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Vigotski e a prática do psicólogo em percurso da psicologia geral à aplicada - Delari Jr, A.

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Prévia do material em texto

VIGOTSKI E A PRÁTICA DO PSICÓLOGO 
em percurso da psicologia geral à aplicada*
Achilles Delari Junior**
 
  
L. S. Vigotski (1896‐1934): criador da teoria histórico‐cultural    * **  
 
 
 
* Para referência: DELARI JR., A. Vigotski e a prática do psicó‐
logo:  em  percurso  da  psicologia  geral  à  aplicada.  Mimeo. 
Umuarama, 2009. 40 p. (2ª versão) 
** Psicólogo pela UFPR, mestre em Educação pela Unicamp. E‐
mail: delari@uol.com.br. 
“Na futura sociedade, a psicologia será em realidade a ciência 
do  novo  homem.  Sem  ela  a  perspectiva  do  marxismo  e  da 
história da ciência  seria  incompleta. Entretanto, esta ciência 
do novo homem será também psicologia. Por  isso hoje man‐
temos  suas  rédeas em nossas mãos. Não há necessidade de 
dizer que esta psicologia se parecerá tão pouco com a atual, 
como, segundo as palavras de Espinosa, a constelação do Cão 
se  parece  com  o  cachorro,  animal  ladrador  (Ética,  teorema 
17, Escólio)” 
— Lev Vigotski (1927/1991, p. 406)*** 
 
 
Palavras Iniciais 
 
Tem  sido muito  importante no Brasil a contribui‐
ção da obra de Lev Vigotski à psicologia da educa‐
ção e às práticas pedagógicas de modo geral. As‐
sim, predominantemente, sua obra tem sido apre‐
sentada e discutida no contexto de cursos de for‐
mação de  educadores,  tanto quanto nas discipli‐
nas  da  formação  do  psicólogo  ligadas  aos  temas 
do  desenvolvimento  humano  e  das  relações  de 
ensino‐aprendizagem formais ou não formais. Isso 
não é despropositado. A educação  tem um  lugar 
fundamental  na  proposta  de  Vigotski  para  uma 
“nova  psicologia”.  Segundo  ele  “a  educação  é  a 
primeira palavra que  [a nova psicologia] mencio‐
na”  (VIGOTSKI,  1926/1991,  p.  144).  Isso  implica 
mencionar  a  palavra  “educação”  numa  acepção 
antropológica,  isto  é,  conceber  que  só  o  ser  hu‐
mano  é  capaz  de  educar‐se,  de  aprender  com  a 
experiência  histórica  das  gerações  anteriores  e 
assim  constituir  a  sua  própria  vivência  como  ser 
singular. Entende‐se que o ato de educarmo‐nos, 
na  família, na escola, nas demais  instituições em 
que  se  estabeleçam  nossas  relações  com  outras 
pessoas,  seja  essencial  na  constituição  das  fun‐
ções  psíquicas  propriamente  humanas,  de  nossa 
SUMÁRIO 
 
Palavras iniciais.............................................................01 
1 Princípios éticos em psicologia histórico‐cultural.....03 
1.1 Contextualização e critérios axiológicos (...) ...........04 
1.2 Contradições enfrentadas pelo psicólogo (...) .........08 
1.3 O método construtivo e a psicologia (...).................10 
2 Princípios de psicologia geral numa abordagem histó‐
rico‐cultural...................................................................12 
2.1 Unidade psicofísica..................................................12 
2.2 Determinação da consciência pela existência (...)  ..13 
2.3 Consciência:  psiquismo propriamente humano .....17 
2.4 Consciência compreendida mediante unidades......20 
2.5 Psiquismo mediante sua gênese histórica...............25 
3 Orientações gerais à psicologia aplicada numa aborda‐
gem histórico‐cultural ..................................................30 
3.1 Princípios éticos em sua dimensão prática..............31 
3.2 Princípios de psicologia geral em sua dimensão práti‐
ca...................................................................................32 
Para continuar o diálogo ..............................................37 
Referências ...................................................................38 
 
*** Todas as citações para  títulos que na bibliografia consta‐
rem  em  língua  estrangeira  são de minha  autoria  exceto Vi‐
gotski  (1929/1989)  e  Puzirei  (1989a)  –  cujas  traduções  do 
inglês são da professora Enid Abreu Dobránszki. A marcação 
de duas datas, e.g. “1927/1991”, uma para a primeira publi‐
cação ou término da redação da obra e outra para a publica‐
ção que utilizei, será adotada apenas para as obras de Vigots‐
ki,  com  fins  didáticos  de  contextualização  histórica,  por  se 
tratar da referência principal do texto. 
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 
 
 
 
GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009  2 de 40
consciência  em  especial  e  nossa  personalidade 
como um todo. 
 
Contudo,  neste  texto  pretendo  relembrar  que 
Vigotski não produziu exclusivamente uma psico‐
logia  educacional  ou  escolar,  nem  sua  teoria  se 
restringe a uma subdivisão das teorias da aprendi‐
zagem. Ao contrário, trata‐se desde sua origem, e 
principalmente, de uma contribuição geral à psico‐
logia  concreta  do  homem  (ver  VIGOTSKI,  1929/ 
1989, 1929/2000). A qual pode nos permitir pen‐
sar a atuação do psicólogo em diferentes contex‐
tos práticos, como a promoção de saúde mental: 
nas  práticas  sociais  comunitárias,  nos  sistemas 
públicos de saúde coletiva, nas relações de traba‐
lho,  entre  outros...  Tanto  quanto  em  qualquer 
situação em que se efetivem simultaneamente: (a) 
relações  simbolicamente mediadas  entre  as  pes‐
soas,  (b)  constituição  social de  sentidos para  tais 
relações  e  (c)  significação  para  nossa  própria  vi‐
vência  no  curso  desse  processo.  Trabalharemos 
aqui com a concepção de que um psicólogo orien‐
tado pela abordagem histórico‐cultural, buscando 
compreender  o  ser  humano  na  concretude  de 
suas  relações  sociais,  a um  só  tempo:  situa‐o na 
especificidade  delas  (na  família,  no  namoro,  na 
escola, no  trabalho, na  vida  comunitária, na  luta 
por direitos civis, no  lazer, na atividade  lúdica, na 
criação artística, noutras  instituições, etc.); e arti‐
cula  tais  contextos  específicos no  conjunto  sistê‐
mico,  inter‐funcional, dinâmico e contraditório da 
personalidade humana, no fluxo de seu desenvol‐
vimento histórico. 
 
Por um  lado, o que há de geral no psiquismo hu‐
mano solicita contextualização. Se  todo o ser hu‐
mano  é  um  constante  tornar‐se,  aquilo  em  que 
nos  tornamos  demanda  situações  reais  para  a 
realização do nosso devir. Se todo o ser humano é 
um animal social, o nosso modo de sermos sociais 
implica relações com outras pessoas que não nos 
estão  pré‐determinadas  e  só  acontecem  no  pró‐
prio ato, por vezes  tenso, de  se estabelecerem e 
de se refazerem. Se todo o ser humano é um ser 
simbólico, o nosso próprio modo de simbolizar as 
coisas, os outros e a nós mesmos está relacionado 
à linguagem que nossa sociedade e nossos grupos 
sociais  criam e  recriam para  codificar  sua experi‐
ência  histórica  e  dar‐lhe/impedir‐lhe  acesso  às 
novas gerações. Assim o devir, a sociabilidade e a 
significação,  como  características  gerais  da  vida 
propriamente  humana  colocam‐nos,  ao  mesmo 
tempo, a necessidade de compreender o específi‐
co de  sua  realização para  cada  ser humano  con‐
creto. Por outro  lado, a nossa vivência mais espe‐
cífica, mais singular, mais situada e contextualiza‐
da, não pode deixar de ter algo de geral, partilha‐
do  com  nossos  semelhantes.  Posto  que  nossa 
própria personalidade não tem como realizar‐se e 
desenvolver‐se senão em relação com outras pes‐
soas, senão mediante processos sociais de signifi‐
cação, senão no fluxo de uma gênese histórica. 
 
Esta, por sua vez, realiza‐se como um “tornarmo‐
nos” humanos, que  só acontece em  relação  com 
os  dois  primeiros  critérios, mas  não  pode,  para 
nós, por alguma contingência ou arranjo conjuntu‐
ral, simplesmente “deixar de acontecer”, da noite 
para  o  dia,  exceto  no  caso mesmo  de  a  própria 
humanidade  deixar  de  existir.  Sendo  assim,  a  a‐
bordagemhistórico‐cultural não se apresenta aqui 
como visão “relativista” na qual o homem poderia 
ser  social ou não,  simbólico ou não, histórico ou 
não,  dependendo  da  situação...  A  caracterização 
do humano como ser social, simbólico e histórico, 
compõe  um  conceito  pertinente  à  constituição 
ontológica mais  profunda  e  elevada  da  condição 
humana, no  interior da abordagem teórica à qual 
estamos  nos  referindo.  Ao  mesmo  tempo,  essa 
generalidade concretiza‐se em sua dialética com a 
especificidade da condição singular de cada socie‐
dade, de cada tempo e espaço históricos, de cada 
classe  e  grupo  sociais,  de  cada  ser  humano  em 
particular.  Deduz‐se  assim  que  não  se  trata  de 
uma abordagem que só seria aplicada a um único 
contexto específico de  relações sociais, seja ele a 
escola,  o  mundo  do  trabalho,  as  organizações 
comunitárias, as práticas terapêuticas e assim por 
diante. A psicologia histórico‐cultural busca  com‐
preender o ser humano, e assim ao seu contexto 
caberá articular sua condição genérica e vice ver‐
sa.  
 
Partindo  desse  princípio,  dirigindo‐me,  nesse 
momento,  às  componentes do  grupo de  estudos 
orientado  em  “Teoria  histórico‐cultural  (sócio‐
histórica) na prática do psicólogo”, buscarei orga‐
nizar  uma  breve  introdução  à  contribuição  de 
Vigotski,  principal  propositor  da  teoria  histórico‐
cultural1 em psicologia. Neste  texto  introdutório, 
 
1  Segundo Valsiner  e Van der Veer  (1996)  “teoria histórico‐
cultural” é um  termo  cunhado por Vigotski e  Luria para de‐
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 
 
 
 
GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009  3 de 40
para  fins  de  exposição,  abordarei:  (1)  princípios 
éticos  em  psicologia  histórico‐cultural;  (2)  princí‐
pios de psicologia geral numa abordagem históri‐
co‐cultural;  e  (3)  orientações  gerais  à  psicologia 
aplicada numa abordagem histórico‐cultural. Digo 
“para  fins  de  exposição”,  pois  evidentemente  a 
ética, a teoria e a prática são aspectos simultâneos 
da  realidade humana na qual  se dá a  construção 
tanto de uma obra como a de Vigotski quanto a de 
nossa aprendizagem acadêmica e atuação profis‐
sional. Pese‐se que nossa consciência possa, para 
fins de  sistematização e/ou organização,  focar‐se 
mais  num  aspecto  do  que  em  outro,  os  demais 
nunca deixarão de estar presentes, de algum mo‐
do ou em algum grau de generalidade. Nosso mo‐
do prático de viver e  relacionarmo‐nos engendra 
valores éticos. Nossos valores orientam práticas e 
opções  por  determinados  modos  de  teorizar  o 
real. Estes, por sua vez,  (re)organizam ainda nos‐
sas formas de agir e viver. Agindo e vivendo reava‐
liamos nossos conceitos, destituímos e/ou conso‐
lidamos valores. 
 
Antes de seguir, cabe ainda dizer que minha forma 
de articular os conceitos aqui, tanto mais de modo 
tão  abreviado  e  introdutório,  é  uma  produção 
minha  com  base nas  leituras que  venho  fazendo 
desde o  final dos anos oitenta, articuladas às ex‐
periências que tive, às vivências que nelas se cons‐
tituíram  e  às  que  hoje  também me  perpassam. 
Assim como em psicanálise, em behaviorismo, ou 
qualquer abordagem em psicologia e demais ciên‐
cias humanas, não há em  teoria histórico‐cultural 
apenas uma leitura quanto ao significado dos clás‐
sicos. Minha  orientação  geral  a  qualquer  pessoa 
 
nominar sua concepção de desenvolvimento humano, traba‐
lhada, sobretudo, entre 1928 e 1931. Embora não comporte, 
portanto, toda a obra de Vigotski, serve para designá‐la como 
uma metonímia da parte pelo  todo. O  termo  “teoria  sócio‐
histórica da atividade”  foi cunhado mais  tarde por Leontiev. 
No Brasil existe uma diversidade de denominações, as quais 
por sua vez  implicam diferenças teóricas e metodológicas na 
interpretação  do  autor  clássico  como:  sócio‐interacionismo, 
sócio‐construtivismo,  abordagem  sócio‐cultural,  abordagem 
sócio‐histórico‐cultural,  etc. Não  nos  cabe  entrar  no mérito 
das  disputas  por  qual  denominação  seria  mais  correta  ou 
mais  fiel à teoria do autor, pois a diversidade de  leituras  faz 
parte  do  processo  social  da  apropriação  de  qualquer  obra. 
Adotarei a denominação “histórico‐cultural” por ser a que o 
próprio Vigotski teria cunhado e por ser a mais usada hoje na 
própria Rússia. Contudo, como diz Vigotski “O mais importan‐
te é o significado, e não o signo. Mude‐se o signo, preserve‐se 
o significado” (1924/2009, p. 41). 
que me pergunte por onde seria melhor começar 
a  ler Vigotski, não pode deixar de ser a de que se 
comece pelo próprio autor. Muitas vezes, disputas 
se erguem ao redor de qual seria a melhor  inter‐
pretação ou o melhor comentário a um autor clás‐
sico. Mas antes de avaliarmos os autores clássicos 
a  partir  de  quem  os  lê, melhor  seria  avaliar  tais 
leitores  a partir dos primeiros. Nem  sempre  isso 
acontece na prática – algum grau de leitura intro‐
dutória  sempre é necessário. Mas  saibamos ape‐
nas  que  este  texto  é  um  posicionamento  de  um 
homem concreto com seus  limites e potencialida‐
des, que pode e deve ser questionado em seguida, 
sob  o  critério  da  crítica  e  da  leitura  do  próprio 
clássico  a  cujo estudo nos dedicaremos. De  toda 
forma, as escolhas para as  leituras a  serem  reali‐
zadas não são neutras, e se orientam pela visão de 
mundo  e  pelas  características  de  personalidade 
social de quem as  indica. Tais aspectos  serão ex‐
plicitados ao  longo deste texto,  justamente como 
convite ao diálogo e à composição coletiva. 
 
 
1  Princípios  éticos  em  psicologia  histórico‐
cultural 
 
“O método, ou  seja, o  caminho  seguido, é  visto  como 
um meio de cognição: mas o método é determinado em 
todos os seus pontos pelo objetivo a que conduz”  
 
— Vigotski (1927/1996, p. 346) 
 
Quando  falo aqui de ética não me  refiro aos pa‐
drões de  conduta que  se  formalizam em  códigos 
de ética profissional, ou se normatizam em proce‐
dimentos solicitados por comitês de ética em pes‐
quisa  com  seres  humanos  ou  animais.  Estes  são 
importantes e necessários, mas refiro‐me antes ao 
campo  dos  princípios  e  valores mais  gerais  que 
permitem  inclusive  formular  tais códigos e orien‐
tar as normas de comitês como esses. Valores sem 
os quais eles se tornam destituídos de sentido ou 
exercidos apenas pelo motivo de  fugir‐se à puni‐
ção.  Fazer  ou  deixar  de  fazer  algo  apenas  pelo 
critério  de  não  ser  punido  em  caso  contrário  é 
próprio do que poderíamos chamar de uma “ética 
fraca”. Uma ética  substancial,  sobretudo, diz  res‐
peito à reflexão do homem sobre os valores rela‐
tivos  ao  caráter  bom  ou  ruim  de  suas  próprias 
ações em  termos das conseqüências que elas ve‐
nham a  ter para nós e para nossos  semelhantes. 
Historicamente,  diferentes  doutrinas  éticas  se 
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 
 
 
 
GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009  4 de 40
diferenciam, ademais, em termos do que definem 
como  um  “bem”  a  ser  buscado  e  cuja  ausência 
deve  ser evitada. A ética, assim, nos diz mais de 
um  “bem que  se quer” do que de uma  “punição 
da qual  fugir”. Desse modo as éticas que  tiveram 
como valor e bem maior a  felicidade,  foram cha‐
madas de “eudemonistas”. As que tiveram o pra‐
zer  como  valor  e  bem  maior  se  denominaram 
“hedonistas”.  Àquelas  que  viam  na  utilidade  das 
ações  humanas  o  bem  e  ovalor maior,  pôde‐se 
chamar  de  “pragmatistas”.  E  assim  por  diante2. 
Pensemos então em qual poderia ser o valor cen‐
tral para a perspectiva histórico‐cultural, valor que 
se constitui então como seu objetivo principal, sua 
meta, sem a qual nenhum método pode ser defi‐
nido. 
 
1.1 Contextualização geral e critérios axiológicos3 
para um humanismo crítico na abordagem históri‐
co cultural. 
 
Certamente  reduzir  cada  doutrina  ética  a  uma 
única  palavra  é  temerário,  tanto  quanto  cabe 
lembrar  que  pode  haver  duas  ou mais  doutrinas 
sob uma só categoria geral e portadoras de traços 
específicos  bem  distintos  –  dependendo,  por  e‐
xemplo,  do  que  se  define  como  felicidade,  tere‐
mos  diferentes  “eudemonismos”,  e  assim  por 
diante. Contudo, só levantamos estes exemplos de 
modo ilustrativo para articular o conceito de ética 
com o de um “bem” que se busca, que se almeja, 
que  se  tem  então  como  valor maior. Trabalharei 
aqui  com a  interpretação de que a ética da obra 
de  Vigotski,  pautada  em  princípios  marxistas,  e 
como  síntese ainda das demais  tradições  filosófi‐
cas e culturais às quais este autor se filia (como o 
espinosismo ou a própria tradição judaica na qual 
foi educado4), pode  ser adjetivada  como  “huma‐
nista”,  lato sensu. Não se  trata do mesmo huma‐
nismo cristão de Carl Rogers, ou ateu de Jean‐Paul 
Sartre. Mas tem em comum com o deles o princí‐
 
2 Para um estudo detalhado sobre a constituição histórica de 
diferentes doutrinas éticas, ver Vasquez (1975). 
3 Por  “axiologia” entendo aqui apenas  “discurso  sistemático 
sobre  os  valores”,  sobre  sua  hierarquia,  sua  apreciação  e 
significação. O  adjetivo  “axiológico”  aqui  é  utilizado  apenas 
com  a  acepção de  “relativo  aos  valores éticos” e  aos  juízos 
que com eles se estabelecem na/para a orientação de nossa 
atividade  vital  e  de  nossa  relação  com  outras  pessoas  no 
interior dela. 
4 Sobre a  influência do  judaísmo no pensamento de Vigotski 
ver Friedgutt e Kotik‐Friedgutt (2008). 
pio de tomar o ser humano e a realização de suas 
potencialidades  como um  valor que  se não  for o 
principal,  também não pode deixar de  ser  consi‐
derado  como  imprescindível  e  inalienável  ao  seu 
projeto  em  psicologia.  Sobretudo,  cabe  o  desta‐
que de que, na concepção de Vigotski, as potenci‐
alidades humanas só se realizam e se ampliam no 
âmbito da ação coletiva e em aliança com a alteri‐
dade,  com os outros  sociais, não  sendo  seu  foco 
ético uma realização humana apartada daquela de 
nossos semelhantes, o outro não é  impeditivo de 
nossa liberdade e realização pessoal, mas uma das 
suas principais condições de possibilidade. 
 
Pode‐se  interpretar  que  o  valor  da  humanidade 
como bem a ser preservado e cultivado, do ponto 
de vista da ética presente na obra de Vigotski: (a) 
em primeiro lugar não se traduz como humanismo 
ingênuo nem liberal; e (b) em segundo lugar, con‐
seqüentemente, demanda,  frente a outras orien‐
tações axiológicas, critérios próprios, como o  seu 
entendimento quanto à  superação, à cooperação 
e à emancipação. Com relação ao que aqui deno‐
mino  “humanismo  ingênuo”,  lembre‐se  que  pro‐
priamente  humanas  não  são  só  as  denominadas 
“grandes  realizações”,  expressões  maiores  de 
criação artística, solidariedade ou  luta pela vida e 
o bem  comum. Não basta algo  ser humano para 
ser bom. Também são humanos, ausentes noutros 
animais, muitos atos de crueldade, degradação da 
natureza  e  autodestruição  da  espécie.  Tristes  e‐
xemplos  de  ganância,  expropriação,  intolerância, 
terrorismo,  tortura,  genocídio,  destruição  em 
massa,  dados  ora  pelo  capitalismo  fascista  ou 
liberal ora  até mesmo por  certas orientações no 
dito “socialismo  real”,  são,  infelizmente,  também 
realizações  humanas.  Karl  Marx  dissera  ser  sua 
frase preferida um dizer de Terêncio: “Sou homem 
e  nada  do  que  é  humano  eu  considero  alheio  a 
mim”. Os males  da  humanidade  fazem  parte  do 
que  somos,  reconhecermo‐nos  como  humanos  é 
ver bens e males coletivos como algo de que  so‐
mos  todos potencialmente capazes e, em alguma 
medida,  até mesmo  responsáveis. A  ética  huma‐
nista  que  nos  importa  não  elevará  qualquer  ato 
humano a valor maior. Portanto, a ela cabe acres‐
centar  critérios  diferenciadores  frente  ao  huma‐
nismo ingênuo, dos quais trataremos adiante. 
 
Outro aspecto que solicita critérios para definir de 
qual  humanismo  se  trata,  é  o  de  não  confundir 
toda  ética  que  dá  à  humanidade  valor  central, 
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 
 
 
 
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com uma visão “liberal” de ser humano. O  libera‐
lismo como ideologia de sustentação de uma clas‐
se  social ascendente  com o advento do capitalis‐
mo,  coloca  o  “homem  no  centro”  (antropocen‐
trismo), em oposição à visão hegemônica na Idade 
Média,  da  “divindade  no  centro”  (teocentrismo). 
Mas de que  “homem”  se  tratava? Sem nos alon‐
garmos, apenas  recordemos o que diferentes au‐
tores críticos já vêm alertando há algum tempo. O 
conceito  de  homem  do  liberalismo  surgido  na 
Europa, com a modernidade, o advento do capita‐
lismo e a ascensão da burguesia, envolve um privi‐
légio  de  certo modelo masculino,  branco,  euro‐
peu,  adulto,  heterossexual,  letrado,  proprietário, 
entre outros traços. O que flagra que, ao tentar‐se 
apresentar  a  idéia  de  tal  ser  humano  constituir 
valor universal,  ao mesmo  tempo  se  impunha  às 
mais diversificadas manifestações da vida e cultu‐
ra  humana  um  modelo  derivado  de  interesses 
particulares, próprios de uma classe social restrita. 
Não sem razão, Paul‐Michel Foucault (1995; 2009) 
é  sério  crítico do humanismo ocidental moderno 
hegemônico, entendendo que ele seja uma inven‐
ção  social  questionável  tanto  quanto  o  próprio 
conceito atual de “homem”, o qual já indicaria seu 
fim  próximo.  Ademais,  o  conceito  liberal  de  ho‐
mem  é,  sobretudo,  focado  na  nossa  existência 
individual e na noção de que nossa  liberdade é a 
priori para  cada um de nós,  algo que  “nasce  co‐
nosco”. Trata‐se da  ideologia de que se todos so‐
mos naturalmente  livres para vender nossa  força 
de  trabalho e para prosperar com nossos empre‐
endimentos  pessoais,  o  fracasso  ou  sucesso  de 
cada  um  será  devido  exclusivamente  aos  seus 
méritos e defeitos individuais. 
 
Se a ética humanista que se  insinua na psicologia 
de  Vigotski  não  se  pauta  no  critério  ingênuo  do 
homem  como  ser  essencialmente  bom,  nem  no 
liberal com foco na sua realização individual, quais 
critérios acrescentar para o valor dado ao humano 
nessa  abordagem,  se  ela  ainda  não  advoga  a 
“morte do homem”? Na minha  compreensão, há 
pelo menos três ações próprias ao ser humano às 
quais a abordagem histórico‐cultural não valoriza 
só em  tese, mas  também busca construir através 
de sua prática social, às quais podemos, de modo 
conciso, nomear  como:  (a)  superação,  (b)  coope‐
ração  e  (c)  emancipação.  A  noção  de  superação 
em Vigotski, entendida como ato e necessidade de 
superarmo‐nos, de  irmos além dos nossos  limites 
atuais,  é  ressaltada  pelo  estudioso  russo  Andrei 
Puzirei como algo que manifesta “as finalidades e 
os  valores  fundamentais  presentes  em  todo  o 
pensamento de Vigotski”  (PUZIREI, 1989b, p. 16  ‐ 
grifos na fonte). Uma leitura mais rigorosa da obra 
de Vigotski nos permite identificar nela uma forte 
“orientação  ao  ‘supremo’  no  homem  ou,  para 
dizê‐lo  com  palavras  de Dostoiévski,  ao  ‘homem 
no homem’,à sua organização psíquica e espiritu‐
al,  desde  o  ponto  de  vista  do  que  pode  ser,  em 
geral, o homem e dos caminhos que existem para 
este estado possível, dos caminhos que abre, em 
particular, a arte e a psicologia da arte.” (PUZIREI, 
1989b, p. 16  ‐ grifos na  fonte). Tal orientação da 
abordagem  histórico‐cultural  ao  que  “podemos 
ser”, ao que podemos alcançar de “supremo”, no 
sentido de mais elevado, mais avançado,  implica, 
em  outras  palavras,  que  se  vê  o  humano  tanto 
como  ser  apto  a  ir  além de  seus  limites,  quanto 
como o que só se realiza quando se supera. Con‐
tudo,  realizarmo‐nos  como  humanos,  é  algo  que 
pode ocorrer ou não, em  função de dadas condi‐
ções  materiais,  concretas.  Uma  das  principais 
condições concretas para a superação humana é a 
cooperação entre as pessoas. 
 
Enquanto a ideologia liberal valoriza a competição 
como força motriz da superação humana, a tradi‐
ção à qual Vigotski se filia discorda de que um ser 
humano  só  avance  quando  outro  é  sobrepujado 
ou  derrotado.  Se  aquela  visão  supõe  o  “homem 
como lobo do homem”, e o outro como alguém a 
temer ou  subjugar, esta  supõe que até para  ser‐
mos  indivíduos necessitamos a presença e os cui‐
dados de outras pessoas para  conosco.  Se  consi‐
derarmos o simples fato da fragilidade do “filhote 
humano” e o  tempo que demora para poder ga‐
rantir  por  conta  própria  a  sua  sobrevivência,  já 
teremos noção do quanto necessitamos colabora‐
ção  de  alguém  para  virmos  a  ser  nós mesmos  e 
quanto  podemos  nos  fazer  necessários  para  al‐
guém vir a ser ele próprio... Isso pode ser ilustrado 
na própria teoria do desenvolvimento da persona‐
lidade e das  funções da  linguagem, do  signo,  se‐
gundo  Vigotski.  Para  ele,  a  função  das  primeiras 
palavras não é, como se pensa, estritamente afe‐
tiva,  "expressar  emoções", mas  primordialmente 
indicativa, para "pedir ajuda". O primeiro propósi‐
to da  linguagem "é, antes de tudo, um pedido de 
ajuda, uma chamada de atenção e, por conseguin‐
te, a primeira transposição dos limites da persona‐
lidade,  isto  é,  uma  colaboração..."  (VIGOTSKI, 
1931/2000a, p. 338). Ainda  assim,  a necessidade 
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 
 
 
 
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de  atuar  junto  a mais  alguém  para  avançar  em 
nossos potenciais não se restringe a aprendermos 
a andar, a falar, a cuidar de nossa própria higiene, 
a ler e escrever ou a contar. Por toda vida há situ‐
ações em que a superação de nossos limites exige 
a presença de outrem, mais experiente, que pro‐
porcione mediações  necessárias  e  a  quem  dirija‐
mos  solicitações.  Se  desejo  aprender  uma  língua 
estrangeira, a exercer uma profissão ou a dominar 
alguma arte, devo  recorrer a outros. Mas não  se 
restringe  a  necessidade  de  cooperação  a  obter 
instrução  de  alguém  mais  experiente:  também 
cooperamos com nossos pares, aprendemos com 
amigos, colegas,  familiares. E ainda com as crian‐
ças,  os mais  novos, menos  experientes  que  nós, 
seja por  sua perspicácia,  seja por  lhes  tentarmos 
ensinar  algo – momento  talvez em que mais de‐
vemos nos superar. 
 
Se para nos tornarmos nós mesmos necessitamos 
do  outro,  caberia  eticamente  lembrarmos  que 
para irmos além do que já somos, o outro também 
é aliado essencial. Contudo, se não somos egoístas 
por  natureza  (humanismo  liberal)  também  não 
somos  altruístas  por  natureza  (humanismo  ingê‐
nuo). A  cooperação  é  condição  inevitável  para  o 
avanço de nossos potenciais, mas  isso não signifi‐
ca que toda e qualquer relação social nos permita 
ir  além.  De  fato,  poderíamos  ainda  acrescentar 
que nem  toda cooperação, sendo para o bem de 
um dado grupo, necessariamente o é para o bem 
da humanidade. Fascistas podem cooperar visan‐
do a derrota da democracia,  liberais podem coo‐
perar  formando  cartéis monopolistas, dizendo‐se 
democratas, etc. Então, nesses casos, a superação 
pode  estar  sendo  vista  não  como  um  constante 
processo  de  todos  e  cada  um  desafiarem  seus 
próprios  limites  e  tornarem‐se  melhores  em  al‐
gum  aspecto  de  sua  personalidade,  profissão  ou 
trabalho  criativo, mas  apenas  como  uma  forma 
obter mais benefícios pessoais ou  corporativos e 
prevalecer‐se sobre os demais. Pode haver então 
formas de cooperação em  função da restrição do 
potencial  de  avanço  do  outro,  e  até mesmo  em 
função de subjugá‐lo e destruí‐lo. O crime organi‐
zado poderia ser um exemplo dos mais comuns, e 
mesmo as guerras não deixam de ser algo seme‐
lhante, ainda que num plano político bem distinto 
– o que têm de similar é a cooperação de um cole‐
tivo para a destruição do inimigo como um ganho 
e uma meta. Desse modo, se nem toda ação con‐
junta  leva a um aumento de  força que  tenha em 
conta  uma  cooperação mais  generalizada  e  uma 
superação mais elevada, cabe articular esses dois 
primeiros  critérios  para  o  humanismo  próprio  à 
abordagem histórico‐cultural a mais um terceiro e 
decisivo:  a  busca  da  emancipação  humana.  Em 
outras palavras: o valor ético da conquista e ma‐
nutenção da  liberdade, no  seu  sentido mais pro‐
fundo e substancial. 
 
Dizer que o conceito de liberdade em Vigotski não 
é  liberal poderá confundir o  leitor, mas é preciso 
que  se entenda que  se  trata  justamente disso. O 
conceito de liberdade é uma construção da huma‐
nidade  que  veio  sofrendo  várias  alterações  na 
história do ocidente, desde a antiga polis grega ao 
ideário da Revolução  Francesa  e desse  ao  sonho 
socialista, nunca plenamente  realizado, ou à pro‐
posta  anarquista  auto‐gestionária,  também  pou‐
cas  vezes  concretizada. Desse modo,  carregando 
origens histórico‐sociais diversas, os sentidos para 
a palavra “liberdade” também seguem sendo hoje 
os  mais  variados.  Desde  os  mais  ingênuos  aos 
mais críticos, dos mais  idealistas aos mais concre‐
tos, dos mais demagógicos aos mais  francos, dos 
mais  racionalistas aos mais apaixonados. Quando 
digo que o conceito de Vigotski não é liberal, refi‐
ro‐me ao  liberalismo como  ideologia política pró‐
pria do  conceito europeu dominante desde a as‐
censão  da  burguesia  como  classe  hegemônica. 
Sem nos alongarmos sobre esse ponto, reitera‐se 
o  já destacado acima: o  conceito  liberal de  liber‐
dade,  tanto quando o de humanismo, é pautado 
fundamentalmente  numa  concepção  individualis‐
ta de mundo. A qual, mais das vezes, é sustentada 
por um discurso naturalista, pelo qual as diferen‐
ças  individuais são  fruto exclusivo da herança ge‐
nético‐molecular,  e  os  méritos  das  pessoas  são 
tratados  como  dons,  capacidades  abstratas,  com 
as quais foram agraciadas independentemente de 
educação  social  ou  desenvolvimento  histórico. 
Supõe‐se, portanto, que um autor como Vigotski, 
cujas  bases  filosófico‐metodológicas  estão  forte‐
mente articuladas com uma tradição da ontologia 
do ser social marxista, não teria um conceito libe‐
ral de  liberdade ou de emancipação humana. Há 
dois  pontos  que  cabe  destacar  no  conceito  de 
liberdade/emancipação  em  Vigotski:  (a)  trata‐se 
de uma conquista não um pressuposto; (b) é uma 
conquista que se obtém cooperando com alguém 
e não sozinho. 
 
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 
 
 
 
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Não há necessidade aqui de optarmos pela pala‐
vra “liberdade” em preferência à “emancipação”, 
nem  o  contrário.  Contudo,  entenda‐se  que  ao 
falarmos em  “liberdade”concebemos o processo 
de  permanentemente  obtê‐la,  e  não  como  um 
estado ideal que atingido faz cessar a necessidade 
de  buscá‐lo.  E  por  “emancipação”,  entenda‐se  o 
mesmo, ainda que a terminação da palavra talvez 
ajude a nos sugerir uma idéia de “ação”, portanto 
“movimento”. O  bebê  humano  é  o mais  depen‐
dente de todos os filhotes conhecidos, o que nas‐
ce menos preparado, o que demora mais  tempo 
para  atingir  a  forma  adulta,  o  que  precisa mais 
aquisições  do  ambiente  para  justamente  poder 
lidar com ele. Sendo assim, é certo que não nas‐
cemos  livres, nem autônomos. Portanto, todo um 
desenvolvimento humano é necessário para  con‐
quistar maior autonomia, liberdade de pensamen‐
to  e  de  ação,  ou mesmo  independência  afetiva. 
Esse curso de desenvolvimento, na concepção de 
Vigotski, vai  “do  social ao  individual”. A ênfase é 
distinta  da  de  autores  como  Freud  e  Piaget  (ver 
BRUNER,  2005),  para  quem  a  criança  é  um  ser 
individual  que  só  progressivamente  se  socializa. 
Na  perspectiva  da  abordagem  histórico‐cultural, 
nascemos  já em mundo social, e só podemos nos 
manter vivos  se em contato com outras pessoas. 
Assim,  pela  mediação  delas,  processualmente, 
vamos  nos  diferenciando  e  nos  “subjetivando”, 
tomando consciência de nossa própria existência, 
constituindo  nosso mundo  privado  e  assumindo 
um  lugar específico no mundo público no qual  já 
estávamos situados desde sempre.  
 
Desse  modo,  não  há  qualquer  liberdade  a  ser 
constituída  que  não  passe  pela  relação  com  os 
outros. As  próprias  regras  que,  desde  pequenos, 
aprendemos  com os  adultos  e  com outras  crian‐
ças, são condição de possibilidade para o alcance 
de maior autonomia e  liberdade de pensamento, 
ação e afeto, e não necessariamente  impedimen‐
to.  As modalidades  de  relação  social  que  sejam 
impeditivas da autonomia humana não são consi‐
deradas,  como  em  outras  teorias,  algo  natural  e 
regra  inevitável  do  desenvolvimento  psicológico, 
mas  formas  historicamente  constituídas  que  po‐
dem  predominar  ou  não.  As  quais,  por  sua  vez, 
estão em constante  tensão com aquelas  relações 
que  proporcionam  o  avanço  para  modos  mais 
integrados de compor com o mundo e de obter e 
exercer  maior  poder  de  realização  junto  a  ele. 
Pensemos  apenas  no  exemplo  da  brincadeira  da 
criança, na qual para haver um  simples  jogo  são 
necessárias  regras, mas brincar não  só nos pode 
ser aprazível,  como  também permitir‐nos  ir além 
do que está posto de  imediato  frente aos nossos 
olhos,  avançando  ao  distante  no  tempo  ou  no 
espaço  no  ato  da  imaginação  criadora.  Por  fim 
poderíamos,  de  passagem,  destacar  que,  em  Vi‐
gotski, o conceito de  liberdade alia‐se ao de von‐
tade, o qual por sua vez se  traduz pelos atos hu‐
manos  que  envolvem  uma  tomada  de  decisão, 
uma escolha. Diante de duas opções o ser humano 
necessita um ato volitivo para decidir o que have‐
rá  de  obter  (realizar)  e  o  que  haverá  de  perder 
(deixar de realizar). Nessa decisão, na tensão que 
ela  envolve,  está  posta  nossa  possibilidade  de 
superação  com  relação  aos  determinantes  de 
cunho  estritamente  condicionados  pelos  estímu‐
los do meio. Essas ações de escolher, por sua vez, 
passam por um processo de desenvolvimento ao 
longo  de  nossas  vidas,  que  é  o  desenvolvimento 
de nossa própria vontade ou “volição”. 
 
Em  seu estudo  sobre o “domínio da própria con‐
duta”,  Vigotski  (1931/2000b)  explora mais  deta‐
lhadamente  esses  aspetos. Num dado momento, 
ele  retoma Marx  e  Engels  para  destacar  que  “o 
livre arbítrio (...) não significa mais do que a capa‐
cidade  de  tomar  decisões  com  conhecimento  do 
assunto”  (apud  VIGOTSKI,  1931/2000b,  p.  300). 
Desse modo,  as  decisões mais  livres  não  seriam 
aquelas  que  tão  somente  se  toma  com  base  no 
impulso, no  fazer “como eu quero” ou “tudo que 
quero”, como dito no senso comum – pelo qual a 
ideologia  liberal  perpassa. Até  porque  uma  ação 
tão somente “por querer”, sem que se  intuam os 
motivos  pelos  quais  se  deseja,  pode não  ser  tão 
livre  quanto  se  imagine. Nota‐se  que  o  conceito 
de  liberdade  aliado  ao  processo  de  tomada  de 
consciência  crítica,  isto  é, de percepção da dinâ‐
mica contraditória do  real,  lembra o conceito es‐
pinosiano de emancipação, como relativa à supe‐
ração das nossas superstições. Ou seja, de supera‐
ção de paixões tristes, de receios,  idéias e afetos, 
que nos  imobilizem, por desconhecermos as cau‐
sas  reais das  coisas. E  também por, desse modo, 
ignorarmos  as  nossas  próprias  possibilidades  e 
limitações com relação à transformação ou manu‐
tenção  do mundo  que  aí  está.  Vigotski  assume, 
embora não explicite em quais termos, a  identifi‐
cação de  seus  ideais éticos com os de Baruch de 
Espinosa:  “Não podemos deixar de  assinalar que 
nossa idéia da liberdade e o autodomínio coincide 
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 
 
 
 
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com  as  idéias  que  Espinosa  desenvolveu  em  sua 
“Ética””  (VIGOTSKI,  1931/2000b,  p.  301).  Caberá 
aprofundar  as  formulações  aqui  apresentadas. 
Mas, articulando  indícios e arriscando nossa pró‐
pria interpretação, cabe ainda relacionar o ideário 
emancipatório em Vigotski com a busca social (na 
então União Soviética) de desenvolver o chamado 
“novo  homem  socialista”.  Tal  noção  implicaria  a 
ampliação das  capacidades  simbólicas  e  culturais 
de  cada pessoa num  contexto  societário  livre da 
expropriação  de  uma  classe  por  outra  (ver  VI‐
GOTSKI, 1930/1994).  Isto pode ser sintetizado no 
dito marxiano  sobre  o movimento  de  irmos  “do 
reino da necessidade, para o reino da  liberdade”. 
Algo que ainda não aconteceu na história da hu‐
manidade. 
 
1.2  Contradições  enfrentadas  pelo  psicólogo  que 
se orienta por um humanismo  crítico  e o  critério 
ontológico  da  historicidade  como  recurso  perti‐
nente 
 
Uma vez que a ética humanista própria à perspec‐
tiva histórico‐cultural,  tal  como  lida  aqui,  implica 
um movimento de negação dos valores dominan‐
tes, bem poderíamos  atribuir  a  tal humanismo o 
adjetivo de  “crítico”. Contudo, apenas o  façamos 
com o cuidado de não substantivar esse adjetivo, 
para  não  criar  rótulos  que mais  sirvam  para  dis‐
tanciar  pessoas  com metas  comuns  do  que  para 
aproximá‐las em projetos de  cooperação por um 
bem maior, o que nos faria entrar numa luta inco‐
erente por decidir qual seria o “melhor humanis‐
mo”. Até porque “humanista”  já fora desde o  iní‐
cio um adjetivo para dada ética. De qualquer ma‐
neira, no nosso caso, a crítica é também um crité‐
rio  fundamental  para  a  psicologia  de  orientação 
histórico‐cultural.  Disse  Karl Marx  que:  “é  certo 
que a arma da crítica não pode substituir a crítica 
das armas, que o poder material tem que ser der‐
rocado pelo poder material, mas também a teoria 
se transforma em poder material logo que se apo‐
dera das massas. A teoria é capaz de se apoderar 
das  massas  quando  argumenta  ad  hominem,  e 
argumenta ad hominem quando  se  torna  radical: 
ser radical é tomar as coisas pela raiz. Mas a raiz, 
para o homem, é o próprio homem”  (apud CHA‐
SIN, 1999, p. 9). Assim a crítica só é pertinente se 
argumenta  “ad  hominem”,  não  aqui  no  sentido 
vulgar de argumentar “contra o homem”, desqua‐
lificando as características pessoais do outro para 
assim  destituir  de  valor  o  seu  argumento  sem, 
contudo, mostrar em que tal argumento é falho – 
recurso muito usado por alguns advogados, jorna‐
listas, políticose pseudo‐intelectuais. Mas sim no 
sentido mais  profundo  de  argumentar  “junto  ao 
homem”,  interpelando‐o  em  sua  existência  con‐
creta,  pedindo‐lhe  coerência  entre  palavras  e  vi‐
vências,  falando‐lhe de coisas que  lhe digam  res‐
peito pessoalmente e não apenas “em abstrato”, 
solicitando‐lhe  responsabilidade  e  tomada  de 
atitude. 
 
Evidentemente, para virmos um dia a argumentar 
assim precisaremos voltar o mesmo  recurso para 
nós mesmos – do  contrário, na ética do discurso 
poderá  predominar  a  ação  estratégica  sobre  a 
comunicativa5,  nos  termos  de  Habermas  (1989). 
De  todo modo,  se no  exemplo de  Puzirei o  “ho‐
mem  no  homem”  é  o  que  se  extrai  para  o mais 
alto, na fala de Marx é o que se retira do profun‐
do,  em  suas  raízes,  ou  seja,  em  nós mesmos  – 
animais  simbólicos,  sociais  e  históricos.  Sendo 
assim,  a  realização  da  emancipação,  como  con‐
quista permanente de maior  liberdade será social 
não apenas porque cada indivíduo precisa se rela‐
cionar  com  outras  pessoas  para  desenvolver  sua 
capacidade de  escolher, decidir  voluntariamente, 
mas  também por algo mais. O processo social de 
emancipação humana não é relativo só à emanci‐
pação de cada um, mas à de  todo o conjunto da 
sociedade,  na  construção  de  práticas  democráti‐
cas de convívio e de gestão do que é de interesse 
público.  Sabemos,  contudo, que  em nossa  socie‐
dade,  as  restrições  são  fortíssimas. Nossa  demo‐
cracia é  frágil, nossas  instituições não são confiá‐
veis. E a  ideologia de uma “liberdade” em termos 
liberais,  de  jargões  como  “cada  um  para  si”  ou 
“leve  vantagem  você  também”,  é  hegemônica. 
Colocamo‐nos diante de certo dilema ético quanto 
a agir ou não agir, com  relação a esse estado de 
coisas.  Se Marx  fala do  confronto entre  arma da 
crítica e crítica das armas, Espinosa, no “Tractatus 
politicus”  também  recorre  a  termos  bélicos  para 
 
5  Na ética do discurso de Habermas (1989), o agir estratégico 
é tido como aquele em que nós argumentamos tão somente 
para sobrepujar a posição do outro e convencê‐lo, enquanto 
no agir comunicativo ambos dialogam e cedem mutuamente 
tendo  como  objetivo  a  busca  da  verdade.  Ainda  segundo 
analistas dessa teoria, os dois modos de agir não se polarizam 
de  forma pura e  ideal, mas na prática  logram  influenciar‐se 
mutuamente em alguma medida, numa relação dialética, ou 
seja, de contradição inter‐constitutiva. 
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 
 
 
 
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dizer  da  liberdade  humana:  “se  numa  Cidade  os 
cidadãos  não  tomam  das  armas  porque  estão 
aterrados  pelo medo,  não  se  pode  dizer  que  aí 
exista paz e  sim mera  ausência de  guerra. A paz 
não é pura ausência de guerra, mas virtude origi‐
nada da força d’alma no respeito às leis [...]. Uma 
Cidade onde a paz é efeito da  inércia dos súditos 
tangidos  como um  rebanho e  feitos  apenas para 
servir merece antes o nome de solidão do que de 
Cidade” (apud CHAUI, 1995, p. 56). 
FIGURA1: PSICÓLOGOS SOVIÉTICOS 
(1)  Aleksis Nikolaevitch  Leontiev  (1903‐1979);  (2)  Lidia  Il’initchna  Bojovitch
(1908‐1981);  (3) Aleksandr Romanovitch Luria  (1902‐1977);  (4) Serguei Leo‐
nidovitch Rubinstein (1889‐1960); (5) Daniil Borisovitch Elkonin (1904‐1984). 
 
Não  é  necessário 
nos alongarmos a‐
qui  no  diagnósti‐ 
co  da  sociedade 
contemporânea, 
dita  “pós‐moder‐
na”,  também  de‐
nominada  “neoli‐
iberal”.  Trata‐se 
de  conteúdo  cor‐
rente  nas  refle‐
xões críticas sobre 
políticas públicas e 
as que dedicam‐se 
a  algum  tipo  de 
análise  das  insti‐
tuições  atuais. 
Contudo,  fica  pos‐
ta uma  tensão en‐
tre  os  valores  que 
são o fundamento da ética da abordagem históri‐
co‐cultural, tal como a  lemos, e os valores privile‐
giados no mundo contemporâneo, de modo geral, 
mais drasticamente em países periféricos e subal‐
ternos  como  o  Brasil.  Como  agir  de  acordo  com 
valores  como  os  da  psicologia  vigotskiana,  num 
país  em  que  tais  valores  hegemonicamente  são 
tidos como antiquados ou mesmo utópicos, quan‐
do não  inexistentes ou totalmente  ignorados? De 
fato, o marcador  semântico para nós  importante 
nesse caso é a palavra “hegemonicamente”. O que 
é  “hegemônico”  é  predominante,  o  que mais  se 
destaca, o que mina e subordina as visões contrá‐
rias, mas  não  é  o  “absoluto”,  não  prevalece  de 
modo  homogêneo,  não  existe  sem  fissuras  –  as 
quais podem  surgir  como  contestações organiza‐
das,  como  desobediência  civil,  ou  ainda  como 
fraturas e convulsões de cunho  retrógrado. A  so‐
ciedade  na  qual  foi  criada  a  teoria  histórico‐
cultural não existe mais, foi derrotada na chamada 
“Guerra Fria”. Ela mesma, por sua vez, durante o 
tempo  que  existiu  não  chegou  a  atingir  todo  o 
projeto a que se propôs, e talvez sua derrota seja 
indício justo disso. 
 
Na atual sociedade, na qual hoje as obras de auto‐
res  soviéticos  como Vigotski,  Luria,  Leontiev, Ru‐
binstein,  Elkonin  e  Bojovitch  (ver  figura  1)  vêm 
cobrar  sentido,  o  ser  humano  nem  sempre  é  o 
valor  central  e,  quando  sim,  geralmente  o  é  em 
termos  liberais  ou  ingênuos.  Nossa  atitude  não 
pode  ser  muito  mais  que  a  de  distanciamento 
crítico.  Como  disse 
meu  colega  o  pro‐
fessor  Luiz  Lastória 
(com.  pessoal, 
1998),  parafrasean‐
do Adorno: “Se não 
há  cura,  aprofunda 
o diagnóstico”. Pro‐
postas  apressadas 
de  “cura”,  sem  o 
conhecimento  real 
do  que  gera  os 
“sintomas”  pode 
implicar  fatores 
etiológicos  hiatro‐
gênicos,  isto  é,  fa‐
tores  patológicos 
gerados  pela  pró‐
pria  ação  do  trata‐
mento.  O  que  nos 
remete  também  ao  alerta  presente  em Hipócra‐
tes, para quem a missão do profissional da saúde 
é “curar se possível, ao menos não danar”. Eviden‐
temente,  estamos  usando  termos  médicos  de 
modo metafórico, não é esse nosso papel  social. 
Mas  trata‐se  de  uma  analogia  que  pode  ajudar‐
nos  a  refletir. Pode‐se  a ela  adicionar que  “diag‐
nosticar” não é um ato passivo e descompromis‐
sado. Diagnosticar  é,  na  raiz  grega,  conhecer  “a‐
travessando”  a  realidade,  ou  seja,  desde  o  pro‐
fundo ao elevado, não  se  trata do  sentido vulgar 
da palavra como “rotular”. E para tanto é necessá‐
rio  compromisso,  com  o  ato  de  conhecer  e  com 
aquele que se deseja conhecer, na relação com o 
qual passaremos também a nos conhecer melhor, 
posto que estamos falando de um conjunto social 
do qual fazemos parte, desde que nascemos. Não 
são as pessoas com quem trabalhamos objeto de 
piedade  ou  caridade, mas  sujeitos  co‐autores  do 
mesmo processo histórico em que estamos inseri‐
dos e que (re)produzimos diariamente. 
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 
 
 
 
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Desse  modo,  em  suma,  cabe  destacar  que  aos 
princípios  éticos  aqui  insinuados,  comentados, 
acrescenta‐se um princípio ontológico que permi‐
te  abordá‐los  com mais  visibilidade.  Trata‐se  do 
princípio  da  historicidade  dos  valores.  Se  nossas 
relações com as pessoas, nossos modos de simbo‐
lizar  o  mundo  mediante  a  linguagem  e  de  agir 
sobre  ele  mediante  o  uso  de  instrumentos,  se 
constituem historicamente, o mesmo se aplica aos 
nossos valores morais,  isto é, à nossa ética. Nos‐
sos valores  se constituem historicamente, e  tam‐
bém só historicamente podem se consolidarou se 
enfraquecerem  dando  lugar  a  outros.  A  história 
implica contradições e  lutas entre projetos políti‐
cos e valores diversos, só em meio a tal contradi‐
ção  a  realização  e/ou  transformação  dos  nossos 
valores pode ocorrer. A busca de cooperação em 
função  de  superação  constante,  como  conquista 
de uma mais potente emancipação humana, cons‐
titui‐se, portanto, em um desafio histórico, coleti‐
vo e pessoal. Não é pouco, nem é suficiente. Mas 
é uma  interpelação que está posta. Trabalhar  ins‐
tigados  por  tal  desafio  é  como  assumir  um  dito 
que  ouvi  de  Paulo  Freire  em  Curitiba,  em  12  de 
junho de 1992: “Cabe fazer o que é possível fazer 
hoje para que o que não é possível fazer hoje seja 
feito  amanhã”.  Os  limites  do  possível,  segundo 
Vigotski, se ampliam na relação com o outro6 (ver 
VIGOTSKI,  1935/1989)7,  tanto  quanto  podem  se 
estreitar dependendo de  como nos  relacionemos 
com esse outro e de quem é ele ou pode ser para 
nós. Nesse ponto nos cabe o ato volitivo de optar, 
se possível, pelas relações mais potencializadoras. 
Descobrir  quando  é  possível  ou  não,  no mesmo 
ato de buscar produzir a possibilidade, é o próprio 
exercício da ética. 
 
 
1.3 O método construtivo e a psicologia como 
constitutiva da vida humana 
 
Por  fim,  tendo  já  falado sobre o critério metodo‐
lógico  da  crítica  e  o  ontológico  da  historicidade, 
como suportes para a ética, coloquemos também 
 
6 Sobre a teorização da superação dos  limites no desenvolvi‐
mento  humano  ontogenético  e microgenético, mediante  o 
conceito de “zona blijaishego razvitia”, ver nota “17”, p. 29. 
7 A fonte só fornece o ano da primeira publicação, mas não a 
data de quando o  trabalho  teria  sido  concluído. Trata‐se de 
uma publicação póstuma,  já que Vigotski morreu em 11 de 
junho de 1934. 
o  critério  do  chamado  “método  construtivo”,  tal 
como  concebido  por  Vigotski,  pois  elucida  um 
pouco  o  já  falado  sobre  o  “aprofundamento  do 
diagnóstico”,  como um  ato no qual nos envolve‐
mos como partícipes. Ato no qual, de certa forma, 
diagnosticamos a nós mesmos, nossa própria exis‐
tência  social e experiência histórica, no papel de 
psicólogos que não  se desvincula dos nossos de‐
mais  lugares  simbólicos.  Vejo  esse momento  da 
discussão  com um ponto de  conexão  importante 
entre os valores gerais e a proposta de atuação do 
psicólogo que se orienta numa perspectiva histó‐
rico‐cultural. Nesse sentido retomo uma discussão 
já proposta anteriormente  (DELARI  JR., 2000), na 
qual  me  deparava  com  a  trama  de  inter‐
constituição  das  linguagens  teóricas  que  assumi‐
mos com a constituição de nossa própria subjeti‐
vidade,  consciência  e  personalidade.  De  fato,  o 
vínculo profundo dos valores éticos com a prática 
social e então com a prática profissional com um 
momento  importante  dela,  em  psicologia,  está 
associado ao problema das relações entre o “abs‐
trato”  e  o  “concreto”.  Para  o marxismo  não  há 
como chegar ao concreto sem passar pela abstra‐
ção, porque o concreto não é mais  só o “empíri‐
co”, ou  seja, a experiência pela experiência. Para 
entendermos  determinações  concretas  da  reali‐
dade é preciso olhar para além do que se apresen‐
ta  diretamente  aos  sentidos,  ver  o  que  não  se 
mostra,  ouvir  o  que  não  foi  dito,  conectar,  rela‐
cionar,  imaginar,  interpretar,  logo “abstrair”. Nes‐
se  sentido  entende‐se  a  proposição  de Marx  de 
que é preciso “ascender ao concreto”. Ele é uma 
meta elevada, não  só ponto de partida eventual. 
Mas  para  alcançarmos  o  concreto,  a  abstração 
não pode bastar‐se, nem perder seu vínculo com a 
vida  social,  com  as necessidades  e  lutas de  cada 
sociedade. 
 
Infelizmente, se uma abstração é sempre necessá‐
ria  ao  cientista,  ao  psicólogo  crítico,  também  é 
certo que nem  sempre conseguimos ascender ao 
concreto. Para Puzirei, o fato de Vigotski dizer que 
sua “história do desenvolvimento cultural é a ela‐
boração  abstrata  da  psicologia  concreta.”  (1929/ 
2000,  p.  35)  seria  como  uma  “autocrítica”  que 
“não apenas mostra a  liberdade e espírito crítico 
com que ele avaliava sua própria obra, mas  tam‐
bém a profundidade e a radicalidade de seu pen‐
samento” (PUZIREI, 1989a, p. 76). Tal pensamento 
teria formulado um projeto no qual Vigotski “via a 
‘linha geral’ do desenvolvimento posterior da psi‐
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 
 
 
 
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cologia  histórico‐cultural.  Esta  tendência  poderia 
significar  uma  superação  radical  do  ‘academicis‐
mo’ na psicologia  tradicional”  (PUZIREI, 1989a, p. 
76). Tal projeto para o  futuro, visto do  tempo de 
Vigotski, nos interessa hoje no século XXI, embora 
as condições da psicologia atual não sejam muito 
melhores que as do período em que a perspectiva 
histórico‐cultural  surgiu.  Trata‐se  de  um  projeto 
que  solicita:  “um  movimento  em  direção  a  um 
tipo  completamente  novo  de  investigação,  que, 
em virtude de alguns dos aspectos  fundamentais 
do seu “objeto”, um objeto histórico‐cultural e em 
desenvolvimento,  e  de  exigências  fundamentais 
(derivadas  deste  último)  de  seus métodos,  a  sa‐
ber,  externalização  e  análise,  deve,  ele  próprio, 
ser  implementado  dentro  do  quadro  organizado 
de alguma prática psicotécnica, servindo como um 
órgão  necessário  que  torna  possível  a  projeção, 
realização, reprodução e desenvolvimento dirigido 
dessa prática. Esse projeto de reestruturação radi‐
cal da psicologia permanece essencialmente irrea‐
lizado  na  história  subseqüente  da  psicologia.” 
(PUZIREI, 1989a, p. 76) 
 
A psicologia concreta proposta por Vigotski convi‐
da, assim, a uma mudança  radical em nossa pró‐
pria atitude: a psicologia passaria a ser entendida 
e  conduzida  como  um  componente  da  própria 
constituição dos fenômenos ou processos que ela 
mesma estuda, como ciência, e com os quais ela 
atua,  como profissão. Trata‐se de  algo  sério, por 
evidenciar  nossa  grande  responsabilidade.  Ao 
mesmo tempo, trata‐se de algo previsível, no sen‐
tido de ser coerente com o que a própria aborda‐
gem postula em seus conceitos sobre a constitui‐
ção do humano, como ser social, simbólico e his‐
tórico. Coerente  com  seus  conceitos psicológicos 
(teóricos) e metodológicos  (meta‐teóricos). Psico‐
lógicos como os de que “toda a palavra é  já uma 
teoria”, um modo de generalizar a realidade, e de 
que a consciência se constitui justamente median‐
te o significado da palavra. Metodológicos como o 
de que “a palavra é o gérmen da ciência, e neste 
sentido cabe dizer que no começo da ciência esta‐
va a palavra” (VIGOTSKI, 1927/1991, p. 281). Se a 
ciência é, desde o início, “palavra” e se é nela, dita 
de corpo inteiro, que o humano realiza o específi‐
co da  sua existência  social e histórica,  é possível 
deduzirmos  que  as  palavras  de  uma  abordagem 
passam,  de  algum modo,  a  ser  constitutivas  das 
pessoas que dela se apropriam e que com ela pas‐
sam a  trabalhar. Na medida em que nosso  traba‐
lho é  também e sempre um  trabalho com os ou‐
tros, os nossos valores, os valores da abordagem 
que  assumimos  justamente  por  serem  condizen‐
tes  com os nossos ou por  sentirmos que podem 
potencializá‐los, passarão a  interagir com os valo‐
res  de  nossos  interlocutores,  as  pessoas  com 
quem  trabalhamos,  tensionando  com  eles, numa 
relação em que nos enriquecemos mutuamente e 
nos  refazemos  constantemente,  se  para  tanto 
houver disposição. 
 
Sobre  o  processo  pelo  qual  nosso  trabalho  com‐
põe‐se  com  nossa  própriapersonalidade  e  a  da‐
queles  com  quem  nele  dialogamos,  deixo  uma 
última  sugestão  de  reflexão  sobre  o  chamado 
“método  construtivo”  em  pesquisa  psicológica. 
Vejo‐o  como  pertinente  também  para  a  prática 
profissional, se considerarmos o que Puzirei colo‐
cava, na  citação acima,  sobre a articulação entre 
método de  investigação e “prática psicotécnica”8. 
Vigotski diz que  “um método  construtivo  implica 
duas  coisas:  (1)  ele  estuda  antes  construções  do 
que estruturas naturais; (2) não analisa, mas cons‐
trói  um  processo”  (VIGOTSKI,  1929/1989,  p.  55). 
“Construções” aqui está  como  sinônimo de  “pro‐
cessos  constituídos  culturalmente”,  aqueles  que 
não  são dados pela natureza  em  seu  estado pri‐
meiro,  mas  emergem  nela,  pela  transformação 
dela mediante a ação humana, planejada, dirigida 
a  metas,  visando  atender  nossas  necessidades 
básicas e as que  criamos  socialmente, para além 
delas. Ou seja, “construções” são criações históri‐
co‐culturais,  símbolos,  instrumentos,  modos  de 
usá‐los,  relações humanas, papéis  sociais, experi‐
ências  partilhadas,  modos  de  organizar  nossas 
rotinas, procedimentos  institucionais ou a contes‐
tação deles, enfim. Criações que, ao  serem  reali‐
zadas por nós,  realizam  ao mesmo  tempo o que 
somos. Trata‐se então de um método de  investi‐
gação,  e  porque  não  dizer  de  trabalho  também, 
no qual não só “analisamos” processos, mas tam‐
bém  os  construímos  culturalmente,  com  nossos 
atos,  nossa  linguagem  e  nossa  sensibilidade.  Tal 
 
8 Evidentemente, nesse contexto, o conceito russo de “psico‐
técnica”, também traduzido como “psicotecnia” (em VIGOTS‐
KI, 1927/1991 e 1927/1996), não é sinônimo de “psicometri‐
a”,  como  se  tornou  comum  no  nosso  contexto  cultural. Ao 
contrário, “psicotécnica” indica um conceito mais abrangente 
com  relação  à  aplicação  prática  da  psicologia  frente  às  de‐
mandas concretas da sociedade, na educação, na clínica, no 
mundo do trabalho, etc.  
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 
 
 
 
GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009  12 de 40
concepção sustenta a afirmação anterior de Puzi‐
rei  de  que  a  perspectiva  iniciada  por  Vigotski  se 
orienta para uma superação do academicismo em 
psicologia. Trata‐se  justamente de uma psicologia 
que não recorre à “assepsia” para lidar com a rea‐
lidade de  seu  trabalho, mas a  toca “de mãos nu‐
as”, assumindo com ela um compromisso de com‐
posição  partilhada.  Dessa maneira  os  valores  de 
que  falamos  aqui  estão  implicados na  ação  e no 
método, orientado às metas que eles definem. E 
abre‐se  para  nós  o  convite  para  produzir  uma 
prática  profissional  do  psicólogo  que  pronuncia 
uma “palavra que realmente significa e é respon‐
sável por aquilo que diz” (BAKHTIN, 1992, p. 196). 
 
 
2 Princípios de psicologia geral numa abordagem 
histórico‐cultural 
 
“Cada vez soam com maior freqüência vozes que colo‐
cam o problema da psicologia geral como um problema 
de primeiríssima importância. Essas colocações (...) não 
partem dos  filósofos  (...) nem dos psicólogos  teóricos, 
mas  dos  psicólogos  práticos,  que  estudam  aspectos 
concretos da psicologia aplicada (...)” 
 
— Vigotski (1927/1996, p. 203) 
 
O conceito de psicologia geral na obra de Vigotski, 
tanto quanto na tradição russo‐soviética como um 
todo, diferencia‐se do conceito escolar de “psico‐
logia  geral”  com  o  qual  comumente  lidamos  nas 
faculdades dessa área, e que nos faz lembrar uma 
série de conteúdos  introdutórios superficiais, não 
necessariamente  conectados numa  lógica  teórica 
mais  abrangente  que  lhes  confira  coerência.  As‐
sim,  na  psicologia  acadêmica  que  conhecemos, 
“psicologia geral” soa mais como um vôo panorâ‐
mico  por  sobre  um  território  desconhecido,  do 
que  como  área  científica  relevante  para  o  nosso 
trabalho do profissional. Na psicologia soviética o 
significado da palavra é distinto. Psicologia geral é 
o campo da ciência psicológica que  trata de seus 
fundamentos,  de  seus  princípios  articuladores 
mais profundos, das categorias meta‐teóricas que 
visam organizar  a discussão,  como: o  “objeto de 
estudo”; seu “princípio explicativo”; a “unidade de 
análise” necessária para e investigação; e o “modo 
de proceder” a própria análise, ligado às interven‐
ções  sobre  a  realidade  que  ele  comporta.  Com 
inspiração nessa orientação, como eu  já disse em 
outro lugar (DELARI, 2004), uma atitude generalis‐
ta do psicólogo não é sinônimo de saber “introdu‐
tório”  ou  “abreviado”  sobre  cada  aspecto  da  vi‐
vência humana. O geral não é o “numeroso”, mas 
o que  implica uma visão articulada e profunda do 
conjunto. Aqui poderemos apenas colocar os con‐
tornos de alguns princípios essenciais na psicolo‐
gia geral da perspectiva histórico‐cultural. O apro‐
fundamento  desses  princípios  se  desenvolverá 
com  o  nosso  estudo  posterior,  tendo  em  vista  a 
prática  social  do  psicólogo  e  os  princípios  éticos 
que  a  orientam.  Organizei  a  exposição  aqui  se‐
gundo os seguintes eixos: (2.1) Princípio da unida‐
de psicofísica;  (2.2) Princípio da determinação da 
consciência  pela  existência  social;  (2.3)  Princípio 
da  consciência  como  psiquismo  propriamente 
humano; (2.4) Princípio da compreensão da cons‐
ciência  mediante  unidades;  (2.5)  Princípio  da 
compreensão do psiquismo humano mediante sua 
gênese. 
 
2.1 Princípio da unidade psicofísica 
 
Segundo  Serguei  Rubinstein  “O  princípio  da  uni‐
dade psicofísica é o princípio mais  importante da 
psicologia  soviética”  (1972, p. 40). Estamos habi‐
tuados a formar a partir da palavra “psicofísica” a 
imagem do trabalho de laboratório com os aspec‐
tos fisiológicos do funcionamento mental humano 
ou  animal. Contudo,  aqui o  significado do  termo 
posto como adjetivo para “unidade” é mais filosó‐
fico  e  de  orientação  genérica.  Lembremos  que 
“psikhe”  para  os  antigos  gregos  era  o  “sopro  vi‐
tal”,  nosso  “impulso  de  vida”,  “aquilo  que  nos 
move”,  e  depois  para  alguns  também  “alma”  ou 
“mente”,  e  que  “physis”  denotava  a  natureza, 
todo o mundo natural. Intuiremos então que uma 
unidade entre o psíquico e o  físico é a uma  inte‐
gração entre o que chamamos de funções mentais 
e a natureza como um todo. Dito de outro modo, 
nada  na  psique  humana  é  considerado,  nessa  a‐
bordagem,  como  “sobrenatural”,  “sobre‐huma‐
no”,  substancialmente distinto do que  compõe o 
âmbito  tangível  e  inteligível  do  real.  No  que  a 
perspectiva  histórico‐cultural  vai  numa  direção 
diferente de grande parte das psicologias surgidas 
no final do século XIX e desenvolvidas ao longo do 
século  XX,  as quais  trazem  fortes  traços do dua‐
lismo mente  e  corpo,  psíquico  e  físico,  herança 
platonista e  cartesiana. O mesmo monismo, des‐
tacado  por  Rubinstein,  aparece  também  em  Vi‐
gotski, para quem  “a psique não aparece  isolada 
do mundo  ou  dos  processos  do  organismo  nem 
por  um  milésimo  de  segundo”  (1926/1991,  p. 
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 
 
 
 
GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009  13 de 40
150). É preciso olhar com atenção para essa pro‐
posição, pois  já entrou para o senso comum aca‐
dêmico o conceito de que “o homem não é um ser 
biológico, mas  sim  social,  cultural, histórico”.  Tal 
oposição,  embora  esteja  correta  no  seu  sentido  
mais geral, não pode  ser  tomada ao pé da  letra. 
Posto quesem a materialidade corporal, sem nos‐
sos  órgãos  vitais,  sem  nossa  existência material, 
também não há ser humano algum. O que a frase 
acima  significaria,  se  apresentada  de  um  modo 
mais criterioso, é que “a constituição biológica do 
homem  é  de  tal  ordem  que  ela  não  basta  a  si 
mesma  e  exige  dele  que  disponha  de  recursos 
para além de seus traços orgânicos hereditários”. 
O animal Homo sapiens precisa  recorrer a outros 
de sua espécie para realizar a sua existência, para 
fazê‐lo  utiliza‐se  de  mediações  próprias  a  uma 
dada  cultura,  criadas,  transmitidas  e  desenvolvi‐
das  historicamente. O  bebê  humano  não  desen‐
volve  funções psíquicas  superiores  sem  a media‐
ção do outro e da cultura, linguagem e instrumen‐
tos. Mas  também,  por mais meios  culturais  que 
déssemos a um macaco, isso jamais o tornaria um 
ser humano, pois aquele não tem aparato biológi‐
co para isso. 
 
O  princípio  da  unidade  psicofísica marca  filosofi‐
camente  que  somos  uma  totalidade  psíquica  e 
física,  mental  e  corporal,  biológica  e  cultural.  E 
esses pares não jogam seus papéis complementa‐
res como “substâncias” opostas de modo antagô‐
nico, irredutíveis, mas como pares dialéticos, se só 
existem um em  relação ao outro,  contradizendo‐
se  e  compondo‐se mutuamente,  na medida  em 
que  juntos  formam  uma  só  realidade.  Trata‐se, 
assim, de aspectos, momentos, modos de ser, de 
uma  mesma  substância,  uma  mesma  unidade 
dinâmica, extremamente complexa e contraditória 
que é a realidade material – a totalidade da exis‐
tência em suas múltipas determinações e diversos 
planos de organização. É  interessante, nesse sen‐
tido, o resgate de Vigotski à obra de Espinosa, ao 
valorizar  o  papel  do  corpo:  “até  hoje  ninguém 
definiu aquilo de que o corpo é capaz... mas dizem 
que  seria  impossível  deduzir  apenas  das  leis  da 
Natureza,  uma  vez  considerada  exclusivamente 
como corpórea, as causas das edificações arquite‐
tônicas,  da  pintura  e  coisas  afins  que  só  a  arte 
humana produz, e que o corpo humano não con‐
seguiria construir nenhum templo se não estivesse 
determinado e dirigido pela alma, mas eu já mos‐
trei que tais pessoas não sabem de que é capaz o 
corpo e o que  concluir do  simples exame de  sua 
natureza”  (apud  VIGOTSKI  1925/1999,  p.  IX).  É 
difícil para nós, habituados ao dualismo platônico 
e  cartesiano presente na  formação do psicólogo, 
concebermos  isto: como pode um corpo produzir 
obras de arte? Como pode um ser humano produ‐
zir o que há de mais belo e sublime, sem uma “al‐
ma”  que  o  guie? Mas  entendamos  apenas  o  se‐
guinte: não se trata de que autor nos veja criando 
realidades  culturais  como  se  fôssemos  “autôma‐
tos”, sem  imaginar, conceber, projetar, sem o ato 
de pensar. Mas sim de que se antes se dizia que “o 
corpo age e a alma pensa e sente”, podemos pelo 
monismo de Espinosa entender que “o corpo age, 
pensa e sente”, por si próprio. O pensar é um as‐
pecto que pertence ao corpo humano, como tam‐
bém o  sentir, das  emoções mais básicas  às mais 
sutis,  tais quais  as de  cunho  estético. Não preci‐
samos, nessa visão, adicionar a nós algo sobrena‐
tural,  insondável,  inexplicável,  incompreensível, 
para que nos  reconhecermos  capazes de  realiza‐
ções culturais diversas, no  interior das  leis dialéti‐
cas da própria natureza, no sentido amplo da pa‐
lavra, da qual não estamos  isolados “nem por um 
milésimo de segundo”. Nesse princípio se apóia o 
posterior  quanto  às  relações  entre  consciência  e 
existência,  sobretudo  entendida  como  existência 
social. 
 
2.2 Princípio da determinação da consciência pela 
existência social 
 
No  tópico  anterior destacamos que não estamos 
alienados da natureza, não somos seres sobrena‐
turais,  supra‐ordenados,  reinando  sobre  toda  a 
criação.  Precisamos  pertencer  à  natureza  para 
nela poder viver e virmos a entender que estamos 
vivos,  que  morreremos.  Fenômenos  físicos  são 
necessários para existir vida na Terra,  fenômenos 
biológicos  são  constitutivos  da  vida  humana,  se 
não  por  inúmeras  condições  orgânicas,  que  seja 
tão  somente  pelo  falto  dela  ser  ainda  “vida”  – 
“bios”  (βίος  ). Mas a  isto cabe acrescentar que o 
nosso modo de realizar um momento da realidade 
material da qual  fazemos parte  tem  sua especifi‐
cidade, sua singularidade, seu modo particular de 
ser  e  devir.  Considerando  a  formação  social  da 
consciência como tema fundamental para a psico‐
logia histórico‐cultural, podemos articular que não 
apenas somos parte viva da natureza, como tam‐
bém nosso modo específico, distintivo de realizar 
nosso  lugar  dentro  dela,  ao mesmo  tempo,  nos 
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 
 
 
 
GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009  14 de 40
diferencia  das  demais  formas  de  seres  naturais. 
Um traço marcante para tal distinção está no fato 
de  que  o  homem  é,  como  diz  Aristóteles,  “zoon 
politicon” – animal social. Nossa própria constitui‐
ção biológica nos dá bases para que  isso ocorra: 
por um lado, pela fragilidade do nosso filhote que 
para  se  desenvolver  e  garantir  sua  própria  exis‐
tência demanda mais alguém com quem  interagir 
por  tempo  prolongado;  por  outro,  pela  grande 
complexidade  de  nosso  aparato  neurofuncional, 
que nos permite a utilização  complexa de  instru‐
mentos  e  signos  e  nos  demanda  que  eles  sejam 
utilizados para que nosso próprio  cérebro  se de‐
senvolva, na sua plasticidade funcional e organiza‐
ção  sistêmica.  Sem  entrarmos  no mérito  da  dis‐
cussão evolutiva sobre como essas características 
vieram a surgir gerando os primeiros seres huma‐
nos, o  fato é que  somos animais para os quais a 
existência  sobre o planeta não é possível  sem as 
relações  sociais. As quais por  sua vez  são media‐
das  pela  linguagem,  produto  da  própria  prática 
humana  e  que  se  materializa  na  cultura  e  se 
transmite e  se  transforma de  geração para gera‐
ção.  
 
Sendo o homem frente à natureza não um “impé‐
rio  dentro  do  império”,  como  critica  Espinosa 
(1979), mas  um momento  singular  de  realização 
dela,  o  pensamento  marxista  indica  assim  uma 
relação de determinação da consciência pela vida, 
entendida como vida social. No seu texto “A cons‐
ciência como problema da psicologia do compor‐
tamento” Vigotski diz que “a existência determina 
a consciência”  (VIGOTSKI, 1925/2005, p. 37)9. Ele 
está parafraseando Marx e Engels em “A ideologia 
alemã”: “Moral,  religião, metafísica e  todo o  res‐
tante da ideologia e suas formas correspondentes 
de consciência, pois, não mais conservam o aspec‐
to  de  sua  independência.  Elas  não  têm  história 
nem  evolução;  mas  os  homens,  desenvolvendo 
sua produção material e seu intercâmbio material, 
alteram, a par disso, sua existência real, seu pen‐
 
9  Cito  aqui  versão  russa  apenas  porque  nessa  passagem,  a 
edição  brasileira  (VIGOTSKI,  1925/1996)  contém  um  erro 
também  presente  na  edição  espanhola  (VIGOTSKI,  1925/ 
1991), da qual foi traduzida. Trata‐se de que onde ali se lê “a 
experiência determina a consciência”  (VIGOTSKI, 1925/1996, 
p. 80) ou “la experiencia determina la conciencia” (VIGOTSKI, 
1925/1991, p. 56), no russo está “Бытие определяет созна‐
ние” [Bitie opredeliaet soznanie], ou seja, “a existência (bitie) 
determina a consciência”. 
samento e os produtos deste. A vida não é deter‐
minada pela  consciência, mas  esta pela  vida. No 
primeiro método de abordagem, o ponto de par‐
tida  é  a  consciência  tomada  como  o  indivíduo 
vivo; no segundo, são os própriosindivíduos vivos 
reais, tal como são na vida concreta, e a consciên‐
cia  é  considerada  unicamente  como  consciência 
deles"  (MARX  &  ENGELS,  1983,  p.  172  –  grifo 
meu). Os aspectos  ideológicos, culturais, não teri‐
am história autônoma, posto que, são produções 
da  existência  humana,  não  existem  independen‐
temente dela. Nessa tradição, a própria consciên‐
cia não tem vida própria, não é nenhum ser à par‐
te: “a consciência é o homem consciente”. Ao que 
poderíamos  acrescentar  “o  sentimento  é  o  ho‐
mem sentindo” ou “a atividade é homem agindo”, 
são movimentos nossos, são processos e não en‐
tidades com vida própria. Quem toma consciência, 
sente  e  age  é  o  homem. Mas  quem  é  homem? 
Nessa  abordagem,  o  homem,  como  já  foi  dito  é 
um  “ser  social”.  Digamos  que  só  nesses  termos 
podemos conceber “quem ele é”, e não apenas “o 
que ele é”. 
 
Dizer que o homem é um ser social  requer ainda 
algumas especificações, pois há muitos sentidos e 
muitos modos de existir do social. Essa discussão, 
como as demais já levantadas, não se esgota aqui, 
mas para uma organização  introdutória eu gosta‐
ria de destacar apenas cinco planos articulados e 
interdependentes  da  existência  social  com  os 
quais podemos  trabalhar em psicologia histórico‐
cultural, embora outros possam ser acrescentados 
e alguns deles tenham sido mais abordados que os 
demais nas obras de Vigotski às quais tenho aces‐
so: (a) relações sociais de classe; (b) relações soci‐
ais  institucionais;  (c)  relações  sociais  grupais;  (d) 
relações  sociais  intersubjetivas;  (e)  relações  soci‐
ais no plano do indivíduo, na dinâmica e estrutura 
de  sua personalidade. Nas obras de Vigotski que 
tive oportunidade de  ler, desses  cinco pontos os 
três que mais se destacam e se explicitam são as 
relações  sociais  de  classe,  as  intersubjetivas  e 
aquelas no plano do  indivíduo em  sua personali‐
dade social. Pensar na articulação com esses pla‐
nos  o  papel  dos  grupos  e  das  instituições  é  um 
desafio importante e atual, de todo modo isso não 
poderá se dar, nessa abordagem, sem  integração 
com  os  demais  processos,  aos  quais  nos  detere‐
mos aqui. Em primeiro  lugar a abordagem de Vi‐
gotski a relação entre a  formação e/ou desenvol‐
vimento do psiquismo e a pertença do indivíduo a 
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior 
 
 
 
 
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uma  dada  classe  social  não  é mecanicista.  Se  a 
pertença  de  cada  um  de  nós  a  uma  classe  nos 
deixa  as marcas  das  práticas  e  da  ideologia  pró‐
prias a ela, o que cada  ser humano particular  in‐
ternaliza não são só os traços da formação coleti‐
va a qual pertence, mas o conjunto das contradi‐
ções  pertinentes  à  luta  entre  classes  no  seio  da 
sociedade como um todo. 
 
Vigotski, no seu texto “A transformação socialista 
do  homem”,  de  1930,  entende  que  “do mesmo 
modo pelo qual a vida de uma sociedade não re‐
presenta um  todo singular e uniforme, e a socie‐
dade  é  subdividida  em  diferentes  classes,  assim 
também, durante um dado período histórico, não 
se pode dizer que a composição das personalida‐
des  humanas  represente  algo  homogêneo  e  uni‐
forme, e a psicologia deve  levar em consideração 
o fato básico de que a tese geral que foi formula‐
da agora mesmo, pode ter apenas uma conclusão 
direta:  confirmar  o  caráter  de  classe,  a  natureza 
de classe e as distinções de classe que são respon‐
sáveis pela formação dos tipos humanos. As várias 
contradições  internas  que  são  encontradas  em 
diferentes  sistemas  sociais,  têm  sua  expressão 
tanto no tipo de personalidade quanto na estrutu‐
ra da psicologia humana naquele período históri‐
co” (VIGOTSKI, 1930/1994, p. 176). Sendo as rela‐
ções sociais heterogêneas a formação da persona‐
lidade  também não  será homogênea,  assim para 
compreender os conflitos próprios à nossa consti‐
tuição psíquica,  cabe  contextualizá‐los no âmbito 
dos  conflitos  sociais mais  amplos  que  organizam 
as condições de nossa existência, e dos quais par‐
ticipamos  inevitavelmente,  como  dirigentes  ou 
subalternos, como opressores ou oprimidos, como 
expropriadores ou expropriados, na vivência clara 
de  cada  papel  desses  ou  na mescla  de  posições 
concomitantes ou alternadas entre um e outro, de 
modo consciente ou não consciente. A sociedade 
é heterogênea tanto quanto a personalidade, mas 
também é crítico, complexo e heterogêneo o pro‐
cesso  pelo  qual  se  dão  as  transições  recíprocas 
entre  relações sociais de classe e  relações sociais 
de um homem singular consigo mesmo. A relação 
entre  indivíduo e sociedade não é de simples có‐
pia ou repetição mecânica. Há transformações de 
um plano a outro.  
 
Isso  coloca  questões  para  a  psicologia.  Pois  não 
basta  saber que determinada pessoa  é de  classe 
trabalhadora ou burguesa para disso deduzir  sua 
personalidade, seu modo de agir, sentir e pensar, 
os significados e sentidos que atribui para o mun‐
do, para os outros e para si. Senão vejamos o que 
diz  também Vigotski em outro  texto:  “Queremos 
comparar o operário  com o burguês. O  fato não 
consiste como pensava W. Sombart, em que para 
o burguês o principal seja a avareza, em que tenha 
havido  uma  seleção  biológica  de  pessoas  avaras 
para as quais o  fundamental é a mesquinhez e a 
acumulação.  Admito  que  existem muitos  operá‐
rios mais avaros que os burgueses. A essência da 
questão  não  consiste  em  que  o  papel  social  se 
deduz do caráter mas em que, a partir deste, cria‐
se  uma  série  de  conexões  caracterológicas.  Os 
traços sociais e de classe formam‐se no homem a 
partir  de  sistemas  interiorizados,  que  nada mais 
são  do  que  os  sistemas  e  relações  sociais  entre 
pessoas  trasladados  para  a  personalidade”  (VI‐
GOTSKI,  1930/1996,  p.  133). Não  há  um  tipo  de 
personalidade hereditariamente dado que tenda a 
ser  pertencente  a  uma  classe  ou  outra  por  suas 
aptidões  inatas,  isso é o mais óbvio, embora não 
menos verdadeiro. Mas também, e tão  importan‐
te quanto, cabe destacar que não há  relação  iso‐
mórfica entre a pertença de  classe e a  formação 
do  caráter  e  personalidade  de  cada  um.  Isso  é 
mediado por relações complexas no seio de cada 
interação intersubjetiva que vamos estabelecendo 
em meio  aos  grupos  de  que  fazemos  parte,  na 
família, na escola, nas práticas  religiosas, nos cír‐
culos de amizade, nas  relações de  trabalho, e as‐
sim por diante – nos quais podemos conviver com 
classes distintas e apreender junto a elas também 
distintos  modos  de  agir,  sentir  e  significar,  não 
sempre  de  todo  condizentes  com  os  interesses 
históricos de nossa própria classe social. Portanto, 
ao  critério  de  relações  sociais  de  classe,  cabe  a‐
crescentar  na  perspectiva  da  teoria  histórico‐
cultural ainda o critério das  relações  intersubjeti‐
vas, mediante as quais, modos de  conversão das 
práticas  sociais  públicas  em  práticas  simbólicas 
privadas são constituídos e postos em movimento. 
 
Como destacado por Melo (2001), duas contribui‐
ções importantes da psicologia de Vigotski podem 
ser trazidas ao diálogo quando precisamos ampliar 
o  conceito  de  relações  sociais  para  além  do  de 
“relações  sociais  de  classe”,  mesmo  este  sendo 
fundamental. Trata‐se de:  (a)  sua  formulação  so‐
bre  a  “lei  genética  geral do desenvolvimento”;  e 
(b)  sua  formulação  sobre a  “psicologia do drama 
de papéis  sociais”. A  lei genética geral do desen‐
Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior

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