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O que é Psicologia Comunitária

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l
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Maria Luiza Silveira Teles
Do fora da Clausura à
Clausura do Fora
Loucura e desrazão
Peter Pál Pelbart
Eras, Marias, Liliths...
As voltas ao feminino
Vera Paiva
Psicologia Social
O homem em movimento
Silvia Lane / W. Godo (org.
Tempo de Desejo
Sociologia e psicanálise
hU loisa Fernandes (org.)
Suicídio
Testemunhos do adeus
M:;ria Luiza Dia1-
O Triunfo da Terapêutica
Phillip Rieff
O que Neurose
Maria Luiza S. Teles
O que é Psicanálise
Fábio Herrmann
O que é Psicanálise
2? visão
O. Cesaroto/M. Leite
O que é Psícodrama
\Vilson C. de Almeida
O que é Psicologia
Maria Luiza S. Teles
O que é Psiquiatria
Alternativa
Alan I. Serrano
ÍC
Eduardo Mourão Vasconcelos
« w3 r \ Gn>,
*O
O QUE É
PSICOLOGIA
COMUNITÁRIA
f í P ç;u o u
editora brasiliense
\<
f f*
' Uj
£ W i
Copyright Ê by Eduardo Mourão Vasconcelos, 1935
Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada,
armazenada em sistemas eleirônicos, fotocopiada,
reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer
sem autorização prévia da editora.
Dados Iniernacionais de Catalogação na Publicação (cn>)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Vasconcelos, Eduardo Mourão.
O que é psicologia comunitária / Eduardo Mourão Vas-
concelos. — 1 . ed. — São Paulo : Brasiliense, 1985.
1. Pi-icolofíia ^ocial 1. Título
Psicoloeia comuni t á r i a 301 l
CDD-301.1
E D I T O R A BRASILIENSE S.A.
. \h:'quês r<V .SV° i cenie, 1771
(>! 1.1^-^03 — São i :ilo — SP
i-i.Hc l O i l } 861-3366 - l-'ax 861-30^4
Filiada à ALiDR.
ÍNDICE
A conquista do direito de ser feliz e sau-
dável 7
A crise da psicologia 16
As origens históricas da psicologia comu-
nitária 24
O cue é, afinal, a Psicologia Comunitária? . 37
Os locais de atuação da psicologia comu-
nitária 43
O psicólogo comunitário como profissional
de scúde e saúde mental 60
A^umas questões de fundo: saúde me ital,
cuitura, educação e técnicas psicológicas . . 83
Indicações para leitura 100
^
Si
• C
Quero agradecer a todos os que
incentivaram, colaboraram e tornaram
possível a realização deste ensaio. Entre
tantos, gostar/a de lembrar Sandrinha,
Mara, Mônica, Ana Rita, Bernardo,
Stella, Cecília, Georgina, Karin, meus
hermanos Eymard e William, e muito
especialmente Cristina Magro, pela revi-
são linguística.
A CONQUISTA DO DIREITO
DE SER FELIZ E SAUDÁVEL
Cerca de mil mulheres se acotovelam no
auditório. São participantes de grupos feministas
ou membros de grupos comunitários diversos da
periferia da cidade, ou simplesmente donas-de-casa,
mães, jovens estudantes, trabalhadoras. A polémica
está forte, várias falam, gritam ao mesmo tempo.
Assunto: as reivindicações das mulheres mineiras
e brasileiras hoje. Muitas discussões, vaias, aplausos.
A essa altura dos acontecimentos, a impressão
que se tem é de que a plenária final do l Encontro
da Mulher Mineira não vai conseguir fechar uma
plataforma unificada de íutas e atividades. Alguns
cios grupos militantes presentes queriam que
todas assumissem exclusivamente bandeiras tais
como "Constituinte livre e soberana", "Reforma
agrária radical", "Liberdade sindical'" entre
Eduardo Mourao Vasconcelos O que é Psicologia Comunitária
S<
r
outras. Para eles, lutar pela igualdade sexual ou
pela felicidade são todas reivindicações pequeno-
burguesas. Há uma oposição violenta, mas difusa
e desorganizada, a esse ponto de vista.
De repente, uma jovem da periferia arranca a
palavra, e se faz ouvir. Ê um depoimento vivo,
forte: "Eu luto sim. Por estas coisas grandes
aí, sim. To na minha associação de bairro. Luto
pela água, pelo transporte, pela liberdade. Mas
também sou mulher. Sofro no couro as violências
de um marido bruto. Morro de desejo de poder
ser mulher, ser feliz, ter prazer. Sei de minhas
amigas, minhas comadres. É a mesma coisa. Se num
vem pancada, é o peso dos filhos, da casa e do
trabalho, tudo sozinha. E essas coisas todas eu
não posso esperar, deixar pra depois, quando 35
coisas grandes mudarem. Eu quero ser feliz, e isso
não vou esperar, nenhuma de nós tem que esperar.
Nós temos uma luta nossa, de muíher. Pra já".
Ovação geral, aplausos. Não há mais clima na
assembleia para negar as reivindicações específicas
da condição de mulher, suas aspirações existenciais
ligadas ao cotidiano do trabalho, da relação entre
os sexos, da vida conjugal e sexual, da maternidade
e da educação dos filhos, etc.
Isso aconteceu em Belo Horizonte, há cíncc
anos. A meu ver, esse é um fato cheio de signifi-
cações. Ele ilustra como o movimento feminista
vem assumindo e colocando na rua, além das
grandes lutas pela mudança política e pelos anseios
Fica cada vez mais clara e explícita a necessidade do
bem-r\far, da felicidade dm pessoas, como uma expenda
social e global
10 Eduardo Mourão Vasconcelos
de igualdade económica e social entre os sexos,
várias das outras questões antes consideradas
pequenas, secundárias, ligadas à condição feminina,
às relações interpessoais e às identidades tanto
feminina como masculina.
Vamos recuar mais um pouco no tempo. Estamos
na periferia de Vitória, Espírito Santo, mais
exatamente em 1975, na região de Camp ; Grande.
A reunião do Círculo Bíblico da comunidade está
começando. São homens, mulheres, mais alguns
jovens e crianças, sentados em tábuas, caixotes e
tijolos. Após a leitura bíblica, a fase da reunião
destinada à discussão dos fatos da vida traz à tona
as preocupações de cada um:
Seu João falou sobre os problemas do trabalho
e do salário para a convivência da família. Mas a
conversa pegou mesmo com o assunto sugerido
pela dona Ana: as dificuldades de se educar os
fi lhos num mundo de muita confusão e mudança.
"Os pais podem bater nos filhos?", perguntou
c . Maria. "Como fazer com o filho que só sabe
fazer birra e não obedece?", desta vez interrogou
o sr. Lauro. E a busca de uma educação mais
libertadora foi o tema da noite. A maioria dos
f. resentes falou de suas dificuldades, trocou ideias
e sugestões.
Também naquela comunidade eclesi^ i de base,
os temas religiosos, sociais e políticos incorporam
a problemática existencial de cada família. A
educação dos filhos, a relação homem-mulher, o
O que é Psicologia Comunitária n
alcoolismo e tantos outros assuntos estão constan-
temente presentes. Não são mais menosprezados
em favor de outras discussões consideradas até
então as únicas ligadas à libertação de um povo,
nem vistos como isolados e independentes destes.
Voltemos a Belo Horizonte, em 1979. Chega à
cidade o psiquiatra italiano Franco Basaglia Ongaro,
considerado o maior expoente mundial na luta
pela libertação e humanização dos doentes mentais.
Até sua morte, em agosto de 1980, foi a principal
liderança do movimento de Psiquiatria Democrá-
tica, que após quase duas décadas vinha lutando
pela humanização dos manicômios, propondo
formas alternativas de atenção à saúde mental e
mobilizando a sociedade italiana em torno desses
assuntos.
A presença de Basagiia agitou a sociedade
mineira. A imprensa denunciou a situação dos
hospitais, foi feito o filme Em Nome da Razão
por Helvécio Ratton, um congresso de psiquiatria
se realizou em ineio a um clima de euforia e
revolta. Entidades preocupadas com a saúde
mental se reorganizaram e reforçaram sua ação.
O que existe de comum entre esses três fatos que
me faz reiatá-los assim paralelamente?
Acredito qut. a sociedade ocidental vem parti-
cipando desde os anos sessenta de um processo
gradativo de redefinição da saúde mental. Assim, á
cada vez mais clara a expíicitação da necessidade
da felicidade, do bern-estar das pessoas, como
12 Eduardo Mourão Vasconcelos
uma exigência social global e urgente, e não como
individual, privado, ou algo para o futuro, a ser
conquistado após as sonhadas mudanças políticas
e sociais.
Processos históricos como o movimentode
maio de 1968 na França e suas repercussões em
todo o Ocidente atestam isto. As palavras de ordem
falavam do desejo, da imaginação, da criatividade,
da autonomia incorporados à vida social. Os movi-
mentos de contracultura também mostram clara-
mente essa dimensão.
A questão da condição feminina, do homosse
xualísmo, do corpc e do prazer deixaram de ser
temas de cochichos proibidos e viraram assunto
do cotidiano das pessoas e dos meios de comu-
nicação.
A vertiginosa difusão de filosofias e formas de
vida alternativas, notadamente as de inspiração
oriental, atesta 3 busca, peia juventude, de propc..-
tas mais integrais e harmónicas de vida.
No movimento sindical, a saúde e o bem-estar do
trabalhador começam a ser temas de luta em
alguns países. Abre-se a c;:scussão sobre o orocesso
de trabalho, ou seja, como as fábricas es.ruturam
a relação do trabalhador cem a máquina, com . >
outros colegas de trabalho e com os postos de
vigilância e oireção. O objetivo é não só avaliar as
estratégias e relações de poder dentro da
empresa, como também reivindicar melhores
condições de saúde e saúde mental do trabalhador.
O que é Psicologia Comunitária 13
A antipsiquiatria como movimento social de
crítica às formas segregativas estimatizadoras de
se ver a "doença mental" também tem se difundido
enormemente. O movimento ecológico, ao mesmo
tempo que denuncia a devastação do meio am-
biente, vem mostrando a necessidade de uma
relação de respeito e amor à natureza como ele-
mento indispensável à vida humana feliz.
Como podemos interpretar tais acontecimentos
de processos históricos?
Na tradição da ciência política e do direito,
muito se fala na conquista gradativa da cidadania
na sociedade capitalista, ou seja, a difusão das
reivindicações em torno dos direitos civis, políticos
e sociais de todos nós enquanto pessoas humanas
e cidadãos, e o seu reconhecimento cada vez
mais generalizado.
A concepção de cidadania, porém, nunca foi
nem poderia ser algo estático. Cada fase da socie-
dade contemporânea foi incorporando a visão de
novos temas e direitos à luta pela libertação humana.
Esses terias foram emergindo como uma exigência
decorrente das condições de vida, das lutas, desejos
e utopias das pessoas e dos grupos sociais em cada
uma dessas etapas históricas. Há um outro aspecto
interessante sobre a questão da cidadania que
também vale a pena notar. As reivindicações
pelos direitos civis, políticos e sociais nunca
aparecem igualmente em iodas as classes e grupos
sociais oorimidos. É mais comum emergirem.
14 Eduardo Mourao Vasconcelos
"
inicialmente através de intelectuais, de lideranças e
de movimentos sociais específicos. Existe uma
espécie de vanguardeamento na defesa desses
direitos. São grupos que assumem "a frente" de
seu processo de conquista e reconhecimento
e, gradativamente, a consciência daquele aspecto
de cidadania vai ganhando adeptos em direcão
às grandes massas da população.
Assim, particularmente, acredito que a segunda
metade do século XX vem desfraldando uma nova
bandeira de reivindicações, vem inaugurando uma
nova faceta inerente à cidadania: o direito à saúde
mental, l soo significa que as grandes lutas sociais
em torno da participação política e das condições
materiais de vida e trabalho começam a incorporar
um aspecto — até então marginal — relativo ao
direito de ser feliz e saudável. Ou seja, reivindica-se
que na construção do novo mundo e da nova
sociedade, o trabalho, as estruturas sociais e
instituições que forem sendo criadas não sejam
burocráticas, alienadoras e castradoras. Que se :3m
incentivadas e exista espaço para a imaginação, a
criatividade, a arte, a afetividade. Que a sensibi-
lidade, o lúdico e o prazer não sejam apenas
momentos isolados e marginais na vida dos indi-
víduos. Que as relações entre as pessoas e os
sexos sejam solidárias, sem medo, igualitárias,
complementares, e não autoritárias, superficiais
ou simplesmente de consumo e de uso dos outros.
Você mesmo, leitor, poderá completar esse
O que é Psicologia Comunitária 15
quadro que tentei começar a esboçar. . . Acredito
que todos nós, de forma e intensidade diferentes,
hoje participamos deste movimento.
O direito à felicidade e à saúde mental significa
também ter acesso a serviços que permitam traba-
lhar as contradições, as repressões e violências que
fomos introjetando desde crianças, e que nos
aparecem através da angústia, do medo, da difi-
culdade de amar e de se relacionar com o mundo
e com os outros. Nesse momento, cabe-nos pergun-
tar então pela atual situação dos serviços de saúde
mental, prestados notadamente pelas instituições
ligadas ao exercício profissional da Psiquiatria e
Psicologia, e pelas suas pote ;cialidades.
Esse debate acerca da Psicologia atual inaugura
um campo do qual emergirá a Psicologia Comuni-
tária. Ela é uma das tentativas de se responder
a essa preocupação em se colocar a saúde mental
em uma perspectiva preventiva e inerente à vida
social. Ao mesmo tempo, ela visa atuar também
sobre as contradições internalizadas nas pessoas.
Você poderia argumentar, a respeito deste
segundo item, que a Psicologia que conhecemos
hoje já cumpre esse papel. No entanto, há algumas
diferenças. O que farei a seguir será analisar esse
quadro geral da Psicologia atual.
A CRISE DA PSICOLOGIA
Você provavelmente deve ter um amigo ou
conhecido recém-formado ou mesmo cursando os
últimos anos de uma faculdade de Psicologia.
Pergunte a ele como está o campo de trabalho para
os psicólogos que têm entrado no mercado nos
últimos anos. Na certa ele dirá que a situação
está muito ruim, que os psicólogos estão em sua
maioria desempregados ou subempregados, ou
trabalhando como bancários, auxiliares de escri-
tório, ou coisas assim. Provavelmente dirá também
que essa situação é a mesma para os demais profis-
sionais de nível universitário no Brasil.
É claro que existem aspectos comuns entre o
quadro da Psicologia e o das demais profissões;
o aumento do número de profissionais formados
em decorrência da prolne.-ação vertiginosa de
faculdades depois da reforma universitária de
O que é Psicologia Comunitária 17
1968 é um desses aspectos. A crise económica
pela qual passa o país é outro. Sabemos, por
exemplo, que a psicoterapia é um dos primeiros
itens a ser cortado dos orçamentos familiares
arrochados pela crise, sendo que a clínica tem sido
o principal campo de atuação do psicólogo no
Brasil.
Mas serão apenas esses aspectos gerais os únicos
responsáveis por essa profunda crise em que se
encontra a Psicologia atual? Assistimos apenas a
mais um desdobramento temporário da crise da
sociedade brasileira? Ou haverá outros aspectos
específicos, inerentes à própria Psicologia, por
detrás deste quadro crítico que nós, psicólogos,
estamos vivendo?
Eu acredito que sim. Vejamos. A Psicologia,
como a conhecemos, é uma profissão recente,
sendo reconhecida nos países ocidentais há pouco
mais de cem anos. Nasceu com a pretensão de ser
uma disciplina científica do mesmo tipo da Biologia
ou da Fisiologia, em um momento histórico em
que estas e outras ciências de base empírica deti-
nham enorme prestígio. Buscou abandonar a
Filosofia, à qual estava iigada até então, adotando
o modelo cientificista daquelas áreas do conhe-
cimento. Mas logo mostrou-se ser mais complexa
e heterogénea, tanto do ponto de vista teórico,
quanto em suas 3p'icacões concretas e sua prática
social.
No Brasil, a Psicoloqia é uma profissão mais
Eduardo Mourão Vasconcelos
recente ainda: sua regularização data de 1962.
Copiando tendências dominantes na Europa e
nos Estados Unidos na época, a forma de atuação
prioritária que orientou tanto a legislação profis-
sional quanto a formação dada nos cursos universi-
tários privilegia a clínica, através de consultório
individual. Assim, ela acompanhou a tendência
que vigorava até então em outras profissõescomo
a Medicina, conforme o modelo do profissional
liberal clássico.
Isso significa que á maioria dos psicólogos é
formada para sair do curso, montar um consul-
tório, buscar uma formação adicional sofisticada
e cara, porque a que teve no curso na"o é satisfa-
tória, e esperar uma clientela difusa lhe bater às
portas e pagar pelos seus serviços. O psicólogo vai
então atender a uma pequena clientela, formada
pela parcela da população mais privilegiada econó-
mica e culturalmente, de forma essencialmente
individual e curativa, quando o quadro "doentio"
já está instalado.
Entretanto, em sociedades em que o capitalismo
dos monopólios e grandes conglomerados empre-
sariais penetra com profundidade, todos os setores
da população tendem a se transformar em assala-
riados do capital ou do Estado, inclusive a classe
média. Nesse contexto, a tendência das diversas
modalidades de profissional libera! é entrar cada
vez mais em declínio. Isso vem acontecendo de
forma mais incisiva em outras profissões, como
O que é Psicologia Comunitária 19
a Medicina, a Engenharia, etc.
Assim, a crise atual do mercado de trabalho do
psicólogo revela aspectos mais profundos, a ponto
de podermos falar em uma crise de modelo de
atuação profissional. Assistimos ao fenómeno do
subemprego ou desemprego dos profissionais,
enquanto a maioria da população está carente não
só de condições mínimas de sobrevivência, como
também de serviços de saúde em geral e de higiene
mental adequados às suas necessidades.
Em outras áreas de atuação do psicólogo dife-
rentes da clínica, ocorrem fenómenos mais ou
menos semelhantes. Na área escolar do Brasil, a
rede de escolas públicas normalmente não assume
e não paga por serviços psicológicos específicos.
A grande massa de crianças em idade escolar
fica sem acesso a serviços de saúde mental. Na
área empresarial, são principalmente as empresas
de grande porte que requisitam e sustentam serviços
psicológicos mais complexos.
Podemos resumir a questão. A partir da área
clínica, o rnode o de atuação do psicólogo, inspi-
rado no profissional liberal clássico, está em crise.
E, ao mesmo tempo, nossa sociedade ainda não
demandou claramente outra forma ou modelo de
:tuação. Ou seja, a questão da saúde mental
.o é assumida apenas em duas situações: 1) como
questão privada ^dividual, para quem pode pagar
por serviços especializados; 2} quando a "doença"
mental chega ac ponto de impossibilitar que o
20 Eduardo Mourao Vasconcelos O que é Psicologia Comunitária 21
indivíduo continue a produzir ou quando ele
começa a criar problemas ou riscos para o meio
social, justificando a intervenção da Psiquiatria
através das internações tradicionais.
Que razões podemos identificar para que essa
situação se mantenha? Apesar de toda a realidade
ser contraditória, podemos dizer que uma socie-
dade de capitalismo tardio, periférico, como a
nossa, vê o homem comum apenas enquanto roda
da engrenagem produtiva. Os problemas de saúde
mental só são considerados quando ferem direta-
mente os interesses da acumulação de riquezas ou
quando incomodam demais a "paz" social. Além
disso, a intervenção médica tradicional na área de
saúde mental responde rnuito bem aos interesses
lucrativos do que chamamos complexo médico-
industrial, formado pelas indústrias farmacêuticas
e de equipamentos médicos e pelos hospitais e
empresas médicas privadas.
Mas não existem apenas razões económicas.
A tradição histórica secular de autoritarismo
vigente no país tende a se reproduzir em todas
as instituições, inclusive a família, tratando as
questões sociais e subjetivas através de métodos
coercitivos ou simplesmente manipulativos. Como
e \emplo temos os nossos manicômios psiquiá-
tricos, o sistema policiei, penitenc'árío e de meno-
res, as instituições os assistência sociai e a estrutura
repressiva das famílias de tipo tradicional.
Se pensarmos na Psicologia, há também algumas
razões específicas para o pouco valor atribuído
a ela em nosso país. Numa sociedade tradicional-
mente machista, uma ciência como a Psicologia é
essencialmente feminina. Não só porque a maioria
de seus profissionais são rnulhâres, como também
porque acentua a sensibilidade, a afetividade,
valores desconsiderados pelo machismo dominante.
Por outro lado, a profissão, sendo recente, tem
pouca tradição académica e profissional. E na
medida que a maioria dos profissionais está isolada
em seus consultórios, dificilmente eles se mobili-
zam enquanto categoria profissional na defesa
de seus interesses.
Além disso, não podemos perder de vista uma
outra questão: a insistência das instituições ligadas
à Psicologia no país em se propor como modelo
prioritário de atua^ão profissional a clínica parti-
cular. Não temos traição de pensar a Psicologia
dentro do quadro mais geral de serviços de saúde
a serem prestados à população. Ou de sugerir
modelos alte1 nativos que 'abordem a questão da
saúde mental de forma mais adequada e acessível
ao povo. Quando novas oportunidades de trabalhe
se abrem em instituições das mais variadas, o
psicólogo normalmente não sabe o que fazer na
nova situação, ou assume atividades diferentes que
o fazem perder sua identidade profissional, ou
tende a se fechar em uma saía para atendimentos
individuais ou de pequenos grupos.
De certa forma, esse quadro geral da saúde
Eduardo Mourão Vasconcelos
mental e da Psicologia não é privilégio de nosso
país. É também comum a quase todos os países
de formação econômico-social integrada ao capi-
talismo ocidental. Podemos ainda constatar que
também nesses países, embora os interesses domi-
nantes pretendam manter a situação que descre-
vemos, as formas tradicionais de prestação de
serviços no setor de saúde mental estão em crise.
A assistência psiquiátrica tradicional baseada na
internação é cara. Não tem eficiência alguma,
pelo contrário, torna mais crónica a doença, o que
é atestado pelo alto nível de reinternações. E
mesmo assim, não é acessível à maioria da popu-
lação. Além disso, vem sofrendo uma forte denúncia
por parte dos movimentos antipsiquiátricos, dos
meios de comunicação de massa, e da opinião
pública em geral. Por outro lado, a doença mental
vem provocando um alto nível de incapacitação
para o trabalho, sobrecarregando o sistema previ-
dência ri o com despesas em auxílio-doença e
aposentadoria permanente.
E pelo lado da Psicologia, os serviços tradicionais
oferecidos por ela são elitizados, sofisticados,
caros e demorados. A maioria da população não
pode ser integrada a eles tanto cultural como
economicamente. Ou seja, ela não se adapta ao
universo cultural e aos rituais desenvolvidos pelas
técnicas psicológicas tradicionais, nem pode
pagar por elas.
Essa crise do setor, bem como as novas reivín-
0 que é Psicologia Comunitária 23
dicações sociais, vêm exigindo formas alternativas
de se abordar a saúde mental. Assim, desde a
década de 60 vimos assistindo, em vários países, a
proposição de modelos alternativos de serviços em
saúde mental, frequentemente acompanhados de
projetos de atuação comunitária, onde os psicólogos
também têm sido chamados a atuar. Nesse mo-
mento é que vão surgir as primeiras experiências
em Psicologia Comunitária, como uma das saídas
alternativas para a Psicologia e sua crise.
AS ORIGENS HISTÓRICAS
DA PSICOLOGIA COMUNITÁRIA
Além das novas demandas sociais, da crise
específica da Psicologia e da crise atual dos serviços
de saúde mental discutidos até agora, que outras
experiências e processos históricos contribuíram
para o aparecimento da Psicologia Comunitária? -
Não á muito fácil rastrear, no plano internacio-
nal, as primeiras experiências em Psicologia que já
se aproximavam dos ideais da Psicologia Comuni-
tária. Mesmo assim, podemos dizer que uma das
primeiras tentativas conhecidas foi realizada por
Moreno, em Viena, no começo do século. Ele
começou, ern 1908, a fazer improvisaçõesdramá-
ticas com crianças, instigando-as a rebelarem-se
contra o mundo dos adultos e a criarem normas e
regras para uma sociedade infantil respeitada pelos
maiores. As experiências prosseguem em 1921,
O que é Psicologia Comunitária 25
Em 1902, em Vi< -.:;, as primem^ experiências com
dramatizações (o "Teatro da Exp< ntaneidade", e m,.;i\ o "Teatro Terapêutico11) criaram as bases para a
estruturação do que lune conhecemos como
técnicas psicodramáíicas.
26 Eduardo Mourao Vasconcelos
com dramatizações que acabam na criação do
Teatro da Espontaneidade e, dois anos mais tarde,
no Teatro Terapêutico, Eram experiências abertas
e muitas vezes realizadas na rua. Elas criaram a
base para a estruturação do que hoje conhecemos
como as técnicas psicodramáticas.
A experiência e a obra de Wílhelm Reich, apesar
de polémicas, são cruciais na formação histórica
da proposta da Psicologia Comunitária. Reich
participou como assistente de Freud de uma
clínicc gratuita em Viena, em T922, após a criação,
em 1920, de uma clínica semelhante em Berlim.
Logo chegou à conclusão de que seria ilusório
querer transformar a miséria sexual e mental com
a muitiplicação de clínicas e análises. Funda
então, em Viena, uma sociedade socialista de
Aconselhamento Sexual e de Sexologia, abrindo
em 1929 seis centros de higiene sexual, animados
por quatro psicanalistas e três obstetras, que
lutam pela legalização do aborto. Foi em Berlim,
no entanto, que encontrou melhores condições
temporárias de trabalho. Após conferências com
médicos e estudantes socialistas, e convencido da
necessidade de politizar a questão sexual, liga-se
ao Partido Comunista Alemão e funda a Associação
Alemã para uma Política Sexual Proletária
(SEXPOL), que teve seu primeiro congresso em
Dússeldorf, em 1931.
Mas a açao de Reich durou pouco. Além do
insucesso das clínicas higiénicas, o PC alemão em
O que é Psicologia Comunitária
pouco tempo proibiu a difusão de suas brochuras, e
desligou-o do partido em 1932. Logo após, a
Sociedade Psicanalítica Alemã também o excluiu
de seu quadro. Finalmente, em 1933, ele abandona
a Alemanha.
Uma outra experiência bem diversa da de Reich,
mas bastante significativa, é a dos Alcoólicos
Anónimos (A.A.), iniciada em 1935, nos Estados
Unidos, e hoje amplamente difundida em quase
todo o mundo. Os grupos de alcoólicos funcionam
autonomamente, e suas reuniões manipulam
técnicas simples de depoimentos de vida e refor-
çamento pelos períodos de tempo crescentes que
um integrante fica sem beber. Além disso, elas
criam laços de solidariedade e amizade entre eles
como suporte para a superação de seus problemas.
Podemos identificar algumas limitações no
trabalho dos A.A.: é uma abordagem centrada na
doença, um tratamento moral para o alcoolismo,
e não leva em conta os seus condicionamentos
sociais e políticos, como a política de incentivo ao
consumo das bebidas. No entanto, os A.A. consti-
tuem sem dúvida uma experiência sugestiva e
eficaz dentre ;.io enfoque da Psicologia Comuni-
tária, e influenciaram enormemente a criação de
experiências semelhantes mais recentes, do tipo
Neuróticos Anónimos, grupos cie auto-ajuda de
ex-psíquiatrizados, etc.
A partir do? meados do atual século, assistimos
a experiências e movimentos mais globais e de
28 Eduardo Mourao Vasconcelos O que é Psicologia Comunitária 29
cunho mais institucionalizado, que influenciaram
diretamente o nascimento da Psicologia Comu-
nitária.
Em primeiro lugar, temos o processo de refor-
mulação dos conceitos e da prática da Psiquiatria.
Por um lado, surgem as iniciativas modermzadoras
de crítica à estrutura dos manicômios, que se
inicia na Inglaterra, no período de guerra. Os
hospitais e seu consequente "desperdício de
homens", que noutras condições poderiam estar
nas frentes de batalha ou na produção, começam
a ser questionados. Vamos assistir, então, a inicia-
tivas de tentar modificar a dinâmica de tratamento
nos hospitais psiquiátricos militares, cheios de
neuróticos de guerra. Na Inglaterra, alguns psiquia-
tras lançaram a ideia de grupos de discussão e de
ativídades com os pacientes, além de realizarem
uma reunião diária geral com os médicos, como
forma de integrar o conjunto dos grupos e ativi-
dades. Esse experiência foi um sucesso e permitiu
o nascimento de comunidades terapêuticas, alguns
anos depois, e das psicoterapias de grupo.
A reformulação não ficou apenas dentro dos
hospitais. Na Branca, surge a "psiquiatria de
setor", ou seja, a divisão do país em setores e
regiões, dispondo, cada u ma, de equipes trabalhando
em contato direto com a comunidade. Não houve
interferência, entretanto, na vida manicomial.
A Psiquiatria Comunitária surgiu nos Estados
Unidos. Foi lançada a proposta de níveis de inter-
venções da assistência, seguindo o momento
evolutivo da "doença mental":
1) prevenção primária: intervenção nas condições
possíveis de formação da doença mental, que
podem ser individuais ou de meio;
2) prevenção secundária: intervenção que busca o
diagnóstico e o tratamento precoce da doença
mental;
3} prevenção terciária: busca de readaptação do
paciente à vida social, após sua melhora.
Apesar da ambiguidade e imprecisão de muitos
dos conceitos propostos por esses autores, a grande
novidade foi o lançamento da proposta de pre-
venção primária, visto que os dois outros níveis
já faziam parte do sistema psiquiátrico-curativo.
Em outra vertente, tivemos o desenvolvimento
da antipsiquiatria. Ela desenvolve u.na crítica
feroz ao próprio conceito de doença mental,
mostrando como a sociedade se sente ameaçada
pelo comportamento desviante,e como a psiquiatria
acaba operando como agência de controle e nonr^-
tização social.
Entretanto, o movimento de maior profundidade
de mudanças e de repercussão internacional foi, sem
dúvida, o da Psiquiatria Democrática, vanguardeada
por Basaglia, na Itália. A expe-x^c ia começou no
Hospital Psiquiátrico de Gorila, no Nordeste de
país, sob a direção do próprio BasagSia. As modi-
2Í
30 Eduardo Mourão Vasconcelos \ que é Psicologia Comunitária 31
ficações incluíram a adoção de um modelo radical
de comunidade terapêutica e a abertura do hospital
para que os pacientes pudessem viver fora dele.
Foram montados centros de higiene mental, para
reinserção dos ex-internos na vida social. Além
disso, foi feito um trabalho de mobilização e
esclarecimento da população e dos movimentos
sociais, inclusive com integração de leigos no
trabalho. A experiência foi expandida em outras
cidades, e em algumas delas o hospício foi fechado.
Em 1978, através da mobilização e da pressão
popular, conseguiram sedimentar estas novas
práticas em uma nova ei psiquiátrica para todo
o país.
Essa nova lei, entretanto, encontrou muitas
dificuldades na sua implantação. Dependia da
existência, em cada cidade, de equipes de profis-
sionais identificados com o seu espírito, e que se
mobilizassem para efetivá- a. Houve muita resis-
tência por parte da população, acostumada a
associar o louco com a violência e o despreparo
para a vida social. Os políticos conservadores
capitalizaram esse clima, tentando mudar a lei.
Assim, ela foi implantada de forma mais integral
em algumas cidades, e em outras não houve modifi-
cações substantivas. Atualmente, em 1985, encon-
tram-se cinco orojetos de reformulação do seu
texto no parlamento italiano.
Na América Latina, algumas experiências alterna-
tivas mais locais foram realizadas. Podemos lembrar
o nome de Alfredo Moffatt, autor de livro bastante
conhecido, Psicoterapia do Oprimido, relatando
sua experiência na Colónia Pena Carlos Gardel,
em Buenos Aires, Argentina.
A Medicina Comunitária também teve urn forte
papel no aparecimento da Psicologia Comunitária.
Na área de saúde, as experiências comunitárias têm
peio menos duas origens diferentes. Por um lado, a
experiência de alguns países denominados socia-
listas.A China revolucionária foi talvez a precur-
sora, corr, s L. . .ca de serviços de saúde inovadores
para as populações camponesas e de periferia
urbana, na época sem qualquer acesso a eles.
Foram real izados serviços de saneamento e cuidados
elementares de saúde através da mobilização
popular, do treinamento dos chamados "médicos
de pés descalços", integrados com a medicina
chinesa milenai.
No íado capitalista, a Medicina Comunitária
nasceu principalmente da preocupação de se
oferecer alguma forma de assistência aos pobres
que não podiam ter acesso à medicina sofisticada
e cara. Foram montados sistemas de saúde comu-
nitária em países da Áfr ica colonial, como Quénia,
Zâmbia, Uganda. E nos EUA na década de 60, apare-
cem os programas de saúde dentro de uma estra-
tégia de assistência mais ampla aos bolsões de
pobreza. Foram os chamados "Programas de Com-
bate à Pobreza", lançados por Kennedy e Johnson.
Na América Latina, as primeiras iniciativas
32 Eduardo Mourao Vasconcelos
comunitárias normalmente não tiveram origem
estatal, dadas as características francamente
antipopulares da maioria dos governos locais após
a década de 60. Foram os próprios movimentos
sociais, aí compreendidos os movimentos sindicais
urbano e camponês, os movimentos de bairros, as
comunidades eclesiais de base, os movimentos
femininos, movimentos negros, que se lançaram à
tarefa de construção de laços e ações comunitárias.
Nessi^, experiências,'além das lutas e reivindicações
políticas e materiais, da prática da educação
popular, as atividades incluem várias questões
ligadas especificamente à saúde mental. Podemos
lembra- as creches comunitárias, os clubes de
mães, 3í ações solidárias coletiyas nos momentos
de aperto das famílias, atividades de lazer, esporte,
cultura, etc. Essas iniciativas têm como caracte-
rística básica a autonomia, e isso fez que os gover-
nos mais tarde pretendessem integrá-las, desenvol-
vendo programas comunitários via Estado.
Outro processo fundamental que contribuiu
para o aparecimento da Psicologia Comunitária foi
o progressivo assalariamento, o achatamento da
e a consequente criação de condições para
uma politização crescente dos profissionais de
saúde e saúde mental. Por urn laço, começaram a
aparecer as ações e movimentos representativos
das categorias profissionais, e, entre suas reivindi-
cações e discussões, aparecem os temas ligados a
serviços de saúde mais racionalizados e adequados
O que é Psicologia Comunitária 33
às condições de vida da população. E, por outro
lado, a ação desses profissionais nas universidades e
nos serviços de saúde abriu espaço para algumas
experiências inovadoras de grande importância.
Finalmente, não poderíamos nos esquecer de
todo um movimento de questionamento crítico
dentro da Psicologia como um todo, e da Psicologia
Social em particular. Na América Latina, iniciou-se
gradativamente a problematização dos esquemas
teóricos procedentes dos Estados Unidos e Europa,
na busca de uma adequação à nossa realidade
social. A Psicologia na Argentina, até o golpe
militar na década passada, talvez seja o melhor
exemplo desse movimento de recriação teórica
e prática. Esse novo espaço dentro da Psicologia,
se efetivamente ampliado, possibilitará o desen-
volvimento de novas experiências, encontros e
a sistematização da Psicologia Comunitária em
nosso continente.
Entretanto, as primeiras iniciativas oficiais,
concretas, específicas em seúde mental comuni-
tár ia podem ser identificadas nos Estados Unidos.
Em 1963, foi lançado o projeto dos Centros Comu-
nitários de Saúde Mental. Vários programas foram
previstos, com modalidades parciais de hospitali-
zação, serviços de consulta externa e de emergência,
r rovenção de suicídio, alcool ismo, atendimentos
míant i l e adolescente, etc.
A avaliação crítica desses centros é bastante
negativa. Vános dos programas previstos não foram
34 Eduardo Mourao Vasconcelos O que é Psicologia Comunitária
implementados, .são pouco acessíveis geográfica e
economicamente, e na realidade não houve inte-
resse de se atingir a participação popular na tomada
de decisões e na sua gestão. São pouco eficazes
para se contrapor aos interesses da rede de hospitais
psiquiátricos estaduais, que funcionam centrados
na internação tradicional. Enfim, promovem a
"psíquiatrização" da sociedade, estimulando o uso
de drogas e serviços, impondo maneiras psiquia-
trizantes de interpretar a vida e os conflitos sociais.
A partir das décadas de 60 e 70, alguns países
do Terctlro Mundo vêm desenvolvendo a criaçso
de centros comunitários de saúde mental ou
integrando atívidades em saúde menta! à rede
básica de postos e ambulatórios médicos. Entre
eles se destacam o Chile, Jamaica, México e Hon-
duras. De início, tivemos iniciativas isoladas,
ligadas às universidades ou projetos pilotos estatais.
Entretanto, nos meados da década passada, a
Organização Mundiai de Saúde passa a propor a
implementação de sistemas mais racionalizados de
saúde e saúde mental. O modelo visa à descentra-
ização dos serviços, tendo como porta de entrada
do sistema o posto de saúde junto aos bairro:
populares e distritos rurais. A ênfase é dada àquelas
atividades mais simplificadas de atenção primária
à saúde, per pessoas da comunidade corr. treina-
mento básico, com presença ou supervisão perma-
nente de profissionais graduados. São propostas
iniciativas comunitárias e preventivas em saúde.
Esse modelo tem sido implementado experimen-
talmente em regiões específicas de vários países
capitalistas do Terceiro Mundo. Em países como
Cuba, todo o sistema de saúde e saúde mental é
montado de forma semelhante. Tentarei mais
adiante descrever o seu funcionamento e esboçar
uma avaliação corn maiores detalhes.
Se fizermos uma avaliação da implantação de
Psicologia Comunitária no Brasil, acreditoque pode-
remos identificar pelo menos três direções. A pri-
meira se dá pela via académica, universitária, Ou seja,
as faculdades de Psicologia, copiando os currículos
estrangeiros, incluem a disciplina lecionando-a de
forma teórica, assistemática, e sem muitas possibili-
dades de uma prática concreta. Nesse sentido, pode-
mos dizer que, de modo gera l, o ensino da Psicologia
Comunitária no Brasi sofre deste mal crónico que é
a ausência de referências práticas que orientem sua
teor ização e sua adequação à realidade bras : :e i ra.
O segundo caminho tem sido, até recentemente,
o do movimento popular, em experiências con-
cretas em associações de bairro, em educação
popular em geral, em creches comunitárias, comu-
nidades eclesiais de base, clubes de mães, etc.
Normalmente, são experiências autónomas que são
também acompanhadas por estudantes ou mesmo
profissionais de Psicologia,, através de compromisso
político pessoal, sem íigação reaí ou formal com a
Psicologia académica. Os depoimentos que venho
ouvindo acentuam muito isto: "Junto ao povo
36 Eduardo Mourao Vasconcelos
temos de reaprender tudo, como se não tivéssemos
passado por um curso. Ou mesmo, temos de
desaprender muita coisa do curso, em termos da
realidade sócia! que encontramos pela frente.
E, geralmente, a gente não se sente psicólogo
quando realiza essas formas de trabalho comu-
nitário". Em síntese, as experiências ocorrem
de forma normalmente espontânea, sem avaliação
rigorosa de seus resultados e sem um contato
permanente com uma busca de sistematização
teórica.
Em terceiro lugar, estamos assistindo, nos
últimos anos, à implantação muito gradativa de
programas que incorporam a Psicologia Comuni-
tária, por parte de instituições sociais principal-
mente ligadas ao Estado. Normalmente são
projetos-piloto em pequenas unidade; de saúde,
escofas, comunidades. Recentemente, a Previdência
chegou a anunciar unia reorientação da assistência
psiquiátrica no país, e propondo um modelo
inspirado em parte na proposta feita pelr OMS.
Na maioria dos casos,não existe uma integração
dessas diferentes iniciativas em Psicologia Comu-
nitária. Mas acredito que a tendência a que vimos
assistindo é a superação gradativa deste isolamento
de experiência?. Isso pode se dar, por exemplo,
através da integração das universidades às inicia-
tivas institucionalizadas de prestação 'e serviços,
ou da colaboração com os prcjetos populares
autónomos.
O QUE É, AFINAL, A
PSICOLOGIA COMUNITÁRIA?
Nc-oíe ponto, você, leitor, depois de ter uma
visão das origens da Psicologia Comunitária, deve
estar se perguntando: o que é então a Psicologia
Comunitária?
Alguns autores, quando analisam a história da
atuação de um corpo científico e profissional,
notam que em determinadas circunstâncias histó-
ricas os profissionais têm uma forma própria de
atU'--- r diferente dos que atuam em outras épocas
e contextos sociais. A essa forma chamam psra-
digma da prática profissional. Na área médica, por
exemplo, sabemos que o modelo de atuação que
conhecemos, chamado Medicina Científica, não
foi e não é o único existente. Se percorrermos a
história da Medi:;ina, veremos que a Alemanha dos
séculos XVI I I e XIX e a Inglaterra e França do
38 Eduardo Mourao Vasconcelos
século passado nos apresentam três paradigmas
distintos da prática médica. A Medicina Comu-
nitária recente constitui um outro paradigma, em
oposição ao da Medicina Científica atual.
Na Psicologia, vimcn. que as experiências que
podemos reunir sob o nome da Psicologia Comu-
nitária tiveram origens e objetivos bastante dife-
rentes. Tivemos desde propostas bastante radicais,
como a SEXPOL, até os programas conservadores
norte-americanos. Apesar dessa diversidade, creio
poder afirmar que a Psicofogia Comunitária pode
ser considerada um campo com uma unidade
mínima, e pode significar a formalização de um
novo paradigma de prática profissional do psicó-
logo, em relação à prática predominantemente
desenvolvida até então.
Assim, apesar dos riscos de simplificação exces-
siva, acredito que a sistematização comparativa
que tentarei esboçar aqui poderá ser interessante
para se entender como vejo a proposta de uma
Psicologia Comunitária comprometida com os
interesses populares:
PSICOLOGIA
TRADICIONAL
PSICOLOGIA
COMUNITÁRIA
1) As abordagens enfatizam 1) As divisões du sabe' são
o enfoque do psicólogo
como esfeia predominan-
temente independente do
fruto da história das ins-
tituições académicas e
profissionais. A realidade
O que é Psicologia Comunitária
PSICOLOGIA
TRADICIONAL
social. As análises são
essencialmente unidisci-
plinares, e o trabalho rea-
lizado é predominante-
mente uniprofíssional.
2) Enfatiza-se a abordagem
individual do psíquico.
3) A abordagem é desarti-
culada de unia visão mais
ampla do social, e muitas
vezes pretende-se neutra
com relação aos proble-
mas soc ia is .
4} A prát ica desenvolvida é
dirigida prioritariamente
para os grupos sociais
mais privilegiados, tanto
do ponto de vista econó-
mico quanto cultural.
5) Nas faculdades, a forma-
ção é predominantemen-
te teórica, intramuros, e
PSICOLOGIA
COMUNITÁRIA
se apresenta como uma
integração dos aspectos
orgânicos, psíquicos e
sociais. A abordagem é
interdisciplinar, e o tra-
balho é feito em equipes
multiprofissionais.
2) A ênfase está nas pessoas
enquanto seres sociais,
onde o conteúdo psicoló-
gico tem conotações tam-
bém institucionais, so-
ciais, culturais e políti-
cas, e vice-versa.
3) É uma abordagem articu-
lada a uma visão to tal i-
zante do social e busca a
explícitação de um com-
promisso pohYco e so-
cial.
4} A prioridade básica são
as classes populares, ainda
sem acesso a serviços bá-
sicos de saúde mental.
5) A formação só é coerente
se baseada na prática
concreta no campo social.
40 Eduardo Mourao Vasconcelos Í O que é Psicologia Comunitária 41
PSICOLOGIA
TRADICIONAL
desvinculada da prática.
6) As técnicas são predomi-
nantemente curativas.
7) A teorização e o conjunto
de técnicas são dirigidos
principalmente para con-
sultórios, hospitais e gabi-
netes separados da vida
social, e em locais con-
centrados nas áreas dos
grandes centros urbanos.
8) A prática profissional é
altamente especializada
por técnicas de trabalho
(principalmente na clíni-
ca), A c l iente la se adapta
ao esquema teórico e
técnico do profissional.
Raramente se buscam
práticas alternativas.
9) A prática predominante
exige sempre a presença
do prof issional, e é man-
tenedora de monopólio
do saber profissional. O
lugar do poder é fixo e
constantemente centrado
PSICOLOGIA
COMUNITÁRIA
com reflexão teórica e
pesquisas concomitantes.
6) Integração de recursos
curativos e preventivos
com ênfase na prevenção.
7} Teorização e técnicas são
dirigidas para situações
institucionalizadas e de
campo, junto aos locais
de trabalho e moradia da
população, proporcionan-
do maior acessibilidade e
coerência com a reali-
dade vivida por ela.
8) Formam-se profissionais
mais generalistas, envolvi-
dos com faixa mais ampla
de técnicas e práticas
adequáveis à variedade de
situações sociais. Há uma
busca constante de pés
guisa e sistematização de
práticas alternativas.
9) O profissional atua pr i -
mordialmente como as-
sessor, transmissor de ha-
bilidades e treinador de
agentes de saúde mental
O objetivo é a desrnono-
polização gradat iva do
PSICOLOGIA
TRADICIONAL
no profissional.
10) A abordagem não reco-
nhece o conhecimento
difuso e as práticas infor-
mais populares em saúde
mental
11) As práticas têm alto
nível de especialização e
sofisticação. A formação
é longa, demorada, de
al to custo, que é repas-
sado aos serviços, e daí
sua elitização.
12) As práticas são planeja-
i.;.-r e executadas pelo
P r o1 ssional sem qualquer
pá; ticipação da clientela.
PSICOLOGIA
COMUNITÁRIA
saber, com a integração
da saúde mental na vida
cotidiana e na cultura do
povo. O lugar do poder é
alternado e distribuído.
10) Há um reconhecimento
e busca de constante co-
aprendizagem com o sa-
ber e as práticas autóno-
mas da população que
têm implicações ou que
são diretamente ligadas à
saúde mental.
11) Propõe-se pesquisa e
síntese de práticas mais
simplificadas, apropriadas
às condições sociais e cul-
tura is populares. Urn dos
objetivos básicos é a ex-
tensão da cobertura com
manutenção d a qualidade.
12) Busca-se efetiva partici-
pação da clientela na
definição das prioridades
de aíu: cão, píanejamen-
to, execução e aval iação
das atividades. Ou seja,
participação comunitária
efetiva.
42 Eduardo Mourao Vasconcelos
PSICOLOGIA
TRADICIONAL
13) A ação do psicólogo é
restrita aos consultórios,
secões de contato ou tra-
balho na escola ou em-
presa.
PSICOLOGIA
COMUNITÁRIA
13) A ação do psicólogo
envolve também o conhe-
cimento da saúde pública,
a administração, gestão e
supervisão dos serviços.
Assim, as técnicas em Psi-
cologia Comunitária são
de três tipos;
a) técnicas ligadas direta-
mente à intervenção em
saúde mental com a
clientela;
b) técnicas voltadas ao trei-
namento de pessoal para
atuar em saúde mental;
c) técnicas administrativas e
de gestão dos serviços em
saúde mental.
OS LOCAIS DE ATUAÇÃO
DA PSICOLOGIA COMUNITÁRIA
A primeira coisa que podemos constatar é que
os psicólogos comunitários não são donos de
campos de trabalho onde só eles atuam. Eles vão
bater em muitas áreas onde psicólogos ern geral
já desenvolvem suas atividades, bem cono outros
profissionais da área humana e de saúde. Como
vimos, o que dá identidade ao psicólogo comuni-
tário em relação a seus colegas tradicionais é
uma forma própria de atuar, voltada para objetivos
próprios segundo uma visão crítica definida.
Assim, o primeiro campo de atuação da Psico-
logia Comunitária é o das próprias instituições
onde o psicólogo já é comumente chamado a
trabalhar; nasescolas e demais instituições de
educação, nos hospitais psiquiátricos, nas empresas,
etc. Nelas, o psicólogo comunitário poderá até
l
44
mesmo desempenhar algumas das ações tradicio-
nalmente já realizadas pelos demais psicólogos.
Entretanto, ele não deve parar aí. A Psicologia
Comunitária nos pede uma visão mais crítica e
uma ampliação do campo de atuacao. Ela nos
cobra uma abordagem mais preventiva, manipu-
lando variáveis mais amplas, sociais e institu-
cionais. Ela reivindica a açao participativa dos
usuários e funcionários das instituições na reso-
lução dos problemas e na atuação sobre a saúde
mental.
Ora, não é difícil perceber como as instituições,
em geral, principalmente nas sociedades capita-
listas autoritárias, são instrumentos chamados a
cumprir a manutenção da ordem, das ideias e das
relações sociais que reproduzem a dominação e
a alienação das pessoas.
Uma escola pública primária, por exemplo, está
sempre chamada a manipular a cultura dominante,
as ideias e visões de mundo implícitas nos pro-
gramas de ensino oficiais. Aí, a cultura do povo
praticamente não tem lugar. Ela também tende
a desenvolver nos alunos o espírito de competição
e individualismo. Estes normalmente participam
muito pouco do processo de educação. São massi-
ficados e relegados à passividade e à escuta. A
escola também reproduz a desigualdade social.
O e1 alunos oriundos das ciasses mais pobres normal-
mente abandonam os bancos escolares nos primeiros
anos, enquanto uma elite consegue galgar a pirâ-
Eduardo Mourao Vasconcelos O que é Psicologia Comunitária
-4- -' Ecologia Comunitária reivindica a açao participativa
Ui:> usuários e funcionárias das instituições fia resolução
problemas e na aiuação sobre a saúde mental.
46 Eduardo Mourao Vasconcelos
mide escolar até o ensino superior.
Como na escola, o psicólogo é chamado a essas
instituições para atua r unilateralmente sobre
questões ligadas à saúde mental, normalmente
para selecionar, diagnosticar e avaliar indivíduos
isoladamente ou para "cuidar" clinicamente dos
considerados "casos-problemas" pela instituição.
E a maioria dos psicólogos responde a estes pedidos
e demandas de forma acrítica e automática. Ou
porque não percebem a problemática de fundo
ou porque foram formados pnlas escolas de Psico-
logia exatamente para fazer aquilo que as direções
das instituições pedem; e outras vezes, porque
sentem o risco de perder o emprego se questio-
narem algo. Assim, contribuem para que os confli-
tos e a "doença", que estão impregnados na
instituição, sejam identificados apenas em algumas
pessoas, consideradas as desequilibradas e pro-
blemáticas.
A Psicologia Comunitária, nesta área institucional,
busca conhecer criticamente as instituições, permi-
tindo identifica-' suas contradições, sua estrutura
concreta e simbólica, no sentido cie visualizar
propostas de trabalho alternativas e realistas.
Em segundo lugar, busca traçar formas de inter-
venção na vida das instituições, ampliando a par
ticipação de todos os interessados nus problemas
levantados. E, fundamentalmente, procura desen-
volver técnicas de abordagem da saúde mental
integradas a essas novas formas participativas.
O que é Psicologia Comunitária 47
Como se dá isso concretamente? As respostas
não são simples, mas podemos resumir alguns
pontos básicos. Normalmente, todo profissional
dentro de uma instituição é chamado peia direção
a realizar algumas atividades tradicionais. A estes
pedidos chamamos "demandas oficiais". Este
conceito de demanda tem origem na Psicanálise, e
é trabalhado pela abordagem de origem francesa
chamada Análise Institucional. Vamos ver como
funciona.
Todo mundo sabe intuitivamente que uma
criança pode pedir alimento mesmo sem ter fome.
Sabemos que por trás desse pedido, dessa demanda,
ela pode estar querendo outras coisas, como
atenção, carinho, etc. A esses pedidos que se
"escondem por trás" da demanda primeira cha-
mamos "demandas implícitas".
Assim, nestes casos, dar simplesmente alimento
para a criança pode impossibilitá-la de expressar
suas demandas implícitas, mais significativas e
importantes para ela.
Da mesma forma, quando a direção da instituição
formula suas demandas oficiais ao profissional, ela
quer resolver as questões da vida institucional
escondendo uma série de outros problemas, pontos
de vistas e pedidos dos funcionários e da clientela.
Cabe ao psicólogo comunitário sugerir formas e
situações participativas onde a própria direção,
os funcionários e os usuários da instituição possam
discutir a "demanda oficial" e eles mesmos formu-
48
Eduardo Mourão Vasconcelos O que é Psicologia Comunitária 49
larem as demandas implícitas. Como se dá isso
na prática?
Vamos exemplificar com o trabalho do psicólogo
em uma escola. Ele foi chamado para fazer diagnós-
tico e acompanhamento clínico de alunos conside-
rados indisciplinados ou de baixo rendimento
escolar. Esta é a demanda oficial, e o psicólogo deve
respondê-la inicialmente da maneira como foi
formulada, para se manter na instituição. Mas
deverá favorecer a criação de situações nas quais
a direção, os professores, funcionários, os alunos
e seus pais possam discutir a questão da indisci-
plina e do baixo rendimento. Inevitalmente apare-
cem outros pontos de vista, outros pedidos, ou
seja, as demandas implícitas. Os professores, por
exemplo, podem falar da dificuldade de montar
aulas chamativas e dinâmicas, e pedir uma orien-
tação didático-pedagógica. Mais tarde podem ir
percebendo nestas discussões as dificuldades de
um ensino apropriado em salas de aula com 60 ou
70 alunos, nas quais os estudantes são massificados
e colocados na situação passiva. E por aí vai ...
Com um pouco de jeito a própria direção da
escola pode ir percebendo que a questão da indisci-
plina e do baixo rendimento não é tão simples
assim. É possívef que ela mesma acabe formu-
lando suas demandas implícitas, caminhando para
soluções mais abrangentes dos problemas da escola,
O objetivo básico do processo é sempre incentivar
a participação gradativa dos diversos grupos de
pessoas ligadas à instituição e que normalmente
não são chamadas nem mesmo a opinar. Na escola,
por exemplo, podemos chegar a integrar, nas
atividades educativas e de saúde mental, os próprios
pais e familiares do aluno, e até mesmo toda a
comunidade. E na medida que participam, podem
garantir que a instituição sirva a seus interesses.
Com isso acredito que surgirão alternativas mais
democráticas e participativas de vida institucional
e social.
Também as técnicas específicas de abordagem
da saúde mental podem se tornar mais adequadas
a essa nova realidade participativa. O psicólogo,
agora, em vez de ficar apenas restrito a sua sala
atendendo casos individuais, poderá, por exemplo,
formar grupos de professores para a elaboração da
problemática deles, grupo? de pais para discutir as
questões ligadas à educação e estimulação dos
fiihos. Poderá até mesmo assessorar a direção da
escola em atividades e programas mais abrangentes
e compatíveis com a realidade da instituição.
Não podemos nos esquecer de que esse processo
é sempre lento e difícil. É bom lembrar que toda
ação desse tipo toca nas relações de poder dentro
da instituição. O psicólogo não pode se colocar
como "dono da verdade", ou corno quem provoca
a mudança, pois sua posição pessoal é muite frágil.
Seu papel é fundamentalmente de facilitador
sugerindo situações onde os demais participantes
possam falar de suas deir.andas e dar palpites sobre
50 Eduardo Mourão Vasconcelos O que é Psicologia Comunitária
como solucioná-las. Além disso, todo processo de
mudança em cada instituição depende do contexto
político mais global da sociedade.
Dessas observações podemos concluir a necessi-
dade de estar constantemente analisando as correla-
ções de força e de poder dentro e for» da institui-
ção, para se avaliaro espaço de mudança possível.
Não adianta nada ter boas intenções sem ter os pés
na realidade. É importante também ter "paciência
histórica", no sentido de evitar confrontos imaturos
ou desnecessários com as direções das instituições.
Às vezes pode valer aqueíe conhecido ditado:
"Seguro morreu de velho". Outras situações
pedem para se arriscar mais. É sempre bom lembrar
que as ações mais inovadoras precisam ae apoio e
legitimação mais amplas no corpo de funcionários
e na cliente a em geral da instituição.
As instituições e programas governamentais da
área social constituem um segundo campo de
atuacão do psicólogo comunitário. Principalmente
nos últimos quarenta anos, a demanda feita ao
Estado para responder às necessidades globais da
população vem crescendo, principalmente com
relação à maioria mais pobre e oprimida. E os
próprios governos estão percebendo a pouca
eficácia concreta e legitimadora de seus programas
e ações sociais quando são autoritários e assistên-
cia listas. Assim, cada vez mais se faz apelo a
programas "participativos", visando ao desenvol-
vimento da comunidade. São programas vinculados
\1
à área da saúde, programas suplementares de
educação, menores abandonados, centros sociais
urbanos, programas sociais com trabalhadores
rurais, com velhos, entre outros. Algumas empresas
e autarquias, principalmente ligadas a clientelas
amplas e definidas, também tem formado equipes
interprofissionais para o contato com o público
e manutenção de iniciativas comunitárias.
O desenvolvimento de comunidade a partir do
Estado ou de instituições paraestatais exige cuida-
dos muito especiais — devido aos mecanismos de
integração e limitação do caminho dos movimentos
sociais — no sentido de manter sua autonomia.
Um terceiro campo de atuacão do psicólogo
comunitário são os próprios movimentos sociais.
Aqui são desenvolvidas as práticas mais coerentes
com os interesses populares, na medida que há
maior participação e controle da comunidade
sobre todas as iniciativas. Por outro lado, dado que
os recursos económicos nas nossas sociedades
estão concentrados nas empresas e no Estado, a
maioria desses projetos conta apenas com a colabo-
ração voluntária ou com o trabalho insatisfatoria-
mente remunerado de psicólogos e de outros
profissionais. Mesmo assim, a meu ver, as possibi-
lidades de trabalho estão crescendo enormemente
hoje, no Brasil.
Nessa área, a gama de atividades possíveis é
enorme. Podemos começar pelos sindicatos de
trabalhadores. Como, no Brasil, estes são obrigados
52 Eduardo Mourao Vasconcelos O que é Psicologia Comunitária 53
pela legislação em vigor a manter serviços assísten-
ciais, incluindo serviços de saúdef há possibilidades
concretas de montagem de serviços de saúde
mental mais apropriados aos interesses dos traba-
lhadores. Há, inclusive, a alternativa de projetos
intersindicais, quando vários sindicatos mantêm
serviços comuns. Este tipo de trabalho permite
não só acesso de serviços de saúde mental aos
trabalhadores individualmente, com sua família
ou em pequenos grupos, como também permite
ao psicólogo conhecer, através do estudo de casos,
as condições de trabalho dentro das empresas e
sua interferência sobre a saúde mental.
Assim, a Psicologia, da mesma forma que faz a
Medicina do Trabalho quando assumida por
profissionais comprometidos com os trabalhadores,
estará possibilitada a assessorar o sindicato no
entendimento das estratégias das empresas na
área de processo de trabalho e desenvolvimento de
recursos humanos. Isto possibilita colocar a saúde
mental como questão a ser incluída nas pautas de
reivindicações, nas negociações entre trabalhadores
e patrões. Além disso, a criação desses serviços
permite-nos ir gradativa mente conhecendo a
realidade psicossocial específica dos trabalhadores,
o aue é de grande importância para a Psicologia,
como também para as entidades populares em gera!.
Outra possibilidade concreta de trabalho para o
psicólogo comunitário está nas comunidades
eclesiaís de base e nas atividades pastorais em
geral, principalmente nas Igrejas identificadas com
os pobres e oprimidos. Normalmente incluem
grupos de jovens, círculos bíblicos e grupos de
reflexão e cursos para casais, pastorais específicas
para doentes, velhos e crianças, pastoral operária,
etc. Tais atividades já assumem por si mesmas
grande importância para a saúde mental dos
setores populares, porque incluem vários temas
fundamentais ligados à sua vida social e emocional.
Na verdade, a participação junto às bases eclesiais
populares engajadas e aos movimentos sociais
populares constitui uma verdadeira escola para
se conhecer e se comprometer com a realidade
social e existencial do povo. O psicólogo que atua
organicamente junto a estes movimentos não só
aprende, como também coloca à disposição das
ciasses populares os conhecimentos e técnicas já
sintetizados pela Psicologia oficial. Acredito que
essa co-apreridizagem pode ser bastante rica e
frutífera.
Junto às associações de bairro e movimentos
comunitários de base residencial, existe também
um campo enorme de trabalho. Por um lado, c
vida associativa, as formas de solidariedade, as
atividades comuns de lazer, esporte e cultura já
constituem, por si mesmas, estratégias de promo-
ção da saúde menta1. É tarefa nossa incentivá-tas
e conhecê-las. Em segundo lugar, os movimentos
de bairros vão se apropriando de iniciativas autó-
nomas em saúde, ou buscando gerir ou controlar
54 Eduardo Mourão Vasconcelos O que é Psicologia Comunitária 55
os postos e serviços de saúde estatais ali locali-
zados. Cabe à Psicologia Comunitária acompanhar
esse processo, assessorando as iniciativas ou servi-
ços em saúde mental. Isso vem acontecendo
principalmente nos acompanhamentos da escola
pública nos bairros, na gestão de creches públicas
ou comunitárias, ou nas aíividades de saúde mental
desenvolvidas a partir dos postos médicos.
Os movimentos femininos e feministas, com
seus grupos do tipo clube de mães, associações de
donas-de-casa e outros, também têm reivindicado
explícita ou implicitamente a presença do trabalho
da Psicologia Comunitária. Iniciativas tais como
creches comunitárias, grupos de reflexão, monta-
gem de serviços materno-infantis, de serviços de
atendimento de urgência específicos para mulheres
são um enorme campo de co-aprendizagem e
atuação para os psicólogos. Aqui talvez seja a
área que demande mais claramente uma presença
específica da Psicologia na assessoria das atividades
e na co-produção de material de reflexão e dis-
cussão sobre saúde mental da mulher, sexualidade,
vida conjugal, educação de filhos, etc.
Também os partidos políticos e a atuação
político-parlamentar constituem um carnpo aberto
à atuação dos psicólogos comunitários. Cabe
também a nós, por exemplo, colaborar no levan-
tamento de dados, na análise de temas e na elabo-
ração de programas e projetos de lei que tenham
alguma ligação com a saúde mental. Também
J
podemos colaborar no estudo psicossocial do
comportamento da população nos processos
eleitorais e de mobilização social. A discussão de
problemas e a elaboração de projetos urbanísticos
e ambientais deve contar também com a nossa
presença.
Um desafio para a Psicologia Comunitária são
os movimentos e grupos negros. Os grupos de
militância, as escolas de samba, os grupos de
capoeira, de dança afro e os grupos religiosos
desenvolvem atividades não só voltadas à luta
contra a discriminação presente na sociedade
atual, mas também no sentido de reforçar a identi-
dade étnica, cultural e religiosa do negro. Isso tem
muito a ver com a promoção da saúde mental.
Os rituais mágico-religiosos como a umbanda, o
candomblé e outros, constituem verdadeiras
estratégias terapêuticas autónomas. Creio que apesar
de contraditórios, em muitos casos, são mais
eficazes que as técnicas sofisticadas e caras da
Psicologia académica, que manipulaum código
cultural muito estranho à realidade popular.
Aqui, acredito que a atitude da Psicologia Comu-
nitária deve ser muito mais de escuta, acompanha-
mento e pesquisa, respeitando profundamente a
autonomia negra.
Em todos esses movimentos sociais, a Psicologia
Comunitária pode contribuir dentro da especifici-
dade c je cada um. Entretanto, existe um campo em
que ela pode oferecer uma colaboração muito
56 Eduardo Mourao Vasconcelos O que é Psicologia Comunitária 57
importante, que é comum a todos eles. Toda
vivência comunitária envolve, além dos aspectos
sociais e políticos, explícitos, uma série de meca-
nismos simbólicos, na maioria das vezes inconscien-
tes.
Como isso ocorre na prática?
Nos grupos populares, como em qualquer outro,
existem enormes dificuldades em se buscar formas
novas de participação, cooperação e solidariedade.
Há uma tendência muito forte, nas primeiras
atividades, de se reproduzir a apatia, a competição
ou as formas participativas e de liderança autori-
tárias, centralizadoras, que se conhecem no traba-
lho, na família, na escola ou através dos políticos
tradicionais.
Por que estas formas tradicionais de vivência em
grupo resistem tanto à mudança? É porque, além
dos mecanismos ideológicos que conscientemente
podemos questionar, estas relações também fazem
parte de uma estrutura afetíva e emocional incons-
ciente. A experiência de conviver com o conflito,
com a agressividade e com a busca de autonomia
mobiliza sensações de muito medo, ameaça e inse-
gurança nos grupos e nas pessoas.
É mais fácil, por exemplo, termos um líder
comunitário autoritário que assume todas as
responsabilidades. Por um lado, ele alimenta os
seus anseios de se sentir ídolo e mito para com os
liderados; por outro, e ao mesmo tempo, mantém
todos na situação de dependência, sem terem de
enfrentar o risco de assumir a agressividade para
com o líder e de criar e traçar caminhos novos
nunca antes percorridos pelas pessoas e pelo grupo.
Os dois processos se complementam e solidificam
esse tipo de liderança.
Assim, a superação gradativa dessas formas mais
imaturas e autoritárias de vivência em grupo na
comunidade envolve uma aprendizagem difícil e
demorada. E aqui temos um dos mais importantes
campos de trabalho para a Psicologia Comunitária,
qual seja, o de contribuir para a explicação
desses mecanismos, possibilitando assim situações
nas quais os grupos populares possam assumir e
criar novas formas de comportamento social mais
democráticas, participativas e solidárias.
Da mesma forma, a relação entre o agente
externo (os próprios profissionais e os mi l i tantes
ern geral) e a comunidade também é atravessada
por esses processos simbólicos sutis, que são
capazes, inclusive, de bloquear por mu :tn tempo o
crescimento de uma atividade comunitária. Por
exemplo, uma atuação do tipo vanguardista, em
que o agente externo acaba substituindo as pró-
prias lideranças da população, pode manter a
relação de dependência na comunidade. Então, a
atuação dos psicólogos comunitários e outros
profissionais junto aos movimentos populares vai
depender muito de como é travado e analisado
58
Eduardo Mourão Vasconcelos
este contato com eles. Essa é uma questão que
merece um debate cuidadoso por parte de todos
os agentes de intervenção nas comunidades.
As possibilidades desta relação com a comuni-
dade dependem também da forma institucional
concreta de contato e convivência do profissional
com o grupo popular. Aí podemos ver algumas
alternativas. Uma delas é a ação não mediada
institucionalmente, quando 'o psicólogo e o movi-
mento social estabelecem um contato direto
entre si. A definição das possibilidades, dos obje-
tivos e dos limites da ação do profissional deve ser
claramente explicitada junto ao grupo cliente, paia
evitar expectativas que mais tarde seriam frustradas.
Outras vezes esse relacionamento é estabelecido
através de entidades de assessoría às atívidades
populares, como as instituições de educação, os
centros de pesquisa e documentação, instituições
de saúde-, ou mesmo partidos pol í t icos de cunho
popular. Não poucas vezes ocorre que estas insti-
tuições acabam tentando fazer dos movimentos
populares urna "correia de transmissão" de suas
ideias e propostas. Definem os objetivos das
atividades, e vêem o trabalho comunitário como
uma forma de "ganhar" adeptos no meio popular.
Tanto o psicólogo como os grupos comunitários
devem se precaver para evitar esse tipo de relação,
no sentido de que os próprios movimentos sejam
donos de si mesmos, garantindo assim a autonomia
popular. E se as atividades incluírem um papel
O que é Psicologia Comunitária 59
clínico ou uma atuação mais analítica e interpre-
tativa por parte do psicólogo, é preciso discutir
bem os limites de sua ação como militante ou
incentivador direto da mobilização comunitária.
E atenção: se essa relação for mediada por
instituições públicas ou ligadas a empresas, todo
cuidado é pouco. A ação desses órgãos tem objeti-
vos muitas vezes contrários aos interesses populares,
e a atuação junto aos movimentos sociais pode ser
integrativa ou desmobilizadora, apesar das boas
intenções do profissional.
Para concluir, existe ainda, dentro do quadro de
possibilidades de ação da Psicologia Comunitária,
um campo que se descortina no Brasil e em vários
países do Terceiro Mundo. São os projetos de
serviços de saúde mental integrados ao sistema de
saúde, com ênfase nos chamados cuidados primá-
rios. É disso que pretendo falar melhor no próximo
capítulo.
O que é Psicologia Comunitária 61
O PSICÓLOGO COMUNITÁRIO
COMO PROFISSIONAL DE SAÚDE
E SAÚDE MENTAL
Entre os especialistas em saúde pública é pratica-
mente consenso a existência de uma verdadeira
crise da Medicina e dos serviços de saúde. São
serviços sofisticados de alto custo, não acessíveis
à maior parte da população e incapazes de atender
aos problemas mais comuns de saúde do povo.
Enquanto isso, as universidades continuam for-
mando um enorme contingente de profissionais de
saúde que ficarão desempregados.
Em termos muito gerais esse é o quadro dos
serviços de saúde em boa parte dos países do
Terceiro Mundo. Para se contrapor a isso, alguns
países, seguidos pela Organização Munc^a. de
Saúde (CMS; e pela Organização Panamericana de
Saúde (OPAS), vêm sugerindo a montagem de
sistemas de saúde hierarquizados e regionalizados.
Segundo este modelo, cada bairro urbano ou
distrito rural deve ter um pequeno posto de saúde
como porta de entrada do sistema. Aí devem se
realizar os chamados cuidados primários em saúde,
ou seja, ações mais preventivas e educativas com o
apoio da comunidade, bem como os primeiros
cuidados médicos curativos, mais simplificados e
ligados aos problemas mais comuns do povo.
Em alguns dos casos, principalmente nas áreas
rurais, tais cuidados primários são realizados por
auxiliares de saúde, normalmente pejsoas da
própria comunidade treinadas e supervisionadas
para isso. Nas áreas urbanas a equipe primária é
composta também de um médico generalista,
enfermeira e eventualmente dentista.
Os casos ma i? complexos, que não possam ser
resolvidos no nível primário, devem ser remetidos
para o atendimento secundário em ambulatórios
ou centros de saúde regionais, capazes de fornecer
serviços que demandem recursos médicos e equipa-
mentos u n: pouco mais sofisticados. O -oistema
se fecha então no nível terciário, com os hospitais
e centros de reabi itação, aptos a desenvolver os
serviços mais complexos. Esse sistema pode ser
melhor visualizado no diagrama ap re?entado
na Figura l.
Esse modelo tem algumas caractfísttcas bóricas.
Em primeiro lugar, visa a aumentar o acesso aos
serviços de saúde até a completa universalização do
62
Eduardo Mourao Vasconcelos
Figura l —O sistema hierarquizado de saúde
Rede secundária:
ambulatórios de saú-
de; especialidades mé-
dicasprincipais, psicólo-
gos, enfermeira, dentista,
assisterue social, etc.
.-tfT l
Rede primária: postos de saúde
em bairros urbanos e distritos rurais:
auxiliares de saúde, médico generalista,
enfermeira, etc.
atendimento. Todo habitante deve ter o seu posto
de saúde como referência, com serviços gratuitos.
O sistema deve ser prioritariamente estatal, mas
instituições privadas podem ser incluídas, desde
que integradas organicamente aos diferentes níveis
de atendimento. Evita-se assim a duplicação de
esforços, quando instituições diferentes concorrem
entre si numa mesma área, oferecendo os mesmos
serviços.
O que é Psicologia Comunitária 63
As escolas de profissionais da saúde também
devem ser integradas ao sistema. Estudantes e
professores, ao mesmo tempo que aprendem e
lecionam a teoria, realizam a prática, prestando
serviço à comunidade.
Esse modelo busca se adaptará realidade especí-
fica de saúde da população cliente. Nesta estratégia,
faia-se da simplificação da tecnologia médica,
cujo processo não visa ao seu barateamento, com
a consequente diminuição da qualidade técnica
dos serviços. A simplificação, a meu ver, tem
alguns objetivos muito definidos:
1) a adequação ao conjunto de doenças mais
prevalentes no meio popular, dada a situação
de fome e quadros infecciosos e epidemias
típicas das situações de pobreza e de falta de
saneamento básico;
2} uma estratégia preventiva em saúde;
3} a compreensibilidade das ações em saúde pela
população, permitindo a participação ativa do
povo nestas ações;
4} uma luta contra o consumisrro imposto pelas
empresas farmacêuticas e de equipamentos
médicos.
Esta simplificação, se realizada dentro desses
objetivos e adaptada às condições regionais, torna
possível uma extensão dos serviços a todo o país.
Além disso, busca-se a cobertura de todas as
64 Eduardo Mourao Vasconcelos
esferas da saúde e todas as faixas etárias. Ou seja,
os serviços devem vísar às condições de vida do
povo, seus problemas somáticos, bem como os de
ordem psicológica, de forma integrada, e atingindo
dos recém-nascidos aos velhinhos. Um outro
aspecto interessante é o propósito de se reconhecer
a existência das estratégias populares e buscar
pesquisá-las e integrá-las ao conjunto de ações de
saúde a serem realizadas no nível primário.
Além de ser um modelo mais racionalizado, o
objetivo é desenvolver serviços de saúde predomi-
nantemente preventivos. E nesse momento então
fala-se muito em participação comunitária da
população na promoção da saúde, como condição
indispensável de funcionamento de todo o sistema.
Por isso ele é conhecido na literatura especializada
como o modelo de saúde comunitária.
Há cerca de dez anos, a OMS vem propondo a
integração dos cuidados específicos em saúde
mental ao sistema de saúde em geral. Ou seja, a
saída para a crise da assistência psiquiátrica cen-
trada na hospitalização está na descentralização
dos sen/iços, que seriam prestados então em todos
os níveis de atenção, a começar pelos pequenos
postos, em bases também comunitárias.
A ava iação mais geral da proposta desse modelo
entre os analistas é polémica. Torna-se claro que,
do ponto de viste oficial, ele é coerente com
uma estratégia de expansão dos serviços de saúde
a setores da população considerados marginais
O que é Psicologia Comunitária 65
ao processo produtivo mais avançado, e, portanto,
tem uma significação sobretudo política. Uma
das facetas desta estratégia, entre outras, é o que
alguns autores chamam de medicalizar. Quando
a Medicina trata a verminose nas periferias de
nossas cidades apenas com remédios, ela está
medicalizando, pois a cura definitiva para a ver-
minose está principalmente em ter ruas calçadas,
água tratada e encanada, e boa rede de esgotos.
Medicalizar, então, é abordar problemas sociais
apenas com soluções médicas paliativas.
Outro aspecto do modelo é a tentativa de
normalizar as pessoas Através das regras médicas
e higiénicas, busca-se que cada um assimile as
normas de comportamento pessoal e social mais
adequadas à dominação do corpo, dos indivíduos
e dos grupos sociais.
No entanto, não podemos reduzir a significação
do modelo às estratégias dominantes do sistema
económico e político. Ele abre espaço e é passível
de uma reapropriaçao, ou seja, se garantida uma
série de condições económicas, políticas e insti-
tucionais, o modelo pode avançar bastante uma
aproximação dos serviços de saúde mental aos
interesses e condições de vida de nossa população.
Alguns aspectos do modelo devem ser particula-
rizados quando tratamos da área de saúde mental.
Várias vezes, em debates com estudantes e profis-
sionais da Psicologia, ouço perguntas sobre se a
nossa população precisa efetivamente de nossos
66
Eduardo Mourão Vasconcelos O que é Psicologia Comunitária
cuidados. Na cabeça deles fica a imagem de que
o povo se preocupa mesmo é com a sobrevivência
imediata, com as condições de vida mais elemen-
tares. E associam isso com a constatação de que
os trabalhadores não batem à porta de nossos
consultórios, ou mesmo se sentem amedrontados
quando diante de psicólogos. Dessas constatações
tiram a conclusão de que nosso povo ainda não
demandou os serviços da Psicologia e de que não
temos nada a fazer junto deles.
Costumo comparar essa visão com a de um
mecânico que só conhece e só dispõe de uma
chave para parafusos e porcas de 10 mi)ír-.?iros,
e é colocado diante de um motor cujos parafusos
têm 16 milímetros. Acaba abandonando o serviço
dizendo que ali ele não tem nada a fazer . . .
Se o leitor íevar a questão a um médico que
tenha boa sensibilidade para aspectos psicológicos
de seus pacientes e que trabalhe ern ambulatório
de periferia urbana ou área rural, possivelmente
ele desmentirá taí visão. Deverá contar os casos
de pacientes que reclamavam de vários sintomas
orgânicos imprecisos e incoerentes entre si. E que,
na medida que se incentive que falem sobre sua
vida de fcxma mais livre, acabam explicitando as
verdadeiras razões que os trazem ali: a vida infeliz,
cansativa, vida conjugal extremamente pobre e
opressiva, principalmente as mulheres , . .
O que quero dizer é que a demande por cuidados
específicos de saúde mental emergem implicita-
mente, sendo uma de suas formas de expressão o
pedido de cuidados médicos. E não é difícil enten-
der as razões para que isto ocorra: a demanda
nunca é formulada unilateralmente, ou seja, o
povo sabe que o único profissional acessível é
o médico, e este apenas lê a linguagem do corpo,
do orgânico, e tenderá a resolver o problema com
uma receita. Isso se encaixa bem com o desejo mais
comum de resolver magicamente as ansiedades e
dificuldades emocionais, sem confrontá-las aber-
tamente. A própria formação cultural popular
tende a associar os fenómenos psicológicos aos
"problemas de nervo", em uma abordagem bioló-
gica mítica, ou a fenómenos mágico-religiosos.
Assim, o ritual de atendimento médico massifi-
cado, com um mínimo de 16 consultas por um
período sempre menor do que quatro horas de
trabalho (padrão-base proposto pela próoria OMS)
acaba medicalizando e entorpecendo os oroblemas
sociais e psicológicos de nossa população. A
'ntegração de serviços adequados de saúde menta!
cos cuidados médicos básicos pode significar uma
quebra desse ciclo, e permitir a explicitaçao da
demanda por cuidados em Psicologia antes da
manifestação aguda dos quadros que justificariam
a internação psiquiátrica.
idealmente, esse atendimento em saúde mental,
na medida que feito mais próximo ao loca! de
moradia da população, permite uma abordagem
mais abrangente, tendo como base toda a família
68 Eduardo Mourão Vasconcelos
e mesmo a realidade social e comunitária do
bairro. Ademais, por ter uma clientela fixa, permite
um atendimento mais personalizado.
Além de possibilitar o diagnóstico e o trata-
mento mais precoce da "doença", o modelo

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