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observei o ucraniano. Mal havia envelhecido nos dois anos que tinham se passado desde que nos conhecêramos, e, exceto por aqueles dedos perdidos da mão direita e algumas rugas em volta dos olhos, continuava sendo o mesmo indivíduo rabugento e meio louco que havia me acompanhado nas ruínas do porto de Vigo. — Obrigado, Prit — murmurei, com lágrimas nos olhos. Era um russo meio maluco, mas mesmo assim uma das melhores pessoas que eu havia encontrado na vida. Passamos metade da noite falando dos velhos tempos, rindo de todas as vezes que havíamos burlado a morte e das coisas que faríamos se um dia os não mortos desaparecessem para sempre. Por fim adormecemos, enquanto a lenha crepitava na lareira. Quando me levantei, Pritchenko roncava feito uma locomotiva, deitado no sofá, com Lúculo aninhado em suas pernas. Arrastei-me até o banheiro e tomei um longo banho de água bem quente. Ao sair, fiz a barba e vesti um dos ternos que havia em um armário. Era um número maior que o meu, mas me caía bastante bem. Ao me ver de terno e gravata pela primeira vez depois de tanto tempo, eu me senti um pouco estranho. Fui até a porta do quarto de Lucía. Estava trancada. Bati suavemente, mas ela não respondeu. Lucía — disse junto à porta fechada. — Só quero que saiba que lamento muito se eu disse alguma coisa que pudesse tê-la ferido ontem à noite. Tudo o que faço é para garantir que tenhamos um futuro. Eu... Calei-me, sem saber como seguir. Esta noite, quando eu chegar, vamos conversar de novo. E então vamos ajeitar tudo. Te amo, meu amor. Saí de casa sentindo um enorme vazio. Havia um lindo Lexus na garagem, com as chaves no contato. Imaginei que estava incluído no pacote da casa; a prefeitura ficava longe para ir andando de terno e gravata, de modo que entrei e liguei o motor. Enquanto circulava pelas ruas vazias, percebi que era a primeira vez em muito tempo que eu dirigia um carro sem estar fugindo de algo ou de alguém. Apesar de tudo, de vez em quando eu me surpreendia virando a cabeça desesperadamente ou acelerando nos pontos mais estreitos, como se temesse me ver cercado por uma multidão de não mortos a qualquer momento. O Apocalipse havia me modificado. Eu me perguntava se todas essas mudanças eram boas. E se durariam para sempre. Quando cheguei à prefeitura, a senhora Compton me esperava em meio a uma confusão de funcionários que chegavam para trabalhar. —Bom dia disse ela. — Espero que tenha descansado bem, porque hoje um monte de trabalho o espera. O senhor Wilcox era encarregado da gerência do Gabinete de Hilotas Hispânicos, mas morrera há três meses de um aneurisma enquanto jogava golfe. O senhor Talbot, do Gabinete de Hilotas Negros, assumiu provisoriamente os dois departamentos, mas não entende nada de espanhol, e, na verdade, acho que deixou tudo uma bagunça. Espero que seja capaz de se achar em meio a toda essa papelada. Papelada? — perguntei, meio confuso. Já vai ver — respondeu a mulher. Siga-me, por aqui. A senhora Compton me conduziu a um amplo gabinete situado no canto noroeste do edifício. Quando abriu a porta, quase desfaleci. Havia montanhas de pastas e arquivos empilhados em quase qualquer superfície sólida à vista, alguns deles em um equilíbrio tão precário que ameaçavam desabar sobre nós. Anne Sue será sua secretária particular. — A senhora Compton apontou para uma garota loura, de uns vinte e poucos anos e expressão bovina, que me olhava com um sorrisinho nervoso de uma mesa próxima. — Não hesite em lhe pedir qualquer coisa. Ela está aqui para servi-lo. Após cinco minutos de papo com Anne Sue, eu me convenci de que seria melhor não pedir àquela garota nada que fosse mais complicado que fazer fotocópias ou me trazer um café. Embora tivesse inquestionável aspecto ariano, o que a tornava perfeita para aquele trabalho segundo a escala de valores de Gulfport, o Criador havia se esquecido de dotá-la de cérebro quando a concebera. — Bem disse eu —, vamos começar classificando um pouco toda essa montanha de papéis, para descobrir quais são os temas prioritários e os que podem esperar. Preciso que anote o título de todas as pastas e crie um índice. Ok? Anne Sue olhou para mim com expressão confusa, como se eu lhe houvesse pedido que mijasse dentro de um copo e depois o desse à senhora Compton para beber. Até parou de mascar o chiclete que tinha na boca. Você sabe o que é um índice, não é, Anne Sue? É um tipo de música, não? — respondeu assentindo, muito segura de si. —Música índice. Minha prima Norma adora. — Deixa para lá, querida — suspirei desanimado. É melhor ir buscar um café que seja um pouco melhor que este lixo. Quando Anne Sue saiu (oh, Deus, faça que o café seja algo muito, muito difícil de encontrar, por favor), eu me sentei no meio do gabinete e comecei a organizar as pastas. No início foi meio confuso, mas logo peguei a mecânica da coisa. Depois de uma hora, eu tinha três montes claramente diferenciados em cada canto do gabinete. De um lado estavam todas as fichas relativas às altas e baixas dentro do grupo de hilotas de origem hispânica. Depois havia o monte referente aos abastecimentos e condições de vida dos hilotas dentro do gueto de Bluefont; e, por último, o monte que fazia referência ao abastecimento regular de Cladoxpan. À medida que eu classificava as pastas, ia fazendo uma clara imagem mental do verdadeiro funcionamento de Gulfport. Havia vinte e três mil pessoas de raça branca morando em Gulfport, e no bairro de Bluefont, no gueto dos hilotas, vivia a incrível quantidade de sete mil pessoas. Um rápido cálculo me permitiu comprovar que em cada uma das aproximadamente trezentas casas do bairro cercado vivia uma média de 25 pessoas. Isso era demais, mesmo para casas tão grandes e espaçosas como as que se costumavam construir naquele antigo subúrbio. Bluefont ficava dentro do Muro, mas separado do resto da cidade por um alambrado e um braço de água só cruzado por aquela ponte onde eu havia negociado com Carlos Mendoza. Todas as semanas, os hilotas se apresentavam na ponte sul, onde a Guarda Verde de Greene lhes entregava o armamento necessário. Depois, saíam da cidade pela ponte norte e se dirigiam, em expedições móveis de vários dias de duração, a todos os núcleos de população em um raio de duzentos quilômetros, para carregar seus caminhões com todo tipo de suprimentos para a insaciável e opulenta Gulfport. Quando voltavam, tinham que deixar os caminhões carregados nos armazéns da cidade, onde entregavam as armas. Em troca, recebiam uma quantidade justa de Cladoxpan, que lhes permitia manter sua humanidade e não se transformarem em mais um podre ambulante. Cada uma daquelas expedições acarretava, inevitavelmente, um determinado número de baixas. O TSJ não representava problema algum (praticamente cem por cento dos hilotas já estavam infectados), mas as terríveis feridas que os não mortos causavam eram letais em muitas ocasiões. Porém, apesar das constantes baixas, o número de hilotas se mantinha mais ou menos estável, pois a cada certo tempo, como um gotejar constante, apareciam indivíduos solitários ou grupos de poucas pessoas, como o meu, que chegavam a Gulfport ou cruzavam com alguma expedição que procurava alimentos. Apesar da certeza de ter que viver em um regime de semiescravidão se fossem negros, índios, chicanos ou asiáticos, a possibilidade de dormir em um refúgio seguro quase todas as noites e, principalmente, poder compartilhar seu destino com mais gente e não ter que continuar errando sozinho era uma tentação muito grande, de modo que a maioria acabava ficando em Bluefont. Só uns poucos escolhidos, como Lucía, Víktor e eu, engrossávamos a população do outro lado do alambrado. Tudo dependia da cor da pele. Apesar de tudo, o número de hilotas era elevado, muito elevado, tendo em conta que a segurança de Gulfport estava a cargo da Guarda Verde de Greene, composta por uns quarenta arianos e uma milícia branca