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Que não igual outra vez-Newton Rodrigues

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QUE NÃO SEJA IGUAL, OUTRA VEZ – NEWTON RODRIGUES
“Deixe só eu fechar os olhos”, pediu Jesuíno, um garoto de 16 anos, antes de ser abatido, com seu amigo Carlos Alberto, de 13, por um feirante que os pilhou tentando furtar duas melancias. Não foi um repente: ambos foram postos no porta-malas de um carro, conduzidos a um terreno baldio e ali executados, friamente, em 1985, em São Paulo. Frio, também, foi o caseiro José Carlos Cavacanti ao informar a um amigo alguns meses depois: “Apaguei as crianças e joguei no canavial”. Eram Samuel, Ezequiel e Eliseu, de 7, 8 e 10 anos de idade, abatidos porque pegavam uma abóbora em certa chácara, do município de Sumaré.
Nenhum deles teve a frase final divulgada, antes de serem expulsos da vida que mal começavam. Foi assim também com Edinho, que só ia fazer 11 anos, e foi liquidado por um soldado, em Quitaúna, porque se aproximou da cerca do quartel, durante um passeio em que pretendia colher goiabas. Morreram todos mofinamente, da morte Severina que anualmente liquida milhares de crianças e adolescentes iguaizinhos a Sandro, assassinado com um tiro no rosto pelo japonês Ikemoto, quando tentava desembaraçar sua pipa do teto da Fábrica Atlântica.
São amostras da violência cotidiana, exercida sobretudo contra os mais indefesos. Quando aconteceram, já havia 26 milhões de menores sem nada, e o presidente que entrara pela porta de serviço, prometia “tudo pelo social”. Depois foi a vez de um moço chique, que nos iria transportar para o Primeiro Mundo no tapete mágico de suas lambanças. Durante esse tempo, e de então para cá, algo mudou, certamente. Mas para pior.
O massacre do Rio de Janeiro, em que estão implicados policiais militares, alguns já identificados, apesar da bestialidade de que se revestiu, compõe um cenário geral. Rio e São Paulo não têm o vergonhoso privilégio de ser exceção. Como os pecados capitais e as maravilhas do mundo, os jovens mortos na Candelária foram sete, também. Tiroteados numa caçada noturna, igual àquelas em que se abatem animais. Crianças alguns, adolescentes outros: com o Pimpolho, que ainda ia fazer 11 anos, o Careca, que chegara aos 14, e o Valdevino, que conseguia completar 17. A peculiaridade do crime foi o desembaraço com que tudo se cometeu, com anúncio preliminar, nas calçadas da igreja mais importante do Rio. Uma represália, sussurrarão, complacentes, os cúmplices espirituais da matança, alguns lamentando em silêncio, decerto, que tenham sobrado testemunhas capazes de reconhecer os sicários.
Não se pretende que os menores marginalizados sejam anjos do asfalto, mas a sociedade está sofrendo o que ela própria gerou, e só ela mesma poderá corrigir. Alguns deles, às vezes com doutorado nos falsos estabelecimentos assistenciais, formam seus próprios bandos, nos quais integrantes pivetes, fisicamente inferiorizados, podem ser mais perigosos que assaltantes adultos, porque chegam a atirar por medo. Os chefões do submundo não lhes concedem nenhuma complacência, como demonstrou o Bill, do Borel, que julgou e fez balear nas mãos 17 rapazes, 11 deles menores de idade, em novembro último. Outros se integram ao crime organizado, como olheiros, estafetas ou assaltantes ativos.
Os criminosos são, porém, acentuadamente minoritários, como revelam as estatísticas oficiais e os estudos mais responsáveis. Em sólida reportagem de Roldão Arruda, publicada neste mesmo jornal em julho de 1991, há fotos e pungentes biografias de 30 menores, a maioria deles sem antecedentes na criminalidade, assassinados na Grande São Paulo, em apenas um mês, por quadrilhas de matadores e bandos policiais. E um relatório da própria Polícia dava conta de que, no ano da mesma época, o Núcleo de Estudos da Violência da USP concluiu que a PM paulista atira para matar e que, nos nove anos anteriores, liquidara 3 563 criminosos ou suspeitos e ferira 1077. As safras cariocas e fluminenses nada ficam a dever, tendo sido a Baixada considerada pela ONU a zona mais violenta do mundo, mesmo quando rugia a guerra civil libanesa.
Apesar do insubstituível valor, as estatísticas amenizam os fatos, pois são peças inertes, mesmo quando quantificam os podridões sociais. Pois nem os mortos são algarismos, nem as perversidades se realizam nas cifras. As meninas prostitutas (30 mil só no Rio, em 1992; 500 mil no Brasil, segundo a Unicef), os garotos que integram a força de trabalho, sobretudo no campo, as multidões que vagueiam pelas ruas, são gente que não pediu para vir, mas tem o direito de ficar e crescer. As pesquisas, entretanto, confirmam que a degradação permanece e progride. Por exemplo, a população nordestina está sob a ameaça de ficar pigmeia e o Exército rejeita cada vez maior quantidade de jovens, porque não atendem aos requisitos físicos essenciais. Enquanto isso, a evasão escolar, onde pode ser apurada, revela que os índices de menores que somente estudam caem de 74% para 35% quando se passa da faixa de 10 a 14 anos para a de 15 a 17 anos, ao passo que os relativos aos que trabalham sobem, respectivamente, de 7,5% para 30,6%. Mas para que alinhar cifras de que, pelo menos já ouviram falar os que têm a responsabilidade de formular e dirigir uma política de recuperação.
Há um pomposo texto constitucional que só falta garantir o paraíso na Terra às crianças. Há um dourado estatuto de proteção que em nada alterou a realidade. Palavras, depois impressas, continuam a ser só palavras. Governos relativamente sensíveis chegaram a pôr em prática, quando muito, uma minipolítica auxiliar aos menores na rua. Mas o eixo da solução continua a ser retira-los dali, não em condições que reinstalem penitenciárias disfarçadas de educandários, e que provoquem violentas revoltas, como a que se deu na Febem do Tatuapé, em outubro, mas para lhes possibilitar um futuro que não termine nas balas dos Colts policiais, nem nas metralhadoras dos bandos de “justiceiros”.
O caminho exige cuidado com os demagogos e firmeza contra os que insistem na solução pelo retrocesso, ansiosos por uma drástica “solução final”. O Presidente da República assumiu publicamente uma responsabilidade que já lhe cabia e de que não se poderá desviar sem irrecuperável perda de respeitabilidade. Seu primeiro passo, que condicionará os seguintes, precisar ser a garantia de punição dos culpados, usando, se necessário, a lei para impedir que o corporativismo possa vencer, mais uma vez o clamor da sociedade. Os gesto de solidariedade no luto se extinguem comumente, depois do sétimo dia. Que não seja assim, desta vez. (RODRIGUES, Newton. “Que não seja igual, outra vez”. In: PILETTI, Nelson. Sociologia da Educação. 18. ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 239-242.)

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