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5. REALE, Miguel. As diretrizes fundamentais do projeto do Código Civil.

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COMENTÁRIOS SOBRE
O PROJETO DO CÓDIGO
CIVIL BRASILEIRO
SÉRIE CADERNOS DO CEJ,
VOLUME 20
BRASÍLIA
2002
EDITORAÇÃO
Secretaria de Pesquisa e Informação Jurídicas do Centro de Estudos Judiciários – SPI/CEJ
Neide Alves Dias De Sordi – Secretária
Milra de Lucena Machado Amorim – Subsecretária da Subsecretaria de Divulgação e Editoração
da SPI/CEJ
Lucinda Siqueira Chaves Freire – Diretora da Divisão de Editoração da SPI/CEJ
Sônia Rosana Gomes de Moraes e Menezes - Chefe da Seção de Edição de Textos da SPI/
CEJ
Antônio César do Vale - Chefe da Seção de Revisão de Textos da SPI/CEJ
Rute Maria Barreto Rezende – Servidora da Divisão de Editoração da SPI/CEJ
DIAGRAMAÇÃO E ARTE-FINAL
Anelize Lenzi Ruas - Servidora da Divisão de Divulgação Institucional da SPI/CEJ
CAPA
Anelize Lenzi Ruas - Servidora da Divisão de Divulgação Institucional da SPI/CEJ
ILUSTRAÇÃO
Enivaldo Sizino dos Santos - Chefe da Seção de Programação Visual da SPI/CEJ
NOTAS TAQUIGRÁFICAS
Subsecretaria de Taquigrafia do Superior Tribunal de Justiça
IMPRESSÃO
Divisão de Serviços Gráficos da Secretaria de Administração do Conselho da Justiça Federal
Luiz Alberto Dantas de Carvalho – Diretor
SUMÁRIO
Apresentação
As diretrizes fundamentais do Projeto do Código Civil
Miguel Reale
Direito de Família
Luiz Edson Fachin
Capacidade civil e capacidade empresarial: poderes de exercício no Projeto
do Novo Código Civil
João Baptista Villela
Direitos das Coisas
Rui Geraldo Camargo Viana
Atividade negocial
Newton de Lucca
Autonomia privada
Francisco dos Santos Amaral Neto
Alimentos
Francisco José Cahali
União estável: legislação e projetos
Álvaro Villaça Azevedo
Vícios de consentimento: fraude
Humberto Theodoro Júnior
O princípio da boa-fé nos contratos
Antonio Junqueira de Azevedo
Direito Civil e Constituição. Relações do Projeto com a Constituição.
Roberto Rosas
Judith Martins Costa
APRESENTAÇÃO
O Conselho da Justiça Federal, por meio do seu Centro de Estudos Judiciá-
rios, publica, a partir de notas taquigráficas, os anais do Encontro sobre o Projeto
de Código Civil Brasileiro, neste volume da Série Cadernos do CEJ.
Não obstante a realização do evento ter sido em abril de 2000 – antes da
promulgação da Lei n. 10.406, em 10 de janeiro de 2002, a qual entrará em vigor
um ano após a sua publicação –, tal fato não descarta a importância das conferên-
cias nele proferidas.
Encontrará o leitor, nas páginas que permeiam este fascículo, opiniões
diversas de ilustres personalidades da área jurídica do nosso País, com críticas
tanto a favor como contra o Projeto, o que o levará às suas próprias reflexões e
conclusões.
Pontos polêmicos nas áreas do Direito de Família, Direito Civil, Direito
Constitucional, Direito das Coisas, Direito Comercial, dentre outros, foram realça-
dos, o que instigou a capacidade intelectiva dos participantes e aguçará o senso
crítico daqueles que folhearem as próximas páginas.
AS DIRETRIZES FUNDAMENTAIS DO PROJETO DO CÓDIGO CIVIL
MIGUEL REALE
TRAMITAÇÃO DO PROJETO
O Projeto do Código Civil foiaprovado pela Câmara dosDeputados em 1984, após
cuidadoso estudo e debate de 1.063
emendas, o que não deve causar es-
tranheza por tratar-se de uma lei com
cerca de 2.100 artigos. Além de haver
muitas emendas repetidas, a maioria
delas não foi aceita pelo plenário.
Foi relevante a contribuição da
Câmara dos Deputados, graças ao mag-
nífico trabalho dos relatores de cada
uma das seis partes do Projeto, sendo,
afinal, Relator-Geral o saudoso Depu-
tado Ernani Satyro, cujo trabalho não
posso deixar de enaltecer.
Não menos relevante foi a con-
tribuição do Senado Federal que, em
novembro de 1997, aprovou o Projeto
com 332 emendas propostas pela Co-
missão Especial, com base no magnífi-
co parecer final de autoria do eminen-
te Relator-Geral, Senador Josaphat Ma-
rinho, a quem a Nação fica a dever,
bem como ao preclaro Presidente An-
tônio Carlos Magalhães, decisão de tão
grande alcance para a sociedade bra-
sileira.
Sinto-me à vontade para pro-
nunciar-me sobre o Projeto, pois, este,
embora preservado em sua estrutura
e valores iniciais, ultrapassou a pes-
soa de seus elaboradores, os eminen-
tes jurisconsultos José Carlos Moreira
Alves (Parte Geral); Agostinho de
Arruda Alvim (Direito das Obrigações);
Sylvio Marcondes (Direito de Empresa);
Ebert Vianna Chamoum (Direito das
Coisas); Clóvis do Couto e Silva (Direi-
to de Família); Torquato Castro (Direito
das Sucessões), quatro dos quais já fa-
lecidos. A mim me coube o papel de
coordenador-geral, propondo a estru-
tura ou sistemática do Projeto, que foi
aceita pelos colaboradores, sem pre-
juízo, é claro, de elaborar os textos que
considerasse necessário acrescentar
ou substituir, como de fato ocorreu.
Cabe-me esclarecer que a gran-
de demora na manifestação do Sena-
do Federal se deve às profundas alte-
rações políticas que caracterizaram a
passagem do sistema militar para o re-
gime democrático. Sobreveio depois,
a Assembléia Nacional Constituinte,
entendendo os senadores que era ne-
cessário aguardar a nova Constituição,
que poderia alterar as bases da legisla-
ção privada.
A bem ver, porém, a nova Car-
ta Magna, no concernente à Parte Ge-
ral, Obrigações, Direito de Empresa,
Direitos Reais e Sucessões, não fez se-
não confirmar o “sentido social” que
presidiu a feitura do projeto, pouco ou
nada havendo a modificar. Foi apenas
no campo do Direito de Família que
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
sobrevieram mudanças essenciais, que
por sinal vieram corresponder às
emendas oferecidas no Senado pelo
pranteado Senador Nelson Carneiro e
outros. Desse modo foi possível adap-
tar facilmente o projeto ao texto cons-
titucional, conforme já previra ao ma-
nifestar-me sobre elas, em estudo que
fiz a pedido do Relator-Geral na Câma-
ra Alta, o Senador Josaphat Marinho.
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Em um país há duas leis funda-
mentais: a Constituição e o Código Ci-
vil. A primeira estabelece a estrutura e
as atribuições do Estado em função do
ser humano e da sociedade civil; a se-
gunda se refere à pessoa humana e à
sociedade civil como tais, abrangendo
suas atividades essenciais. É claro que
nas nações anglo-americanas, de tra-
dição costumeira-jurisprudencial, não
há códigos privados, mas não deixam
de haver normas civis básicas no sis-
tema do common law.
É a razão pela qual costumo
declarar que o Código Civil é “a Consti-
tuição do homem comum”, devendo
cuidar de preferência das normas ge-
rais consagradas ao longo do tempo,
ou então, das regras novas dotadas de
plausível certeza e segurança, não
podendo dar guarida, incontinenti, a
todas as inovações correntes. Por tais
motivos não há como conceber o Có-
digo Civil como se fosse a legislação
toda de caráter privado, pondo-se ele
antes como a “legislação matriz”, a
partir da qual se constituem
“ordenamentos normativos especiais”
de maior ou de menor alcance, como,
por exemplo, a Lei das Sociedades
Anônimas e as que regem as coopera-
tivas, mesmo porque elas transcendem
o campo estrito do Direito Civil, com-
preendendo objetivos e normas de na-
tureza econômica ou técnica, quando
não conhecimentos e exigências espe-
cíficas.
É esse o motivo pelo qual, des-
de o início, fixei como uma das nor-
mas orientadoras da codificação que
me fora confiada a de destinar à legis-
lação especial aditiva todos os assun-
tos que ultrapassassem os lindes da
área civil ou implicassem problemas de
alta especificidade técnica.
Nessa ordem de idéias, não te-
ria sentido inserirem-se no Projeto dis-
positivos sobre inseminaçãoartificial,
desde as mais variadas formas de ge-
ração extra-uterina até a chamada con-
cepção in vitro, pois tais processos
envolvem questões que transbordam
o campo jurídico, alargando-se pelos
domínios da medicina e da engenha-
ria genética, implicando problemas tan-
to de bioética quanto de Direito Admi-
nistrativo e de Direito Processual, a fim
de atenderem as exigências de segu-
FláviaHolz
Highlight
FláviaHolz
Highlight
FláviaHolz
Highlight
FláviaHolz
Highlight
Série Cadernos do CEJ, 20
rança e certeza no concernente à ma-
ternidade ou à paternidade. Eis aí uma
esfera onde a legislação especial se põe
como a única apropriada.
A análogas conclusões chega-
ríamos no que se refere a múltiplas ino-
vações de ordem tecnológica ou eco-
nômica, que, ou encontram solução
nas matrizes mesmas do Código Civil,
à luz de seus princípios e de seus insti-
tutos ou figuras, ou, então, somente
poderão ser adequadamente resolvidas
mediante leis especiais.
ESTRUTURA DO CÓDIGO
A iniciativa de um novo Código
Civil não surgiu de repente. Foi, ao con-
trário, conseqüência de duas tentativas
anteriores que já demarcaram as con-
dições que deveriam ser evitadas ou,
então, complementadas.
Em primeiro lugar, abandonou-
se a idéia de dividir o Código Civil, ela-
borando-se, em separado, um Código
das Obrigações. A quase unanimidade
de nossos juristas repudiou a propos-
ta de um Código Civil decepado e sem
sentido de unidade, condenando a eli-
minação da Parte Geral, tradicional em
nosso Direito, desde a Consolidação
das Leis Civis, graças ao gênio criador
de Teixeira de Freitas.
Como responsável pela
codificação, não vacilei no sentido de
preferir uma sistematização ampla,
embora partindo do Código em vigor.
Como já disse, foi fixado o critério de
preservar, sempre que possível, as dis-
posições do Código atual, porquanto,
de certa forma, cada texto legal repre-
senta um patrimônio de pesquisa, de
estudos, de pronunciamentos de um
universo de juristas. Há, por conse-
guinte, todo um saber jurídico acumu-
lado ao longo do tempo, que aconse-
lha a manutenção do válido e eficaz,
ainda que em novos termos. Por outro
lado, é inegável que o Código atual obe-
deceu, repito, como era natural, ao es-
pírito de sua época, quando o indivi-
dual prevalecia sobre o social. É, por
isso, próprio de uma cultura fundamen-
talmente agrária, onde predominava a
população rural e não a urbana. A mu-
dança do Brasil no presente século foi
de tal ordem que o Código não pode-
ria deixar de refletir essas alterações
básicas, uma vez que o Código Civil
não é senão a “Constituição da socie-
dade civil”. Como costumo dizer, e re-
pito, o “Código Civil é a Constituição
do homem comum”.
É preciso, porém, corrigir, des-
de logo, um equívoco que consiste em
dizer que tentamos estabelecer a uni-
dade do Direito Privado. Esse não foi o
objetivo visado. O que na realidade se
fez foi consolidar e aperfeiçoar o que
já estava sendo seguido no País, que
FláviaHolz
Highlight
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
era a unidade do direito das obriga-
ções. Como o Código Comercial de
1850 se tornara completamente supe-
rado, não havia mais questões comer-
ciais resolvidas à luz do Código de Co-
mércio, mas sim em função do Código
Civil. Na prática jurisprudencial, essa
unidade das obrigações já era um fato
consagrado, o que se refletiu na idéia
rejeitada de um código só para reger
as obrigações, consoante projeto ela-
borado por jurisconsultos da estatura
de Orozimbo Nonato, Hahnemamm
Guimarães e Philadelpho de Azevedo.
Não vingou também a tentativa de, a
um só tempo, elaborar um Código das
Obrigações, de que foi relator Caio
Mário da Silva Pereira, ao lado de um
Código Civil, com a matéria restante,
conforme projeto de Orlando Gomes.
Depois dessas duas malogradas expe-
riências, só restava manter a unidade
da codificação, enriquecendo-a de no-
vos elementos, levando em conta tam-
bém as contribuições desses dois ilus-
tres jurisconsultos.
A opção pela unidade das obri-
gações nos levou a alterar a ordem da
matéria. O Código atual, como é pró-
prio da sociedade de natureza agrária,
começa com o Direito de Família, pas-
sando pelo Direito de Propriedade e das
Obrigações, até chegar ao das Suces-
sões.
Nosso Projeto, após a Parte Ge-
ral – na qual se enunciam os direitos e
deveres gerais da pessoa humana
como tal, e se estabelecem pressupos-
tos gerais da vida civil –, começa, na
Parte Especial, a disciplinar as obriga-
ções que emergem dos direitos pesso-
ais. Pode-se dizer que, enunciados os
direitos e deveres dos indivíduos, pas-
sa-se a tratar de sua projeção natural
que são as obrigações e os contratos.
É extensa essa disciplina das
obrigações, dado o tratamento unifica-
do das obrigações civis com as obriga-
ções e os contratos.
É extensa essa disciplina das
obrigações, dado o tratamento unifica-
do das obrigações civis com as obriga-
ções empresariais, termo que preferi-
mos adotar, pois a atividade econômi-
ca não se assinala mais, hoje em dia,
por atos de comércio, tendo uma pro-
jeção muito mais ampla, sendo igual-
mente relevantes os de natureza indus-
trial ou financeira.
Em seguida ao Direito das Obri-
gações, passamos a contar com uma
parte nova, que é o Direito de Empre-
sa. Este diz respeito a situações em que
as pessoas se associam e se organi-
zam a fim de, em conjunto, dar eficá-
cia e realidade ao que pactuam. O Di-
reito de Empresa não figura, como tal,
em nenhuma codificação contemporâ-
nea, constituindo, pois, uma inovação.
FláviaHolz
Highlight
FláviaHolz
Highlight
FláviaHolz
Highlight
Série Cadernos do CEJ, 20
Daí se passa ao Direito das Coi-
sas, sendo o Direito Real visto em ra-
zão do novo conceito de propriedade,
com base no princípio constitucional
de que a função da propriedade é so-
cial, superando-se a compreensão ro-
mana quiritária em função do interes-
se exclusivo do indivíduo, do proprie-
tário ou do possuidor. Em seguida ao
Direito das Coisas é que vem o Direito
de Família e, posteriormente, o Direito
das Sucessões. Houve, por conseguin-
te, uma alteração relevante na estrutu-
ra do Código, a qual não encontra
símile na codificação dos demais paí-
ses.
Quando começamos nosso tra-
balho, tínhamos idéias de conservar,
quando possível, consoante já foi dito,
as disposições do Código atual. Mas, à
medida que os trabalhos foram se de-
senvolvendo, foi-se revelando a possi-
bilidade de nos mantermos inteiramen-
te fiéis a essa diretriz inicial. Problemas
novos exigem formulação nova, sen-
do a linguagem inseparável do concei-
to. Preferiu-se uma linguagem nova,
mais operacional e adequada à preci-
sa interpretação das normas referen-
tes aos problemas atuais. Há, portan-
to, um sentido de atualidade ou de
contemporaneidade ínsito no projeto,
inclusive no tocante à linguagem, eli-
minados que foram arcaísmos e supe-
rados modos de dizer.
O PRINCÍPIO DA SOCIALIDADE
O “sentido social” é uma das
características mais marcantes do Pro-
jeto, em contraste com o sentido indi-
vidualista que condiciona o Código Ci-
vil ainda em vigor. Seria absurdo ne-
gar os altos méritos da obra do insigne
Clóvis Beviláqua, mas é preciso lem-
brar que ele redigiu sua proposta em
fins do século passado, não sendo se-
gredo para ninguém que o mundo nun-
ca mudou como no decorrer do pre-
sente século, assolado por profundos
conflitos sociais e similares.
Se não houve a vitória do socia-
lismo, houve otriunfo da “socialidade”,
fazendo prevalecer os valores coletivos
sobre os individuais, sem perda, po-
rém, do valor fundante da pessoa hu-
mana. Por outro lado, o Projeto se dis-
tingue pela maior aderência à realida-
de contemporânea, com a necessária
revisão dos direitos e deveres dos cin-
co principais personagens do Direito
Privado tradicional: o proprietário, o
contratante, o empresário, o pai de fa-
mília e o testador.
Nosso empenho foi no sentido
de situar tais direitos e deveres no con-
texto da nova sociedade que emergiu
de duas guerras universais, bem como
da revolução tecnológica e da emanci-
pação plena da mulher. É por isso, por
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
exemplo, que acabei propondo que o
“pátrio poder” passasse a denominar-
se “poder familiar”, exercido em con-
junto por ambos os cônjuges em ra-
zão do casal e da prole.
Em virtude do princípio da
socialidade, surgiu também um novo
conceito de posse, a posse-trabalho,
ou posse pro labore, em virtude da qual
o prazo de usucapião de um imóvel é
reduzido, conforme o caso, se os pos-
suidores nele houverem estabelecido
a sua morada, ou realizado investimen-
tos de interesse social e econômico.
Por outro lado, foi revisto e atualizado
o antigo conceito de posse, em conso-
nância com os fins sociais da proprie-
dade.
O PRINCÍPIO DA ETICIDADE
O Código atual peca pelo
rigorismo formal, no sentido de que
tudo se deve resolver mediante precei-
tos normativos expressos, sendo
pouquíssimas as referências à eqüida-
de, à boa-fé, à justa causa e aos de-
mais critérios éticos. Esse espírito
dogmático-formalista levou um grande
mestre do porte de Pontes de Miranda
a qualificar a boa-fé e a eqüidade como
“aberrações jurídicas”, entendendo ele
que, no Direito Positivo, tudo deve ser
resolvido técnica e cientificamente, por
meio de normas expressas, sem apelo
a princípios considerados
metajurídicos. Não acreditamos na ge-
ral plenitude da norma jurídica positi-
va, sendo preferível, em certos casos,
prever o recurso a critérios ético-jurídi-
cos que permitam chegar-se à
“concreção jurídica”, conferindo-se
maior poder ao juiz para encontrar-se
a solução mais justa ou eqüitativa.
O novo Código, por conseguin-
te, confere ao juiz não só poder para
suprir lacunas, mas também para re-
solver, onde e quando previsto, de con-
formidade com valores éticos, ou se a
regra jurídica for deficiente ou
inajustável à especificidade do caso
concreto.
Como se vê, ao elaborar o Pro-
jeto, não nos apegamos ao rigorismo
normativo, pretendendo tudo prever de-
talhada e obrigatoriamente, como se
na experiência jurídica imperasse o
princípio de causalidade próprio das
ciências naturais, nas quais, aliás, se
reconhece cada vez mais o valor do
problemático e o do conjetural.
O que importa em uma
codificação é o seu espírito; é um con-
junto de idéias fundamentais em tor-
no das quais as normas se entrelaçam,
se ordenam e se sistematizam.
Em nosso projeto não prevale-
ce a crença na plenitude hermética do
Direito Positivo, sendo reconhecida a
FláviaHolz
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FláviaHolz
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FláviaHolz
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FláviaHolz
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FláviaHolz
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FláviaHolz
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Série Cadernos do CEJ, 20
imprescindível eticidade do
ordenamento. O código é um sistema,
um conjunto harmônico de preceitos
que exige a todo instante recurso à
analogia e aos princípios gerais deven-
do ser valorizadas todas as conseqü-
ências da cláusula rebus sic stantibus.
Nesse sentido, é posto o princípio do
equilíbrio econômico dos contratos
como base ética de todo o Direito
obrigacional.
Nesse contexto, abre-se campo
a uma nova figura, que é a da resolu-
ção do contrato como um dos meios
de preservar o equilíbrio contratual.
Hoje em dia, praticamente só se pode
rescindir um contrato em razão de atos
ilícitos. O direito de resolução obede-
ce a uma nova concepção, porque o
contrato desempenha uma função so-
cial, tanto como a propriedade. Reco-
nhece-se, assim, a possibilidade de se
resolver um contrato em virtude de
adventos de situações imprevisíveis
que inesperadamente venham alterar
os dados do problema, tornando a
posição de um dos contratantes exces-
sivamente onerosa.
Tal reconhecimento vem esta-
belecer uma função mais criadora por
parte da Justiça em consonância com
o princípio da eticidade, cujo fulcro
fundamental é o valor da pessoa hu-
mana como fonte de todos os valores.
Como se vê, o novo Código abando-
nou o formalismo técnico-jurídico pró-
prio do individualismo da metade des-
te século, para assumir um sentido mais
aberto e compreensivo, sobretudo
numa época em que o desenvolvimen-
to dos meios de informação vem am-
pliar os vínculos entre os indivíduos e
a comunidade.
O PRINCÍPIO DA OPERABILIDADE
O terceiro princípio que norteou
a feitura deste nosso Projeto – e va-
mos nos limitar a apenas três, não por
um vício de amar o trino, mas porque
não há tempo para tratar de outros, que
estão de certa maneira implícitos nos
que estou analisando – é o princípio
da operabilidade. Ou seja, toda vez que
tivemos de examinar uma norma jurí-
dica, e havia divergência entre ser
enunciada de uma forma ou de outra,
pensamos no ensinamento de Jhering,
que diz que é da essência do Direito a
sua realizabilidade: o Direito é feito para
ser executado; Direito que não se exe-
cuta – já dizia Jhering na sua imagina-
ção criadora – é como chama que não
aquece, luz que não ilumina. O Direito
é feito para ser realizado; é para ser
operado. No fundo, o que é que nós
somos – nós advogados? Somos ope-
radores do Direito: operamos o Códi-
go e as leis, para fazer uma petição ini-
cial, e levamos o resultado de nossa
operação ao juiz, que verifica a legiti-
midade, a certeza, a procedência ou
FláviaHolz
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FláviaHolz
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FláviaHolz
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Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
não da nossa operação – o juiz tam-
bém é um operador do Direito; e a sen-
tença é uma renovação da operação
do advogado, segundo o critério pelo
qual julga. Então, é indispensável que
a norma tenha operabilidade, a fim de
evitar uma série de equívocos e de di-
ficuldades que hoje entravam a vida
do Código Civil.
Darei apenas um exemplo.
Quem é que, no Direito Civil brasileiro
ou estrangeiro, até hoje, soube fazer
uma distinção nítida e fora de dúvida,
entre a prescrição e a decadência? Há
as teorias mais cerebrinas e bizantinas
para se distinguir uma coisa da outra.
Devido a esse contraste de idéias, as-
sisti, uma vez, perplexo, num mesmo
mês, a um Tribunal de São Paulo ne-
gar uma apelação interposta por mim
e outros advogados, porque entendia
que o nosso direito estava extinto por
força da decadência; e, poucas sema-
nas depois, ganhávamos, numa outra
Câmara, por entender-se que o prazo
era o da prescrição, que havia sido in-
terrompido! Por isso, o homem comum
olha o Tribunal e fica perplexo. Ora,
quisemos pôr um termo a essa perple-
xidade, de maneira prática, porque o
simples é o sinal da verdade, e não o
bizantino e o complicado.
Preferimos, por tais motivos,
reunir as normas prescricionais, todas
elas, enumerando-as na Parte Geral do
Código. Não haverá dúvida nenhuma:
ou figura no artigo que rege as prescri-
ções, ou então se trata da decadência.
Casos de decadência não figuram na
Parte Geral, a não ser em cinco ou seis
hipóteses em que cabia prevê-la, logo
após, ou melhor, como complemento
do artigo em que era, especificamen-
te, aplicável.Qual é o tratamento dado à de-
cadência? Há, por exemplo, o direito
do doador de revogar a doação feita,
por ingratidão. Aí, o prazo é tipicamen-
te de decadência. E então a norma
vem acoplada à outra: a norma de
operabilidade está jungida ao direito
material. Como se vê, cada norma de
decadência está acoplada ao preceito
cuja decadência deve ser decretada.
De tal maneira que, com isso, não há
mais possibilidade de alarmantes con-
tradições jurisprudenciais.
O critério da operabilidade leva-
nos, às vezes, a forçarmos um pouco,
digamos assim, os aspectos teoréticos.
Vou dar um exemplo, para mostrar que
prevalece, às vezes, o elemento de
operabilidade sobre o elemento pura-
mente teorético-formal. Qual é o prazo
de responsabilidade de um construtor,
pela obra que entregou, numa emprei-
tada de material e de valor, ou seja, de
mão-de-obra e com fornecimento de
material? É um prazo de cinco anos –
um prazo extenso. Porém estabelece-
FláviaHolz
Highlight
Série Cadernos do CEJ, 20
mos que, não obstante a aparência de
uma norma prescritiva, ela devia ser
colocada como norma de decadência,
para que não houvesse dúvida na ju-
risprudência, nem dúvida na respon-
sabilidade de fazer face àquilo que as-
sumiu como obrigação contratual.
Isso posto, o princípio da
operabilidade leva, também, a redigir
certas normas jurídicas que são nor-
mas abertas, e não normas cerradas,
para que a atividade social mesma, na
sua evolução, venha alterar seu con-
teúdo mediante aquilo que denomino
“estrutura hermenêutica”. Porque, para
mim, a estrutura hermenêutica é um
complemento natural da estrutura
normativa. E é por isso que a doutrina
é fundamental, porque ela é aquele
modelo dogmático e teórico que diz o
que os demais modelos jurídicos sig-
nificam.
Estão verificando que tivemos
em vista esses três princípios e outros
também, que levam em conta a
concreção humana. Poderia acrescen-
tar, aqui, o princípio da concretitude,
que, de certo modo, está implícito no
de operabilidade.
Concretitude, o que é? É a obri-
gação que tem o legislador de não le-
gislar em abstrato, para um indivíduo
perdido na estratosfera, mas, quanto
possível, legislar para o indivíduo situa-
do: legislar para o homem como mari-
do; para a mulher como esposa; para
o filho como um ser subordinado ao
poder familiar. Quer dizer, atender às
situações sociais, à vivência plena do
Código, do direito subjetivo como uma
situação individual; não um direito sub-
jetivo abstrato, mas uma situação sub-
jetiva concreta. Em mais de uma opor-
tunidade ter-se-á ocasião de verificar
que o Código preferiu, sempre, essa
concreção para a disciplina da maté-
ria.
Fixadas essas linhas gerais, ago-
ra desejo focalizar alguns exemplos de
confronto entre o Código atual e o Pro-
jeto do novo Código, que já foi apro-
vado pelo Senado.
INOVAÇÕES IMPRESCINDÍVEIS
Já fiz referência ao caráter ex-
cessivamente individualista do Código
atual, mas, se procuramos corrigir sua
vinculação aos valores de uma supe-
rada sociedade agrária, nem por isso
deixamos de salvaguardar, sempre que
possível, como já salientado, as suas
disposições ainda válidas, especialmen-
te com a conservação da Parte Geral,
a qual foi mantida de acordo com a
grande lição que nos vem de Teixeira
de Freitas.
Houve, porém, necessidade de
atender às novas contribuições da
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
civilística contemporânea no que se
refere, por exemplo, à disciplina dos
negócios jurídicos, à necessidade de
regrar unitariamente as obrigações ci-
vis e as mercantis, com mais precisa
distinção entre associação civil e soci-
edade empresária, cuidando de várias
novas figuras contratuais que vieram
enriquecer o Direto das Obrigações,
sem deixar de dar a devida atenção à
preservação do equilíbrio econômico
do contrato, nos casos de onerosidade
excessiva para uma das partes, bem
como às cautelas que devem presidir
os contratos de adesão para salvaguar-
dar os interesses do consumidor.
Além disso, foram
estabelecidas as normas gerais dos tí-
tulos de crédito, mantendo-se a legis-
lação especial para disciplina de suas
diversas figuras; assim como fixadas
regras mais adequadas em matéria de
responsabilidade civil, que o Código
atual ainda subordina à idéia de culpa,
sem reconhecer plena e claramente
os casos em que a responsabilidade
deve ser objetiva, atendendo-se às con-
seqüências inerentes à natureza e à es-
trutura dos atos e negócios jurídicos
como tais.
É difícil enumerar todas as ino-
vações trazidas pelo projeto, desde
uma rigorosa separação entre prescri-
ção e decadência, aquela disciplinada
na Parte Geral, e esta prevista em cada
caso ocorrente – em conexão com o
artigo que lhe diz respeito. Desse modo,
fica superada de vez a interminável
dúvida sobre se determinada disposi-
ção é de prescrição ou de caducida-
de. Por outro lado, merece especial
menção a distinção fundamental entre
Direito Pessoal e Direito Real de Famí-
lia, ou, então, as disposições sobre
condomínio edifício (denominação em
princípio criticada, e que já é de uso
corrente) ou a restauração do antigo
Direito de Superfície sob novas vestes,
o que demonstra que não nos domi-
nou o desejo de só oferecer novida-
des.
Cumpre também salientar que
o projeto não abrange matérias que en-
volvam questões que vão além dos
lindes jurídicos, como é o caso das
sociedades por ações, objeto de lei
especial. Por outro lado, é próprio de
um código albergar somente questões
que se revistam de certa estabilidade,
de certa perspectiva de duração, sen-
do incompatível com novidades ainda
pendentes de maiores estudos, abran-
gendo problemas de ordem científica,
como é o caso já lembrado da fecun-
dação artificial. O projeto limita-se, por
conseguinte, àquilo que é da esfera ci-
vil, deixando para a legislação especi-
al a disciplina de assuntos que dela
extrapolem, como é o caso da “incor-
poração de condomínios edifícios”.
FláviaHolz
Highlight
FláviaHolz
Highlight
Série Cadernos do CEJ, 20
Eis aí algumas diretrizes de um
Projeto que, repito, não mais nos per-
tence, pois ele foi publicado por três
vezes, recebendo sempre sugestões
que, após o devido estudo, deram lu-
gar a alterações que, progressivamen-
te, vieram aperfeiçoando e atualizan-
do nossa proposta inicial, até as últi-
mas mudanças feitas no Senado. É uma
tolice, por conseguinte, afirmar-se que
o projeto estaria superado por ter sido
proposto à Câmara dos Deputados em
1975. O curioso é que quem apoda o
projeto com a velhice, pleiteia a manu-
tenção do atual Código Civil que é de
1916!
CRÍTICAS APRESSADAS OU INOPORTUNAS
Outra crítica apressada e abso-
lutamente sem sentido diz respeito ao
fato de o Código não ter cuidado da
união estável de pessoas do mesmo
sexo. Essa matéria não é de Direito Ci-
vil, mas sim de Direito Constitucional,
porque a Constituição criou a união
estável entre um homem e uma mu-
lher. De maneira que, para cunhar-se
aquilo que estão querendo, a união
estável dos homossexuais, em primei-
ro lugar seria preciso mudar a Consti-
tuição, o que não era a nossa tarefa e
muito menos a do Senado.
Certas críticas são frutos ape-
nas da ignorância dos textos constitu-
cionais vigentes. O Código só abrange
aquilo que já está, de certa maneira,
consolidado à luz da experiência. É o
motivo pelo qual concordamos com
aqueles que, em determinado momen-
to, entenderam que não deveria fazer
parte do Código a Lei da Sociedade por
Ações. Não apenasem razão das mu-
tações a que ela está continuamente
sujeita – como ainda agora o demons-
tra a recente lei que está dando cam-
po para tantas discussões –, mas tam-
bém porque a lei que rege as socieda-
des anônimas está diretamente vincu-
lada ao mercado de capitais, o que
transcende os lindes da lei civil.
Não se compreende que, ten-
do o Senado Federal aprovado o pro-
jeto com emendas, só podendo estas
ser objeto de apreciação pela Câmara
dos Deputados, certos críticos, que se
mantiveram todos estes anos calados,
vêm, agora, apontar pretensos erros ou
omissões, que, se porventura existen-
tes, somente poderiam ser objeto de
leis autônomas ou posteriores ao novo
Código Civil. Isso tudo apenas demons-
tra que não se tem em vista aperfeiço-
ar a legislação do País, mas tão-somente
mostrar tardio e irrelevante cuidado,
sob o qual não raro se ocultam pre-
conceitos e prevenções.
Por outro lado, críticas surgiram
em flagrante conflito com o texto da
proposta, evidenciando, assim, que
nem sequer houve preocupação de lei-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
tura com a atenção e a serenidade que
exigem os estudos jurídicos, servindo
o Projeto apenas de pretexto para pro-
moção pessoal.
Quanto à alegação de que o
princípio da socialidade acaba geran-
do a massificação e sacrificando a in-
dividualidade, componente essencial
de um Código Civil, trata-se de tolice
tão evidente que não merece nem com-
porta discussão.
Esclarecidas essas questões,
não é demais recordar que os assun-
tos fundamentais da nova codificação
foram por mim explanados, assim
como pelos demais co-autores do pro-
jeto, nas respectivas exposições de
motivos. No que me toca, permito-me
lembrar que publiquei, em 1986, pela
Editora Saraiva, a primeira edição do
presente livro, na qual os interessados
puderam encontrar as diretrizes funda-
mentais a que estou fazendo referên-
cia. A mesma coisa poder-se-á dizer
com relação ao ilustre Ministro Moreira
Alves, que, na mesma época, tratou
também do Projeto, em volume perti-
nente à Parte Geral. De modo que já
há bibliografia auxiliar, além das publi-
cações feitas pelo Congresso Nacional,
que são parte componente essencial
do Projeto, sobretudo depois que ele
foi aprovado pela Câmara dos Deputa-
dos e em seguida pelo Senado Fede-
ral, com o douto e minucioso parecer
de autoria do Senador Josaphat Mari-
nho, incluído na presente edição.
A TRAMITAÇÃO NO SENADO FEDE-
RAL
No Senado Federal logo nos
defrontamos com várias dificuldades.
A obra de codificação coincidiu com o
retorno do País à ordem constitucio-
nal e, por conseguinte, com a idéia de
uma Assembléia Nacional Constituinte,
que era apresentada, consoante já sa-
lientei, como uma fonte de possíveis
alterações profundas que iriam se re-
fletir sobre o Projeto. Isso teve como
conseqüência estancar o processo de
sua apreciação, até que fosse feita a
nova Constituição. A situação não im-
pediu, no entanto, que no Senado fos-
sem apresentadas, no prazo regimen-
tal, 366 emendas, cuja apreciação iria
demandar mais de doze anos.
Isso não obstante, o trabalho no
Senado é merecedor de justa admira-
ção, merecendo referência especial a
decisiva resolução do Relator-Geral,
Senador Josaphat Marinho de chamar
a si a responsabilidade de apreciação
das emendas, submetendo, a
posteriori, as suas propostas à consi-
deração dos Relatores Especiais.
Vê, assim, o leitor, que o Proje-
to não é fruto de improvisação e nem
tampouco representa um trabalho des-
Série Cadernos do CEJ, 20
de logo solidificado e definitivo. Mas,
ao contrário, veio sendo corrigido e
completado ao longo do tempo, de tal
maneira que novas emendas e novas
sugestões foram sempre bem recebi-
das e, objetos de nossa análise. Ape-
sar da morte da maior parte dos mem-
bros da comissão, o Ministro Moreira
Alves e eu, como remanescentes mais
ativos dela, continuamos a dar nossa
colaboração, emitindo pareceres e for-
mulando novas propostas no Senado
Federal, que serviam de base à propos-
ta finalmente apreciada pela Câmara
Alta, após o parecer do mencionado
Relator-Geral *.
O NOVO DIREITO DE FAMÍLIA
E O DE SUCESSÕES
Já havíamos dado grande pas-
so à frente no sentido da igualdade dos
cônjuges. Isso ficou ainda mais acen-
tuado na Constituição, sobretudo no
que se refere à situação dos filhos, por-
quanto a Carta Política de 1988 elimi-
nou toda e qualquer diferença entre fi-
lhos legítimos, naturais, adulterinos,
espúrios ou adotivos.
Essa opção constitucional im-
plicou evidentemente o reexame das
emendas oferecidas por Nelson Carnei-
ro, de tal maneira que foi feita plena
atualização da matéria em consonân-
cia com as novas diretrizes da Carta
Magna vigente, também, no que se re-
fere à “união estável”, a nova entidade
familiar que surge ao lado do matrimô-
nio civil, corrigindo-se o erro da legis-
lação em vigor que a confunde com o
concubinato.
Nota-se que, na Parte Geral,
atende-se, outrossim, às circunstânci-
as da vida contemporânea, adotando-
se novos critérios para estabelecer a
maioridade, que baixou de 21 para 18
anos. É sabido que, em virtude da
Informática e da expansão cultural, as
pessoas amadurecem mais cedo do
que antes. Essa mudança fundamen-
tal refletiu-se também no campo da res-
ponsabilidade relativa: quem passou de
16 anos é até eleitor em todos os pla-
nos da política nacional, desde o mu-
nicípio até a União.
Os exemplos ora dados já são
mais do que suficientes para demons-
trar que houve grande preocupação no
sentido de aproveitar as emendas do
Senado para a atualização do Projeto.
E isso se repetiu nos poderes conferi-
dos aos cônjuges em absoluta igual-
dade, razão pela qual, como já foi dito,
propus, e foi aceito pelo Senador
Josaphat Marinho, que, em vez de
pátrio poder, se falasse em “poder fa-
miliar”, que é uma expressão mais jus-
ta e adequada, porquanto os pais exer-
cem esse poder em função dos inte-
resses do casal e da prole.
No que se refere à igualdade dos
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
cônjuges, é preciso atentar ao fato de
que houve alteração radical no tocan-
te ao regime de bens, sendo desneces-
sário recordar que anteriormente pre-
valecia o regime da comunhão univer-
sal, de tal maneira que cada cônjuge
era meeiro, não havendo razão algu-
ma para ser herdeiro. Tendo já a meta-
de do patrimônio, ficava excluída a
idéia de herança. Mas, desde o momen-
to em que passamos do regime da co-
munhão universal para o regime parci-
al de bens com comunhão de aqüestos,
a situação mudou completamente. Se-
ria injusto que o cônjuge somente par-
ticipasse daquilo que é produto co-
mum do trabalho, quando outros bens
podem vir a integrar o patrimônio e ser
objeto de sucessão. Nesse caso, o côn-
juge, quando casado no regime da se-
paração parcial de bens (note-se), con-
corre com os descendentes e com os
ascendentes até a quarta parte da he-
rança. De maneira que são duas as ra-
zões que justificam esse entendimen-
to: de um lado, uma razão de ordem
jurídica, que é a mudança do regime
de bens do casamento; de outro, a
absoluta equiparação do homem e da
mulher, pois a grande beneficiada com
tal dispositivo é, no fundo, mais a mu-
lher do que o homem.
Por outro lado, em matéria
sucessória, não é mais lícito ao testa-
dor vincular bens da legítima a seu bel-
prazer. Ele deve explicar o motivo que
o leva a estabelecer a cláusula
limitadora do exercício de direitos pelo
seu herdeiro, podendo o juiz, emcer-
tas circunstâncias, apreciar a matéria
para verificar se procede a justa causa
invocada.
ADEQUAÇÃO A EXIGÊNCIAS TÉCNI-
CAS
Há, além disso, necessidade de
levar em conta as alterações profun-
das ocorridas no plano técnico e
operacional. Por essas razões, por
exemplo, toda a matéria de escritura-
ção empresarial passa por uma trans-
formação fundamental para que tudo
possa ser feito por meio de processos
eletrônicos, superando-se os entraves
formalistas em matérias de contabili-
dade e de gestão da empresa.
O mesmo espírito pragmático
preside a outros aspectos da vida em-
presarial, notadamente no que se refe-
re às questões disciplinadas na nova
parte especial inserida no projeto, re-
lacionada ao Direito de Empresa – em-
pregada a palavra “empresa” no senti-
do de atividade desenvolvida pelos in-
divíduos ou pelas sociedades a fim de
promover a produção e a circulação
das riquezas, dos bens e dos serviços.
É esse o objetivo fundamental
que rege os diversos tipos de socieda-
des empresariais, não sendo demais
Série Cadernos do CEJ, 20
realçar que, consoante a terminologia
adotada pelo Projeto, as associações
são sempre de natureza civil. Parece
uma distinção somenos, mas de gran-
des conseqüências práticas, porquan-
to cada uma delas é governada por
princípios distintos.
Uma exigência básica de
operabilidade norteia, portanto, toda a
matéria de Direito de Empresa, ade-
quando-o aos imperativos da técnica
contemporânea no campo econômico-
financeiro, sendo estabelecidos precei-
tos que atendem tanto à livre iniciativa
como aos interesses do consumidor.
OUTRAS ATUALIZAÇÕES
É inegável a urgente necessida-
de de se atualizar o Código atual em
várias outras questões. Sendo, por
exemplo, as sociedades por ações es-
truturas complexas que exigem amplos
e custosos quadros funcionais, a disci-
plina normativa das cotas de respon-
sabilidade limitada passou a ter uma
importância cada vez mais acentuada.
De início, as sociedades por cotas eram
relativas a pequenas empresas e ainda
exercem essa função, mas, hoje em
dia, esse tipo de sociedade abrange um
número imenso de agremiações, até
chegarmos às holdings ou
controladoras das grandes estruturas
empresariais. Na verdade vemos socie-
dades anônimas que se entrelaçam
para formar complexos econômicos
sujeitos a uma sociedade por cotas de
responsabilidade limitada.
Por todas essas razões foi dada
uma nova estrutura, bem mais ampla
e diversificada, ao instituto da socieda-
de por cotas de responsabilidade limi-
tada, sendo certo que a lei especial em
vigor está completamente ultrapassa-
da, achando-se a matéria regida se-
gundo princípios de doutrina e à luz
de decisões jurisprudenciais. A propó-
sito desse assunto, para mostrar o cui-
dado que tivemos em atender à Cons-
tituição, lembro que a lei atual sobre
sociedades por cotas de responsabili-
dade limitada permite que se expulse
um sócio que esteja causando danos
à empresa, bastando para tanto mera
decisão majoritária. Fui dos primeiros
juristas a exigir que se respeitasse o
princípio da justa causa, entendendo
que a faculdade de expulsar o sócio
nocivo devia estar prevista no contra-
to, sem o que haveria mero predomí-
nio da maioria. Ora, a Constituição atual
declara no art. 5º que ninguém pode
ser privado de sua liberdade e de seus
bens sem o devido processo legal e
sem o devido contraditório. Em razão
desses dois princípios constitucionais,
mantivemos a possibilidade da elimi-
nação do sócio prejudicial, que esteja
causando dano à sociedade, locuple-
tando-se, às vezes, à custa do
patrimônio social, mas lhe assegura-
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FláviaHolz
Highlight
DIREITO DE FAMÍLIA
LUIZ EDSON FACHIN
Lembro-me de uma recente con-ferência, no ano passado, pro-ferida por José Saramago na Fa-
culdade de Direito da Universidade de
Coimbra, designada “O Direito e os Si-
nos”. Contou Saramago que, ao final
do século XIII, numa pequena aldeia
ao redor de Florença, numa certa ma-
nhã, um camponês pôs-se, desespera-
damente, a tocar o sino da igreja e isso,
usualmente, representava o nascimen-
to ou o falecimento de alguém, assim
não se sabia a razão pela qual aquele
sino dobrava-se insistentemente: se al-
guém havia nascido ou morrido. Os si-
nos tocaram tanto que o povo acorreu
para a igreja, para saber, de fato, o que
se passava. Quando toda a população
daquela aldeia se encontrava à frente
da porta de entrada da pequena igre-
ja, o camponês parou de tocar e, per-
guntado por que o fazia com tanta in-
sistência, ele respondeu: estou tocan-
do sinos, porque o Direito morreu. As
pessoas questionavam que sentença
tão dura era essa vinda de uma pes-
soa tão humilde. O camponês narrou
um episódio que havia, ao final, redun-
dado na perda de seus bens, de sua
família e um conjunto de fatalidades e
tragédias, que o levaram a concluir que
o Direito havia morrido.
Recupero essa pequena passa-
gem para dizer que, se hoje, no Brasil,
mutatis mutandis deste pequeno exem-
plo figurativo, olharmos o Direito de
Família do início e final do século XX,
posso-lhes atestar que, se os sinos do-
bram, fazem-no para anunciar não a
morte do Direito, mas, sim, o nasci-
mento de um novo, expressivo e signi-
ficativo Direito de Família, consentâneo
com as perplexidades e os paradoxos
que a sociedade brasileira vive neste
momento.
Tivemos uma transformação
fundamental, ao lado do Código Civil
brasileiro, à margem do sistema famili-
ar codificado, que foi gradativamente
construída na legislação esparsa, às
vezes, com cistos, diáteses e alguns
desvios próprios da produção
legislativa dispersa e, sobretudo, por
uma jurisprudência expressiva, que, na
seara do Direito de Família, trouxe ao
Brasil uma contribuição fundamental
para erigir um conjunto novo de prin-
cípios e regras, como, também, por
uma produção doutrinária, uma ativi-
dade intelectual expressiva, que assim
se realizou.
Basta assinalar que, no come-
ço desteséculo, no momento em que
entrou em vigor o Código Civil brasilei-
ro – ainda vigente –, tínhamos um mo-
delo de família regulado juridicamen-
te, assentado em quatro pontos funda-
mentais, que, no final deste século,
sofreu uma transformação sensível.
Tínhamos o governo jurídico de uma
família exclusivamente
Série Cadernos do CEJ, 20
matrimonializada, hierarquizada,
transpessoal e de natureza patriarcal
como o modelo da grande família com
um número expressivo de filhos. Esse
modelo, oitenta, noventa anos depois,
cede espaço a um texto constitucional
que mantém o casamento, seguramen-
te, como fonte das relações familiares,
mas retira-lhe a exclusividade, para re-
conhecer que também há família quan-
do não há casamento, que o direito de
casar corresponde também ao direito
de não casar ou não permanecer ca-
sado, e para recuperar as relações fa-
miliares ex maritalis, dando sentido à
família como uma comunhão de vida,
uma história que se escreve a quatro
mãos e tem, na sua dimensão sócio-
afetiva, uma relação que transcende o
vínculo formal.
O aspecto hierarquizado, à luz
dos valores deste início de século, fa-
zia fundar a estrutura familiar na lei da
desigualdade, porque desiguais eram
os papéis e as funções dentro da famí-
lia: os papéis e as funções do marido,
da mulher e dos filhos tidos dentro e
fora do casamento. Para os filhos tidos
fora do casamento, o art. 358 do Códi-
go Civil, em verdade, criava uma lei de
interdição, não permitindo que, embo-
ra filhos fossem, do ponto de vista bio-
lógico, consangüíneos, não podiam
realizar o direito de declarar a sua pa-
ternidade, porque o pai estava casado
com outra mulher, que não era a mãe
daquela criança. Essa desigualdade
injustificada cede espaço à lei de igual-
dade. A direção unitária da família cede
espaço à direção diárquica, aberta e
compartilhada.
Além disso, os outros aspectos
do patriarcalismo e da visão
transpessoal da família levaram alguns
juristas a sustentarem com muita ênfa-
se tratar a família de uma pessoa jurí-
dica, o que dá margem a uma visão
eudemonista da família. Há muito tem-
po Andrey Michelle disse: A família não
é uma instituição que se explica por si
só, mas se explica à medida que se
realizam as aspirações de cada um dos
membros que dela participam, com a
realização mínima da felicidade possí-
vel.
Essa visão, que se designa de
eudemonista, compreende também
esse aspecto sócio-afetivo, aliás, mui-
to bem tratado em um trabalho pionei-
ro e exemplar do Prof. João Baptista
Villela, designado “A Desbiologização
da Filiação no Brasil”.
Por isso, quando lhes pergun-
tei, no início, se os sinos hão de do-
brar, respondo-lhes que sim, quer quei-
ramos ou não, para o nascimento de
um novo Direito de Família, que ainda
não se instalou por completo, que ain-
da faz surtir perplexidades e também
paradoxos de um conjunto de fatos
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
que nesta seara mexe com alguns va-
lores fundamentais desse microcosmo
estrutural da nossa sociedade, que,
sem dúvida nenhuma, é a família.
Para posicionarmos essa evo-
lução, há de se formular uma pergun-
ta introdutória e a ela procuraremos
dirigir alguma resposta. Para suportar
essa evolução ao largo da codificação
civil, na Constituição, na legislação
esparsa, na jurisprudência e na doutri-
na, para se dar conta desta configura-
ção jurídica, a resposta está em ado-
tarmos uma nova codificação? Ou a
resposta está em reconhecer-se que,
neste momento, antes de pensarmos
em uma nova codificação, será neces-
sário verificar, com efeito, para que e
para quem essa codificação está sen-
do realizada? Quiçá, na virada deste
século, também estejamos na dobra da
constituição de um novo desenho jurí-
dico da família no Brasil, desenho este
cujos contornos e conteúdo não fize-
ram ainda emergir uma disciplina jurí-
dica clara e efetiva que reclame e me-
reça estabilidade. Será, portanto, que,
nessa quadra de valores em transfor-
mação, a resposta de uma codificação
é a resposta que soa mais adequada a
tanto? Essa é a pergunta que vamos
procurar responder; mas, para tanto,
é necessário antes aprofundá-la, para
não encontrarmos uma resposta mui-
to simples, porque estamos entre aque-
les que não vêem, no debate sobre a
codificação, uma percepção
maniqueísta entre o sim e o não, mas
uma questão anterior, que antecede à
dimensão própria da codificação, co-
locando em questão a possibilidade de
se aprofundar o momento histórico e
cultural em que vivemos, e, a partir
desse aprofundamento, verificarmos
se é o momento de codificar ou não
as relações jurídico-familiares. É preci-
so, talvez, apontar cinco aspectos que
se nos afiguram como fundamentais,
para revelar a passagem do tradicional
ao contemporâneo, da família do Có-
digo à família da Constituição, para que
possamos, aí, em face desses cinco as-
pectos, dessa passagem, enfrentarmos
a pergunta formulada.
O primeiro desses aspectos é a
transformação que houve e que desig-
namos como uma espécie de virada
de Copérnico, em termos da lei funda-
mental da família: o Código Civil vigen-
te, ao tempo em que entrou em vigor,
constitui-se indubitavelmente na lei fun-
damental reguladora das relações jurí-
dico-familiares. Esse lugar central ocu-
pado pelo Código está hoje
indisfarçavelmente ocupado pela Cons-
tituição. O Direito de Família brasileiro
contemporâneo é um Direito
constitucionalizado, quer nas regras,
quer nos princípios, porque princípios
e regras compõem a categoria das nor-
mas. Por isso, o princípio constitucio-
nal é norma vinculante, portanto, não
Série Cadernos do CEJ, 20
necessitando, em nosso modo de ver,
da mediação do legislador ordinário
para a aplicação direta e imediata nas
relações interprivadas. Daí porque,
com base nessa perspectiva da eficá-
cia direta e imediata do texto constitu-
cional principiológico ou regulamentar,
entendemos que houve uma mudan-
ça no núcleo da regulação jurídica da
família, antes ocupado pelo Código Ci-
vil e hoje ocupado pela Constituição,
que, de algum modo fez uma espécie
de macrocodificação, porque detalhou
alguns aspectos, como prazo para a
conversão da separação em divórcio,
o que poderíamos dizer que são aspec-
tos próprios da legislação
infraconstitucional. De qualquer sorte,
constitucionalizou-se um conjunto ex-
pressivo de princípios e regras, a partir
do art. 226 da Constituição Federal,
atinentes à família. É por isso que fala-
mos em virada de Copérnico, porque
precisamente nessa órbita celeste dos
astros jurídicos o que estava ao centro
fica à margem, e o centro é o culpado
pela Constituição Federal. Ao contrá-
rio do que se dizia, no início do sécu-
lo, que a Constituição deveria ser lida
à luz do Código, diz-se hoje que o Có-
digo Civil há de ser lido à luz da Consti-
tuição. Esse é o primeiro aspecto de
uma transformação que nos parece
relevante.
A segunda dimensão a pontuar
nessa mudança é a alteração atinente
à estrutura jurídica da família. Eviden-
temente que, do ponto de vista do
modelo jurídico da família, à luz da
partida dessa travessia e do Código Ci-
vil, tínhamos seguramente um modelo
unitário, um modelo exclusivamente
matrimonial. Os filhos eram os tidos
dentro do casamento, e, portanto, o
regime jurídico do Código associava ao
casamento essa legitimidade. Por essa
razão, o Código negava a possibilida-
de do reconhecimento dos filhos
adulterinos, preceito felizmente derru-
bado pela legislação posterior e pela
jurisprudência,que foi decidindo de
modo diverso. De qualquer sorte, as-
sociando a legitimidade dos filhos ao
casamento, o Código instituiu uma proi-
bição que, não obstante discriminatória
e injusta, constituindo, a rigor, um pre-
ceito de exclusão, não admitia o reco-
nhecimento dos filhos ilegítimos.
A alteração que se deu com a
mudança dos valores da cultura e da
história sai dessa razão unitária da fa-
mília e alcança, hoje, um modelo plu-
ral. Seguramente o legislador constitu-
cional no Direito Constitucional de Fa-
mília deu um lugar central à família
matrimonializada, deu um lugar central
ao casamento, mas não lhe deu um
lugar de fonte exclusiva das relações
familiares. Daí por que saímos de uma
visão unitária para uma dimensão plu-
ral da família; saímos daquela percep-
ção transpessoal, em que os interes-
ses da instituição estavam acima do in-
teresse dos membros que a compu-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
nham, para uma visão eudemonista em
que o que conta na família é, funda-
mentalmente, o conjunto dos interes-
ses dos membros que a compõem e o
direito de cada um deles de realização
pessoal e afetiva. Aliás, isso não se tra-
ta apenas de uma formulação teórica,
mas é por isso que, em uma contribui-
ção exemplar, o Superior Tribunal de
Justiça, logo após a sua criação, co-
meça a admitir o ajuizamento da ação
de investigação de paternidade, inde-
pendentemente do estado civil do
genitor, porque começou a considerar
menos o estado civil do genitor que
poderia estar casado com outra mu-
lher que não a mãe da criança, levan-
do menos em conta, portanto, o que
dizia em 1929, na sua tese de cátedra,
em Recife, Soreano Neto, que era fun-
damental a paz da família, ainda que
para isso fosse necessária uma menti-
ra jurídica. Ao contrário disso, verifi-
cou-se que a paz da família também
deve, antes de mais nada, atender ao
direito legítimo, fundamental, que é o
direito de revelar a paternidade. Nesse
sentido, operou-se essa mudança de
estrutura da família unitária para uma
família de natureza plural.
No terceiro aspecto, que tam-
bém nos soa relevante – no segundo
mencionei uma alteração estrutural –,
observo uma alteração de natureza fun-
cional. A função básica da família co-
dificada, moldada no desenho jurídico
de um País agrário, da grande família,
numerosa, concentrada na necessida-
de até mesmo de mão-de-obra, que
representava uma unidade econômica,
esse modelo originário, que era a rigor
uma unidade de produção, ao final
deste século perde essa característica.
Hoje, do ponto de vista econômico, a
família é quase praticamente uma uni-
dade de consumo. Mais importante do
que isso, o que acentua o conjunto dos
laços familiares ao final deste século é
a possibilidade de salientar nas rela-
ções familiares a valorização
socioafetiva, ou seja, o que dá sentido
à unidade familiar é precisamente cons-
tituir um mínimo de refúgio afetivo, de
intercâmbio afetivo que, mais além do
que a verdade de sangue, embora não
a desconsidere, mais além do que a
consangüinidade, funde uma razão de
ser que une homem e mulher, que une
os pais e os filhos e estes entre si. Nes-
sa medida, portanto, a família perde sua
dimensão econômica como unidade,
mas ganha, por meio do
redimensionamento da afectio, uma
nova função.
No quarto aspecto há uma mu-
dança estrutural no sistema da filiação.
O sistema originário da filiação é, como
disse Guilherme de Oliveira, professor
da Faculdade de Direito da Universida-
de de Coimbra, em um belo trabalho
sobre essa matéria: O critério originá-
rio do nosso Código, que era, também,
Série Cadernos do CEJ, 20
o critério originário do antigo Código
Civil Português, era nupcial; filhos eram
os filhos tidos dentro do casamento.
Os filhos tidos fora do casamento, do
ponto de vista jurídico, não eram filhos.
Aliás, esse é um dos maiores exemplos,
na área da filosofia, tomado por Karl
Engisch na sua obra Introdução ao Pen-
samento Jurídico para dizer como o
Direito e a vida, às vezes, podem an-
dar apartados. Nessa dimensão origi-
nária, o critério nupcial da filiação
correspondia, portanto, a uma frontei-
ra que estabelecia limites na possibili-
dade do reconhecimento forçado ou
voluntário da filiação.
Esse critério nupcial, no trans-
curso do tradicional ao contemporâ-
neo, cede passos a alguns problemas
de grandes paradoxos, mas, de qual-
quer sorte, ao que se designa de crité-
rio biologista da filiação. Hoje, pratica-
mente não há limites para a determi-
nação da verdade biológica. Talvez, aí,
estejamos diante de um dos pontos in-
teressantes para pensarmos se de fato
é esse o modelo adequado.
Há exemplos significativos na ju-
risprudência do Supremo Tribunal Fe-
deral, antes de 1988, sobre essa maté-
ria, especificamente na parte em que
se revela a necessidade de o Brasil de-
bater e a comunidade jurídica
aprofundar o valor jurídico da posse
do estado do filho como um elemento
de equilíbrio entre a exacerbação da
verdade de sangue e a valorização da
dimensão sócio-afetiva da filiação. Há
de se considerar um caso
paradigmático julgado no meu Estado,
Paraná, e depois apreciado em última
instância, à época, pelo Supremo Tri-
bunal Federal que, em determinada
hipótese, marido e mulher, em face de
uma desavença que tiveram, separam-
se transitoriamente por três a quatro
meses; passado esse período, a mu-
lher retorna ao lar, e o casal reconcilia-
se, vivendo juntos por mais 25 anos;
nasce uma criança, que, obviamente,
recebe o patronímico do marido, seu
pressuposto pai que não apenas dá-
lhe o nome, como, também, o trata-
mento que normalmente os pais pro-
curam dar aos filhos: a educação, o
afeto, a formação moral. Vinte e cinco
anos depois o pai falece, e a mãe reve-
la para aquela criança – já adulta e com
plena capacidade jurídica para decidir
o que fazer, inclusive ajuizar uma in-
vestigação de paternidade – que o pai
biológico não era o seu marido, mas
um terceiro, curiosamente detentor de
largas posses patrimoniais. Seguramen-
te, a questão acaba em uma investiga-
ção de paternidade, que o juiz de pri-
meiro grau de uma das Varas de
Curitiba julgou carecedora de ação,
porque levou em conta, nesse caso, o
sistema do Código Civil, que previa a
legitimidade exclusiva do marido para
impugnar os filhos tidos pela mulher
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
casada, hoje derrubada pela jurispru-
dência e também pela legislação pos-
terior ao Código. O juiz, vinculado ao
Código Civil, julga preliminarmente pela
carência da ação, e o Tribunal de Jus-
tiça do Paraná reforma a decisão, de-
terminando a realização da perícia para
comprovar se há ou não descendên-
cia consangüínea em relação ao outro
homem. A matéria vai ao Supremo Tri-
bunal Federal que confirma a decisão
do Tribunal. Faz-se a perícia e consta-
ta-se o óbvio: que o pai biológico des-
sa pessoa, ainda vivo, era esse tercei-
ro, e não o marido da mãe. Determina-
se a nulidade do registro como que se
passando uma borracha durante os 25
anos, e, em seguida, torna-se, do pon-
to de vista patrimonial, um herdeiro e,
do ponto de vista do estado da pes-
soa, filho de outro que não o marido
da mãe. Esse é um exemplo que se
colhe da jurisprudência para colocar-
nos a pensar sobre o valor jurídico da
declaração biológica e que, em algu-
mas hipóteses, talvez deva ser equili-
brado com a noção de posse de esta-
do de filho, para saber se o biologismo
dos dias correntes – que torna, na in-
vestigaçãode paternidade, praticamen-
te os filhos como filhos do laudo, que
constata pelos modernos exames a
descendência – é um caminho a pros-
seguir ou que mereça um
aprofundamento.
Sem embargos, o avanço dos
exames médicos foi de uma importân-
cia transcendental, especialmente para
as mães solteiras que buscavam a in-
vestigação de paternidade, porque co-
locou por terra um argumento veicula-
do exceptio plurium concumbentium
que, ao invés de debater a origem ou
não da filiação, acabava colocando em
questão a suposta honorabilidade da
conduta da mulher em uma orientação
discriminatória, injustificável em rela-
ção à condição feminina. Nisso os exa-
mes trouxeram uma contribuição
exemplar.
De qualquer modo, para resu-
mir este quarto aspecto, saímos de uma
visão nupcial – em que a filiação
extramatrimonial não poderia ser reco-
nhecida – para um critério biologista,
em relação ao qual, nesta quadra em
que vive o Brasil, praticamente, não há
limites, embora haja também um gran-
de debate sobre a condução compul-
sória ou não para a extração do mate-
rial e a realização do respectivo exa-
me. De qualquer sorte, estamos sain-
do de um sistema rígido, marchando
para um outro que se está edificando,
pela força construtiva da jurisprudên-
cia, pela produção doutrinária e por
alguma legislação que, neste aspecto
específico, não tem trazido relevante
contribuição.
O quinto e último aspecto a
mencionar nesta travessia que estou a
referir-me é uma mudança do ponto
de vista dos conceitos nucleares no
Série Cadernos do CEJ, 20
Direito de Família. Em outras palavras,
à luz do sistema do Código Civil brasi-
leiro, ao designarmos pai e mãe, o Có-
digo sabe com segurança a quem
estamos nos referindo.
Nos dias correntes, ao afirmar-
mos o brocardo mater semper certa
est, um ponto de interrogação já cabe
ao final, porque, diante dos mecanis-
mos da engenharia genética e da ges-
tação em favor de outrem, a vulgar-
mente designada barriga de aluguel, a
gravidez não é, por si só, mais uma
prova visível da maternidade. Aliás,
essa é uma das circunstâncias que no
Brasil tem passado à margem de um
rigoroso controle público; o Judiciário
já tem recebido demandas que colo-
cam em xeque todos os direitos
personalíssimos, como a cessão des-
sa parte do corpo, o útero da mulher,
para a gestação em favor de outro.
Esse é também um dos para-
doxos que leva da univocidade
conceitual de maternidade a uma
equivocidade ou seja, uma possibilida-
de de uma fragmentação dessas defi-
nições que não representam mais de
uma maneira monolítica, unitária, uma
verdade segura e clara, tal como é.
No tocante à paternidade, tam-
bém assim se passa. Menciono, rapi-
damente, um caso exemplar – o Bra-
sil, talvez, ainda não tenha tido um caso
tão paradoxal como o que foi julgado
em uma Corte ao sul da França, não
faz muito tempo: uma criança poderia
ter, simultaneamente, três pais. O fato
se passou, em síntese, da seguinte
maneira: marido e mulher separados
de fato; a mulher passa a viver com
outro homem, que é estéril. Desejan-
do ser mãe, ela vai a um banco de
material genético – como se sabe, na
França, ao contrário do Brasil, o con-
trole do Estado sobre o material gené-
tico é efetivo –, e é inseminada artifici-
almente com o material genético de
outro homem. Durante o período de
gravidez, o companheiro promove em
juízo uma ação declaratória de
inexistência de vínculo paternal para
dizer o seguinte: “O meu relacionamen-
to com esta mulher acabou, e o pai da
criança que vai nascer não sou eu.”
Ou o pai é o marido, porque ainda es-
tão formalmente casados, e incide a
presunção pater is est, ou o pai é aque-
le que deu o material genético, porque
biologicamente a criança descende
dele. Como a criança ainda não nas-
ceu, não se forma o trinômio: nomine,
intractatus e fama, que seria, em tese,
necessário para configurar o efeito
constitutivo da posse de estado de fi-
lho e atribuir-lhe a paternidade.
O tribunal colocou-se, portan-
to, diante desse dilema, em tese. Aque-
le nascituro, que mal sabia, no confor-
to do útero materno, o que lhe espera-
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
va em vida, poderia, em tese, ter três
pais. Se fosse possível configurar a
posse de estado de filho desde a con-
cepção e não desde o nascimento,
quiçá o companheiro poderia ser ele-
vado à condição de pai socioafetivo,
especialmente, se fosse demonstrado
que ele houvera previamente consen-
tido com a inseminação artificial. Esse
consentimento prévio é uma declara-
ção prévia da assunção da paternida-
de, o que, no caso, não ficou clara-
mente comprovado. Se assim fosse,
poderia ele ser o pai socioafetivo da
mesma forma que essa criança terá,
ou teria, ou teve um pai biológico, cuja
paternidade não pode ser declarada,
porque, nas legislações que já se pro-
nunciaram sobre esse tema, França,
Suíça e Portugal, não é possível a in-
vestigação de paternidade quando se
trata do doador de material genético,
havendo uma interdição a essa revela-
ção.
No Brasil, já há quem sustente
a possibilidade da declaração da ascen-
dência biológica mesmo quando se tra-
tar do doador de material genético, não
apenas para efeito de verificação de
questões atinentes à saúde, mas para
a realização de um direito fundamen-
tal: o direito de conhecer o seu ascen-
dente genético, sem que isso traga vín-
culo patrimonial ou sucessório de na-
tureza alguma. De qualquer sorte, na
França tal não seria possível.
Portanto, se o companheiro não
pode ser pai socioafetivo, porque não
se provou os elementos da posse do
estado, se o doador do material gené-
tico não pode ser declarado pai bioló-
gico, restaria atribuir paternidade ao
marido com o qual a mulher ainda es-
tava casada formalmente, porém sepa-
rada de fato. Acontece que, na Fran-
ça, pela reforma da legislação france-
sa da filiação, de 1973, tomba, auto-
maticamente, a presunção pater is est
quando a filiação não é verossímil. Não
era verossímil que o marido fosse o pai,
porque, certamente, pelas circunstân-
cias dos fatos notórios ali existentes,
não conviviam à época da concepção
e, portanto, ausente a presunção de
coabitação, o que faz tombar, cair, au-
tomaticamente, a presunção de pater-
nidade. Resultado: a criança nasceu e
não tem pai, mas, em tese, poderia ter
tido três pais nessa dimensão.
Este exemplo, publicado no re-
pertório de jurisprudência francesa no
final do ano de 1998, é apenas para
significar o último aspecto que menci-
onei: a mudança dos conceitos da
univocidade para a equivocidade. Se
hoje perguntamos quem é a mãe, tam-
bém há lugar para perguntarmos quem
é o pai. Essa pergunta não tem mais
uma resposta fácil e simples, não por-
que o queiramos, mas porque assim
os fatos contemporâneos, com essa
Série Cadernos do CEJ, 20
velocidade extraordinária, estão a ge-
rar.
Esses cinco aspectos, dentre
tantos outros, são suficientes para nos
revelar as repercussões que toda esta
matéria teve e está tendo na doutrina,
no ensino e na jurisprudência.
Em matéria de jurisprudência,
cito como exemplo um acórdão, já de
algum tempo, que mostra a orientação
que o Superior Tribunal de Justiça deu
a esse tema em setembro de 1991, no
Recurso Especial n. 7.631, Relator o
Ministro Sálvio de Figueiredo: Em face
da nova ordem constitucional que abri-
ga o princípio da igualdade jurídica dos
filhos, possível é o ajuizamento de ação
investigatória contra genitor casado.
Naquele momento, deixou-se à
margem osistema originário do Códi-
go Civil brasileiro. Aplicava-se o texto
constitucional do princípio da igualda-
de entre todos os filhos. O acórdão di-
zia mais: Em se tratando de direitos fun-
damentais de proteção à família e à
filiação, os preceitos constitucionais
devem merecer exegese construtiva
que repudie discriminações incompa-
tíveis com o desenvolvimento social e
a evolução jurídica.
A evolução da jurisprudência,
os paradoxos dos fatos, toda essa rea-
lidade que estamos a viver, encontram,
agora, como proposta de sua
regulação, o Projeto do Código Civil. A
pergunta é se tal Projeto suporta tanta
complexidade. A resposta, no meu sen-
tir, que se pode sustentar, é que, à luz
dessas questões, o Projeto não conse-
gue suportar todos os aspectos aqui
suscitados.
É bem verdade que, em maté-
ria de família, o Senado Federal – e é
notável o esforço do Senador Josaphat
Marinho – deu um largo, expressivo e
positivo passo quando o Projeto lá es-
teve e foi aprovado em novembro de
1997. Basta ver o conjunto de altera-
ções introduzidas no Senado Federal
como, por exemplo, o estabelecimen-
to da igualdade de direitos entre o ho-
mem e a mulher, que está no Projeto;
a substituição do instituto do pátrio
poder pelo assim chamado “poder ma-
rital”; o reconhecimento da união está-
vel, acabando-se, segundo sustenta o
Senador Josaphat Marinho, com a dis-
tinção entre todos os filhos; a obriga-
ção dos ascendentes do adotante re-
conhecerem o adotado, que tem iguais
parentes; o dever de alimentos que é
mais elastecido; o aumento da idade
para a imposição do regime legal da
separação de bens, evitando a distin-
ção injustificável entre o homem e a
mulher existente atualmente no Códi-
go Civil brasileiro.
Essas alterações estão no Livro
IV, a partir do art. 1.510 do Projeto,
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
que, com a redação que saiu do Sena-
do Federal, encontra-se, agora, tal
como foi publicado no Diário da Câ-
mara dos Deputados em 05 de feverei-
ro de 1998, sendo examinado por uma
Comissão Especial. O Relator da parte
de família é o Deputado Antônio Carlos
Biscaia, ex-Procurador da República,
que trata desse tema e que procura
evidenciar alguns desses paradoxos, os
quais completam o estudo desse capí-
tulo do Livro de Direito de Família, com-
posto por 285 artigos.
A estrutura básica do Projeto
está em dividir o Direito de Família em
Direito Pessoal e, depois, em Direito
Patrimonial. O Direito Pessoal cuida,
evidentemente, das relações familiares
de base, e o Direito Patrimonial, do re-
gime de bens e de um conjunto espe-
cífico de questões atinentes ao Direito
de Família.
Para exemplificar as dificulda-
des que tem o Projeto, cito, rapidamen-
te, sem embargo desses elogios que
fiz – e o Projeto no Senado assim o
merece –, alguns aspectos que susci-
tam alguma perplexidade:
O art. 1.626 diz: Não se permi-
te a investigação de maternidade quan-
do tenha por fim atribuir à mulher ca-
sada filho havido fora da sociedade
conjugal.
Se, de um lado, temos a pro-
clamação de que houve nesse Projeto
um reconhecimento do princípio da
igualdade dos filhos, esse dispositivo,
referindo-se à maternidade, cria uma
diferença com a possibilidade dos fi-
lhos do marido serem reconhecidos,
porquanto tal propabilidade não se atri-
bui aos filhos tidos fora do casamento
pela mulher.
Acrescentando, diz o parágra-
fo único: Admite-se a investigação de-
pois de dissolvida a sociedade conju-
gal ou depois de um ano de separação
ininterrupta do casal devidamente com-
provada.
Parece-nos que esse é um dis-
positivo que arrosta o princípio funcio-
nal da igualdade.
Do art. 1.588, pinçarei, rapida-
mente alguns exemplos: Sendo judici-
al a separação, ficarão os filhos me-
nores com o cônjuge inocente.
Traduz o Projeto o grande de-
bate fincado na superação da dimen-
são subjetiva das separações e no di-
vórcio. Cada vez se leva menos em
conta essa inferência da culpa, da res-
ponsabilidade para o efeito da separa-
ção. O Projeto se mantém nessa medi-
da, até porque, como sabemos, origi-
nariamente, foi realizado pela Comis-
são no começo dos anos 70 – na parte
de família, teve a brilhante participação
do Prof. Clóvis do Couto e Silva, da Fa-
Série Cadernos do CEJ, 20
culdade de Direito da Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Sul –, à luz de
um conjunto de valores anteriores à
Constituição e ao próprio desenvolvi-
mento jurisprudencial que se deu ex-
pressivamente com a criação do Su-
perior Tribunal de Justiça.
Ademais, em um outro disposi-
tivo, cita: Cabe ao marido o direito de
contestar a paternidade dos filhos nas-
cidos de sua mulher.
Até a expressão “contestar” já
é uma demonstração daquilo que os
processualistas civis de algum tempo,
e com alguma razão, suscitam: a im-
propriedade técnica, mas o problema
está na impropriedade substancial,
embora se tenha retirado o vocábulo
“legitimidade exclusiva”. Não há a in-
trodução da posse do estado de filho;
substitui a expressão “pátrio poder”
pela expressão “poder familiar”; des-
conhece a evolução do pátrio poder
para o dever familiar e que a expres-
são adotada na moderna teoria de fa-
mília é “autoridade parental”. De fato,
os pais, no exercício das suas funções,
inclusive a de colocar limites aos seus
filhos, deverão sempre exercer a auto-
ridade parental. Quando os pais, os
adultos – há muito já se diz –, educam
os filhos, também se educam. Nesse
sentido, portanto, não há um pátrio
poder; há, na verdade, um pátrio de-
ver, ou uma autoridade parental que
constrói uma via de mão dupla.
Enfim, um conjunto de circuns-
tâncias que nos leva a pensar se, de
fato, há resposta para esses paradoxos
que apontamos e se essas mudanças
estão neste Projeto. Há quem entenda
que não se deve cogitar sequer da
codificação. O tempo das codificações
já encontrou o seu ocaso. Há, assim,
já na Itália, todo o trabalho de Natalino
Irte e, mais tarde, de Pedro Barccelloni
e de tantos outros autores que susci-
tam a criação dos microssistemas e a
decodificação do Direito, um dos fe-
nômenos pelos quais estamos a pas-
sar. Além disso, se há essa discussão
geral, própria do Código impugnado –
e dentre nós, há um trabalho expressi-
vo nesse sentido do Prof. Francisco
Amaral, criticando a própria idéia de
uma nova codificação –, a questão está
em saber se, vencida essa etapa, este
Projeto daria conta da realidade. La-
mentavelmente, no nosso sentimento,
se algumas alterações expressivas não
forem introduzidas, teremos um Proje-
to aquém da Constituição de 1988.
Por isso, neste momento, a Co-
missão Especial na Câmara dos Depu-
tados cuida da possibilidade regimen-
tal de se ampliar a cognição restrita que
o Poder Legislativo tem quando retorna
do Senado Federal matéria não altera-
da por ele e que já houvera sido previ-
amente aprovada pela Câmara. Se isso
Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro
ocorrer, quiçá, poder-se-á colocar algu-
ma mudança expressiva nessa parte do
Direito de Família.
Porém, a pergunta que se nos
afigura mais relevante talvez seja a de
saber para que e para quem se pensa
uma codificação. Qual é a sua finalida-
de e quais são os seus destinatários?
Para qual família? Para qual desenho
jurídico, ao final deste século, deseja-
mos realizar um desenho que perceba
essa dimensão sócio-afetiva, que man-
tenha a família e a sua razão de ser,
mas que desamarre os nós, como dis-
se a historiadora francesa Michelle
Pierrot, que mantenha

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