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H. P. Lovecraft Os Fungos de Yuggoth

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www.sitelovecraft.cjb.net de3103@yahoo.com.br 
 1
 
“Os Fungos de Yuggoth” – H.P. Lovecraft 
 
Tradução: Nicolau Saião 
 
Quem é Nicolau Saião? 
Nicolau Saião (Portugal, 1946). Poeta, artista plástico e ensaísta. Autor de livros como Passagem de nível (1992), 
Flauta de Pan (1998) e Os olhares perdidos (2000). O presente ensaio foi originalmente publicado como prólogo a Os 
fungos de Yuggoth (2002), antologia poética de Howard Phillips Lovecraft organizada e traduzida por Nicolau Saião. 
Contato: nicolau19@yahoo.com. 
Antes de ler o soneto de Lovecraft, aprecie a bela e interessante introdução de Nicolau Saião: 
H. P. Lovecraft ou os Monstros Simulados 
I. “Na noite de l6 de Março de 1970 - conta-nos Agustín Izquierdo, na Introdução do volume que a 
Editora Valdemar fez sair em 97 e integrou na “Clube Diógenes” – uma curiosa procissão, 
constituída por cerca de 150 estudantes e encabeçada por três professores, percorreu o bairro de 
College Hill, em Providence, munidos de tochas e lanternas, numa homenagem local póstuma, 33 
anos após o seu falecimento, ao obscuro “recluso de Rhode Island”, H.P.Lovecraft. Por fim, o 
cortejo deteve-se ao pé da Casa Afastada, que em vida fora a morada do homenageado e procedeu-
se à leitura de “Fungi from Yuggoth”, num cerimonial que teria feito as delícias do seu autor”. 
Este cerimonial, já com Lovecraft feito em pó, é um bom sublinhado da simulação que 
efectivamente sempre foi a vida do autor de “O horror de Dunwich”. Esta era, no capítulo da 
existência através dos livros, das letras, das imaginações mais desvairadas a que convencionou 
chamar-se Literatura, uma imitação perfeita. HPL simulava uma vida de mistério, de sonho e de 
caminhadas por mundos inquietantes ou francamente sinistros, o que na verdade era tão-só uma 
translação em volta dum mundo pessoal expresso em factos compreensíveis, de características mais 
ou menos naturais e quotidianas, em geral penosas, que constituíam o cerne da sua existência de 
desenquadrado: entre muitas outras, a sua profunda repugnância por répteis e peixes, de tal forma 
pronunciada que a visão dum exemplar esquartejado dum dos últimos o deixava à beira do vómito; 
a marcada aversão por carnes e a preferência, mesmo a paixão, por bolos e gelados, semelhante ao 
carinho que acalentava pelos gatos. Saber-se de que doença rara ele sofria (1) também concorrerá 
para, com eficácia, poder traçar-se um mapa adequado do complexo e malfadado, apesar de 
misterioso e exaltante a mais dum título, continente Lovecraft. E decerto nenhum bem lhe teria feito 
a opinião frequentemente emitida por sua mãe, a pobre destrambelhada Susie Philips que vira o 
marido morrer louco ia HPL nos oito anos de idade, que o alertava amiúde para o facto de que 
apesar de haver nele génio em quantidade e qualidade suficientes não devia expor-se muito aos 
olhares da rua, devido à extrema fealdade do seu rosto e à suposta repelência geral do seu aspecto. 
Sendo os “Fungi”, como são em grande parte, uma simulação de poesia, vão ao encontro no outro 
lado do espelho das surpreendentes efabulações engendradas pelo Autor que, diga-se a talhe de 
foice, nunca viu um livro de sua lavra ser dado a lume em editora profissional e jamais recebeu em 
vida (e muitos anos após a sua morte) a menor consideração dos habitantes desses lugares onde, 
presumivelmente, se fazem as sólidas reputações dos escritores ou dos pretendentes: as 
universidades e as academias d’aquém e d’além mar. 
No que respeita aos “Fungi”, sublinhe-se que o acervo a partir do terceiro poema dispersa-se 
enquanto unidade consequente – e é isso precisamente que, a meu ver, faz o seu encanto e acaba por 
lhe conferir outra significação mais poderosa. Ao excursionar num mundo a meio caminho entre o 
sonho e as encenações, digamos, de cariz cinematográfico experimental tal como hoje as 
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 2
conhecemos (HPL era um cinéfilo fervoroso, posto que o não confessasse a todos ), o autor deixa 
perceber que estaria no seu primeiro intuito ir singrando numa progressão dentro da qual se passaria 
dum texto a outro numa sequência temática lógica e pautável que seria como que o diário de uma 
experiência limite no mundo lírico terrorífico. Mas como num relato surreal, ou onírico, o que está 
em baixo passa a estar em cima ou dos lados; os poemas vão aparecendo sem que aparentemente 
haja uma razão lógica para estarem ou não estarem naquele ou noutro sítio. Porque aparece este no 
décimo-segundo lugar? E porque não em sétimo, em vigésimo ou em quinto? Na verdade, os 
poemas são na sua maior parte primos carnais dos seus contos, o mundo neles descrito é tributário 
do das novelas mas transfigura-se, transmuta-se e finalmente, no derradeiro poema, revela a sua real 
figura, o seu espelho filosofal.(2) Em os “Fungi”, deliberadamente ou não, Lovecraft conta de facto 
histórias em verso, histórias condensadas ou fragmentárias que, por subtil inflexão, deixa que 
apontem noutra direcção dependente de um mundo “mais real que este que conhecemos”(sic). O 
tom próprio das baladas irlandesas, das canções de taberna ou de marinheiros (que todas ele 
conhecia bem) ou os laivos emprestados por E. A. Poe, são o veículo de que se serve para que elas 
se tornem significativas, verosímeis ou mesmo possíveis. Ficaremos totalmente esclarecidos se 
lermos e consultarmos os seus outros poemas (a lista completa vai em anexo). HPL, que 
modestamente se considerava um escritor de segunda ordem(3), efectuou sempre com alguma 
angústia à mistura uma navegação à vista, mas olhando frequentemente para bem longe. Sendo 
fundamentalmente um entusiasmado leitor (aprendeu a ler aos três anos e nunca mais parou), era 
um navegador sem norte e sem estrela, emendo: com a estrela da maravilha, mesmo que horrífica e 
devastadora(4), um poeta seminal que a exemplo do sucedido com outro feiticeiro - Raymond 
Chandler, mediante as novelas policiais - precisamente devido à sua ingenuidade frente ao sublime, 
à sua sinceridade na simulação, continua a encantar-nos. 
II. Lovecraft, lírico bissexto na acepção cunhada por Manuel Bandeira, é assim um irmão colaço do 
Lovecraft das sagas e das utopias inventadas por uma alma inquieta e sedenta de transfigurações e, 
patentemente, um irmão gémeo do Lovecraft viageiro imaginário e inventor de excursões por 
Innsmouth, Providence, Aylesbury e finalmente, por bandas alheias, a mítica Cthulhu. O que nos 
importará relancear agora é o perfil da sua poética, o mapa desvelado da viagem que efectuou pelos 
campos onde a imaginação é projectada por sinais específicos que na palavra e na múltipla 
organização que se lhe sucede se consubstanciam e onde não contam os recursos da invenção de 
mundos alucinantes e alucinados mas sim a lógica interior dum discurso a que alguns chamam 
inspiração e que não é mais, afinal, que o conhecimento instintivo do valor das palavras 
desembaraçadas de peias e de escórias dum tempo normalizado, prosaico, realmente reaccionário. 
Em Poesia o que conta é o poder da palavra organizada em frases que, como num salmo 
encantatório, não só sugerem como revelam quotidianos ou fragmentos muito para além do 
ramerrão das horas civis – e que são as suas iluminações criadas, as suas propostas assumidas ou as 
suas figuras essenciais. Como dizia Chesterton, o poeta é aquele que sabe ( e que alcança enquanto 
hacedor) que todo o encadeamento de palavras leva ao êxtase, todos nos podem conduzir ao país 
das fadas. 
Temos, assim, que a nostalgia é um dos pontos em que se apoia a lírica lovecraftiana, ancorada em 
vestígios e em símbolos que elementos reconhecíveis, implícitos ou expressos – o mar, as estrelas, a 
memória, os ventos, a chuva, a noite, o deserto ou as decadentes cidades dos homens – tornam 
familiar a quem lê. Nela, o homem (ou o protagonista,voluntário ou involuntário) está sempre 
dependente dum percurso que passa pelas recordações e pelas vivências dos tempos idos, ornadas 
pelo prestígio duma ancestral e inquietante sabedoria e onde as figuras espaciais dos Grandes 
Antigos se irmanam com uma primeva inocência da Humanidade. Pagão e animista a seu modo, 
Lovecraft é manifestamente um parente de, por exemplo, William Blake e Odilon Redon naquilo 
que estes tinham de visionários, mas difere de qualquer deles no significado último da sua filosofia: 
ao banir racionalmente, do mundo que encenou, os alvores da manhã e as flores das tardes 
ensolaradas – que lhe aparecem apenas como sinais dum paraíso inalcançável – o criador de “O 
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 3
caso de Charles Dexter Ward” faz-nos saber claramente que, no tempo conturbado que lhe foi dado 
viver, os fulgores da noite - dessas estrelas vespertinas que lhe feriam os olhos - constituíam um 
mais adequado receptáculo para a aventura do espírito onde as efígies dos deuses imaginários 
contavam na medida em que eram, por antítese, os referentes dum conhecimento amaldiçoado ou 
perverso mas, talvez por isso mesmo, gerador de sinais mais reveladores e verdadeiros, porque 
seriam o prelúdio de uma maior realidade, ainda que conquistada a golpes de clava, a tiro ou 
mediante secretas invocações purificadoras. No fundo, mesmo quando o leitor - irmanando-se com 
o autor - entra nos mundos que este engendrou, alcançando a revelação de algo que se entende 
como sério e quase iniciático (sensação comum a todos os que, tendo conservado a inocência e a 
frescura, deparam com a arte de Lovecraft como com um universo revelado) – a dado passo 
constata que existe nessa arte um halo muito marcado de humor negro, pois a própria seriedade 
dramática absoluta da simulação nos ensina que esse “exagero” é afinal pedagógico noutra 
direcção: os monstros que sobem das profundezas são em geral dominados ou, pelo menos, 
impedidos de difundirem alargadamente os seus miasmas. Os monstros in-domináveis são bem 
outros, são as bestiagas muito reais do quotidiano infausto que a todos atinge – e o leitor que arrole 
a lista que mais lhe quadre.(5) Em suma: os Grandes Modernos que fazem da limpa vida do espírito 
algo de estranho, de inusitado e de marginal – e que, involuntariamente, ajudam a que nos 
reconheçamos leitores fervorosos e interessados da escrita deste e doutros interrogadores do 
Universo e suas leis possíveis e impossíveis. Finalmente e como numa espécie de tributo – 
relembrando, com emoção, que o li pela primeira vez há 45 anos num tempo encantado e numa 
cidade com muito do ambiente da sua Providence pessoal – pergunto-me (é uma maneira de falar) 
porque há ainda lovecraftianos, porque há ainda gente que se dá ao trabalho de ler as suas 
efabulações caídas talvez um pouco em desuso pelo facto de agora já se saber tudo, de se 
conhecerem não apenas as vias da realidade quotidiana, onde não querem deixar caber a fantasia 
criadora, mas também as suas ruínas indubitáveis: os mundos da chamada realidade circundante – 
todos eles muito mais perigosos e avassaladores que as pobres sombras fantasmais de HPL. O 
célebre fascínio que costuma invadir-nos ante uma escrita sugestiva a meu ver não explica 
suficientemente o assunto. Creio que a resposta reside noutra circunstancia. Acredito que isso 
acontece porque se sente que na simulação concebida por Lovecraft e que ele colocou na 
dependencia de geometrias não-euclidianas há, afinal, qualquer coisa de digno e de honrado no seu 
horror e na sua desmesura, na sua mágoa e na sua assumida encenação de um Mal que nos assalta 
mas que é, digamos, como que directo e sincero – bem diferente, para tudo dizer, desse mal de facto 
terrível e destruidor porque mentiroso e sem classe, pequeno-burguês e passa-culpas que 
frequentemente constitui o nosso triste quinhão de realidade e o nosso lamentável momento de 
ilusão neste século que é o herdeiro virtual do outro que há bem pouco se evolou. 
Por último, uma chamada de atenção para um detalhe pelo menos curioso: HPL, em data inserida no 
manuscrito e que o dactiloscrito reproduz, dá os “Fungi” como tendo sido elaborados entre 27 de 
Dezembro de 1929 e 4 de Janeiro de 1930. Mesmo conhecendo-se a espantosa fecundidade do autor 
de “A música de Erich Zann”, que além da sua obra em prosa e em verso escreveu a confrades, 
amigos, conhecidos ou simples correspondentes cerca de cem mil cartas – o que implica uma 
evidente destreza e velocidade na escrita... – não podemos deixar de nos colocar uma pergunta: 
Lovecraft teria mesmo criado a obra em nove dias (nove, número dos degraus da sabedoria 
alquímica (6) da qual ele era um apaixonado) ou tratou-se, pelo contrário, de uma chave com que a 
sua simulação nos quis, uma vez mais, pôr à prova? 
NOTAS: 
1 Poiquilotermismo, ou seja não se possuir a capacidade, comum a todos os mamíferos, de manter 
constante a temperatura do corpo, ficando-se precisamente ao nível do peixe e do réptil. 
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 4
2 Anos depois do seu falecimento foi encontrado entre as muitas folhas deixadas por HPL um conto 
inacabado, com o título de “O livro”, que segue ponto por ponto os três primeiros poemas dos 
“Fungi”. Seria depois “completado” por Martin S. Warnes, que o intitulou “The black tome of 
Alsophocos”. 
3 Lovecraft guardava a sua admiração, aliás justificada, para outros autores como M.R.James, 
Algernon Blackwood, Walter de la Mare, Arthur Machen ou Lord Dunsany, a quem sinceramente 
chamava verdadeiros clássicos que contrastavam com insignificantes aficcionados como ele (sic). 
Lemos estes nomes não só com o gosto natural de quem ama a imaginação e a grandeza mas, 
igualmente, com a admiração pela modéstia real que define HPL como o homem de bem que 
sempre foi. 
4 Os décimo-sexto, vigésimo-oitavo e trigésimo poemas, comoventes na sua exposição, mostram-
nos isso. 
5 Era um panorama que HPL, como todas as pessoas lúcidas, conhecia na perfeição. Muitos 
quiseram ver nisso passadismo conservador, mas o adestramento de Lovecraft no segundo quartel 
da vida desmente-os. A este propósito leia-se o texto de Franklin Rosemont in “Cultural 
Correspondence” # 10/11. O trigésimo poema dos “Fungi” também é significativo e esclarecedor. 
6 Embora não fosse um irmão do orvalho e um trabalhador per ignem, HPL tinha consideráveis 
conhecimentos filosofais. O seu conto “O alquimista”, ainda que encene uma fantasia, faz certas 
discretas alusões que provam tal facto suficientemente. 
“Os Fungos de Yuggoth” 
1. O LIVRO 
 
O lugar era escuro e poeirento, meio perdido 
Num labirinto de vielas junto aos molhes, 
Cheirando a coisas raras trazidas de outros mares, 
Envolto em estranhas névoas agitadas p’lo vento. 
 
Uns vidros em losango, que a geada e o fumo velavam 
Deixavam entrever pilhas de livros, como torcidas árvores 
Desde o sobrado ao tecto – putrefacto amontoado 
De sapiência antiga a baixo preço. Enfeitiçado 
 
Entrei, e dum montão cheio de teias 
Um cartapácio tirei e ao acaso o folheei, 
Estremecendo ao ler palavras raras que pareciam 
Esconder de olhares humanos um prodigioso segredo. 
 
E então, quando o vendedor astuto em volta quis achar 
Apenas um eco de gargalhadas pude encontrar. 
 
 
2. A PERSEGUIÇÃO 
 
Guardei o livro debaixo do casaco, preocupado por furtar 
Tal objecto aos olhares em semelhante sítio. 
Enquanto apressava o andar ao longo das velhas ruas 
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 5
Do porto, virava a cada instante receoso a cabeça. 
 
Opacas e furtivas nas vacilantes casas de tijolo 
As estranhas janelas espreitavam os meus rápidos passos 
E, intuindo o que almejavam custodiar, ansiava 
P’lo clarão redentor de um puro azulde céu. 
 
Ninguém me vira furtá-lo... e no entanto 
Ainda tinha na cabeça uma oca risada, 
E percebi que mundos de nocturna maldade 
Enchiam o volume que havia cobiçado. 
 
O caminho tornava-se cada vez mais estranho. Os muros 
Demenciais assemelhavam-se. E atrás de mim, 
Ao longe, uns passos invisíveis ressoavam. 
 
 
3. A CHAVE 
 
Não sei que deambulações pelas desertas 
E estranhas ruas do porto me levaram 
Até ao lar. No vestíbulo comecei a tremer 
Lívido com a pressa de entrar e de me achar 
Trancado a ferrolho por trás da pesada porta. 
 
Tinha o livro que indicava a via oculta 
Que atravessa o vazio e as suspensas telas espaciais 
Que sustentam em suas raias os mundos sem dimensão 
E guardam a eternidade no domínio que lhe é próprio. 
 
Por fim era minha a chave daquelas vagas visões 
Espirais ao sol poente bosques crepusculares 
Gerando o opaco nos abismos além dos limites da terra 
Ocultando-se como memórias de infinidade. 
 
Era minha a chave, mas enquanto ali estava 
Sentado e balbuciando 
No sótão uma leve pressão fez abanar a janela. 
 
 
4. RECONHECIMENTO 
 
Voltara o dia em que eu ainda criança 
Vi – uma vez apenas – aquela fundura coberta 
De velhos carvalhos 
Acinzentados pela bruma que ao subir do chão 
Envolve e afoga 
As formas abortadas que a loucura profanou. 
 
Via-a de novo: a erva cerrada e inculta 
Cobrindo um altar cujos signos gravados invocam, 
Em idades sem fim, 
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 6
O Inominado ao qual mil fumos tocam 
Emanados de altas torres impuras. 
 
Olhei o corpo estendido naquela pedra húmida, 
Sabendo que as coisas celebrantes nada tinham de humanas; 
E que aquele mundo cinzento não era o meu, 
Mas sim Yuggoth, o de além dos vazios constelados – 
E então o corpo lançou-me um guincho de agonia 
E tarde demais soube que aquilo era eu. 
 
 
5. REGRESSO A CASA 
 
O demónio me disse que a casa me levaria 
À vagamente recordada terra lívida e sombria 
Como um alto lugar 
Com terraços e escadas, rodeado de balaustradas 
De mármore p’los ventos do céu afloradas 
Enquanto milhas abaixo 
Um labirinto de torres e de cúpulas sobrepostas 
Se estende à beira-mar. 
Uma vez mais, disse ele, ficaria eu subjugado 
Frente às velhas colinas 
E ouviria da espuma o abafado 
Longínquo rumorejar. 
 
Tudo isto me prometeu, 
E p’las portas do sol-pôr 
Me arrastou, 
Por ondulantes lagos de chamas a passar me obrigou 
E por tronos de ouro vermelho de deuses inominados 
Que ante o destino iminente gritam desvairados. 
E na noite ante um abismo negro me fui achar 
Com o ruído das ondas a rebentar. 
 
«Era aqui a tua casa», mofou ele «quando visão 
Tinhas então!» 
 
 
6. A LÂMPADA 
 
Encontrámos a lâmpada num buraco 
De um daqueles íngremes rochedos 
Cujos signos cinzelados nenhum sacerdote de Tebas 
Saberia decifrar. 
E os assustadores hieroglifos aí inscritos 
Eram um aviso para toda a criatura viva de origem humana. 
Nada mais ali havia – a não ser aquela lâmpada de bronze 
Com restos de um estranho óleo no seu bojo, 
Adornada com obscuros desenhos em volutas 
E símbolos que vagamente sugeriam desconhecidos pecados. 
 
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Os temores de quarenta séculos muito pouco significaram 
Para nós quando carregámos o nosso diminuto espólio 
E minuciosamente o examinámos no escuro da tenda 
Com um fósforo aceso para experimentar o velho óleo. 
 
E ele ardeu – santo Deus!... Mas as formas gigantescas 
Que divisámos naquela enlouquecida fumarada 
De respeitoso temor p’ra sempre nos deixaram a alma abrasada. 
 
 
7. A COLINA DE ZAMÁN 
 
A grande colina erguia-se perto da velha cidade, 
Um penhasco contra o fundo da rua mais povoada ; 
Verdejante e cheia de bosques, cá de baixo parecia escura 
E dominava com a sua altura 
O campanário junto à curva da estrada. 
 
Há duzentos anos que se ouviam rumores 
Sobre o que ocorria nessa ladeira que o homem devia evitar... 
Histórias de veados e de pássaros estranhamente mutilados 
Ou de garotos perdidos cujos pais tinham cessado de esperar. 
 
Certo dia o carteiro não achou o povoado no seu lugar 
E ninguém voltou a ver os habitantes ou as casas; 
As pessoas vinham de Aylesbury e ficavam-se a olhar... 
 
No entanto, todos diziam ao carteiro que era um ingénuo 
Ou estava louco por dizer que conseguira descortinar 
Os olhos carnívoros das altas colinas e as bocarras 
Abertas de par em par. 
 
 
8. O PORTO 
 
A dez milhas de Arkham descobrira um carreiro 
Ao longo da falésia alcantilada de Boyton Beach 
E aguardava o momento em que o ocaso coroa 
A crista que assoma por sobre o vale de Innsmouth. 
 
Ao longe, no mar alto, uma vela vogava 
Branqueada por árduos anos de velhos ventos, 
Carregada com o mal de algum facto inexplicável. 
E não ergui, assim, mão ou voz para saudá-la. 
 
Veleiros de Innsmouth! Ecos de idas memórias 
De tempos já longínquos; a noite ia caindo, 
Bem cerrada, quando cheguei ao topo 
De onde era meu hábito olhar a povoação. 
 
Além estão os campanários e os telhados... Mas, olhai! 
As trevas 
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 8
Propagam-se nas ruas, tenebrosas como tumbas! 
 
 
9. O PÁTIO 
 
Aquela era a cidade que em tempos conhecera 
A cidade leprosa e antiga onde multidões mestiças 
Cantam a estranhos deuses, golpeando ímpios gongos 
Em criptas sob infectas vielas junto às praias. 
 
As casas carcomidas com olhos de peixe 
Miravam-me de soslaio 
Inclinando-se meio ébrias e não muito animadas 
Quando evitando as imundícies passava até franquear 
A porta do pátio negro onde um homem devia estar. 
 
As paredes sombrias cerraram-se sobre mim 
E comecei a blasfemar 
Em alta voz por naquele antro ter caído em entrar, 
Quando de repente vinte janelas rebentaram 
Numa luz selvagem e se encheram de homens que dançavam: 
Loucas, mudas piruetas de morte os arrastavam 
Pois que nenhum cadáver tinha mãos ou cabeça! 
 
 
10. AS POMBAS MENSAGEIRAS 
 
Levaram-me aos bairros pobres, onde um viscoso mal 
Desalinhava as descarnadas paredes de tijolo 
E as caras contorcidas da hedionda multidão 
Dava sinal p’los de fora a estranhos deuses e diabos. 
 
Um milhão de fogueiras pelas ruas ardia, 
E dos terraços seres furtivos arremessavam 
Para o céu bocejante pássaros sujos de lama 
Enquanto tambores ocultos num ritmo lento rufavam. 
 
Aqueles fogos sabia que coisas monstruosas anunciavam, 
E que as aves do espaço no Exterior haviam estado... 
Adivinhava que criptas de escuros planetas tinham sobrevoado, 
E o que de Thog traziam sob as asas. 
 
E os outros riam – até que de repente emudeceram 
Ao vislumbrar o que um dos pássaros no bico maldito levava. 
 
 
11. O POÇO 
 
Seth Arnold o lavrador mais de oitenta ia contar 
Quando o poço junto à porta tentou aprofundar 
Tendo só por ajuda o Eb para cavar e perfurar. 
 
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Mofámos, pensando que em breve seu juízo ia voltar, 
Mas, p’lo contrário, também o Eb começou a dementar 
A tal ponto que da quinta o tiveram de levar. 
 
Seth a boca do poço se deu então a entaipar 
E as veias do nodoso braço esquerdo acabou por cortar. 
 
Depois dos funerais algo nos fez encaminhar 
Até ao poço p’ra todos os tijolos arrancar, 
Mas no buraco escuro, perdidas até grande fundura 
Só umas pegas de ferro conseguímos divisar. 
 
Então os tijolos tornámos a pôr no seu lugar 
Pois o covão nos pareceu profundo em demasia 
Para que alguma sonda o pudesse devassar. 
 
 
12. O UIVADOR 
 
Tinham-me dito pr’a não passar pelo carreiro de Brigg’s Hill, 
Que em tempos tinha sido a estrada até Zoar, 
Uma vez que Goody Watkins, enforcado em mil setecentos equatro, 
Deixara por ali certo vestígio monstruoso. 
 
Mas quando desobedeci e tive à vista 
A casa envolta em hera ao pé da grande escarpa, 
Não pensei nem em olmos nem em cordas de cânhamo, 
Antes me perguntei porque parecia ela inda tão nova. 
 
Parara um pouco a contemplar o declinar do dia 
E ouvia uns débeis uivos vindos de um quarto no alto, 
Quando através das vidraças cobertas de trepadeiras 
Um raio do pôr do sol colheu de surpresa o uivador. 
 
Vislumbrei-o e freneticamente fugi daquele lugar 
– e da coisa a quatro patas com uma face de homem. 
 
 
13. HESPERIA 
 
Ao entardecer, o sol de Inverno refulgindo atrás das torres 
E das chaminés meio desprendidas desta esfera sombria, 
Franqueia os grandes portões a algum ano esquecido 
De antigos esplendores e desejos divinos. 
 
Nessas chamas imensas ardem maravilhas futuras 
Que o medo não aflora, carregadas de aventuras; 
E uma fila de esfinges um caminho nos abre 
Por entre trémulos muros e torreões 
Até longínquas liras. 
 
É a terra onde o sentido da beleza floresce, 
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 10
Onde toda a inexplicada memória tem sua origem, 
Onde o grande rio do Tempo inicia o seu curso 
Descendo p’lo vasto vazio em sonhos recamados de estrelas. 
 
Os sonhos aproximam-nos – mas uma doutrina antiga 
Insiste em que o pé humano jamais pisou estas ruas. 
 
 
14. VENTOS ESTELARES 
 
Sobretudo no Outono, a essa hora 
Em que tombam as sombras do entardecer 
Os ventos estelares derramam-se 
Pelas ruas mais altas e desertas 
Onde assoma a luz fagueira de algum cálido aposento. 
 
As folhas secas agitam-se em estranhos redemoinhos, 
O fumo das chaminés enrola-se com etérea graça 
Atento às geometrias do espaço exterior 
Enquanto Fomalhout palpita entre as brumas do Sul. 
 
É a hora em que o poetas lunáticos conhecem 
Que fungos brotam em Yuggoth, que perfumes 
E matizes de flores enchem os campos de Nithon, 
Que nenhum jardim terrestre pode ter. 
 
Mas, por cada sonho que esses ventos ofertam 
Doze dos nossos nos roubam! 
 
 
15. ANTARKTOS 
 
No fundo do meu sonho a ave enorme sussurrava estranhas coisas 
Acerca dum cone negro no meio das imensidões polares; 
Lúgubre e solitário se levanta na superfície gelada 
Açoitado pelos eternos remoinhos de loucas tempestades. 
 
Ali nenhuma forma de vida tem o seu rumo natural 
E somente pálidas auroras e sóis indistintos 
Luzem por sobre esse sinal de pedra, cuja origem primitiva 
Obscuramente os Antigos procuram adivinhar. 
 
Se os homens o vislumbrassem, simplesmente perguntariam 
Que capricho raro da Natureza era aquele que ali viam; 
No entanto, o pássaro falou-me de regiões mais vastas 
Que aguardam, acocoradas e ocultas sob a mortalha de gelo. 
 
Deus ajude o sonhador cujas loucas visões lhe mostrem 
Esses olhos mortos engastados em abismos de cristal! 
 
 
16. A JANELA 
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Era uma casa velha, com estranhas alas tão emaranhadas 
Que ninguém podia dizer que lhes conhecia bem a disposição, 
E num quarto pequeno algures nas suas traseiras 
Havia uma singular janela entaipada com pedra antiga. 
 
A esse lugar, numa infância atormentada pelos sonhos, 
Costumava ir sózinho, quando reinava a noite negra e vaga. 
E destroçava as teias-de-aranha sem qualquer ponta de medo 
Sentindo-me, p’lo contrário, cada vez mais maravilhado. 
 
Mais tarde num certo dia levei até lá uns pedreiros 
P’ra descobrir que paisagem os meus antepassados 
Haviam tentado encobrir, 
Mas quando perfuraram a pedra, impetuosamente entrou 
Uma lufada de ar soprada p’lo ignoto vazio do outro lado. 
 
Fugiram a sete-pés... Eu assomei-me – e encontrei um por um 
Todos os mundos selvagens que os sonhos me haviam mostrado. 
 
 
17. UMA RECORDAÇÃO 
 
Era um lugar de grandes estepes e mesetas rochosas 
Que se estendiam sem limites sob a noite estrelada, 
Com fogos de acampamento que iluminavam debilmente 
Manadas de bestas hirsutas cujos chocalhos tilintavam. 
 
Ao sul, na distancia, a planície alargava-se e descia 
Até uma escura muralha correndo em ziguezague 
Como uma imensa jibóia das idades primevas 
Que o tempo infinito gelara e petrificara. 
 
Eu tiritava estranhamente no ar frio e rarefeito, 
Perguntando-me aonde estava e como havia ali chegado, 
Quando uma figura embuçada, na contraluz da fogueira 
Se levantou e se acercou, tratando-me p’lo meu nome. 
 
E ao mirar aquela face morta debaixo do capuz, 
Perdi toda a esperança – pois tinha compreendido. 
 
 
18. OS JARDINS DE YIN 
 
Do outro lado da muralha de alvenaria antiga 
Que quase tocava o céu com suas torres musgosas 
Devia haver jardins em terraços, esplendendo 
Com miríades de flores, palpitando 
Com os volteios dos pássaros, das borboletas, das abelhas. 
 
Devia haver passeios e pontes erguendo os seus arcos 
Sobre lagos de água tépida repletos de flores de lótus 
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Onde se reflectiam beirais de templos, 
E cerejeiras cujos delicados ramos e folhas contrastavam 
Com um céu cor-de-rosa aonde as garças pairavam. 
 
Tudo ali devia estar – pois não haviam meus sonhos 
Antigos franqueado a porta daquele labirinto 
De lanternas de pedra onde os sonolentos regatos 
Traçavam seus sinuosos caminhos 
Guiados por verdes parras pendendo das latadas? 
 
Apressei-me a subir... mas mal cheguei à grande muralha sombria 
Descobri que afinal nela já nenhuma porta existia. 
 
 
19. OS SINOS 
 
Ano após ano ouvi, sumido e ao longe 
O som grave dos sinos 
Que o vento negro da meia-noite transportava. 
Dobres que de nenhum campanário pareciam vir 
Uns estranhos repiques – eram só o que achava. 
 
Através dum enorme vazio tinham voado. 
Em sonhos e lembranças uma pista busquei, 
Nos carrilhões que minhas visões albergam eu pensei; 
Os da plácida Innsmouth, onde as gaivotas brancas se demoram 
Planando em volta da velha torre duma igreja 
Que em tempos bem frequentei. 
 
Perplexo, aquelas notas longínquas eu ouvia tombar, 
Mas numa noite de Março a fria chuva que pingava 
As portas da memória me fez de novo franquear 
Até às velhas torres onde um louco badalar soava. 
 
Como dobrava... Desde as sombrias correntes que através 
Dos vales profundos manam e se derramam 
No leito morto do mar. 
 
 
20. BESTIAGAS NOCTURNAS 
 
De que cripta saem arrastando-se, não o sei dizer 
Mas todas as noites vejo essas criaturas viscosas, 
Negras, cornudas, descarnadas, de asas membranosas 
E caudas que ostentam do Inferno a bífida barbada. 
 
Chegam em legiões trazidas p’lo sopro da nortada 
Com obscenas garras que me pungem e arranham 
E me agarram e me levam em monstruosas viagens 
Até mundos pardacentos escondidos em profundos 
Poços de pesadelo. 
 
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Passam por sobre os picos denteados de Thok 
Sem fazer caso dos gritos que aos arrancos dou 
E descem p’los abismos do fundo 
Onde os obesos shoggoths 
Chafurdam num duvidoso sonho nesse lago imundo. 
 
Mas ai! Se ao menos algum som pudessem soltar 
Ou uma cara tivessem onde ela costuma estar! 
 
 
21. NYARLATHOTEP 
 
Do interior do Egipto eis que por fim chegou 
O estranho Obscuro ante quem os felás se inclinavam; 
Silencioso e descarnado, de enigmática altivez 
Ia envolto em panos vermelhos como as chamas do sol-pôr. 
 
À sua volta juntavam-se multidões ansiosas p´lo seu ditame 
Mas ao deixarem-no não sabiam contar que coisas tinham ouvido; 
Entretanto, pelas nações se difundia a pavorosa notícia 
De que, lambendo-lhe as mãos, o seguiam bestas selvagens. 
 
Cedo começou no mar um daninho nascimento; 
Em terras esquecidas cúspides douradas cobriam-se de ervasruins; 
O chão abriu-se e auroras dementes abateram-se 
Sobre as tremebundas cidadelas dos homens. 
 
Então, esmagando o que por pirraça ele moldou 
O Caos insensato o pó da Terra assoprou. 
 
 
22. AZATHOTH 
 
P’lo dementado vazio o demónio me arrastou 
P’ra lá dos ninhos de luz nos limites do espaço me levou 
Até que nem tempo nem matéria ante mim puderam estar 
Que ali era só o Caos, sem forma nem lugar. 
 
Ali o Senhor do Tudo na escuridão murmurava 
Coisas que não entendia, mesmo quando sonhava 
Enquanto perto dele esvoaçavam morcegões 
Em vórtices idiotas atravessados por clarões. 
 
Bailavam como loucos, ao compasso gemente 
De uma flauta quebrada presa em monstruosa garra 
Donde brotava aquela onda sem sentido coerente 
Que ao mesclar-se ao destino eterna lei lhe narra. 
 
“Eu sou seu Mensageiro”, o Demónio declarou 
E zás! a cabeça do Amo com desprezo esmurrou. 
 
 
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23. A MIRAGEM 
 
Não sei se existiu alguma vez 
Esse mundo perdido e obscuro que flutua no rio do Tempo – 
Mas amiúde o vi, envolto numa bruma violeta, 
Brilhando debilmente no fundo de um sonho indistinto. 
 
Havia estranhas torres e rios correndo em caprichosos meandros, 
Labirintos de maravilha, abóbadas plenas de luz, 
E céus chamejantes, cruzados por ramagens de árvores 
Como as que ansiosamente estremecem 
Momentos antes da chegada duma noite de Inverno. 
 
Atravessavam-se vastos terrenos pantanosos que levavam 
A costas desertas espraiando-se, pejadas de juncais 
Onde aves enormes revoluteavam, enquanto numa ventosa colina 
Havia um povoado antigo, com um campanário branco 
Cujos repiques vespertinos inda me ressoam nos ouvidos. 
 
Não sei que terra era – e a perguntar não me atrevo 
Sobre quando, ou porquê, estive ou estarei ali. 
 
 
24. O CANAL 
 
Algures num sonho há um lugar amaldiçoado 
Onde altos edifícios desertos se apinham ao longo 
Dum canal sombrio, profundo e estreito, exalando 
Um cheiro pestilento a coisas horrendas arrastadas 
Por oleosas correntes de água. 
 
Vielas entre velhos muros que no alto quase se tocam 
Em ruas que podem ou não conhecer-se desembocam 
E um pálido luar derrama o seu brilho espectral 
Sobre longas filas de janelas d’escuridão mortal. 
 
Não se ouvem sons de passos, aquele débil ruído 
É o da água oleosa deslizando 
Sob as pontes de pedra, ao longo das margens 
Do profundo canal, até aos confins 
de algum oceano perdido. 
 
E não há ninguém vivo para contar quando levou 
Do mundo argiloso a região do vago sonho que sonhou. 
 
 
25. SÃO SAPALHÃO 
 
“Cuidado com o carrilhão 
de São Sapalhão!”, ouvi-o eu gritar 
Enquanto me internava naquelas demenciais vielas 
Que serpenteiam em labirintos sombrios e indistintos 
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A sul do rio onde os séculos antigos vão sonhar. 
Era uma figura furtiva, andrajosa, a torcer-se 
Que num repente cambaleando vi desvanecer-se. 
Continuei, assim, na noite a mergulhar 
Até onde surgiam filas de telhados malignos e denteados. 
 
Nenhum livro nos guia sobre o que ali se escondia... 
E a outro velho ouvi de pronto guinchar : 
“Cuidado com o carrilhão de São Sapalhão!”. 
E quando, sentindo-me desmaiar 
Parei, ouvi um terceiro velho de medo grasnar: 
“Cuidado com o carrilhão de São Sapalhão!” 
 
Espantado, fugi. E de repente 
Eis que vi 
Aparecer o negro campanário na minha frente! 
 
 
26.OS FAMILIARES 
 
John Whateley morava a uma milha da cidade, 
Lá no alto onde as colinas começavam a apinhar-se; 
Ter muito juizo era coisa que não podia pensar-se 
Vendo a forma como deixava arruinar a herdade. 
 
Gastava o seu tempo a ler durante todo o santo dia 
Uns livros que num recanto do sótão da casa encontrara 
Até que rugas esquisitas se lhe marcaram na cara 
E péssimo aspecto lhe deram, como toda a gente via. 
 
Decidímos, quando de noite ele começou a uivar 
Que seria bem melhor trancá -lo a cadeados. 
Então, do hospício de Aylesbury vieram três empregados 
Que o foram lá procurar. 
 
Voltaram sós e espantados: 
Pilharam-no conversando com dois seres acocorados 
Que mal ouviram seus passos bem marcados 
Com enormes asas negras esvoaçaram p’lo ar. 
 
 
27. O FAROL DO ANCIÃO 
 
De Leng, onde se erguem cumes sombrios e desnudos 
Sob frias estrelas obscuras para os olhares humanos, 
Quando anoitece um facho de luz propaga-se 
E seus distantes raios azuis os pastores fazem gemer e orar. 
Dizem eles (apesar de ninguém 
Ter lá estado) 
Que provém 
De um farol numa torre de pedra alojado, 
Onde o último Ancião vive sózinho 
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E fala com o Caos fazendo tambores rufar. 
 
A Coisa, sussurram eles, usa uma máscara de seda 
Amarela, cujas estranhas pregas parecem ocultar 
Uma face que desta terra não é, ainda que jamais 
Alguém se tenha atrevido a inquirir 
Que traços são aqueles que por baixo se vêem avultar. 
 
Muitos na juventude esse farol buscaram 
Mas nunca ninguém saberá o que foi que encontraram. 
 
 
28. EXPECTATIVA 
 
Certas coisas erguem em mim, porquê não o sei dizer 
Uma sensação de inexploradas maravilhas a acontecer 
Ou um rasgão no muro do horizonte 
Que se abre para mundos onde só os deuses podem viver. 
É uma esperança vaga, sem alento 
Como de grandes pompas antigas o que em parte acalento, 
Ou aventuras selvagens, incorpóreas 
Plenas de êxtase e livres ainda que ilusórias. 
 
Encontro-a em crepúsculos, campanários de povoados 
Em lugares muito antigos, bosque enevoados 
Ventos do sul, no mar, colinas de cidades iluminadas 
Velhos jardins, fogos da lua, canções meio escutadas 
 
E mesmo que só por esse engano tenha valido a pena existir 
Ninguém conseguirá adivinhar o que ele tentou sugerir. 
 
 
29. NOSTALGIA 
 
No anelante resplendor outonal, ano após ano 
As aves retomam o vôo sobre o deserto oceano 
Gorjeando e tagarelando, na alegria apressada 
De chegarem à terra que na memória íntima têm guardada. 
Enormes jardins em terraços onde botões de flor 
Rebentam em vivos tons, e filas de mangueiras com frutos 
De delicioso sabor 
E alamedas 
De ramos entrelaçados em abóbada 
Como num templo sobre amenas veredas – 
Tudo isto seu vago sonho lhes mostra. 
 
Esquadrinham o mar buscando sinal da antiga linha de costa 
– E a alta cidade branca de torres acasteladas – 
Mas apenas o vazio das águas é por elas divisado, 
E assim uma vez mais voltam p’ra trás desencantadas 
 
Entretanto, submersas num abismo por estranhos pólipos infestado 
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As velhas torres lamentam seu cântico perdido e relembrado. 
 
 
30. PAISAGEM DE FUNDO 
 
Nunca pude ligar-me cruamente a coisas novas, 
Pois vi a luz pela primeira vez numa cidade antiga 
Na qual telhados em confusão desciam desde a minha janela 
Até um singular porto de abrigo, rico em visões. 
Ruas com portas-de-entrada entalhadas 
Cujas velhas bandeiras 
E pequenas vidraças os raios do sol-poente banhavam 
E campanários georgianos encimados por agulhas douradas – 
Eram essas as paisagens que meus sonhos de criança modelavam. 
 
Tais tesouros, deixados por um tempo não corrompido 
Não podem senão fazer-nos desdenhar das quimeras sem sentido 
Cuja presença de confusa fé se esgueira por mutáveis vias 
Entre os muros que à terra e ao céu enchem os dias. 
 
Cortam as amarras do momento e deixam-me em liberdade 
Para ficar só e de pé diante da eternidade. 
 
 
31. O HABITANTE 
 
Era já bem velho nos tempos em que Babilónia 
 inda era nova; 
Sabe-se lá há quantos anos dormia sob aquele montículo 
Quando ao fim da demanda asnossas pás encontraram 
Seus blocos de granito e de novo os desenterraram. 
 
Havia vastos pavimentos e vestígios de muralhas, 
E lajes afeiçoadas e estátuas esculpidas de maneira 
 a representar 
Fantásticos seres oriundos daqueles tempos de antanho, 
Muito além da memória que os humanos podem conservar. 
 
E foi então que vimos os degraus de pedra que desciam 
Por uma porta obstruída de dolomita coberta de inscrições 
Até um refúgio, negro de uma noite sempiterna 
Donde signos antigos e segredos primitivos nos ameaçavam. 
 
Abrímos uma senda – mas fugímos em louca correria 
Ao ouvirmos um andar pesado que lá de baixo subia. 
 
 
32. ALIENAÇÃO 
 
Em carne e osso nunca para o além pudera passar 
Pois cada aurora o achava sempre no sítio habitual, 
Mas o seu espírito todas as noites gostava de vaguear 
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Por abismos e por mundos distantes do dia usual. 
Tinha visto Yaddith e conservara o juízo normal 
E voltara da zona de Ghooric sem ter sido tocado 
Até que numa tranquila noite o espaço foi cruzado 
Por sibilante apelo vindo do vazio sideral. 
 
Nessa manhã acordou feito num ancião, 
E desde aí nada tornou a parecer-lhe igual. 
Ao seu redor os objectos pairam nebulosos e sem feição – 
Dum plano mais vasto executores de aparência fantasmal. 
 
Família e amigos agora uma gente estranha são 
À qual ele se esforça por pertencer em vão. 
 
 
33. SEREIAS PORTUÁRIAS 
 
Por cima dos velhos telhados e das agulhas de torres arruinadas 
Durante toda a noite as sereias portuárias cantam; 
Gargantas vindas de portos estranhos, de brancas praias longínquas 
E de oceanos fabulosos, em coros desirmanados se concertam. 
Umas a outras alheias, entre si se desconhecem, 
Mas todas, por alguma força obscuramente concentrada 
Desde inúmeros abismos além da rota do Zodíaco 
Num misterioso zumbido cósmico se fundem. 
 
Por entre sonhos sombrios organizam um desfile 
De formas, sugestões e visões mais sombrias ainda; 
Ecos de vácuos exteriores, de subtis indicações 
Para coisas que nem mesmo elas conseguem definir. 
 
E em tal coro sempre captamos, tenuemente misturadas 
Certas notas que nenhum barco desta Terra se deu a emitir. 
 
 
34. RECAPTURA 
 
O caminho descia 
Por uma charneca pouco arborizada e sombria 
Onde rochas pardas, em corcovas 
Do chão se elevavam e umas esquisitas gotas 
Inquietantes, geladas me salpicavam, 
Vindas de invisíveis arroios que a meus pés serpenteavam. 
Nem o vento soprava nem o mais débil ruído me chegava 
Do emaranhado dos arbustos e das estranhas formas das árvores, 
E nada mais se via em frente – até que no meio do caminho 
Um monstruoso monte tumular divisei de repente. 
 
Os seus flancos escarpados contra o céu se projectavam 
Cobertos de pedra musgosa 
Escadas em ruínas feitas de lava que até altura pavorosa 
Seus degraus lançavam 
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Tão grandes que pés humanos os não pisavam. 
 
Agudo grito soltei – e soube que estrela e que ano primaciais 
Me haviam de novo levado da breve esfera de sonhos terrenais. 
 
 
35. ESTRELA VESPERTINA 
 
Dum lugar ermo e silencioso a contemplei 
Lá onde o velho bosque em parte oculta a planície. 
Brilhava no meio dum glorioso crepúsculo – debilmente 
A princípio, depois a pouco e pouco com mais força. 
 
E a noite veio, e o farol ambarino e solitário 
Feriu meus olhos como nunca havia feito; 
Um astro vespertino, mas mil vezes 
Mais espectral nesses silêncio e solidão. 
 
Traçou estranhas figuras no ar tremeluzente – 
Meias recordações que sempre em mim tinham estado – 
Vastas torres e jardins, curiosos céus e mares 
De alguma obscura vida – nunca eu soube de aonde. 
 
E agora compreendo que lá na abóbada celeste 
Esses raios me chamavam do lar incerto e remoto. 
 
 
36. CONTINUIDADE 
 
Há em certas coisas antigas um vestígio 
De nebulosa essência, além do peso e forma; 
Um éter subtil, indefinido 
Ligado às leis do tempo e do espaço. 
 
Um débil, velado signo de sequências 
Que os olhos de fora descobrir não conseguem; 
Suas cerradas dimensões – onde os anos idos se acoitam 
Só por secretas chaves se devassam. 
 
Comovo-me quando os raios do sol ao entardecer 
Alumiam as velhas casas da quinta frente ao monte 
Colorindo de vida as formas que perduram 
De séculos mais reais que este que conhecemos. 
 
E nessa estranha luz sinto que não estou longe 
Dessa massa imutável em que as faces são as épocas

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