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STAM, Robert. Introdução In A literatura através do cinema Realismo, mágica e a arte da adaptação

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1ltf~i$~4 I
I
ROBERT STAM
A liTeRATURA ATRAVÉS DO CINEMA
ReAlISMO, MAGIA c A ARTe DA ADAPTAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
REITOR RonaldoTadêuPena
VleE-REITORA Heloisa Maria Murgel Scarling
EDITORA UFMG
DiRETOR Wander Meio Miranda
VJCE-DIRETOM SilvanaCóser
CONSELHO EDITORIAL
Wander Meio Miranda (PRESIOENTE)
Carios Antônio Leite Brandão
Juarez Rocha Guimarães
MárcioGomesSoares
Maria das Graças Santa Bárbara
Maria Helena Damnsceno e Silva Megale
Paulo Sérgio Lacerda Belrão
SilvaM Cóser
Tradução
MAmE-MINE KREMER
GLAUCIA RENATE GONÇALVES
BeloHorizonte
EditoraUFMG
2008
Figura7.7- ApresentaçàomusicalemBa170CO (1988)dePaulLeduc,
produzidopeloInstitutoCubanodelArteeIndustriasCinematográficos
(ICAIC)/SociedadEstatalQuintoCentenario/ÓpaJoFilms,distribuído
porInternationalFilmCircuit;fotoreproduzidaporcortesiadoBritish
Filmlnstitute
Não foram poupados esforços no sentido de localizar os
detentoresde direitosautoraisparaquefosse obtidaa permissão
parausodo materialprotegidopor lei.A editoradesculpa-sepor
quaisquererrosou omissõescometidasna listagemacimae agra-
deceriaanotificaçãodecorreçõesquedevamserincorporadasem
futurasreimpressõesou edições.
16
,.
INTRODUÇAO
A literaturaatravésdo cinema: realismo,magia e a arte da
adaptaçãoapresentaa históriada literaturaatravésdo cinema.
O livro,que poderiatersido intituladoClássicosda literaturano
cinema,ofereceum relatohistoriadode momentosimportantes
nahistóriado romancenãosó emtermosliterários,comotambém
refratadosatravésdo prisma da adaptação.Obviamenteseriauma
tarefa"quixotesca"cobrir todaa históriado romancedesdeCer-
vantes,por issoabordoapenas"momentos"e tendênciascruciais.
Os romancesanalisadossão,em sua maioria,"romances-chave"
enquanto"clássicos"quegeraramumavastaestirpede"descenden-
tes"literáriose fílmícos.Por exemplo,tantoDomQuixotequanto
RobinsonCrusoédão início a linhagensopostasno romance,e
ambosforamreescrítose filmadosinúmerasvezes.Dom Quixote
é o texto-fonteparaa tradiçãoparódica,intertextuale "mágica"
de romancescomo TomJonese TristramShandy,que ostentam
seusprópriosartifíciose técnicas.Por suavez, RobinsonCrnsoé,
de Defoe,é um texto-fonteseminalparaa tradiçãodo romance
miméticosupostamentebaseadona "vida real"e escritode tal
formaa gerarumaforteimpressãode realidadefactual.
Madame Bovmy, de Flauben, entretanto,contrapõeambas
as tradiçõesrealistae reflexiva/cervantina.Essaobrade Flaubert
foi igualmenteinfluentetantoem termostemáticos- monotonia
campestre,desejosexual,desilusão- quantodastécnicasempre-
gadas- o discursoindiretolivre, o uso do pretéritoimperfeito,
o empregodo pastiche.Notasdo subterrâneo,semelhantemente,
desencadeouumasériede romancesque empregamnarradores
problemáticose autodesrnistificadores,começandocomA náusea,
de Sartre,O homeminvisível,de Ellison,Lotita,de Nabokov,e A
hora da estrela,de Lispector.
Cada capítulode A literaturaatravésdo cinemaretratauma
tendêncialiterária- a paródiade Cervantes,o realismodeDefoe
(e as tentativasde "contra-escrever"talestilo),a reflexividadede
Fielding,o perspectivismoflaubertiano,apolifoniadeDostoievsky,
a experimentação nouvelle vague, o "realismo mágico" de
Márquez- antesde explorarsuasramificaçõescinemáticas.Ao
final de cadacapítulo,sugiroa relevânciadessesromancespara
a vidae culturacontemporâneas.O capítulosobreDom Qufxote
terminacom observaçõessobreos aspectoscervantinosdo pós-
modernismo;aquele sobre Robinson Crusoé,com comentários
sobreNdufragoesobreSuroívot;um realitygameshow.O capítulo
sobreMadameBovaryleva-nosao filmeA rosapúrpura doCairo,
de Woody Allen. O capítulosobre Notasdo subtelTâneorevela
um parentescosubterrâneoentre os narradoresatormentados
de Dostoievskye os stand-upcomedians!dos diasde hoje.Ao
discutira midia contemporâneae refletira respeitoda realidade
atualdos romances(e dos filmes),esperoterem meu público-
alvonãoapenasestudiososde literaturae cinema,COmOtambém
estudantessaturadospelamídiamasnãonecessariamenteversados
no cânoneliterário.
A tensãoentrea magiae o realismo,a reflexividadee o ilu-
sionismo,temalimentadoaarte.Qualquerrepresentaçãoartística
pode se fazer passarpor "realista"ou abertamenteadmitirsua
condiçãoderepresentação.O realismoilusionistaapresentaseus
personagenscomopessoasreais,suaseqüênciade palavrascomo
fatosubstanciado.Textosreflexivosou mágicos,por outro lado,
chamama atençãoparasuaprópriaartillcialidadecomoconstrutos
teXtuaissejapelahiperbolizaçãomágicade improbabilídades,seja
atravésdo esvaziamentoreflexivo,rninimalistado realismo.Nesse
sentido,Dom Quixote orquestratanto magia quanto realismo
antecipando,assim,o "realismomágico", De fato, para René
Girard, "todasas idéiasdo romance ocidentalestãopresentes,
embrionariamente,em Dom Quixote'.2Como retomamoscom
freqüênciaa Dom Quixotecomo matrizseminalpara a reflexi-
vidademágica,o presentelivro poderia tersido chamado"uma
18
meditaçãosobre Quixote', parafraseandoOrtegay Gasset,ou
melhor,umameditaçãotantosobreo "quixotesco"quantosobre
o "cervantino".Muitosdosromancescentraisàtradiçãoeuropéia
- O vermelhoeo negro,de Stendhal,Ilusõesperdidas,deBalzac,
Madame Bovaty,de Flaubert,Em buscado tempoperdido, de
Proust- empreendema trajetóriacervantinado desencantamento
emqueasilusõespromovidaspelaleituraadolescentesãosiste-
maticamentedesfeitaspelaexperiênciado mundo'real.Maseste
tipodequixotismoestátãodisponívelparao cinemaquantopara
a literatura.Assimcomo a obra OssofrimentosdojovemWlerther
inspirouumaondadesuicídiosemtodaaEuropa,diversosfilmes
-tambémjá induzirama comportamentoimitativo.Na verdade,
inúmerosfilmes,c?lmo,por exemplo,Sonhosde um sedutore
Cãesdealuguel,exploramo temacervantinode personagens!
espectadoresque procuramemularseusheróisdo cinema.
ALÉM DA "FIDELIDADE"
EmboraA literaturaatravésdo cinemasejaorganizadodia-
cronicamente,seguindoa cronologiados textosliteráriose não
aquela dos textoscinematográficos,certos temassincrônicos
surgirãorelativamentea todos os textosdiscutidos.Ainda que
este não seja o lugar para uma teoria sistemática- algo que
tenteifazeremmeuensaio"A teoriae práticadaadaptação",no
volume Literatureandfilm -, posso brevementedelinearmeu
entendimentode algumasdas categoriascruciaisoperantesao
longo do texto,
O "argumento"geral de A literatura atravésdo cinema
entrelaçaumasériede fios: a críticado discursoda "fidelidade",
a naturezamulticulturalda interteÀwalidadeartística,a natureza
problemáticado ilusionismo,ariquezade alternativas"mágicas"e
reflexivasao realismoconvencionale a importânciacrueialtanto
da especificidadedo meio de comunicação- o ftlmeenquanto
tal - quanto dos elementOsmigratórios,de entrecruzamento,
compartilhadospelo cinemae outrastiposde mídia.
A linguagemtradicionalda crítica à adaptaçãofílmica de
romances,comojá argumenteianteriormente,3muitasvezestem
19
sido extremamentediscriminatória,disseminandoa idéiade que
o cinemavemprestandoum desserviçoà literatura.Termoscomo
"infidelidade","traição","deformação","violação","vulgarização",
"adulteração"e "profanação"proliferame veiculamsua própria
cargade opróbrio.Apesardavariedadede acusações,suamotriz
parecesersemprea mesma- o livro eramelhor.
A noção de "fidelidade"contém,não se pode negar, uma
parcelade verdade.Quando dizemos que uma adaptaçãofoi
"infiel"aooriginal,aprópríaviolênciado termoexpressaagrande
decepção que sentimosquando uma adaptaçãofílmica não
conseguecaptaraquiloqueentendemossera narrativa,temática,
e característicasestéticasfundamentaisencontradasemsuafonte
literária.A noção de fídelidadeganhaforçapersuasivaa partir
de nossoentendimentode que: (a) algumasadaptaçõesde/ato
não conseguemcaptaro que mais apreciamosnos romances-
fonte;(b) algumasadaptaçõessãorealmentemelhoresdo que
outras;(c) algumasadaptaçõesperdempelo menosalgumasdas
característicasmanifestasemsuasfontes.Masamediocridadede
algumasadaptaçõese a parcial persuasãoda "fidelidade"não
deveriamlevar-nosa endossara fidelidadecomo um princípio
metodológico.Na realidade,podemosquestionaratémesmose
a fidelidadeestritaépossível.Umaadaptaçãoéautomaticamente
diferentee originaldevidoà mudançado meiode comunicação.
A passagemde um meio unicamenteverbal como o romance
paraum meio multifacetadocomo o filme,que pode jogarnão
somentecompalavras(escritasefaladas),masaindacommúsica,
efeitossonorose imagensfotográficasanimadas,explicaa pouca
probabilidadedeumaFidelidadeliteral,queeusugeririaqualificar
atémesmode indesejável.
A literaturaatravésdocinemasimplesmenteadmite,ao invés
de articular, os vários desenvolvimentosteóricos que foram
abalandoas premissasfundadorassobre as quais a doutrina
da fidelidade historicamentese baseou. Os desenvolvimentos
estruturalistasepós-estruturalistaslançamdúvidassobreidéiasde
pureza,essênciaeorigem,provocandoumimpactoindiretosobre
a discussãoacercada adaptação.A teoriada intertextualidade
de Kristeva,com raízesno "dialogismo"de Bakhtin,enfatizoua
interminávelpermutaçãode traçostextuais,e não a "fidelidade"
de um textoposteriorem relaçãoa um anterior,o que facilitou
20
_umaabordagemmenosdiscriminatória.Enquantoisso,o conceito
bakhtinianoproto-pós-esc.rutura!ísrado autorcomoharmonizador
de discursos preexistentes, paralelamente à degradação
foucaultianado autor em favor de um "anonimatodifuso do
discurso",abriuo caminhoparaumaabordagemàarte"discursiva"
e não-originária.A atitudebakhtinianadiantedo autor literário
enquantosituado num "territóriointerindividual"sugereuma
atitudede reavaliaçãono quese refereà "originalidade"artística.
A expressãoartísticaé sempreo que Bakhtin chamade uma
"construçãohíbrida",que misturaa palavrade umapessoacom
a de outra.As palavrasde Bakhtina respeitoda literaturacomo
uma"construçãohíbrida"aplicam-seaindamaisobviamenteaum
meioque envolvea colaboração,como o filme.A originalidade
total,conseqüentemente,nãoé possívelnemmesmodesejável.E
senaliteraturaa "originalidade"já nãoé tãovalorizada,a "ofensa"
dese "trair"um original,por exemplo,atravésde umaadaptação
"infiel",é um pecadoaindamenor.
Se "fidelidade" é um tropa inadequado, quais os trapos
seriammais adequados?A teoriada adaptaçãodispõe de um
rico universode termose (rapos- tradução,realização,leitura,
crítica,dialogização,canibalização,transmutação,transfiguração,
encarnação,transmogrifícação,transcodificação,desempenho,
significação,reescrita,detoumement- que trazemà luz uma
diferentedimensãode adaptação.O tropo da adaptaçãocomo
uma"leiQ1ra"do romance-fonte,inevitavelmenteparcial,pessoal,
conjuntural,por exemplo, sugere que, da mesmaforma que
qualquerte},,'toliteráriopodegerarumainfmidadedeleituras,assim
tambémqualquerromancepode gerarumasériede adaptações.
Dessaforma,umaadaptaçãonão étantoa ressuscitaçãode uma
palavra original, mas uma volta num processo dialógico em
andamento.O dialogismointertextual,portanto,auxilia-nosa
transcenderasaporiasda "fidelidade".
GérardGenette,em Palímpsestos(1982),4partindodo "dialo-
gismo"de BaJrlltine da "intertextualidade"de Kristeva,propõe
o termo"transtextualidade",mais abrangente,para referir-sea
"tudoaquiloquecolocaum texto,manifestaou secretamente,em
relaçãocomoutrostextos,"postulando,porfim,cincocategorias.
A quintadelas,a "hipertextualidade",pareceserparticularmente
produtivano que tangeà adaptação.O termoserefereà relação
21
entreumdeterminadotexto,queGenettedenomina"hipertexto",
e umoutroanterior,o "hipotexto",queo primeirotransforma,
modifica,elaboraouamplia.Naliteratura,oshipote>..'tosdaEneida
incluema Odisséia e a llíada, enquantooshipotextosde Ulisses,
deJoyce,incluema Odisséia e liamlet.Adaptaçõesfílmicas,nes-
tesentido,sãohipertex(Qsnascidosdehipotextospreexistentes,
transfoffi1adosporoperaçõesdeseleção,ampliação,concretização
erealização.AsdiversasadaptaçõesfílmicasdeLigaçõesperigosas
(Vadim,Frears,Forman),porexemplo,constituemleiturashiper-
tex[Uaisvariadas,desencadeadaspelomesmohipotexto,Defato,
asváriasadaptaçõesanterioresjuntaspodemformarumhipotexto
maior,cumulativo,disponívelao cineastaqueocupaumlugar
relativamente"tardio"nessaseqüência.
Ao adotarmosumaabordagemampla,intertextual,emvez
de umaposturarestrita,discríminatória,não abandonamos
com issoas noçõesde julgamentoe avaliação.Mas a nossa
discussãoserámenosmoralista,menoscomprometidacom
hierarquiasnão aceitas.Aindapodemosfalarde adaptações
bem-sucedidasou não,masagoraorientadosnãopor noções
rudimentaresde"fidelidade",esimpelaatençãodadaarespostas
dialógicasespecíficas,a "leituras","críticas","interpretações"e
"reescritas"deromances-fonte,emanálisesqueinvariavelmente
levamemconsideraçãoasinevitáveislacunase transformações
na passagempara mídiase materiaisde expressãomuíto
diferentes.Adaptaçõesfílmicascaemno contínuoredemoinho
de transformaçõese referênciasintertextuais,de textosque
geramoutrostextosnuminterminávelprocessodereciclagem,
rransformaçãoetransmutação,semumpontodeorigemvisível.
Portanto,ao invésde adotarumaabordagemavaliatíva,irei
focalizarasreviravoltasdodialogismointertextual.
A QUESTÃO DO GÊNERO
A teoriada adaptaçãoinevitavelmenteherdaqueStõesante-
rioresrelativasa intertextualidadee gênero.Etimologicamente
proveniemedegenus,do latim,quesignifica"tipo",a críticade
"gênero"começou,pelomenosno "Ocidente'?comoa classi-
ficaçãodosdiversostiposde textosliteráriose a evoluçãodas
22
I
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II
I
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I
I
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formasliterárias.Aristóteles,por exemplo,faziadistinçãoentre
o meioderepresentação,osobíetosrepresentadose°modode
apresentação,o queresultounaconhecidatríadedo épico,do
dramáticoe do lírico.O mundodo cinemaherdoueSSehábito
antigodeclassificarasobrasdearteem"tipos",algunse},.'traídos
daliteratura(comédia,tragédia,melodrama),enquantooutrossão
maisespecificamentevisUai\~.cinemáticos:"visões","realidades",
tableaux,~~rdesenhos animados".Adaptaçõesfílmicasderomancesinvariaveltnentesobrepõemumconjuntode
convençõesdegênero:umaextraídado intertextogenéricodo
próprioromance-fonteeaoutracompostapelosgênerosempre-
gadospelamimatradutóriadofUme,A artedaadaptaçãofílmica
consiste,emparte,naescolhadequaisconvençõesdegênerosão
transponíveisparaonovomeio,equaisprecisamserdescartadas,
suplementadas,transcodificadasou substituídas.O romanceA
históriade Torn]ones,um enjeitado,comoveremos(capítulo3),
serve-sedapoesiaépica,doromancecervantino,dopastoriletc.,
aopassoquea adaptaçãofílmicadeTonyRichardsonemprega
nãoapenasaquelesgênerosliterários,mastambémosgêneros
especificamentecinematográficos,taiscomoo filmeburlescoda
eradocinemamudoeo cinemaverité.
Ogênerofílrnico,comoogêneroliterárioantesdele,épenneável
a tensõeshistóricase sociais.ComoargumentaErichAuerbach
emMimesis,a literaturaocidental,durantetodo°seupercurso,
trabalhouno sentidode pôrfunà elitista"separaçâodeestilos"
inerenteaomodelotrágicogrego,comsuashierarquiasdistintas:
aU"agédiasuperioràcomédia;anobreza,aodemos,6Umrealismo
enraizadonoéthosdojudaísmoigualitáriofoi,lentamente,demo-
cratizandoa literatura.A noçãojudaicade"todasasalmasiguais
peranteDeus"foi,gradualmente,hannonizandoa dignidadede
umestilonobrecomasclasses"inferiores"depessoas.Osgêne-
rosvêmacompanhados,nessesentido,deconotaçõesdeclassee
avaliaçõessociais.Naliteratura,o romance,comraÍzesnomundo
dosensocomumdafactlcidadeburguesa,desafiao romancede
cavalaria,freqüentementeassociadoanoçõesaristocráticasdecor-
tesaniaedecavalaria.A arterevitaliza-serecorrendoaestratégias
deformase gênerosanteriormentemarginalizadas,canonizando
o queoutroraforadesprezado.
23
Aolongodestelivro.nosdedicamosaessestópicosinterligados
dehierarquiassociaise estéticas,deestratificaçõesdegêneroe
dasociedade.Seráqueum dadoromanceou suaadaptação
conduza sociedadea umacondiçãomaisigualitáriaaocriticardesigualdadessociaisbaseadasemeixosde estratificação,tais
comoraça,gênero,classee sexLlalidade,ou elesimplesmente
absorve(ou mesmoglorifica)essasiniqüidadese hierarquias
comosefossemnaturaisepredestinadasporDeus?Qualogrupo
socialrepresentadonumromance/filme?Quemsãoos sujeitos
e.gllt=JILS~O.osobje~~s_º~_r_~EE~.5entação?Q~~grLlP~l1J!a
de.wivitégiossodalsou estéticosf'Eriique"língu(l,~_,<;,~tilo-a
o representãÇif?-eslá-errquadraai;'equaissãoasCÕ~~[ªç,Qessodais
-dess@s<;::s!í1o~~[í~~~asr"-" -,' - .-- -'-'-'
Emtermoshistóricose de gênero,tantoo romancequanto
o filmetêmconsistentementecanibalizadogênerose mídias
antecedentes.O romancecomeçouorquestrandoumadiversidade
poUfônicade materiais- ficçõesde cortesania,literaturade
viagem,alegoriareligiosa,obrasdepilhéria- transformadosnuma
novaformanarrativa,reiteradamentedefraudandoouanexando
artesvizinhas,criandonovoshíbridoscomoromancespoéticos,
romancesdramáticos,romancesepistolares,eassimpordiante.O
cinemafoi trazendoestacanibaiizaçãoaoseuparoxismo.Como
linguagemricaesensorialmentecomposta,o cinema,enquanto
meiodecomunicação,estáabertoatodosostiposdesimbolismo
e energiasliteráriase imagísticas,a todasas representações
coletivas,correntesideológicas,tendênciasestéticaseaoinfinito
jogode influênciasno cinema,nasoutrasartese naculturade
modogeral.Além disso,aintertextualidadedocinematemvárias
trilhas.A trilhadaimagem"herda"ahistóriadapinturaeasartes
visuais,aopassoquea trilhado som "herda"todaa históriada
música,do diálogoe a experimentaçãosonora.A adaptação,
nestesentido,consistenaampliaçãodoteÀ1o-fonteatravé~ç1esses
rnultiplosiriIertextQ.s.---- __ ,o -- __ o -----.0
REALISMO LITERÁRIO E MAGIA
UmoutroargumentonadiscussãogeraldeA literaturaatravés
docinema:realismo,magiaea arteda adaptaçãotemavercom
24
a eternaquestãodo "realismo"artístico.Termoelásticoe extra,
'00 ordinariamentecontestado,"realismo"vemcarregadodeincrus-
taçõesmi/enaresdedebatesfilosóficos e literáriosprecedentes.
Basicamentearraigadono conceitoclássicogregode mfmesís
(imitação),o conceitoderealismosomenteganhasignificância
programáticano séculodezenove,quandopassaa denotarum
movimentonasartesfigurativae narrativadedicadoà obser-
vaçãoe representaçãoprecisado mundocontemporâneo.Um
neologismocunhadopeloscríticosdeartefranceses,o realismo
eraoriginalmenteassociadoaumaatitudeopositoraemrelação
aosmodelosromânticoe neoclássiconaficçãoe napintura.Os
romancesrealistasdeescritorescomoBalzac,Stendhal,Flaubert,
GeorgeElioteEçadeQueirozinserirampersonagensintensamen-
teindividualizadoseseriamenteconcebidosemtípicassituações
sociaiscontemporâneas,Subjacenteao impulsorealista,havia
umateleologiaimplícitadedemocratizaçãosocialfavorecendoa
emergênciaartísticade"gruposhumanossocialmenteinferiorese
maisextensivosàposiçãodetemanarepresentaçãoproblemática-
existencial",7Críticosliteráriosfaziamdistinçãoentreesserealismo
profundo,democratizamee um"naturalismo"raso,reducionista
e obsessivamenteverídico- realizadomaisnotoriamentenos
romancesdeEmile201a- cujasrepresentaçõeshumanastinham
comomodeloasciênciasbiológicas.
Cadaumdostextosdiscutidosnestelivropodeseranalisado
emtermosdeseuscoeficientesvariantesdemagia,reflexividade
e real;.;mo:o paródicoantiilusionismode Dom Quixote, a
abordagemdocumentário-reatistadeRobinsonCmsoé,o realismo
perspectivistade Madame Bovary, o realismosubjetivode
Hirosbima,meu amor, o modernismoreflexivode O desprezo,
o "realismomágico"deErendira e Barroco.Ao longodo livro,
voltareiàstensõesprodutivasentreatradiçãoreflexiva,paródíca,
retomandoDom QUixote,por um lado,e a tradição"realista",
revisitandoRobinsonCrusoé,poroutro.Aomesmotempo,ainda
estaremossendoprovincianose eurocêmricosao postularmos
somenteduastradiçõesbásicas.CríticoscomoArthurHeiserman
(lbe nove!beforethenove!)e MargaretAnneDoody(lbe true
storyof thenove!)argumentamqueo romancenãocomeçouno
Renascimento,mas"temumahistóriacontínuadecercadedois
milanos".8
25
Algunscriticasrejeitama tradição,mencionadaanteriormente,
que demonizao romancede cavalaria,muitasvezescodificado
comofeminino,arcaico,supersticiosoesuspeitamente"mágico",
enquantodefinemo romancecomo a quintessênciada moder-
nidade européia. Críticos anglocêntricosdão excessivaênfase
aos liamesdo romancecom o protestantismoe o capitalismo.
Assim,crIticascomo Ian Wattprivilegiamo séculodezoito,mais
precisamenteo augedaforçado romanceinglês,elidindo outras
tradiçõesnacionaise outraspossíveisnarrativizações.9Umagran-
de variedadede críticoscompartilhaumaabordagemteleológica,
quasehegeliana,que sublinha a preponderância"progressista"
dos vestígiosdo passado.Dentrodessanarrativade extermínio,
formas"arcaicas"e "medievais"como a épicae o romancede
cavalariainevitavelmentecedemespaçoaformasmodernascomo
o romance,do mesmomodo que a aristocraciapalacianacede
espaçoà classemédia,e a mágica"oriental"dá lugarà ciência
"ocidental".Apesardessecosmopolitismopan-europeu,mesmo
uma figuracomo Auerbachaindavê a literatura"ocidental"ca-
minhando,inexoravelmente,paraum único télosdo realismo.A
visãoteleológicageraldispensaantigosromancescomo O asno
de ouro por nãoseremrealmenteromances,mesmosendo"prosa
de ficção de certaextensão".10
A críticaeurocêntricacanônicatendea traçara históriadaarte,
comofaz a históriademodogeral,"do norteaonoroeste",numa
trajetóriaque vai da Bíblia e da Odisséiaao realismoliterário
e ao modernismoartístico.Mas podemos Ver essestextosde
fundação,a Bíblia e a Odisséia,como "ocidentais"?A Bíblia tem
raízesna África, Palestina,Mesopotâmiae no Mediterrâneo,e a
culturagregaclássicasofreuforte impactodasculturassemítica,
egípcíae etíope.
Sedefíninnoso romancesimplesmentecomo"prosadeficção
de certaextensão",então o gênerovai muito mais longe, até
mesmoantesdeDomQuixote,chegandoaosgrandesromancistas
daAntigüidadecomoosegípcios,árabes,persas,indianosesírios.
Enquantoa narrativadifusionlstaeurocêntricaenreda,a história
do romancemarcandoseu nascimentona Europa,espalhando-
se depois para a África e a Ásia, seria,pois, igualmentelógico
considerarqueo romancetenhasurgidoforadaEuropa,chegando
depoisatélá. ConformeapontaMargaretDoody,o romancefoi o
26
'F'f
~,
1
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I
I
I
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I
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produtodo "contatoentreo Sul daEuropa,o OestedaÁsia,e o
NortedaÁfrica".nO romancetem,portanto,raízesnahistóriada
baciamediterrãneamultirraciale niultilíngüe.O cânone,segundo
Harold Bloom, não é exclusivamente"ocidental".Fragmentos
de papiro de romancessugeriramque a práticada leiturade
romancesera comum entreos egípciosno século dois d.e. E
não é por acidenteque o título Aethiopika,de Beliodorus, o
romancegregomaislongodentreos quesobreviveram,significa
"Históríada Etfópid' (ênfaseminha).Um escritorrenascentista
italiano como Boccaccio achavanormal recorrerao repertório
orientaldasFábulasdeBidpai e Sindbad,ofilósofo.(AtéDisney
retomaAladime asMil eumanoites.)EscritorescomoCervantes
e Fieldingconheciameforaminfluenciadospor taistextos.Como
assinalaDoody, "Quemqúerquetenhalido Pamelaou Torn]ones
esteveemcontatocomHeliodorus,Longo,Amadis,Petrônio",e
nós tambémnos aproximamosdelesquando"lemosautoresdos'
séculosdezenoveevinte[taiscomoSalmanRushdielquepor sua
vez leramoutrosautoresque leramessasobras"Y
Há "maisno céuenaterra",portanto,do queseimaginadentro
dos cânonesprovincianosdo verismoocidental.A valorização
do realismoé freqüentementeassociadaà idéiade que a magia'
e o fantásticoforam desbancadospela Razão do I1uminismo.
Uma visão linear, "progressista"de tais questõesconsidera
que a humanidadetenha"ultrapassado"essasformasarcaicas
e irracionais;o mundo move-separa frente,inexoravelmente,
em um curso global e unidirecional. A magia e o romance
desvalorizam-secomo vestígiosanacrônicosou velhos modos
deconsciênciaa serem"superados"por formasmaisevoluídase
racionaisdaModernidadeIluminista.A fantasiae a magia,nessa
perspectiva,sãovestígiosdeumpassadoqueémelhoresquecer.
Masessasformasarcaicasnuncasãocompletamenteenterradas.Pelo contrário,seus espectrosassombram,ou melhor,animam
toda a históriada ficção moderna,na formado maravilhosoe
do romancepresenteem DomQuixote,nos anseiosromânticos
de EmmaBovary,na amargarejeiçãoda ciênciae do iluminismo
do Homemdo Subterrâneoou aindana afirmaçãodo arcaicoe
do fantásticopelo RealismoMágico como aspectosdo "surreal
quotidiano"da AméricaLatinacontemporânea.
27
Tambémomodernismoartísticofoitradicionalmentedefinido
emcontraposiçãoaorealismocomonormadominantederepre-
semação.Porém,foradoslimitesocidentais,orealismoraramente
dominou;a reflexividademodernistacomoreaçãoaorealismo,
portanto,dificilmenteconseguiriaexercero mesmopoderde
escândaloeprovocação.O modernismo,nestesentido,podeser
vistodecertaformacomoumarebeliãoprovincianaelocal.Em
imensasregiõesdomundo,eporlongosperíodosdehistóriada
arte,houvepoucaadesãooumesmointeressepelorealismo.Na
Índia,umatradiçãonarrativadedoismilanosretomaà épicae
aodramaclássicosdosânscrito,querelatamosmitosdacultura
hinduatravésdeurnaestéticamenosbaseadaempersonagens
coerentese numenredolineardo queemsutismodulaçõesde
sentimentoe disposiçãodeânimo(rasa).
O realismocomonormapodeservistocomoprovinciano
atémesmona Europa.EmRabelaiseseumundo,Bakhtinfala
do "carnavalesco"comoumatradiçãocontra-hegemônicacuja
históriavaidosfestivaisgregosdionisíacosedasaturnáliaromana
ao realismogrotescodo "carnavalesco"medieval,passando
por Shakespearee Cervantes,chegandofinalmentea Jarry e
aoSurrealismo.13Conformea teorizaçãodeBakhtin,o carnaval
abraçaumaestéticaanticlásslcaquerejeitaaunldadeeaharmonia
formalparafavorecero assimétrlco,o heterogêneo,o oximoro,
o miscigenado.
MAGIA E REALISMO NO CINEMA
Quantoaocinema,aquestãodo"realismo"sempreestevepre-
senteoraconsideradacomoideal,oracomoumobjetodeopró-
brio.Osprópriosnomesdemovimentosfílmicosdãoo tomdas
mudançassobreo ternadorealismo:o "sunealismo"deBunuel
e Dalí,o "realismopoético"deCarné/Prevert,o "neo-realismo"
deRossellinie de Sica,o "realismosubjetivo"deAntonioni,o
"sur-realismo"(realismodo sul)deGlauberRocha,o "realismo
burguês"denunciadopeloscríticosdo Cabiersdu Cinéma em
suafasemarxista-Ieninísta.Váriasgrandestendênciascoexistem
dentrodo espectrodedefiniçõesdo realismocinematográfico.
Asdefiniçõesmaisortodoxasderealismoreivindicamverossimi-
lhança,a supostaadequaçãodeumaficçãoà brutafacticidade
28
do mundo.Essasdefiniçõesmuitasvezesestãoassociadas,por
exemplo,naobradeBazineKracauer,à naturezasupostamente
"objetiva"do aparatocinematográfico,comsualigaçãoindexa-
dora,fotoquímlcacomosobjetospró-fílmicosreais.Outrasde-
finiçõesenfatizamasaspiraçõesdiferenciadorasdo movimento
fílmicocomvistasa moldarumarepresentaçãorelativamente
maisverdadeira,vistacomoumcorretivoparaafalsidadedees-
tiloscinematográficosanterioresouprotocolosderepresentação.
Essecorretivopodeserestilístico- comoo ataqueda nouvelle
vaguefrancesaà artificialidadeda"tradiçãodequalídade"- ou
social- oneo-realismoitalianovisandomostraràItáliapós-guerra
suaverdadeiraface- ou ambos- o CinemaNovobrasileirore-
volucionandotantoa temáticasocialquantoos procedimentos
cinematográficosdo cinemanacionaldo passado.
Outrasdefiniçõesaindaenfatizama convenclonalidadedo
realismolevandoemconsideraçãoa sualigaçãocomumgrau
deconformidadedo textocommodelosculturaisamplamente
disseminadosde "históriascríveis"e "personagenscoerentes".
Nestesentido,aplausibilidadee averossimilhançasãotalhadas
porcódigosdegênero.Deumpaidurãoeconservadorque,em
ummusical,resisteao ingressode suafilhano show-business,
pode-seesperar"realisticamente"queeleaplaudasuaapoteose
nopalconacenafinaldofilme.Definiçõesderealismocinema-
tográficofeitasa partirdeumainclinaçãopsicanalítica,porsua
vez,movema crençado espectador,umrealismode resposta
subjet":a,menosarraigadonaprecisãomiméticadoquenacon-
vicçãodopúblico.Umadefiniçãopuramenteformalistade"rea-
lismo"enfatizaanaturezaconvencionaldetodasasconstruções
ficcionais,vendoo realismoapenascomoumaconstelaçãode
dispositivosestilístlcos,umconjuntode convençõesque,num
dadomomentonahistóriadeumaarte,consiga,atravésdatécnica
ilusionistaafinada,cristalizarumfortesentimentode autentici-
dade.ParaGillesDeleuze,finalmente,o realismonãomaisse
referea umaadequaçãomimética,analógíca,entreo signoe o
referente,massimà sensaçãodetempo,à intuiçãodeduração
vivenciada,os deslocamentosmóveisda duréebergsoniana.O
realismo,importanteacrescentar,é culturalmenterelativo;para
SalmanRushdie,osmusicaisdeBollywood(Bombaim)fazemos
musicaishollywoodianospareceremdocumentosneo-realistas
29
de últimacategoria.14O realismofílmico é tambémcondiciona-
do historicamente.Geraçõesde cinéfilosachavamos filmesem
preto-e-brancomais"realistas",emboraa própria"realidade')seja
em cores.O ponto-chavenessadiscussãoé que o realismoé,
em si, um discurso,umafabricaçãoastutaque cria e remodela
o que diz.
Umaquestãoimportanteparatodasasadaptaçõesé a relação
do filme com o modernismo,e como ela difereda ligaçãocom
a literatura.Estaquestãotema ver com o espaço-temporalidade
específicodo filme e, em especial,com a ('continuidade"como
núcleo do estilo dominante.Hollywood e seus correlatosem
todo o mundo inventaramuma forma de contar históriaspor
meio de uma organizaçãode tempo e espaçoespecificamente
cinematográfica.O modelo dominantecriou o que veio a ser a
pedrade toqueestéticado cinemahegemônico:a reconstituiçâo
de um mundo ficcional caracterizadopela coerênciainternae
pela aparênciade continuidade.Estaúltimafoi alcançadapor
meiode normasdeapresentaçãodenovascenas(umaprogressão
coreografadade establishingshota mediumshota doseshot);15
recursosconvencionaisparaaludirà passagemdo tempo(dissol-
ves,íriseffects);16técnicasconvencionaisparatomarimperceptível
a transiçãode uma tomadaa outra (a regrados 30 graus,corte
em movimento,combinaçõesde posição e movimento,inserts
e "cortes"para encobrirdescontinuidades);e dispositivospara
sugerirsubjetividade(ediçãodeponto devista,planosde reação,
eyelinematches').A estéticahollywoodianaconvencionalpro-
moveu o ideal não somentede enredoslineares,coerentesde
causa-efeito,que giram em torno de "conflitosmaiores",mas
tambémde personagensmotivadose críveis.Um decoroespaço-
temporalespecíficoempregoutodaessapanópliade dispositivos
paratransmitira sensaçãode umacontinuidadelivrede junções.
Naturalmenteos processosde produção cinematográficasão
altamentedescomínuos;umaúnica cenaretratandouns poucos
minutosconsecutivosnahistóriaresultamuitasvezesdafilmagem
duranteváriosdias ou atémeses.Todavia,a estéticanormativa
exigequeosfilmesfaçamdetudopara"encobrir"taisinterrupções
em nomeda "continuidade"e do fluxo narrativo.
Umaoutrapalavra-chavenessasdiscussõesé "reflexividade".
Etimologicamenteoriundo da palavra latina reflexiolreflectere
30
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(voltar-separa), o termo foi inicialmentetomadoemprestado
da filosofiae da psicologia,em que ele se referiaà capacidade
da mentede ser tantosujeitoe objetode si mesmadentrodo
processocognitivo. Com estaacepção,encontramosa noção
de reflexividadeem algunsdos ditosmaisfamososda fJ1osofia,
como,porexemplo,o ditofilosóficoe gramaticalmentereflexivo
de Sócrates"Conheça-tea ti mesmo"e o de Descartes,cogito
ergosum, em que a observaçãocéticada consciência,em que
ela observaa si mesmano processode se conscientizar,torna-
se fundamentalparaa epistemologia.Assim tambémKant, que
defendiaa idéia do julgamentofllosófico reflexivo,enquanto
algunsteóricossociaisclamavampela "sociologiareflexiva".De
fato,a reflexividadeartísticasemanifestadeváriasformas:auto·
consciênciametodológica,reflexãometate6rica,o mise-en-abyme
de reflexõesad infinítum, a quebrade estruturas,a relativizaçâo
da perspectivacultural. Recentemente,os críticos chamaram
a atençãopara certásarmadilhasna teoriada reflexividade.A
teoriafílmicada décadade 1970costumavaver a reflexividade
como umapanacéiapolítica,enquantodeixavadenotar o po-
tencialprogressistado realismo.Algumasvezes,a reflexividade
se tormauma espéciede narcisismoou uma demonstraçãode
virtudesautoconfessadas:"Eu sou reflexivo,masvocê não é!",
umaambigüidadesatiricamenteantecipada,comoveremos,por
Dostoievskyem Notasdosubterrâneo.
No campodasartes,a reflexividadeno sentidopsicol6gico!
filosófico se aplica tambémà capacidadede auto-reflexãode
qualquermeio, línguaou texto.No sentidomaisamplo,a refle-
xividadeartísticarefere-seao processopelo qual textos,literá-
rios ou fíhnicos,são o proscéniode suaprópriaprodução(por
exemplo,Asilusõesperdidas,deBalzac,ou A noiteamericana,de
Truffaut),de suaautoria(Em buscado tempoperdido,de Prousc,
8 lh , de Fellinj), de seusprocedimentostextuais(os romances
modernistasde]ohn Fowles,osfilmesdeMichae1Snow),desuas
influênciasintertextuais(Cervantesou Mel Brooks), ou de sua
recepção(MadameBovary,A rosapúrpura doCairo).Ao chamar
a atençãoparaamediaçãoartística,os textosreflexivossubvertem
o pressupostode que a artepode ser um meio transparentede
comunicação,umajanelaparao mundo,um espelhopasseando
por umaestrada.
31
Como já argumenteianterioffilente,a reflexividadenão está
limitadaao que, muitasvezes,é equivocadamenterotuladode
tradição"ocidental",IBA reflexividadeexistesempreque seres
humanosusuáriosdelínguas"falamsobreafala".ParaHeruyLouis
Gates,em O maeaeosignificante,afigurado trieksteriorubáExu-
Elegbaraé um emblemada "significaçàoda arteafro-diaspórica"
que empreende a desconstrução.'9A reflexividadenão está
limitadaa tradiçõeseruditas,literáriasouacadêmicas;elapodeser
encontradaemcançõespopulares,novídeorap,nacomédiastand-
upe em comerciaistelevisivos.Tampoucopodemosconsiderar
que a reflexividadee O realismosejam,necessariamente,termos
antitéticos.Comoveremos,umfilmecomoOdesprezo,deGodard,
é ao mesmotemporeflexivoe realista,umavezque eleilustraas
realidadessociaisvividasno dia-a-diana mesmamedidaem que
lembraaosleitores/espectadoresque a mímesisdo filmese trata
deumconstruto.O realismoe a reflexividadenãosãopolaridades
estritamenteopostas,mastendênciasqueseinterpenetramoupólos
capazesde coexistirdentrodo mesmotexto,
O cinematemsidoassociado,desdeo começo,como realismo
ecom o mágicoe o onírico.Em sua invocaçãopor um "cinema
xamânico",o cineasta/teóricoRaul Ruiz remontaas origensdo
cinemaa umasériede eventos"mágicos";
A mãodeumhomemdascavernasapertadacontraumasu-
perfícieligeiramentecolorida... simuladores(demôniossemi-
transparemesdoar,descritosporHermesTrimegistus);sombras
prée pós-platônicas;o Golem...o FantascopedeRobertSonjas
borboletasmágicasdeConeyIsland.Todoscompõemumapre-
figuraçãodocinema.'o
Assimcomo a tradiçãodo romancebifurcanas tradiçõesdo
paródicoDom Quixotee do míméticoRobinsonCrusoé,também
o cinema,à épocade seunascimento,divide-seno realismodas
"visões"e das"realidades"de Lumiere,deumlado,e nosesboços
mágicosde Melies,de outro, No entanto,Godard, meio século
depois,reverteuadicotomiaao sugerirqueLumierefilmavacomo
umpintor impressionista,enquantoMeliesdocumentavao futuro
ao enviarseuspersonagensà luaY
Melies descobriuque a edição possibilitavasubstituiçõese
transfoffi1açõesmágicas,deixandoassimuma rica herançaque
32
permitiuao cinema modíficaras coordenadasde tempo e de
espaço.Orson Welles é, portanto,o herdeirode Melíesquando
se auto-retratana figurado mágicoem Verdadese mentiras.O
cinemaconjugao realistae o fantástico.Ele empregao realismo
daquilo que os teóricoschamamde "monstração"- objetivae
sem "intervençãohumana",como Bazin notoriamenteafirmava
- e "a mágica"da montageme da superposição,permitindoao
filme desempenhartransformaçõestemporaise sobreposições
espaciaisimpossíveis.O cinemapode ainda veiculara mágica
persuasivados sonhos.De Munsterberga Metz, os teóricosde
cinemanotaramnãosomentea capacidadedo filmederepresentar
sonhos,mastambémsuasanalogiasCOm o sonho em termosde
seus procedimentosoperacionais,suas fusõese deslocamentos
metonímicose metafóricos.Filmes,emsuma,sãopotencialmente
"mágico-realistas"jeles podem tornar os sonhos realistase a
realidadeonírica,conferindoà fantasiaaquilo que Shakespeare
denominou"umamoradalocale um nome",
Como tecnologiada representação,o cinemaestáequipado
de modoideal paramultiplicarmagicamentetempose espaços;
tema capacidadede entremeartemporalidadese espacialidades
bastantediversas;um filmede ficção,por exemplo,éproduzido
numagamade tempose lugares,e representaumaoutracons-
. telaçãoCdiegética)de tempose espaços,sendo ainda recebido
em outro tempoe espaço(na salade cinema,em casa,na sala
de aula).A conjunção textualde som e imagemem um filme
significa rlão apenas que cada trilha apresentadois tipos de
tempo,mastambémqueessasduasformasde tempomutuamente
fazem inflexões uma sobre a outra numa forma de síncrese.
Tomadasatemporaisestáticaspodem ser inscritascom tempo-
raJidadeatravésda música,por exemplo.2zO leque de técnicas
cinematográficasmultiplicaaindamaisessesjá diversostempos
e espaços.A sobreposiçãoredobrao tempoe o espaço,como
fazemtambéma montageme a utilizaçãode moldurasmúltíplas
dentro de uma imagem.Aqueles que afirmamque ao filme
inerentementefalta a "flexibilidade"do romanceesquecem-se
destasversáteispossibilidades.
Os primórdiosdo cinemacoincidiramcomo augedo projeto
verísticoconformesua expressãono romancerealista,na peça
naturalista(em que produtoresteatraiscomoAntoineutilizavam
carne verdadeira em cenas de açougue) e em exposições
33
obsessivamentemiméticas.O modernismoartísticoquefloresceu
nasprimeirasdécadasdo séculovinteequefoi institucionalizado
como "alto modernismo" após a Segunda Guerra Mundial
promoveuumaarteanti-realista,não-representativa,caracterizada
pela abstração,fragmentaçãoe agressão.Emborao incremento
tecnológicodo cinemafaça-oparecersuperficialmentemoderno,
Suaestéticadominanteherdouasaspiraçõesmiméticasdorealismo
literáriodo séculodezenove.Formasdominantesdo cinemaeram,
assim,"modernas"emsuaatualizaçãotecnol6gicae industrial,mas
nãomodernistasemsuaorientaçãoestética.Não é de seadmirar
que osmaioresdesapontamentos,por partedos leitoresletrados,
tenhama ver com adaptaçõesde romancesmodernistascomO
os deJoyce, Woolf e Proust,exatamenteporque nessescasosa
lacunaestéticaentrefontee adaptaçãopareceserestarrecedora,
menospor causadasfalhasinerentesao cinemado que devido
à opçãopela estéticapré-modemista.
Ainda assimessanarrativatambémpode,por vezes,encerrar
um conto de fadas modernistade progresso,o enredamento
melioristapor meiodo qual o realismolevaà reflexividadecomo
o télosúltimo da arte.Além disso, a dicotomiaentreo cinema
realistae o romancemodernistapode ser facilmenteexagerada.
Muitos realismossão modernistas.SeriaHitchcock ainda pré-
modernistaquando trabalhacom SalvadorDalí na seqüência
do sonho em Quando/ala o coraçâó!E, da mesmamaneira,ao
fazerfilmesdentroda indústriamexicana,Bunuel permaneceo
vanguardistade Umcãoandaluz e A idadedo ouró!23O cinema
foi muitasvezesmodernista(epós-modernisra);o problemaéque
seu modernismonão costumavatomara forma de adaptações.
Grandeparteda obrade Alain Resnaispode servistacomo um
prolongamentocinemáticoda obra romanescade Proustj no
entanto,Resnaisnunca adaptou Em buscado tempoperdido,
GlauberRochaencarnouo "realismomágico"latino-americanoem
Terraemtranse,maselenunca adaptouMárquezou Carpentier.
Limirara discussãoa adaptaçõesexistentes,nestesentido,resulta
num senso falsamentediminuído do potencíal modernistado
cinema.Minha própriapressuposição,diferentemente,é que as
variadascapacidadescronotópicasdo cinema capacitam-noa
transpore a enriquecer,em absoluto,qualquerestética,realista
ou anti-realista,ilusionistaou auto-reflexiva.
34
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DIALOGISMO MULTICULTURAL
A naturezapalimpsésticamultifacetadada arte, afirmo ao
longo destetexto,operadentroe atravésdas culturas.Outro
temaintermitenteseráo diálogomulticulturalentrea Europae
seusoutros,11mdiálogo que não éreCente.Apesarda narrativa
eurocêntricaconstruirum mura artificialque separaa cultura
européiadasdemais,naverdadea própriaEuropaéumasíntese
de várias culturas,ocidentaise não ocidentais.O "ocidente",
portanto,é em si uma herançacoletiva,um mélangeOIÚVOro
de culturas;ele não absorveusimplesmenteinfluências não
européias,como afirmaJan Pietersie,"elese constituiudelas",24
À luz dessasdiferençasconstitutivasemutuamenteimbricadas,A
literaturaatravésdo cinemaadotaumaabordagempolicêntrica,
multiperspectivistaao filme e à literatura.O crítico espanhol
Ortegay Gassetantecipouestaidéiaem 1924em Ias Atlantidas,
quepreviao futurodescentramentoda Europae a expansãode
horizontes:
Nosúltimosvinteanos,oshorizontesdahistóriaforamexcep-
cionalmenteexpandidos- tantoqueo velhopupllodaEuropa,
acostumadoà circunferênciade seuhorizontetradicional,da
qualelaerao centro,nãoconsegueagoraencaixaremumasó
perspectivaosenormesterritóriosrepentinamenteacrescentados,
Seatéo presentea "históriauniversal"sofreudaconcentração
excessivasobreum únicopontogravitacional,na direçãodo
qualtodososprocessosdaexistênciahumanaconvergiram- o
pontode vistaeuropeu- pelomenospor umageraçãoserá
elaboradaumahistóriauniversalpolicêntricaja totalidadedo
horizonteseráobtidaatravésde umasimplesjustaposiçãode
horizontesparciais.comraiosheterogêneos,que,amealhados,
proporcionarãoumpanoramadedestinoshumanossemelhame
a umapinturacubista.25
Ainda que eu não vejaestaaberturade horizontescomoum
desenvolvimentorecente(elapodeserrastreadaatéaRenascença,
ou mesmo antesdela), endosso a noção de Ortegade uma
histórialiteráriapolicêntrica.Minhaabordagemno presentelivro
serámulticulturale antieurocêntrica,nem tantoem termosdo
C01pUS - a maioriados textostratadosé de clássicoseuropeus
ou "eurotrópicos"- porém maisem termosde ver oS próprios
35
textoscomomulticulturais,sejaatravésde presençasmanifestas
ou atravésde ausênciasestruturadoras.
A teoriada adaptaçãoé o que a translingüísticabakhtiniana
chamariade "enunciadohistoricamentesituado".E, da mesma
formaque nãosepode separara históriada teoriada adaptação
da históriadas artese do discursoartístico,tampoucopode-se
separá-Iada história toutcourt,definida por Jameson como
"aquiloque dói", mastambémcomo aquilo que inspira.Numa
perspectivamaisampla,a históriada literatura,como a do filme,
precisaser vista à luz dos eventoshistóricosde larga escala
comoo colonialismo,o processopeloqualospodereseuropeus
alcançaramposiçõesde hegemoniaeconômica,militar,políticae
culturalemmuitoslugaresdaÁsia,ÁfricaedasAméricas.Anexar
territóriosadjacentesa nações ocorria com freqüência,mas o
que haviade novo no colonialismoeuropeuera o seualcance
planetário,sua filiaçãoao poder globalinstitucionalizado,e seu
modoimperativo,suatentativadesubmetero mundoa umúnico
regime"universal"de verdadee poder. Esseprocessoteveseu
apogeuno começodo séculovinte,quandoa superfícieterrestre
sob controledo poderioeuropeucresceude67%(em1884)para
84.4%(em 1914),sitUaçãoquesomentecomeçoua serrevertida
com n desintegraçãodos impérios coloniais europeusapós a
SegundaGuerraMundia1.2úA tradiçãoIíteráriaexploradaaqui
vai de Dom Quíxote,escritopor voltade um séculodepoisque
conquistadorescomo Colombo e CortezinvadiramasAméricas,
até o realismomágicode Erendira e Barroco, escritosséculos
mais tarde,mas ainda carregandoas cicatrizesda conquistae
da escravidãonasAméricas.Toda a tradiçãoé inevitavelmente
marcadapelo colonialismoe pelo imperialismo.Nestesentido,
o livro é consoantecom o apelo de EdwardSaid em Cultura e
imperialismopor uma"abordagemcontrapontísticaque enfatize
a sobreposiçãoe o entrelaçamentodas históriasda Europa e
seus'outros"',27
Os vários impérios europeus encarnavama si mesmose
projetavamseupoderatravésde textos,que incluíamnãoapenas
tratadospolíticos, diários, decretos,registrosadministrativose
cartas,mas tambémromancese, mais tarde,filmes.De modo
geral,os romanceseuropeussimplesmentetomavampor certoo
domínioeo poderdo império.ObrascomoMansfieldPark(1814),
36
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de ]ane Austen,giram em torno de questõesde propriedade,
tantono sentidode comportamentoadequadoquantode posse,
estandoapropriedadearraigadanascolõnias.A fazendaMansfield
Park,assim,é mantidapeloscanaviaisde SirThomasBertramem
Antígua,onde praticou-sea escravidãoatéa décadade 1830.A
recenteadaptaçãode MansfieldPark, ao chamara atençãopara
a dependênciade Sir Thomasdo escravagismo,revêo romance
a partirdo olhar anticolonialistade Fanon, Said,e outros.28Em
Vani(yJair, de Thackeray,o impérioé retratadocomo fontede
lucro,ao passoque em M1"s. Dalloway(1925),deVirginia\Voolf.
o impérioédescritoempunhandoseu"cassetete"paradominar"o
pensamentoeareligião,abebida,ovestuário,oshábitos.etambém
o casamento".Críticospós-colõniaise multiculturaiscomeçarama
"dessegregar"ea "transnaclonalizar"acrítica,explorandoamaneira
com que o personagemHuck Finn foi moldadoa partirde um
protótiponegro,por exemplo,ou o modo com que Pequod,de
Melville,em Moby Dick, constitUium microcosmomulticultural,
ou ainda como a históriade BenitoCerenosobre um motim
de escravosrefletesobre a políticaracialna Américado século
dezenove.Apesardesseselementosmulticulturaissempreterem
eyjstido,o adventodacríticapós-colonialos imbuiudesignificância
interpretativarenovada.
Se os primórdios do romanceeuropeu (RobinsonCrusoé)
coincidiramcom o mamemoinicial da conquistacolonial e da
escravidãotransatlântica,a origemdo cinemacoincidiu com o
paroxismoimperialda dominaçãoeuropéia.Os paísesque mais
produziramfilmes durantea era do cinemamudo - Inglaterra,
França,EstadosUnidos, Alemanha- também,"por acaso",figu-
raramentreos países líderes do imperialismo,cuío declarado
interesseera enaltecero empreendimentocolonial. O cinema
combinou narrativae espetáculopara contar a históriado co-
lonialismoa partir da perspectivado colonizador.De todasas
celebradas"coincidências"- dos primórdios do cinemacom a
psicanálise,o surgimentodo nacionalismo,a emergênciado
consumismo- éa coincidênciacom o imperialismoa que tem
sido menosestudada.Estelivro, espero,indiretamentese refere
a essalacuna.
37
QUESTÕES DE MÉTODO
Já que é impossíveldizer tudosobreos ftlmese os romances
examinadosnestelivro, especialmenteem se tratandode urna
obra que esperacobrir séculos de desenvolvimentoIíterárioe
cinematográficoem diversospaíses(Espanha,Inglaterra,França,
Rússia,EstadosUnidos,Brasil,Cuba,Argentina,índia, Portugal),
necessariamentedevehaverum princípiode seleçãoe enquadra-
mento.Um princípio de seleçãotema ver com a minhaprópria
áreade competência.Fonnadoemliteraruracomparada,respeitei
o princípiodelidarsomentecomtextosescritosemJfnguasqueeu
possoler no original,istoé, inglês,francês,portuguêse espanhol
(o russodasNotasdosubterrâneoéa exceção).
Mas,em outrosentido,o princípio de pertinênciaque escolhi
é amplamenteestético.Preocupo-me,principalmente,com os
desafiosestilisticosenarrativosqueumasériederomancesoferece
ao adaptadorfílmico. Portanto,ofereçoexegesesdetalhadasde
trechosespecíficosnos romancesou de seqüênciasparticulares
nasadaptaçõesf.í1.micas,usandoanálisescomparativasdetalhadas
como meio de anteciparos diferentesmodosde representação.
Enfatizo,em geral,o estilo,voz e técnicasnarrativas.Quando
discutoDom Quixote,não falo da representaçãoque o romance
faz da históriada Espanha,mas sim das estratégiasnarrativase
texruaisde Cervantes:contosintercalados,a inserçãode crítica
literária,digressãosistemática,e assimpor diante.Ao mesmo
tempo,tal priorizaçãodo estéticonão significaque a análiseirá
omititiro cunhosocial,políticoou histórico.As questõesestéticas,
paramim,estãointrinsecamenteassociadasàsquestõessociaisque
têma ver com a estratificaçãosocial e a distribuiçãodopoder.
Umaabordagemfonnalista,queemCulturaeimprm'alismoEdward
Said comparaao ato de "descreveruma estradasem sÍtllá-Iana
paisagem,"29seráobviamenteinadequada.O quemeinteressaé a
historicidadedasprópriasformas,a maneirapelaqualasescolhas
estilísticasem termosde gênero,voz e pontode vistaressoamo
quea translingüísticachamade "avaliaçõessociais",'omodocomo
as Violaçõesdasnormasestéticasrepercutemo enfraquecimento
de normassociais,
Dado o preâmbulometodológico,restaesquematizaro mo-
vimentogeralde A literaturaatravésdo cínema.Seguindoessa
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introduçãoconceirual,o capítulo1,"UmprelúdiOcelvantino:de
Dom Quixoteao pós-modernismo",colocaos temasdo realismo
e da magiaao discutiro romanceDom Quixotejuntamentecom
suas adaptaçõesf11micas,notadamenteas de Orson Welles e
GregoryKozintsev,antesde passaraos aspectoscervantinosde
pós-modernismo.
O capítulo2, "Clássicoscoloniaise pós-coloniais:deRobinson
Crusoéa Survívor', focaliza o realismodocumental,"somente
os fatos",de-Defoe em seu romanceseminalAs aventurasde
RobinsonCrusoé;apósdelineara importânciacrucialdo romance
de Defoe, exploro somentealgumas das muitas adaptações
baseadasemCrusoé,enfocandoemespecialRobinsonCrusoé,de
Bunuel,Man Friday,deJack Gold,e Crusoé,deCalebDeschameL
Um leitmotívseriaaqui a tendênciaanticolonialistade "contra-
escrever"na literatura.
O capítulo3, "O romanceautoconsciente:de HenryFie1ding
a David Eggers",retomaà tradiçãocervantinado romanceauto-
consciente.Ao passoque RobinsonCrusoésuprimesuaspróprias
fontesintertextuaisem nome da verossin1iJ.hança,os romances
"autoconscientes"escritos"ã maneira"de Cervanteschamama
atençãoparaa suaprópriaintertextuaUdade.Aqui, destacareidois
romancesde Henry Fielding(Inocentesedutore As aventurasde
Tomfones) e um de Machadode Assis (Memóriaspóstumasde
Brás Cubas).Concluireio capítulofazendomençãoaosaspeGos
reflexivosdo romancecontemporâneo(Uma comoventeobra
de espantosotalento,de DaveEggers)à comunicaçãode massa
contemporânea.
O capítulo4, "O romanceprotocinematográfico:metamorfoses
de Madame Bovmy', leva-nos ao romance realista clássico
do século dezenove, que forneceu incontáveishistóriaspara
adaptaçãoeaindaauxiliounaformaçãodo paradigmadaestética
dominantedentrodo cinema.Aqui, focalizareiMadameBovary,
deFlaubert,quecontrapõeesintetizaasduastradiçõesexploradas
nos capítulos anteriores, a saber, o documentário-mimético
(Defoe) e o reflexivo-paródico(Cervames).Após demonstraros
aspectos"protoimpressionistas"e "protocinematográficos"do
romancede Flaubert,porei em foco suasvariadasadaptações,
notadamemenaquelasdirigidasporJean Renoir(1934),Vincente
Minnelli (1949),Claude Chabrol (1991),Ketan Mehta(992) e
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ManoeldeOliveira(997).Fechareiocapítulocomumadiscussão
sobrealgunsdostrabalhos"f1aubertianos"deWoodyAllen.
O capítulo5,"Ohomemdosubterrâneoenarradoresneuró-
ticos:deDostoievskyaNabokov",negociaatransiçãodoromance
miméticodo séculodezenoveparaas.narrativasmodernistas,
particularmenteaquelasqueempregamnarradoresemprimeira
pessoapoucoconfiáveis.Apósumadiscussãoda importância
da escril:a"polifôníca"de Dostoievskye umaanálisede Notas
do subterrâneoe duasde suasadaptações,focalizoumasérie
detransposiçõesderomancesmodernistasparao cinema,todos
influenciadosporDostoievsky,contendonarradoresneuróticos,
duvidosos,autodepreciativos:a adaptaçãofeitapor Tomas
GutierrezAleadeMemóriasdosubdesenvolvímento,deEdmundo
Desnoes;doisflimes(deStanleyKubrikeAdrianLynne)baseados
emLolita,deNabokov;e A hora da estrela,deSuzanaAmaral,a
partirdoromancehomônimodeClariceLispector.
O capítulo6 abordao "Modernismo,adaptaçãoe a nouvelle
vaguefrancesa".Apósalgumasobservaçõesiniciaissobreaprática
daadaptaçãopelanouvellevagueeacercadediscussõesteóricas
arespeitodomesmoassuntonaSpáginasdo Cahiers,meatenho
aoromance/filmeexperimen.talnaFrança,emespecialao cine-
roman,dedicandomaioratençãoa Hiroshima,meuamoreAno
passadoemMarienbad.Os cine-romansforjamumamodalidade
completamentenovadarelaçãofilme/romance,emqueanoção
de "adaptação"se tornaaindamaisproblemáticado que o
normal,emqueromancistae cineastatrabalhamemigualdadee
atémesmoemsimbiose,namedidaemquerespeitamaespecifi-
cidadedecadameio.É dentrodesseenfoquequeoferecereiuma
análiseaprofundadado filmede Godardbaseadono romance
O desprezo,deAlbertoMoravia,antesde concluircomalguns
comentáriossobreos aspectoscervantinose "quixotescos"da
nouvellevaguefrancesaemgeral.
O capítulofinalfechao círculodediscussõessobrerealismo
e magiaao focalizaro boom e o "realismomágico"latino-
americanos.EnquantoGodard,em O desprezo,problematiza
o realismoao trazerparaprimeiroplano,reflexivamente,a
mecânicaformaldo ilusionismoe ao "esvaziar"a narrativa,a
abordagem"realistamágica"interrogao realismoao caminhar
na direçãooposta,ao tecerumaprofusãodelirantedecontos
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improváveis.Seumaformade reflexividadeé "infra-realista",
a'outraabordagempoderiaser chamadade "supra-realista".
Após esquematizaro contextohistóricodo realismomágico,
ofereçoumaanáliseaprofundadado precursorrelativamente
desconhecidodo "realismomágico":Macunaima (1928), o
brilhanteromancemodernistadeMáriodeAndrade- paramim,
a "mãe"ignoradadetodososromancesdorealismomágico- e
desua"tradução"cinematográficaigualmentenotável,feitapor
JoaquimPedrode Andradeem 1968.Finalmente,discutoas
adaptaçõesfílmicasbaseadasI}aobradeGabrielGarciaMárquez
(Um.senhormuitovelhocomumasasasenormes,Erendira) ede
AlejoCarpentier(Barroco).
De maneirageral,A literatura atravésdo cinema oferece
urnahistóriadatradiçãodoromancepormeiodesuasre-visões
fílmicas,enfatizandoas complexasmudançasenergéticase
sinergéticasenvolvidasna migraçãotrans-mídia.Ao invésde
seguirumsómodelo,minhaabordagemanalíticaseráflexível,
"adaptada"àsqualidadesespecíficasdecada filmee romance.
Empregandosimultaneamentea teorialiterária,teoriamidiática
e estudos(multi)culturais,adotareimúltiplasestruturas- uma
espéciede cubismometodológico-, a fim de esclareceras
relaçõesentreo romanceeofilmedeumamaneiraqueé,espero,
rica,complexae multidimensional.
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