, em verdadeiro ato falho, atribuiu ao presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, criada seis anos antes, a incumbência de designar advogado para os réus que não pudessem ou não quisessem constituí-lo. Pouco mais de um mês após a instauração do Estado Novo, o Decreto-lei nº 88, de 20 de dezembro de 1937, revogou essa disposição, atribuindo a defesa dos réus, em tais condições, a um advogado de ofício, oriundo da Justiça Militar. Mas esse cerceamento odioso do direito de defesa acabou sendo superado pela iniciativa de uma plêiade de notáveis advogados, entre os quais é de justiça salientar os nomes ilustres de Sobral Pinto e Evandro Lins e Silva. Sobral Pinto, intelectual católico de renome nacional, não se deixando influenciar pela tibieza da hierarquia eclesiástica em relação à ditadura getulista, assumiu com galhardia, perante o infame Tribunal de Segurança Nacional, a defesa dos líderes comunistas Luís Carlos Prestes e Harry Berger. Mostrou com isto que o princípio do respeito aos direitos fundamentais ligados à dignidade da pessoa humana não pode nunca ser afastado, em relação àqueles considerados inimigos dos governantes ou do regime político instalado. 17Questãode Ordem Evandro Lins e Silva, cuja memória me é tão cara, defendeu perante o mesmo tribunal cerca de um milhar de presos políticos. Releva lembrar, a esse respeito, um episódio emblemático. No final de 1944, o governo havia encarcerado cinco personalidades de destaque da vida nacional, todos advogados ou bacharéis em direito: Adauto Lúcio Cardoso, Dario de Almeida Magalhães, Virgílio de Melo Franco, Austregésilo de Ataíde e Rafael Correia de Oliveira. Na expressão despicativa de Getúlio Vargas, tratava-se de “leguleios em férias”. Evandro conseguiu promover uma reunião da Ordem dos Advogados sobre o caso, e sugeriu que o presidente da entidade impetrasse habeas-corpus. A maioria do Conselho não acolheu a proposta, entendendo que a função da OAB seria unicamente a defesa da atividade profissional, sem tomar nenhuma iniciativa de natureza política. Diante disso, Evandro Lins e Silva redigiu a petição do habeas-corpus, que foi subscrita por mais de 300 advogados. Importa frisar que ambos esses paladinos da liberdade atuaram naquela conjuntura sem cobrar honorários, honrando com isso a nossa profissão, pois, como sabido, essa designação do estipêndio advocatício deriva de honor. Afastado o regime ditatorial em 1945, o país retrocedeu ao sistema liberal do século XIX europeu e da prática política norte-americana, anterior à presidência de Franklin D. Roosevelt. Ignorando as reiteradas advertências de Celso Furtado, os líderes políticos e a classe dos advogados, em sua grande maioria, despreocuparam-se com a reforma do Estado, condição básica para que pudéssemos enfrentar o grande problema nacional: a agravação do processo de subdesenvolvimento. Em lugar disso, deixamo- nos todos absorver pela querela ideológica, fortemente alimentada pela chamada guerra fria, que opunha, no plano mundial, os Estados Unidos à União Soviética. Nesse deletério caldo de cultura, germinou o golpe militar de 1964. Intoxicados pela propaganda anticomunista, solertemente orquestrada pelo governo norte-americano, os órgãos de direção das principais instituições da sociedade civil, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e a OAB, acolheram favoravelmente, de início, o novo estado de coisas. Felizmente, esse contubérnio foi de curta duração. Em pouco tempo, revelou-se sem disfarces a índole criminosa do regime instaurado pela caserna, e clérigos e advogados voltaram a trilhar o caminho da defesa, sem tergiversações, da dignidade da pessoa humana. Só Deus sabe o número considerável de homens e mulheres, em todo o Brasil, cuja vida e a integridade física ou 18 Questão de Ordem psíquica foram preservadas, nesses anos de maldição, pela oportuna intervenção de um advogado ou de uma autoridade eclesiástica. Sabe-se, hoje, que a extinção sem traumas do regime militar foi devida, em grande parte, à atuação de um notável advogado, Raymundo Faoro. Na qualidade de Presidente do Conselho Federal da OAB entre 1977 e 1979, negociou ele com o então Senador Petrônio Portela, emissário oficioso do governo, a difícil passagem do regime de arbítrio ao Estado de Direito. Em entrevista com o General Geisel, que recusava terminantemente a idéia de se convocar uma assembléia nacional constituinte, Faoro revelou- se um fino estrategista, ao propor, como medida substitutiva, a revogação dos atos institucionais e a readmissão do habeas-corpus em matéria de crimes políticos ou contra a segurança nacional, desde que, bem entendido, fossem restabelecidas as prerrogativas de independência da magistratura. A proposta foi acolhida pelo General-Presidente e posta em execução com a emenda constitucional nº 11, de setembro de 1978. Doravante, ninguém mais podia ser detido, torturado ou morto, sem que os agentes públicos, responsáveis por esses delitos, se recusassem a prestar informações à autoridade judicial competente, pondo em risco a manutenção da sua patente militar ou do cargo policial. Superado o regime político da caserna, voltamos, no entanto, a cometer o mesmo erro funesto do momento imediatamente posterior à liquidação da ditadura getulista: a omissão em reformar as estruturas do Estado, definitivamente ineptas para a condução do processo de desenvolvimento nacional. A vigente Constituição Federal, embora haja aperfeiçoado o sistema positivo de proteção aos direitos e garantias fundamentais, não alterou em sua substância a clássica organização de Poderes. A iniciativa e a aplicação das políticas públicas, função primordial do Estado contemporâneo, acham-se todas concentradas na chefia do Poder Executivo, cujo mandato oficial de curto prazo reduz-se na verdade tão-só à primeira metade, pois a outra é quase que inteiramente consagrada à preparação da futura eleição ou reeleição. Além disso, o chefe do Executivo atua constantemente sob a pressão de interesses partidários, setoriais ou corporativos, sem poder se consagrar, como devera, à realização do bem público. É essa disfunção organizativa do Estado brasileiro o principal fator responsável pela nossa inserção subordinada no processo da globalização capitalista. No meio século decorrido entre 1930 e 1980, o Brasil apresentou a taxa mais elevada de crescimento econômico do mundo, passando da 50ª 19Questão de Ordem à 8ª posição entre todos os países, em matéria de produção nacional. De 1980 até hoje, porém, o crescimento da economia brasileira, segundo dados publicados pelo Fundo Monetário Internacional, situa-se 17 pontos percentuais abaixo da média mundial, e o nosso país já decaiu para o 13ª ou o 14ª lugar na classificação mundial, em termos de PIB. Com isso, agravou- se sobremodo o problema da desigualdade social e regional, cuja solução constitui um dos objetivos fundamentais da República, como dispõe a Constituição em seu art. 3º, inciso II. Nada mais é preciso acrescentar, para se compreender a urgência de uma reforma política em profundidade, que das instituições se espraie, definitivamente, para os nossos costumes. Mas quem serão os grandes artífices dessa magna obra de regeneração nacional? A nação tem consciência de que esse múnus não pode ser confiado aos agentes políticos oficiais, pois, com raras exceções, eles só se preocupam em preservar seus interesses particulares e em conservar o statu quo. A tarefa recai por isso mesmo, uma vez mais, sobre as entidades que sempre encarnaram, nos momentos de crise nacional, a defesa da dignidade do povo brasileiro. É nessa perspectiva que devem ser compreendidos os esforços despendidos pela Diretoria do Conselho Federal da OAB, entre 2004 e 2007, para iniciar o processo de reconstrução estrutural de nossa vida política. A questão da reforma política, durante o mandato da Diretoria do Conselho Federal, presidida pelo advogado Roberto Busato Em 15 de novembro de 2004, foi lançada a Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia. Em obediência ao princípio republicano, a Campanha propôs-se a: 1) combater a privatização do espaço público e a crescente desnacionalização da economia brasileira; 2) exigir que a gestão financeira do Estado, atividade-meio, seja posta a serviço dos objetivos fundamentais da nossa República, declarados no art. 3º da Constituição Federal, a saber: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais; a promoção do bem de todos, sem preconceitos ou discriminações de qualquer espécie. Em obediência ao princípio democrático, propôs-se a: 20 Questão de Ordem 1) defender, contra a proliferação dos abusos e desvios de poder de toda sorte, o aprofundamento do controle da ação dos órgãos públicos, não só por parte do cidadão, como também por parte por esses próprios órgãos, uns em relação aos outros, de acordo com o princípio da separação de Poderes; 2) propugnar, com vistas à superação das notóriasdeficiências e distorções do sistema eleitoral e partidário, não só a introdução do instituto da revogação popular dos mandatos eletivos (recall), mas também a ampla utilização dos mecanismos de democracia direta ou participativa, como plebiscitos, referendos, iniciativa popular de leis e emendas constitucionais, e o orçamento participativo em todas as unidades da federação. Com base em tais princípios a Comissão de Defesa da República e da Democracia, criada no âmbito do Conselho Federal, pôde elaborar as seguintes proposições, que foram apresentadas ao Congresso Nacional: 1. Projeto de lei nº 4418/2004, na Câmara dos Deputados Regulamenta o art. 14 da Constituição Federal, em matéria de plebiscito, referendo e iniciativa popular. Define as hipóteses de plebiscito e referendo, e institui plebiscitos e referendos obrigatórios. A iniciativa de plebiscitos e referendos é do próprio povo, ou de uma minoria qualificada (2/3) dos membros de cada Casa do Congresso Nacional. Reforça o instituto da iniciativa popular de leis, dando ao respectivo projeto prioridade em sua tramitação e exigindo que a alteração ou revogação de uma lei, cujo projeto seja originário de iniciativa popular, quando feita por lei cujo projeto não teve iniciativa do povo, seja submetida obrigatoriamente a referendo popular. 2. Projeto de lei nº 0001/2006, no Senado Federal Reproduz, com algumas alterações, o texto do projeto de lei nº 4418/ 2004 da Câmara dos Deputados. Foi apresentado pela OAB ao Senado, em razão de estar o andamento do anterior projeto paralisado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara. 3. Projeto de lei nº 6997/2006, na Câmara dos Deputados Institui uma ação popular em matéria de improbidade administrativa. 4. Sugestão de projeto de lei nº 226/2006, na Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados Torna explícito, no art. 1º da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, que os agentes públicos sujeitos às sanções da Lei nº 1.079, de 1950, relativa aos crimes de responsabilidade, podem ser processados por atos de improbidade administrativa. 21Questão de Ordem 5. Sugestão de projeto de lei nº 225/2006, na Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados Regulamenta o art. 37, § 1º da Constituição Federal, que dispõe sobre a publicidade de atos, programas, serviços e campanhas dos órgãos públicos, da administração direta e indireta. 6. Proposta de emenda constitucional nº 00073/2005, no Senado Federal Institui o referendo revocatório de mandatos eletivos (recall). No caso de agentes eleitos pelo sistema majoritário, ele será exercido diretamente. Nas hipóteses de eleição proporcional, o recall consistirá na dissolução da Casa Legislativa. 7. Proposta de emenda constitucional nº 0001/2006, no Senado Federal Acrescenta inciso ao art. 49 da Constituição Federal, para estabelecer que é da competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar a construção de barragens, ou a transposição de águas, em rios que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham. No segundo semestre de 2006, o Presidente do Conselho Federal propôs a criação de um Fórum da Cidadania para a Reforma Política. A proposta foi aprovada pelo Conselho e o Fórum constituído com a participação de várias entidades da sociedade civil: a Associação dos Magistrados Brasileiros, a Associação dos Juízes Federais do Brasil, a Associação Nacional dos Procuradores da República, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, o Conselho Nacional das Igrejas Cristãs, o Instituto de Estudos Socioeconômicos, a Associação Nacional dos Jornais, o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, a Central Única dos Trabalhadores, a Força Sindical e a Associação Brasileira das Organizações Não Governamentais. Ao final do ano, o Fórum apresentou à deliberação do Conselho Federal uma ampla proposta de reforma política, em três partes: 1) a efetivação da soberania popular e a proteção dos direitos humanos; 2) a reforma eleitoral e partidária e 3) a organização e o funcionamento dos Poderes Públicos. 22 Questão de Ordem O Conselho Federal, em sua última reunião de 2006, deliberou sobre a primeira série de propostas e sobre uma parte da segunda série, tal como indicado neste livro. Ficou faltando deliberar, notadamente, sobre a mudança do sistema eleitoral para a Câmara dos Deputados, as Assembléias Legislativas, a Assembléia Distrital e as Câmaras Municipais, bem como sobre toda a terceira parte, consagrada propriamente à reforma do Estado, com vistas ao desenvolvimento nacional. Aqui, as principais propostas emanadas do Fórum são a instituição de um Poder de Planejamento, como órgão independente dos demais Poderes Públicos, assim como a bipartição da cúpula do Poder Executivo em chefia do Estado e chefia do Governo. INTRODUÇÃO 25Questão de Ordem Não há, em nosso país, entidade profissional cuja história esteja tão estreitamente associada à da República e suas instituições quanto a Ordem dos Advogados do Brasil. Essa vinculação, no entanto, não traduz qualquer relação de dependência ou submissão - ao Estado, ao governo, a partidos ou a ideologias. Muitíssimo pelo contrário. Ao longo de suas mais de sete décadas e meia de história, a OAB tem sido fiel a seu credo institucional, que a mantém distante de governantes e partidos, sem, no entanto, mantê-la alheia ou indiferente ao que se passa no cenário político-institucional. Nele, ao contrário, temos tido presença constante e independente, a ponto de não ser possível contar a nossa história sem mencionar a da República – e vice-versa. A história de meu mandato na presidência do Conselho Federal da OAB – no triênio 2004-2007 - expressa bem essa relação, nem sempre amena, freqüentemente tensa, mas invariavelmente rica, lúcida, sincera e transparente. Há um traço comum entre as administrações da OAB no curso de sua história: jamais se colocaram em outra trincheira que não a da cidadania, mesmo em épocas trevosas, como as ditaduras do Estado Novo (1937-1945) e a do regime militar (1964-1985). Jamais a OAB sustentou tese ou campanha que não tivesse como meta o cidadão, a ampliação de direitos sociais, o interesse público. Basta ver a história recente da redemocratização do país. Em todas as campanhas que mobilizaram a sociedade brasileira contra o regime militar (anistia, liberdade de organização partidária, diretas já) e nas posteriores, que deram início à reconstrução democrática (Constituinte, fim da censura, remoção da legislação autoritária, impeachment de Fernando Collor), a Ordem se fez presente, na vanguarda dos acontecimentos. Foi, inclusive, por intermédio da Ordem, então presidida pelo inesquecível Raymundo Faoro, que teve início o processo de distensão política, proposto pelo general-presidente Ernesto Geisel, em 1977. O 26 Questão de Ordem país tinha imposto um revés eleitoral às forças políticas da ditadura, ao eleger maioria oposicionista para o Senado em 1974. Disso resultou, em 1977, grave retrocesso político. O governo militar fechou o Congresso e impôs à nação um conjunto de medidas arbitrárias, conhecido como Pacote de Abril, que, entre outras iniciativas, criou a figura do senador indireto, garantindo dessa forma maioria governista naquela casa legislativa na legislatura seguinte, de 1979. Entre uma coisa e outra, em 1975 e 1976, houve dois assassinatos nos cárceres da ditadura - respectivamente, o do jornalista Wladimir Herzog e o do operário Manuel Fiel Filho, tensionando de maneira insuportável o ambiente político. A Ordem foi então procurada para, em nome da sociedade civil, negociar a abertura política, de que resultaria, adiante, a revogação do AI- 5, a anistia e o restabelecimento de eleições diretas para governador,em 1982 – numa palavra, a redemocratização, a vitória do poder civil, sem que um só tiro tenha sido disparado. No curso da redemocratização, no entanto, houve – tem havido - momentos de perplexidade. O inimigo já não era – e não é - tão explícito quanto no tempo da ditadura. Naquela época, havia apenas duas trincheiras. E era fácil saber quem deveria ser combatido. Com a democracia, no entanto, tudo se fragmentou, pulverizou. Já não se discutem as liberdades fundamentais, mas o varejo da cidadania. A Constituinte foi um momento rico, em que ainda conservávamos alguma ingenuidade heróica do período anterior, em que supúnhamos que bastava estabelecer no papel um direito para que ele se materializasse. Assim é que concebemos – e uso o plural no sentido de englobar as forças que lutaram contra o arbítrio – uma Constituição generosa, porém pouco eficaz. Alguns de seus dispositivos até hoje não foram sequer regulamentados. Ao longo de todo esse período de reconstrução democrática, em que ainda estamos, colhemos algumas decepções que, apesar de todos os pesares, exercem uma função fundamental: amadurecem a sociedade. O povo, depois de 30 anos sem eleição presidencial direta, elegeu Fernando Collor de Melo. Elegeu, mas, a seguir, “deselegeu”. Percebeu o logro. Itamar Franco teve a sensibilidade de propiciar o Plano Real, colocando no Ministério da Fazenda o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que encheu de esperanças e expectativas a sociedade brasileira. 27Questão de Ordem Teríamos, enfim, um presidente multidiplomado, capaz de fazer bonito nos principais fóruns internacionais. Seu primeiro governo foi razoável, mas, seduzido pela mosca azul da reeleição, comprometeu-o, permitindo que em torno de si prosperasse o fisiologismo parlamentar e a voracidade privatista, responsável pela redução do patrimônio público a preços inaceitáveis e em condições que levantaram suspeitas de negociatas envolvendo alguns de seus colaboradores. O segundo mandato apagou os méritos do primeiro, o que o levou a não eleger o seu sucessor. Após esta segunda desilusão, o país elegia o seu terceiro arquétipo messiânico: Luiz Inácio Lula da Silva. Collor era o arquétipo do super-homem; FHC, o do príncipe erudito; Lula, o do operário que venceu todas as barreiras da escala social e levaria o povo à redenção. Uma espécie de Moisés do ABC, de macacão e tamancos. Foi nesse instante que assumi a presidência da OAB. E os textos que aqui reúno expressam o processo de desencanto da sociedade brasileira, ainda presente no momento em que Lula, reeleito, inicia seu segundo mandato. A idéia de coligir em livro pronunciamentos, conferências, artigos publicados na imprensa e outras intervenções públicas feitas no decorrer desse período visa a registrá-lo sob a óptica da sociedade civil organizada. São manifestações no calor dos acontecimentos, quando o nervo exposto da crise sacudia e, em alguns casos, assustava a nação. Nesses momentos, como é de praxe, a Ordem é chamada - pela sociedade, pela imprensa, pelos políticos - a se manifestar. E atende sem tibieza, arrostando riscos, sem preocupação de agradar a governo ou oposição. Seu compromisso único é com a sociedade civil, cujos anseios se empenha em vocalizar. Foi assim, como resumi acima, ao tempo da ditadura; é assim nestes tempos de reconstrução democrática. O registro da palavra proferida no calor dos acontecimentos – opção editorial que faço - permitirá no futuro aos historiadores avaliar o ambiente moral e emocional em que os fatos aqui descritos ocorreram, as paixões e perplexidades que semearam. Não foram poucas. Não hesito em afirmar que me coube presidir a OAB num dos períodos mais turbulentos e surpreendentes da história contemporânea do Brasil. Como disse, o país, quando fui empossado, ainda estava em lua- de-mel com seu presidente da República, cuja saga biográfica, que o levara, no espaço de três décadas, do sertão pernambucano ao Palácio do Planalto, ainda encantava a opinião pública interna e externa. 28 Questão de Ordem Para nós, da OAB, que havíamos compartilhado a trincheira de resistência à ditadura com diversos dos integrantes do governo Lula – e com o próprio Lula -, era um desafio novo. Ao longo de sua vertiginosa carreira de sindicalista e de líder partidário, Lula e OAB foram interlocutores assíduos. Sempre que se sentiu perseguido e injustiçado, Lula valeu-se de nossa tribuna, que sempre o acolheu sem hesitar. Como seria então tê-lo como governante? Teríamos, mesmo com todo o patrimônio afetivo que se acumulara ao longo de tantas lutas compartilhadas, que manter eqüidistância de seu governo, evitar contágio com o varejo político-partidário. Sobretudo, teríamos que manter aceso o espírito crítico – não no sentido de iconoclastia leviana, mas no de vigilância construtiva -, que sempre cultivamos em relação a governos e governantes, não importando quem lá estivesse. Já no discurso de posse, que abre este livro - e no qual constam temas que iriam permear a cena institucional brasileira no curso de todo o meu mandato -, menciono a expectativa nacional em torno de Lula. E cobro de seu governo, que já percorrera um ano e um mês de seu mandato, maior ousadia no campo das reformas, sobretudo na área econômica. Não havia ainda registro de deslize ético - e a expectativa é de que não houvesse. Afinal, um dos fatores fundamentais de sua eleição – senão o principal - era a certeza que passara ao eleitor, de todas as classes sociais, de que romperia com padrões históricos de má conduta dos governantes. Padrões que remontavam aos tempos da Colônia, das Capitanias Hereditárias, cujos governantes eram donos – donatários – da sociedade que dirigiam, senhores de baraço e cutelo, que personificavam a lei e a ordem. Para triunfar, bastava, como na Pasárgada, de Manuel Bandeira, ser amigo do rei. Dali se originam distorções culturais que explicam algumas perversões de nossa República, ainda bem pouco republicana. Culturas como a da carteirada, do “sabe-com-quem-está-falando? A eleição de Lula sugeria à sociedade uma ruptura com velhos padrões, padrões oligárquicos, que subjugavam o povo brasileiro ao fisiologismo político, a um Estado privatizado, a agentes políticos descomprometidos com a ética, a decência e o bem comum. Essa expectativa, porém, foi frustrada. E tive o desconforto de testemunhá-lo de uma tribuna que me obrigava a externar com clareza e veemência esse desconforto. Não tive o direito de me omitir. O compromisso histórico da Ordem impôs-se e passou a dar o tom e o conteúdo das minhas manifestações. 29Questão de Ordem Uma semana após minha posse, que se deu no dia 1º de fevereiro de 2004, eclodiu o primeiro de uma série de escândalos que marcariam o primeiro Governo Lula: o caso Waldomiro Diniz. Ao apagar das luzes do mandato, em setembro de 2006, às vésperas do primeiro turno da eleição presidencial, dois outros escândalos mobilizavam a opinião pública: o falso dossiê que militantes do PT pretendiam comprar, com dinheiro sem origem declarada, para incriminar candidatos tucanos, e o escândalo dos sanguessugas, parlamentares que, em troca de propina, incluíam no Orçamento da União verbas para aquisição de ambulâncias superfaturadas, em conluio com servidores do Executivo e empresários-bandidos. Entre um acontecimento e outro, em 2005, houve o escândalo do Mensalão, no qual, em três Comissões Parlamentares de Inquérito, que funcionaram simultaneamente no Congresso Nacional, as vísceras da República brasileira foram expostas. Expostas como nunca, numa espécie de haraquiri moral. Tudo isso está comentado e dimensionado nas manifestações aqui reunidas. Mesmo sendo instados, por iniciativa de uma conselheira federal a examinar, em maio de 2006, uma proposta de impeachment do presidente da República, jamais nos recusamos a dialogar com o governo. Diálogo sereno, sóbrio, mas sem concessões, semsubmissões. Embora cientes do mau papel de diversos integrantes do governo Lula – e da responsabilidade política do presidente da República -, não levamos adiante o processo de impeachment. E por uma razão simples: já estávamos às vésperas do período eleitoral, o que tornaria tal processo um instrumento a serviço de grupos político-partidários. Na sociedade, já não havia disposição de medida tão radical. Claro estava que a sociedade preferia julgar o presidente nas urnas. A oposição partidária, a quem cumpria encabeçar a mobilização popular pelo impeachment, tal como ocorreu ao tempo de Collor, não quis fazê-lo, na certeza de que não era necessário. O presidente estava de tal forma desgastado que seria melhor deixá-lo “sangrando” em praça pública. Mas, em política, o que não mata engorda – e Lula, diante da inapetência punitiva de seus adversários, acabou readquirindo seu tônus político e venceu a eleição. À OAB, não cabe arbitrar o impeachment. Pode, no máximo, como ocorreu ao tempo de Collor, vocalizar a voz das ruas e encaminhá-lo ao arbítrio do Congresso. Impeachment é ato político – e o Congresso é o estuário desse processo. A apatia do Congresso não nos autorizava a tomar 30 Questão de Ordem isoladamente tal iniciativa, a menos que das ruas viesse um clamor nesse sentido. Não veio. Coube-nos, pois, transformar a proposta de impeachment em notícia-crime ao Ministério Público. Nem sempre nosso papel institucional foi bem compreendido – e isso também está mencionado e analisado nas manifestações deste Questão de Ordem. Muitos supunham a OAB uma entidade de esquerda, por ter combatido uma ditadura de direita, o regime militar de 1964. Outros passaram a nos considerar de direita, pelas críticas que fizemos ao governo Lula, tido a princípio como de esquerda. Não somos, como instituição, nem uma coisa, nem outra. Cada um de nós, como cidadãos, pode e deve ter um partido ou ideologia, mas, como representantes de uma entidade que exerce o papel de tribuna da sociedade, não nos cabe manifestá-los. Por isso, sustentei em diversos pronunciamentos que o partido da OAB é a Pátria e sua ideologia a cidadania. E assim é. E exatamente por assim ser é que a OAB, no curso de meu mandato, teve que enfrentar mais uma tentativa de agentes públicos de estatizá-la. Em junho de 2006, o Supremo Tribunal Federal julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) n° 3026/2003, ajuizada pela Procuradoria Geral da República, requerendo que o preenchimento de funções na estrutura da OAB se desse por meio de concurso público. Por expressiva maioria de votos - oito a dois -, a Adin foi rejeitada. Os fundamentos que respaldaram aquele resultado estão expressos neste livro. Foi, sem dúvida, a maior vitória corporativa de minha gestão, e uma das maiores de toda a história de nossa entidade, que não recebe dinheiro do Estado e vive tão-somente da contribuição de seus filiados. Com sua histórica decisão, o STF livrou a OAB (espero que para sempre) do risco absurdo de ser estatizada. Confirmou nossa natureza jurídica de entidade livre, democrática e desatrelada do tacão do Estado. Pública, porém não estatal. Penso que este livro transcende o universo da advocacia e abrange temas de grande valia para a historiografia contemporânea do Brasil. Para melhor entendê-lo, o historiador do futuro terá que se deter neste período e investigá-lo pelos ângulos mais diversos. O que aqui oferecemos é o ponto de vista de uma instituição que, em 77 anos de existência, tem vocalizado anseios e expectativas da sociedade civil brasileira. Este livro descreve um momento crucial da história do Brasil sob a óptica da sociedade. Um olhar público, mas não estatal. 31Questão de Ordem O critério editorial adotado foi o de ordenar os textos por assunto, e não por datas. Seqüenciei os temas que me parecem mais relevantes para avaliar defeitos, qualidades, costumes, práticas, perplexidades, contradições, anseios e expectativas deste nosso grandioso e multifacetado Brasil, um país que, apesar de todos os pesares, é maior que seus problemas e onde a esperança se recusa a morrer. ROBERTO BUSATO A POSSE (1º DE FEVEREIRO DE 2004) 35Questão de Ordem Desnecessário dizer da honra e da responsabilidade de estar assumindo a Presidência do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Tenho por esta instituição o maior apreço e aqui tenho vivido, há quase duas décadas, alguns dos momentos mais densos e significantes de minha vida pessoal e profissional. Nela venho exercendo, em sucessivas administrações, funções de direção, que me permitem afirmar que a conheço bem, por dentro e por fora. Chego à sua presidência ciente de seus desafios, dos avanços já obtidos, do custo dessas conquistas e, principalmente, do papel que nos cabe ter, neste momento em que o país vive novo ciclo político, marcado por esperanças e expectativas, ainda represadas por um modelo econômico insatisfatório. Sem deixar de ser a Casa do Advogado, a OAB é bem mais que uma entidade classista: é trincheira de defesa da cidadania, sentinela avançada da sociedade civil, vigilante na defesa intransigente do Estado democrático de Direito. A OAB compartilha da esperança do povo brasileiro em transformações pacíficas, dentro da lei e da ordem, que conduzam à inclusão social. Compreende que não se muda aos solavancos uma estrutura sócio- econômica, por mais injusta. Mas entende também que é preciso ousar, avançar, arrostar perigos, afirmar corajosamente posições. A exclusão social no Brasil – um dos países com maior nível de concentração de renda do planeta! – reclama urgência. E aqui estamos, dentro de nossas limitações e prerrogativas, para auxiliar no atendimento a essa urgência. A Ordem não tem partido político ou sectarismo ideológico. Seu compromisso é com o Estado democrático de Direito e a justiça social, conceitos em si redundantes, já que um inexiste sem o outro, mas que, nas circunstâncias brasileiras, convém destacar. 36 Questão de Ordem Democracia sem justiça social é mera abstração jurídica – e, a rigor, é nesse estágio que ainda estamos. Nossa República, embora mais que centenária, somente agora começa a ser posta diante do significado e do compromisso de seu nome: Res Pública – coisa pública. Não tenho dúvida de que o Brasil vive um dos momentos mais importantes de seus cinco séculos de história. Estabelecemos os fundamentos de uma bela civilização, marcada pela pluralidade étnica e cultural. Somos a décima economia do planeta, mas não conseguimos ainda estabelecer magnitude equivalente no plano social. Os conflitos que presenciamos não se fundam em questões étnicas ou religiosas. Têm viés sócio-econômico, cujas soluções estão ao nosso alcance e dependem exclusivamente de determinação política. Creio que este momento chegou e cabe à sociedade civil organizada o papel simultâneo de pressionar o Poder Público e auxiliá-lo na busca das transformações políticas, econômicas e sociais. Daí porque considero este um momento precioso na História do Brasil. A nós, da OAB, cabe papel intransferível, de vigilantes da ordem jurídica e dos interesses da cidadania. O cumprimento desta missão começa internamente. Precisamos – nós, os operadores do Direito – aprofundar as atenções no campo do ensino jurídico, de modo a elevar a qualidade dos serviços que prestamos à comunidade. Sem Justiça, não há democracia, civilização ou direitos humanos. Sem Justiça, o que resta é o caos. E num contexto em que o ensino jurídico perde qualidade e substância é esse o fantasma que visualizamos no horizonte. Analisemos então números importantes. Somos uma família de 445 mil e 418 advogados. Desse total, 160 mil não completaram ainda o quinto ano de profissão. Em 1960, tínhamos no Brasil 69 faculdades de Direito. Nos anos 90, esse número passou para 400. Hoje, funcionam regularmente no País 762 instituiçõesde ensino jurídico superior. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 70 mil bacharéis de Direito ingressam no mercado a cada ano. Como a maioria dos novos cursos iniciou as atividades a partir da segunda metade dos anos 90, é fácil imaginar que a população de bacharéis vai dobrar, ou redobrar, nos próximos anos. Como qualquer família numerosa, temos altos e baixos, virtudes e defeitos, mas uma propensão natural a encarar desafios. Assumo a 37Questão de Ordem Presidência do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil consciente de que vivemos um processo de transformação profunda na estrutura de nossa organização, a exigir, além da vontade de superar obstáculos, inteligência e criatividade. OAB e democracia caminham juntas e representam uma obra em constante aperfeiçoamento. A Ordem é, como já disse, lume para a cidadania, garantia de equilíbrio nas relações jurídico-institucionais, busca da paz social, mas é também a arena dos muitos heróis que me antecederam. Heróis que se lançaram na guerra contra o preconceito, o medo, a violência, a tirania, o terror, a censura, a omissão e todas as formas de injustiça. Que as minhas palavras iniciais sejam aos jovens advogados aqui presentes e aos outros tantos mil que estão a caminho. Este é o nosso campo de batalha. Neste campo, que nossa bandeira seja a da ética. Não a ética como slogan, mas ética no sentido aristotélico, reunindo em seu conceito as virtudes da Coragem, da Temperança, da Magnanimidade, da Franqueza e da Justiça, sendo a Justiça a maior de todas, por ser integral e perfeita. Integral porque compreende todas as demais; perfeita porque quem a possui pode utilizá- la não só em relação a si mesmo, mas também em relação aos outros. Unidade e ética inspiraram a minha candidatura. Mas venho aqui com a consciência de que “unidade não significa unanimidade, muito menos conciliação subalterna”. É aos ensinamentos de um dos edificadores da moderna democracia brasileira, Tancredo Neves, a quem recorro nesta hora em busca de uma conciliação que seja fundada em princípios éticos. Não podemos – insisto: não podemos! – nos depreciar nem depreciar a instituição em razão de disputas internas pelo poder e que tornam os nossos discursos vazios. A democracia é ruidosa e o calor das campanhas eleva o tom das manifestações, como ficou demonstrado no ano passado nas acirradas eleições das Seccionais nos Estados. Não somos melhores ou piores, mas temos a obrigação de ser diferentes. A Ordem precisa ser exemplar e tem o dever de assim se apresentar perante a sociedade, sob pena de comprometer sua autoridade moral quando cobrar ética e integridade dos homens públicos. Em hipótese alguma podemos cair nas armadilhas da política eleitoral, naquilo que Gilberto Freyre chamava de a “mais traiçoeira das políticas”, em que os amigos, cegos pela fúria da competição, tornam-se às vezes piores que os inimigos, e os inimigos chegam a parecer melhores que os amigos. 38 Questão de Ordem Se a OAB ajudou a escrever as mais edificantes páginas da história brasileira nos últimos 74 anos; se a OAB é paradigma para a sociedade civil como uma entidade que esteve sempre ao lado da Justiça; se a OAB teve a coragem de denunciar os desmandos e a corrupção, é porque nunca se deixou levar pela política rasteira, nunca negociou sua independência, nunca se permitiu ser cúmplice dos poderosos. Seu único compromisso foi – e continua sendo – com a liberdade, a democracia e a paz social. Os olhos da sociedade se voltam para nós. A conduta individual do advogado é posta à prova diariamente, tornando a credibilidade uma exigência constante em sua vida. Basta um único deslize moral para que se reflita na coletividade. Cabe, aqui, uma reflexão sobre a formação do advogado. O fenômeno da explosão dos cursos jurídicos está a merecer de todos nós uma tomada de posição mais efetiva. Não se trata de uma preocupação meramente corporativa, em razão da competição dos milhares de novos bacharéis que ingressam anualmente no mercado. Noções de Direito, a meu ver, deveriam ser fornecidas desde o ensino fundamental para alicerçar a crença em uma cidadania participativa. O que preocupa é o produto de um ensino que, na maioria das vezes, não busca o cidadão, mas o lucro. Preocupa, sobretudo, o que se move por trás do lucro. Por competência legal, a OAB é chamada a se manifestar nos processos de abertura de novos cursos, mas cabe ao Conselho Nacional de Educação – órgão do Ministério da Educação - a última palavra, independentemente do que opine a Ordem a respeito. Eis o quadro real: no último triênio, a OAB foi favorável à criação de 19 cursos jurídicos. O Conselho Nacional de Educação autorizou, no mesmo período, a criação de 222 cursos. Estamos falando de status, que muitos políticos, ingenuamente, imaginam adquirir com as autorizações de faculdades de Direito para suas cidades? Ou estamos falando de moeda eleitoral para atender políticos e empresários do ensino? Se for este último caso, senhoras e senhores, então não tergiversemos: estamos diante de um escândalo. E, se assim for, precisa ser apurado. Com rigor. Critério é a palavra-chave da questão. Se o critério for o de permitir que cursos de Direito sejam ministrados de madrugada ou em horários pré-matutinos, em salas improvisadas de escolas de ensino fundamental, usando carteiras destinadas a crianças e adolescentes, em salas – pasmem! – de cinema, ou dividindo espaço em que durante o dia funciona a Câmara 39Questão de Ordem de Vereadores e, à noite, a faculdade de Direito, então algo está errado. Algo está muito errado. A OAB, tenham certeza, não opinaria em contrário a nenhuma instituição que atendesse cuidadosamente aos critérios exigidos por lei, por entender que o ensino jurídico tem um papel político maior, justificação social bem mais profunda. E por entender que o ensino jurídico sem qualidade atinge, como já disse, toda a Justiça, na medida em que compromete a formação dos operadores de Direito – advogados e magistrados – e, em última análise, o conceito de cidadania e de democracia. Esse precisa ser o norte, o guia, o verdadeiro sentido da Reforma do Judiciário. E por um motivo óbvio: para termos uma Justiça célere, eficiente, acessível a todos, precisamos, primeiro, de um Judiciário preparado. O operador do Direito bem preparado é sinônimo de Justiça melhor – portanto, mais justa, se me permitem a expressão. Devo traçar, aqui, outra linha de reflexão. As razões da morosidade da Justiça no Brasil têm raízes históricas profundas, a começar pelo excesso de legislação que acaba por confundir juízes e advogados e abrir brechas para o sentimento de litigiosidade que sempre dominou o Poder Público. Vivemos o paradoxo da noção de Justiça como limitadora de Poder. É o Poder Público, e não o cidadão comum, o responsável pela montanha de processos que sufocam os tribunais. O cidadão é a vítima nesses processos. O Poder Público é o réu, a retardar os pagamentos de suas obrigações de maneira vergonhosa e antiética. Como pensar em reforma do Judiciário sem fazê-la preceder – ou iniciar – pela reforma infra-constitucional da legislação processual, de que se serve o Estado para retardar o cumprimento de suas obrigações? Há que se perguntar a quem interessa uma Justiça morosa? Num país com pouco mais de 10 mil juízes, distribuídos nas esferas estadual e federal, para atender a 185 milhões de habitantes, volto a perguntar – a quem interessa uma Justiça lenta? Certamente, não ao cidadão-contribuinte, que, com seus impostos, sustenta toda a estrutura administrativa dos três Poderes da República. Nesse ponto, quero referir-me à reforma do Judiciário, pois mais que prioridade, é emergência institucional. Não obstante, tramita há doze anos no Congresso. Congratulo-me aqui com o Governo Federal por ter reconhecido a natureza prioritária dessa demanda. Entreas várias propostas de mudança que essa reforma deve conter – e que não cabe aqui esmiuçar -, destaco a do controle externo, que 40 Questão de Ordem considero indispensável à transparência que deve presidir as relações dos Poderes do Estado com o público. Ressalto que a defesa do controle externo não pode ser compreendida como gesto depreciativo ao Poder Judiciário, cuja maioria absoluta de membros, a exemplo da advocacia brasileira, é de gente honesta, trabalhadora e movida pelo ideal de servir ao público. Não se trata também de controlar mentes e sentenças. O controle é administrativo e, na essência, não pode diferir daquele que já é exercido em relação aos demais Poderes. A Ordem, que teve a iniciativa de propor o controle externo como prioridade há nada menos que 18 anos – em Conferência Nacional realizada em 1986, em Belém do Pará –, estará vigilante nessa discussão, à qual contribuirá com o acervo de informações que acumulou ao longo destes anos. Urge, nesta hora, resgatar o compromisso inalienável que tem o advogado com a cidadania, o aperfeiçoamento das leis, a garantia dos direitos individuais, sociais e de preservação dos valores da pessoa humana. Sendo indispensável à administração da Justiça, o advogado necessita exercer, da forma mais ampla possível, o direito de defesa dos interesses a ele confiados sem temor, e com a segurança de que, no seu exercício profissional, não sofrerá nenhum tipo de represália. Haveremos de mobilizar as advogadas e os advogados brasileiros neste nosso campo institucional de batalha em defesa das prerrogativas profissionais, cujo alcance vai bem além do interesse pessoal. Trata-se de defender a coletividade, pois, se compreendemos as prerrogativas essenciais ao trabalho do advogado, constatamos que os seus direitos profissionais são antes direitos dos cidadãos. Todos os cidadãos, indistintamente, têm direito à ampla defesa – e ao advogado compete a missão de assegurar o pleno exercício desse direito, baseado nos pressupostos da lei, dentre os quais o dever de resguardar o sigilo profissional. Devemos ter sempre presente em nossos corações e mentes o ensinamento de Ruy Barbosa, segundo o qual o advogado, no seu exercício profissional diário, não se subordina a nenhum outro poder humano, senão à lei e à sua própria consciência. Vale dizer: a ética é – precisa ser – o seu referencial maior, inegociável. Desviar-se dela é grave delito moral que o sujeita implacavelmente aos rigores da lei, doa a quem doer. 41Questão de Ordem Para nos fazermos respeitar, precisamos ousar com responsabilidade e coragem, com a certeza de que estamos trabalhando por uma instituição que nos honra e marca a história contemporânea de nosso país com páginas de bravura e dignidade. Não trago em meu currículo títulos maiores do que aqueles angariados ao longo de minha trajetória na Ordem, nem o brilho de teses acadêmicas que não sejam as que defendi nos embates com os meus companheiros de Conselho Federal, em busca do bem comum da advocacia e da sociedade. Eles me bastam. Aqui me fiz aprendiz, e aprendiz continuo sendo da nossa história democrática. Tornei-me produto do meio, inspirado na ousadia e na coragem dos que me antecederam. Coragem para proclamar a fé em um país que, por sua vez, não pode deixar apagar-se a chama da esperança nas forças políticas que ainda haverão de remodelar a nossa realidade, permitindo que o bem-estar básico dos mais humildes seja um compromisso efetivo, e não mero expediente propagandístico. Nesta Casa, o eminente constitucionalista Paulo Bonavides advertiu, em data recente, que não é democrático país que concentra renda e perpetua privilégios. País que vê crescer as legiões dos sem-terra, sem-emprego, sem- teto, sem-saúde, sem-hospital e sem-escola. Inspiro-me nestas palavras para proclamar a necessidade de continuarmos nos indignando com a tragédia social de nosso País – e de que a esperança não se transforme em desengano. A lição que o mundo tem a oferecer, ainda que repartido entre pobres e ricos, opressores e oprimidos, é de que a paz social está intrinsecamente ligada à estabilidade econômica e às oportunidades de emprego. Sirvo-me, nesse sentido, de lição extraída de nosso cancioneiro popular, do baião- protesto imortalizado pelo pernambucano Luiz Gonzaga, que ensinava que uma esmola dada a um homem são, ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão. O pobre tem fome, sim. Tem fome de emprego e renda. Tem fome também – e sobretudo – de Justiça. Privá-lo de Justiça é retirar-lhe a esperança. A ausência de esperança – o desespero – empurra milhares de jovens diariamente no caminho das drogas e da violência. E a violência faz surgir em nossas cidades o Estado delinqüente – a Narcocracia –, a substituir o Estado democrático de Direito, transformando cidadãos de bem em caricaturas do medo. Para dar um 42 Questão de Ordem basta a essa lógica perversa, não precisamos recorrer ao jogo bruto da violência contra a violência. Tudo o que precisamos é substituir a arma pela caneta, dando à educação o verdadeiro papel que lhe cabe para a construção de uma sociedade civilizada. Não há democracia sem a educação como fundamento. Poderemos ter a democracia institucional, mas não a democracia efetiva, aquela que gera condições de vida, de progresso, de crescimento, de desenvolvimento. Não devo me estender mais. Quero agora voltar aos heróis que me antecederam neste campo de batalha, homenageando-os na figura do presidente Rubens Approbato Machado. Mas confesso que não estou preparado para despedidas. Quero crer que Approbato continuará sendo presença constante e seminal nesta Casa que tanto lhe deve. Aqui sua presença ímpar encarnou, na plenitude, o que se espera de um homem público, com responsabilidades que vão além da instituição que representou: cultura jurídica, independência, consciência social e valor ético. A OAB, sob seu comando, foi livre e corajosa para defender a dignidade humana, a cidadania, a moralidade pública, a justiça e a paz social. (...) Companheiros de Diretoria e Conselheiros Federais. Convido-os todos a ingressar nesta Casa com esse mesmo espírito público demonstrado por Rubens Approbato Machado, para que possamos servir à instituição e ao País com o melhor de nossas convicções. Com a energia transformadora que nos permita ousar e abrir novos horizontes. Neste momento, evoco as palavras de Giuseppe Garibaldi, o herói dos dois mundos, o herói da Guerra dos Farrapos: “Com companheiros como vós, posso tentar tudo!” Evoco também a José Martí, para quem “a melhor maneira de dizer é fazer”. O Brasil conta conosco para fazer. Busco agora na minha família inspiração e forças para esta travessia. Wilma, minha mulher, por sua proteção, orientação e paciente tolerância; meus filhos Roberto, Rodrigo e Vivien, pelas alegrias que nem toda essa emoção pode retribuir. Obrigado. Chego ao cargo de forma inédita, como cidadão-advogado, o que confirma a natureza antipreconceituosa da Ordem, instituição plural e ecumênica. E, dentro desse espírito ecumênico, encerro citando Chico Xavier, um brasileiro que soube expressar com sua espiritualidade os princípios mais nobres que enchem a alma humana de clareza e dignidade. 43Questão de Ordem Você pode morar numa casa mais ou menos Numa rua mais ou menos, Numa cidade mais ou menos. Pode até ter um governo mais ou menos. O que você não pode, jamais, É amar mais ou menos, Ser amigo mais ou menos, Ter fé mais ou menos Sonhar mais ou menos e Acreditar mais ou menos. Senão você corre o risco de se tornar uma pessoa mais ou menos. Que Deus nos proteja - e muito obrigado. A OAB PERANTE OS TRÊS PODERES 47Questão de Ordem Nas solenidades de posse dos presidentes das mais altas Cortes de Justiça do país – o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo TribunalFederal (STF) -, a OAB ocupa a tribuna em nome da sociedade civil, por ser, de todos os presentes, a única instituição pública não estatal. Nessas cerimônias, a que comparecem os presidentes dos três Poderes, falam também o Procurador-Geral da República e o Advogado- Geral da União, além dos empossados e dos que lhes dão posse. Há quem ache que esse cerimonial deva se resumir a uma protocolar troca de gentilezas e saudações. Assim era, afinal, ao tempo da ditadura. A OAB, porém, não pensa assim. Sustenta que, na democracia, é essa uma oportunidade preciosa para que a sociedade civil se manifeste criticamente perante seus governantes. E o faz com a veemência que o momento requer, sem prejuízo da polidez vernacular. Nosso papel, afinal, não é o de compor etiquetas sociais. Não inaugurei esse procedimento. Apenas mantive a tradição. Não obstante, fui chamado de “grosseiro” pela revista Veja e igualmente criticado por alguns colunistas. À revista Veja, em carta, disse, entre outras coisas, que (...) “os governos militares consideravam também “grosseria” quando a OAB condenava a censura à imprensa nos anos de chumbo da ditadura. Ainda bem que Veja reconhece que ‘a OAB teve um papel importante na redemocratização do país’. Pena que não perceba que esse papel, hoje, quando se busca dar conteúdo social ao Estado democrático de Direito, é ainda mais relevante. Veja diz também que “os ministros do Supremo ficaram ofendidos” com minha fala. Curiosamente, nenhum outro veículo registrou esse sentimento, nem Veja citou nenhum deles. E as manifestações diretas que colhi me levam a conclusão diametralmente oposta.”(...) Na seqüência, os discursos que proferi nas posses de Edson Vidigal, no STJ (abril, 2004); de Nélson Jobim, no STF (junho, 2004); de Ellen Grace Northfleet, no STF (abril, 2006); de Raphael de Barros Monteiro, no STJ (abril, 2006); e de Marco Aurélio Mello, TSE (maio, 2006). 48 Questão de Ordem Em cada um desses pronunciamentos, na presença do Presidente Lula e dos presidentes do Legislativo e Judiciário, vocalizei a cobrança da sociedade civil por reformas, mudanças de rota na economia e, sobretudo, a indignação moral com os descaminhos da crise ética do Estado brasileiro. Entre as posses de 2004 e as de 2006, tem-se o desdobramento da crise institucional, que levou o país a níveis de perplexidade e desencanto sem precedentes na história contemporânea. 49Questão de Ordem POSSE DE EDSON VIDIGAL NO STJ (2004) A OAB sente-se honrada em participar desta solenidade de posse do novo presidente e vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça, respectivamente ministros Edson Castro Vidigal e Sálvio de Figueiredo Teixeira, que sucedem à administração do ministro Nilson Naves. É a nona sucessão neste tribunal, criado pela Constituição de 1988, e que tem sido, em sua curta, mas profícua história, o tribunal da cidadania. Saúdo-os em nome da advocacia brasileira, que tenho a honra de representar nesta cerimônia. (...) Não há, hoje, felizmente, mais espaço para instituições do Estado impermeáveis ao controle da sociedade. E isso vale não apenas para o Judiciário, mas para os demais Poderes – Legislativo e Executivo. Diz o parágrafo único do artigo 1º da Constituição que “todo o poder emana do povo” – e este princípio, que fundamenta e dá conteúdo ético e moral ao Estado democrático de Direito, precisa tornar-se cada vez mais real e presente na vida pública brasileira. Felizmente, é nessa direção que a sociedade quer caminhar. E às elites dirigentes cabe atendê-la. (...) A ânsia por renovação tem sido crescente na sociedade brasileira, desde o início da redemocratização, há quase duas décadas. Desde então, as instituições do Estado têm sido submetidas a um processo de depuração, com vistas a ajustá-las a um país que, aos poucos, se convence de que a exclusão social é um péssimo negócio, sob todos os aspectos: político, econômico e, sobretudo, moral. Não há, na história da humanidade, exemplo de país que atingiu padrão elevado de desenvolvimento e credenciou-se ao respeito internacional com a taxa de exclusão social que ainda temos. Não se chega ao Primeiro Mundo com a população do lado de fora – esta é uma lição definitiva da história. 50 Questão de Ordem E é este o grande desafio posto ao Brasil neste momento. Ao tempo da ditadura, sem subestimar o heroísmo dos que a enfrentaram – e a OAB seguramente aí se inclui –, não havia grandes dificuldades, do ponto de vista ético, em identificar a opção adequada. Ou se estava contra ou a favor da liberdade. Ou se estava contra ou a favor dos direitos humanos. Após a redemocratização, o quadro é mais complexo, as demandas mais sofisticadas. Já não se trata de discutir princípios, sobre os quais pouco se diverge, mas de lhes dar conteúdo efetivo. O que é o Estado democrático de Direito, sem que se lhe dê conteúdo social? Mera abstração jurídica. É preciso, pois, dar concretude às mais altas aspirações dos que lutaram contra o arbítrio e a injustiça social ao longo de toda a história do Brasil. É preciso cumprir a Constituição de 1988, que, em seu artigo 3º, diz que “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Por enquanto, é forçoso reconhecer, continuamos inconstitucionais. Democracia é o regime em que todos têm que estar investidos de efetiva cidadania, participando da construção nacional e desfrutando dos bens fundamentais da civilização. Nesses termos, podemos afirmar, sem hesitação – e com pesar –, que o Brasil ainda não é um país democrático. Vota, elege seus governantes, possui liberdade de imprensa, mas parcela imensa de seus cidadãos não usufrui de nada disso. Nem desconfia de seus direitos mais elementares. Eis então, em síntese, o que nos cabe, a nós, integrantes da elite dirigente deste país: promover a justiça – em sentido lato e em sentido estrito. Justiça no sentido de uma sociedade sem excluídos. E justiça no sentido institucional, de um Poder Judiciário acessível a todos. Sem justiça, não há democracia digna desse nome. Daí a importância deste momento histórico para nós, operadores do Direito, e coadjuvantes na promoção da Justiça. É o momento em que, enfim, está prestes a ser votada a reforma do Poder Judiciário, que há doze anos aguardava no Congresso o carimbo de prioridade na agenda política nacional. Não é ainda a reforma dos nossos sonhos, mas não há como deixar de registrar que representa um passo à frente. Um pequeno passo, mas de qualquer forma um avanço. O controle externo do Judiciário é exemplo 51Questão de Ordem disso. Com certeza favorecerá essa aproximação indispensável que mencionei entre Judiciário e sociedade, com benefícios para ambos. Sabemos que o controle externo ainda encontra incompreensão em alguns setores da magistratura, embora encontre também ampla aceitação em alguns de seus escalões mais influentes – inclusive na pessoa do novo presidente desta Corte, ministro Edson Vidigal. Estamos certos de que, muito em breve, haverá o reconhecimento pleno de seu caráter positivo e a constatação de que não fere a soberania do Poder Judiciário, composto, em sua absoluta e imensa maioria, de pessoas de bem, cientes de que exercem um sacerdócio voltado para o bem comum. A OAB diverge de alguns pontos da reforma. Opõe-se, por exemplo, à súmula vinculante, por considerá-la inibidora da independência dos juízes de primeira instância, restringindo suas prerrogativas e obrigando-os a homologar cartorialmente sentenças pré-estabelecidas. Contra ela, continuaremos a nos bater no Congresso Nacional, cenário adequado para dirimir democraticamente conflitos. Nessa luta, nos sentimos tranqüilos, pois temos a nosso lado o Presidente da República.
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