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1 Lugares, espaços e identidades coletivas na Inconfidência Mineira de 1788-9 Luiz Carlos Villalta André Pedroso Becho Os Inconfidentes Mineiros de 1788-9 realizaram reuniões, muitas vezes com caráter literário, que se desdobraram em reflexões críticas a respeito da situação da capitania e da relação entre metrópole e colônia e, ainda, na elaboração de um plano de assalto ao poder. Neste capítulo, focalizaremos as discussões e os lugares em que se encontraram, os espaços que serviram para desenvolverem as reflexões e as estratégias de ação política, a geografia no interior da qual projetavam a nova ordem e, de modo específico, o vocabulário político que empregaram, marcadamente às idéias de pátria, país e nação e as respectivas delimitações territoriais que lhes atribuíram. Lugares de conspiração e espaços do sonho As residências particulares foram os locais principais em que os Inconfidentes estabeleceram contatos e desenvolveram suas reflexões sobre a situação de Minas, as possibilidades e as estratégias de rebelião, enfim, suas ―práticas de liberdade‖1. A casa do tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade, na rua Direita, em Vila Rica, foi o local onde se deram as mais importantes reuniões dos Inconfidentes. Lá, muitos dos conjurados, destacando-se dentre eles o padre José de Oliveira Rolim, o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o padre Carlos Correia de Toledo, o Dr. José Álvares Maciel e Tomás Antônio Gonzaga, emprestaram livros e debateram sobre o conteúdo dos mesmos, formularam estratégias para a rebelião e delinearam os contornos da nova ordem que surgiria após sua eclosão 2 . Alvarenga Peixoto fez idas e vindas à casa do tenente-coronel, tirando alguns livros da biblioteca, devolvendo outros; numa dessas 1 JANCSÓ, 1997, p. 394. 2 ADIM, 1980, vol. 5, p. 115, 172-173 e 223. 2 visitas, ouviu o anfitrião perguntar-se se ―havia algumas novidades do Rio de Janeiro‖ sobre o levante 3 . Gonzaga, que nunca admitiu seu envolvimento na conjura, ao ser interrogado sobre o assunto, restringiu sua presença na casa do tenente-coronel a assuntos literários. Reconheceu, por exemplo, ter lá estado, em presença do proprietário, de Alvarenga Peixoto e do Padre Toledo, mas só para o fim de conversarem ―em humanidades‖. Assim, lá teria ouvido Alvarenga repetir um poema feito para o batizado do filho do governador Dom Rodrigo de Menezes: provavelmente o memorável ―Canto genetlíaco‖, em que se faz uma apologia das riquezas de Minas, do esforço empreendido pelos escravos ―Pardos e pretos, tintos e tostados‖, para produzi-las, indagando-se sobre a pobreza das gentes, o que deixava ao ouvinte de então (e ao leitor de hoje) a questão sobre a origem da miséria que então se observava 4 . Lá, ainda, teria examinado outros livros, dentre eles um que tinha Gonçalo Annes Bandarra – sapateiro nascido em Trancoso, em 1500, cujos escritos inspiraram os milenaristas-messiânicos, como os sebastianistas que esperavam a volta de El-Rei Dom Sebastião, morto em 1578 em Alcácer-Quibir, para comandar o Quinto Império do Mundo de que fala a Bíblia 5 – ―entre os primeiros poetas portugueses‖6. As conversas na casa de Freire efetivamente não se resumiram a amenidades literárias e ―humanidades‖. Nela, o anfitrião e Alvarenga Peixoto discutiram – ainda que, segundo o último, a conversa não fosse séria – a entrada de São Paulo e Rio de Janeiro no levante, os efeitos disso para o enfrentamento com as forças enviadas de Portugal. Freire afirmara que, com a união das três capitanias (Minas, São Paulo e Rio), ―era a ação segura‖, tendo ele e Alvarenga falado sobre contatos que tinham em São 3 ADIM, 1980, vol. 5, p. 114. 4 PEIXOTO, 1996, p. 976-9 e MAXWELL, 1999, p. 162. 5 HERMANN, 1998; PÉCORA, 1994, p. 213-258 e CIDADE, p. 24-26, 28-32 e 73-93. 6 ADIM, 1980, vol. 5, p. 223. 3 Paulo para tanto, ―tudo debaixo do mesmo tom de ironia‖7. Sobre essa questão, também em Vila Rica, ao que parece (mas sem que seja possível assegurar que tenha sido na casa de Freire de Andrade), e com a mesma idéia de união das capitanias do sudeste, Tiradentes, dirigindo-se a Amaral Gurgel, discorrera sobre a opressão de Minas pelos ―reiterados tributos‖, sobre a derrama e sobre sua intenção de fazer um levante, ―porque queriam nestas Minas uma testa coroada; para cujo fim tanto a Capitania de São Paulo como esta, já as tinha fechadas nas mãos‖8. Com certeza, na residência em questão, Tiradentes, Alvarenga Peixoto, o padre Toledo e o padre Rolim debateram a Histoire philosophique et politique des etablissements et du commerce des européens dans les Deux Indes, do padre Raynal, obra publicada pela primeira vez em 1770 e que, dentre outras coisas, analisa a colonização portuguesa na América e, nas edições posteriores a 1780, traz uma parte consagrada à Revolução Americana, saudada pelo autor como um modelo a ser seguido 9 . Os quatro Inconfidentes concluíram, então, que Raynal ―tinha sido um escritor de grandes vistas, porque prognosticou o levantamento da América Setentrional, e que a Capitania de Minas Gerais com o lançamento do tributo da derrama estaria nas mesmas circunstâncias‖10. Na mesma residência, conforme seu proprietário, houve uma discussão sobre o ―modo por que se podia fazer a conjuração‖, da qual participaram Tiradentes, Alvarenga Peixoto, Álvares Maciel (o filho) e mais os padres Toledo e Silva Rolim. Inicialmente, decidiu-se que Tiradentes iria à Cachoeira do Campo, onde residia o governador, Visconde de Barbacena, para matá-lo ou prendê-lo, ação que o anfitrião dizia reprovar. Peixoto, então, insistira na proposta de cortar a ―cabecinha‖ do governador, havendo a idéia de que a mesma fosse exibida ao povo em Vila Rica por Freire de Andrade, que 7 ADIM, 1980, vol. 5, p. 114-5. 8 ADIM, 1980, vol. 1, p. 208. 9 RAYNAL, 1820; RAYNAL, 1993 e RAYNAL, 1998. 10 ADIM, 1980, vol 5, p. 173. 4 deveria depois dizer ―‗Este era quem nos governava; de hoje em diante viva a República‘‖11. Com isso, em seguida, anunciaria ao povo ―a futura felicidade‖12. Andrade, porém, em seu depoimento, alegou não ter concordado com a morte do governador e que dissera, ao longo da discussão, ―que o mais que faria era ir, como acudir ao tumulto, e perguntar o que povo pretendia, e se lhe dissesse que pretendia a liberdade, então lhe diria que lhe parecia uma coisa justa‖13. A idéia de matar o Capitão General, de fato, não obteve o consenso, sendo abandonada, não sem oposição: optou-se por fazer Tiradentes levar o governador para fora da Capitania, falando-lhe ―que se fosse embora, e dissesse em Portugal, que já cá não se carecia de governadores; esta foi a última resolução, não obstante haver quem lembrasse, que não havia levante sem cabeça fora”14. Freire de Andrade contou também que enquanto isso se passasse em Vila Rica, o Padre Toledo, na Vila de São José, ―reduziria os povos daquela Vila, o Coronel Inácio José de Alvarenga Peixoto os da Campanha, o Padre José da Silva os de Minas Novas, José Álvares Maciel se incumbiria de algumas manufaturas‖ (ao que tudo indica, de pólvora) e, ainda, ―que com os quintos se podiam fazer algumas despesas, e pagar a tropa que fosse necessária‖15. Três questões importantes apareceram nos debates sobre estratégias para o levantamento do povo e o enfrentamento militar. Estando presentes Freire de Andrade, seu cunhado José Álvares Maciel, o padre Toledo, o padre Rolim e Tiradentes, Alvarenga Peixoto explicou que o levante poderia dar-se―em razão da derrama que vexava o povo e que por isso seria fácil em se mover a sacudir o jugo‖, ou seja, a opressão tributária representada pela derrama levaria o povo à rebelião. Maciel lembrou 11 ADIM, 1980, vol 5, p. 181. 12 ADIM, 1980, vol 5, p. 181. 13 ADIM, 1980, vol 5, p. 181. 14 ADIM, 1980, vol. 5, p. 36. Sobre o modo como a historiografia abordou essa questão, veja: FURTADO, 2002, p. 47-50. 15 ADIM, 1980, vol 5, p. 181. 5 que os negros eram mais numerosos que os brancos e que poderiam, para obter a liberdade, tomar o partido contrário da sedição, ao que Alvarenga retrucou, dizendo que se poderia dar-lhes a liberdade, com o que Maciel não concordou pelo prejuízo que isso traria ―ao serviço das Minas‖. Alvarenga, porém, saiu-se com esta solução, endossada pelo padre Toledo: dar alforria aos crioulos (isto é, os escravos nascidos no Brasil) e aos mulatos. A discussão, todavia, tocou num terceiro tema espinhoso: o que fazer com os ―europeus‖, posto que muitos não tinham ―ânimo de residir‖ em Minas. O padre Toledo apoiou a idéia de cortar-lhes a cabeça, contra o que se colocou Alvarenga, por achá-la uma impiedade. Maciel endossou esta posição, pois ―sendo a maior parte dos pais de família europeus, não haviam os filhos de consentir na morte deles‖16. Em resumo, a decretação da derrama descontentaria o povo e, em meio a isso, Tiradentes prenderia o governador e o expulsaria, enquanto, em Vila Rica, Freire de Andrade faria uma fala ao povo em nome da liberdade e da ―república‖ e, em diferentes regiões da capitania, outros conjurados tomariam providências militares, cabendo a Maciel os cuidados com a fabricação de pólvora, usando-se os recursos dos quintos e também se alforriando os crioulos e os mulatos. Os conjurados, portanto, misturavam a discussão sobre humanidades a uma reflexão sobre a situação da capitania, sobre as possibilidades de empreender um levante e também sobre as ações concretas necessárias para tanto, inspirando-se nas recém-independentes colônias da América Inglesa. Assim, demarcavam, ao lado desses lugares de referência, o sonho e sua geografia, os espaços nos quais projetavam uma nova ordem: Minas Gerais, com ramificações possíveis em São Paulo e no Rio de Janeiro. De casa em casa, os Inconfidentes deslocavam-se para ouvir um ao outro, repetindo muitas vezes, ainda que parcialmente, o percurso intelectual e político seguido na casa de Freire de Andrade, às vezes mesmo numa continuidade. Assim, quando 16 ADIM, 1980, vol. 5, p. 328-330. 6 Alvarenga Peixoto fazia uma devolução de livros na casa do último, foi informado pelo mesmo sobre o modo com que Tiradentes defendia seu propósito de estabelecer uma ―nova República de Minas‖ e, ainda lá, convidaram-no a ir à casa do ―Intendente Francisco Gregório Pires Monteiro Bandeira como costumavam‖, onde estariam, mais à noite, o padre Toledo e o Desembargador Gonzaga, para ouvirem a exposição de Joaquim José da Silva Xavier 17 . A suntuosa residência de João Rodrigues de Macedo, a atual Casa dos Contos, também em Vila Rica, constituía outro ponto de encontro: era o local onde se hospedava o cônego Luís Vieira da Silva, vindo de Mariana; onde Alvarenga Peixoto ―estava sempre todo o dia e noite‖ e jogava cartas, tendo numa dessas ocasiões dialogado com um ―um oficial feio, e espantado‖, Tiradentes e, noutra, conversado com o latifundiário Aires Gomes sobre o levante 18 . Os conjurados, na verdade, em maior ou menor número, encontraram-se em várias outras residências, em Vila Rica e nas vilas e arraiais da Comarca do Rio das Mortes. Na capital da capitania, Tiradentes manteve conversas com o padre Rolim, na casa de Domingos Vieira, sem a presença desse, e com Vicente Vieira da Mota, na casa do mesmo 19 . Na morada de Gonzaga, trocaram idéias, numa oportunidade, além do próprio, Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga Peixoto e, noutro momento, o cônego Luís Vieira da Silva e Cláudio 20 . Na casa de Gonzaga, além disso, ficaram hospedados Alvarenga Peixoto e o Padre Toledo, sendo freqüente a visita de Cláudio, aí conversando sobre a conspiração. Contudo, segundo o desembargador, ele não participou das discussões, embora os encontros se realizassem na mesma sala onde ele estava, isso porque estava ―entretido a bordar um vestido para o seu casamento, do qual 17 ADIM, 1980, vol. 5, p. 119. 18 ADIM, 1980, vol. 5, p. 112 e 117. 19 ADIM, 1980, vol. 5, p. 39 e vol. 1, p. 157. 20 ADIM, 1980, vol. 5, p. 117 e 251. 7 entretenimento nunca se levantava senão para a mesa‖21. Depois que o governador Barbacena suspendera a derrama, o cônego Vieira da Silva encontrou Alvarenga e Gonzaga, na casa deste último, perguntando ao anfitrião sobre o levante. Gonzaga teria, então, dito ―estas formais palavras — a ocasião para isso perdeu-se‖; na ocasião, Vieira destacou a necessidade, para o êxito do movimento, de união com a ―Capitania do Rio de Janeiro, e apreenderem-se os Reais Quintos‖, com o que não concordou Alvarenga, para quem isso ―não era necessário; pois bastava meter-se em Minas sal e ferro, e pólvora para dois anos‖22. Gonzaga apresentou outra versão para a conversa, salientando, porém, suas dificuldades de lembrar-se. Reconheceu que poderia ter dito sobre o ―se poderem levantar os povos do Brasil‖ e que, com a suspensão da derrama, a ocasião para tanto se ―perdera‖, mas que tal afirmação era hipotética (―em hipótese de potência e não de ato‖, distinção escolástica entre a possibilidade e sua concretização), o que se confirmaria pelo fato de que ele tinha influenciado na citada suspensão 23 . Gonzaga admitiu também que em sua casa se falou sobre as vantagens da América, sem que, porém, aceitasse que tivesse ofendido Sua Majestade 24 . Cláudio e Gonzaga ―sempre estavam familiarmente um em casa do outro, comunicando-se com a lição dos versos e do mais que ocorria‖25; além disso, na varanda da casa de Cláudio, o desembargador Gonzaga, o cônego Luís Vieira, Alvarenga Peixoto e mais um clérigo conversaram sobre o levante. Gonzaga alegou não ter acompanhado as discussões, por estar adoentado, mas Vieira da Silva e Alvarenga Peixoto confirmaram a participação daquele, afirmando que o mesmo estava, devido à doença, ―embrulhado em um capote de baeta cor de vinho, e que pediu uma esteira ao Doutor Cláudio Manuel da Costa, sobre a qual se deitou no primeiro assento da 21 ADIM, 1980, vol. 5, p. 221. 22 ADIM, 1980, vol. 5, p. 251. 23 ADIM, 1980, vol. 5, p. 223. 24 ADIM, 1980, vol. 5, p. 224. 25 ADIM, 1980, vol. 2, p. 128. 8 varanda‖26. Nessa ocasião, segundo Peixoto, os presentes falaram sobre as Américas inglesas, “paixão dominante do dito Cônego‖. A partir disso, porém, houve pronunciamentos sobre ―a riqueza, e felicidade, que resultariam a estes países‖ – as comarcas de Minas Gerais ou esta última e mais o Rio de Janeiro, conclui-se do conjunto da conversa – ―se conseguissem a sua liberdade, e independência‖, comentando-se também as notícias sobre o Rio espalhadas por Tiradentes. Mas a conversa foi logo interrompida, por causa da presença do Tenente Pires Bandeira, que ali estava e nada podia saber sobre o assunto 27 . Nessa sucessão de conversas, percebem-se laços de sociabilidade a nutrirem-se, discussões literárias e reflexões políticas sobre acontecimentos de então, incluindo a Independência da América Inglesa, e sobre a situação de Minas. Vêem-se debates de teor claramente conspiratórios, coma abordagem das possibilidades materiais e das estratégias para um levante na áurea capitania: a derrama como o estopim, os quintos apreendidos, o sal e a pólvora como os recursos materiais necessários para um enfrentamento, assim como a união com o Rio de Janeiro, aliança estratégica para garantir a defesa e o sucesso dos sediciosos. De Vila Rica, ecoavam e desdobravam-se conversas, rebatendo sobre encontros mantidos nos caminhos. Assim, na capital de Minas, Basílio de Brito Malheiros, um dos denunciantes da Inconfidência, disse a Vicente Vieira da Mota que encontrara com o inglês Nicolau Jorge quando vinha do Serro. O interlocutor, então, lhe confidenciara que o mesmo andara falando que o Brasil poderia ―fazer como a América Inglesa‖ e indagara-lhe sobre qual lado tomaria neste caso, o da ―república‖ ou o dos defensores da rainha 28 . Vicente Vieira da Mota, ao descrever a conversa com Nicolau Jorge, acrescentou outros elementos importantes. Confessou que perguntara sobre os motivos 26 ADIM, 1980, vol. 5, p. 236-237. 27ADIM, 1980, vol. 5, p. 124. 28 ADIM, 1980, vol. 1, 104. 9 pelos quais a América inglesa havia se rebelado, tendo o inglês apontado algo mais ou menos como ―tributos, vexações, desordens de generais, e tirarem-lhes ou diminuir-lhes a regalia do seu Parlamento‖, ao que teria voltado à carga, perguntando: ―´visto isso, por qualquer coisa se pode revoltar uma conquista?‘‖29 Novamente, percebe-se como os acontecimentos da América inglesa eram lidos a partir de Minas e incidiam sobre elas, tomando-se a revolução norte-americana como algo causado por razões tributárias, militares e políticas e, ainda que nas entrelinhas, deduzindo-se que tais razões, sendo tão genéricas, poderiam levar qualquer colônia a revoltar-se. A revolta, portanto, configurava-se não só como uma possibilidade, mas poderia ter como origem ―qualquer coisa‖. Isso nos leva a suspeitar que a vontade dos povos constituía essa coisa onipresente e onipotente, o que introduzia o consentimento como elemento basilar das instituições políticas. Nas vilas da comarca do Rio das Mortes, deram-se vários encontros. Em São José del Rei, muitos dos futuros Inconfidentes foram ao batizado de dois filhos de Alvarenga Peixoto, realizado pelo vigário Carlos Correia de Toledo em outubro de 1788 e tido como o marco inicial da conspiração. Na ocasião, estando presentes Correia de Toledo, Luís Ferreira de Araújo e Azevedo (o desembargador da Comarca), Tomás Antônio Gonzaga, Luiz Vaz de Toledo Piza (irmão de Toledo), Luís Antônio (o tesoureiro dos ausentes) e, é claro, Alvarenga Peixoto, um dos convivas proferiu ―que esta Capitania era um formidável Império, ao que saiu aquele Vigário dizendo: ‗Eu sou o Pontífice‘, ou ‗o Bispo‘‖. A isso, Alvarenga Peixoto acrescentara: ―‗Pois eu serei o Rei e Dona Bárbara a Rainha‘‖30. Naquelas paragens, outros encontros sucederam-se, como, por exemplo, o ocorrido na casa de Resende Costa, onde Joaquim Silvério dos Reis, diante apenas do 29 ADIM, 1980, vol. 1, p. 159. 30 ADIM, 1980, vol. 1, p. 199. 10 anfitrião, discorreu sobre a riqueza da América e suas potencialidades se não fosse Colônia 31 . No Rio das Mortes, o padre Toledo e seu irmão convidaram os Resende Costa, Faustino Soares de Araújo e Francisco Antônio de Oliveira Lopes, coronel das tropas auxiliares, para participar da conspiração, tendo o último feito o mesmo com Domingos Vidal Barbosa 32 , um entusiástico propagandista das idéias da obra do padre Raynal, recitando de cor algumas passagens 33 . O Alferes Joaquim José discorreu sobre o assunto no sítio das Cebolas e também diante do padre Manuel Rodrigues da Costa, tendo este, por sua vez, narrado o sucedido a José Aires Gomes 34 . Na estalagem de João da Costa Rodrigues, em Varginha, Tiradentes falou-lhe e a Antônio de Oliveira Lopes sobre a sedição, tendo o proprietário repetido as palavras do Alferes com o Padre Manoel Rodrigues da Costa, o capitão João Dias da Mota e Basílio de Brito Malheiros 35 . Na casa de Francisco Antônio de Oliveira Lopes, na Borda do Campo (Barbacena), seu primo, o médico Domingos Vidal Barbosa, ouviu-o dizer que Minas era um lugar ―muito feliz por ter todas as comodidades para a vida‖ e que ―seria delicioso se fosse livre‖, sendo então interrogado sobre os nomes dos que ―tinham feito a revolução na América Inglesa‖, ao que respondera que fora Benjamin Franklin. Barbosa, nessa oportunidade, revelou ao primo que, quando estudava em Montpellier, na França, José Joaquim da Maia, seu colega, natural do Rio de Janeiro, pusera na cabeça que ―havia de ser o libertador da sua terra‖ e fizera passar-se por ―enviado de sua nação‖ diante de Thomas Jefferson, o qual o desprezara, ―observando a sua proposição e ridícula figura‖36. No caminho para o arraial dos Prados, o mesmo Vidal Barbosa, em conversa com o amigo José Resende Costa Filho, que como ele fora aluno do poeta 31 ADIM, 1980, vol. 5, p. 125. 32 ENNES, 1952, p. 28-39. 33 MAXWELL, 1999, p. 158. 34 ADIM, 1980, vol. 5, p. 39 e vol. 1, p. 200-201 e 251. 35 ADIM, 1980, p. 428-429. 36 ADIM, 1980, vol. 1, p. 213. 11 Manuel Inácio da Silva Alvarenga, no Rio, ouvira-o dizer que não iria mais para Coimbra estudar, porque em breve o Brasil se tornaria uma ―república‖. No Rio das Mortes, portanto, houve manifestações menos literárias, claramente anti-colonialistas e pró-ruptura dos laços com a metrópole. A América Inglesa constituiu o exemplo a ser imitado, tendo sido evocado até mesmo encontro anterior, ocorrido na França e protagonizado por uma personagem não envolvida na Inconfidência, por meio do qual essa ―ridícula figura‖ queria obter o apoio americano para libertar sua terra. O alvo dessas manifestações era proporcionar felicidade e liberdade para as Minas Gerais, associando-se com o tornar-se uma ―república‖. Em todo esse itinerário, além disso, a comunicação oral desempenhou um papel fundamental para a disseminação das idéias sediciosas. O Padre José Lopes Oliveira contou que, na casa de seu irmão Francisco Oliveira Lopes, o padre Toledo afirmara-lhe que a denúncia de Silvério dos Reis arruinara os planos de ―erigir-se uma república‖. O padre José Lopes, então, censurara- o, dizendo que isso ―não se poderia conseguir porque não havia gente, armas, mantimentos, e outros gêneros indispensáveis‖. Com isso, porém, não concordou o padre Toledo, que achava que a união de São Paulo, Rio e Minas garantiria o sucesso, tal como sucedera na América inglesa 37 . Essa conversa é um indicativo sobre o impacto da denúncia de Joaquim Silvério sobre os planos dos conjurados e, mais uma vez, sobre a circunscrição geográfica do projeto dos Inconfidentes: Minas, juntando-se São Paulo e Rio de Janeiro, ainda que as ramificações nestas capitanias, a julgar pelos indícios documentais, pareçam muito tênues. Mostra também a preocupação dos conjurados com os elementos materiais necessários para o êxito de um levante, sobretudo depois de ter sido desvelado. Sobre tais elementos propriamente militares, uma reflexão foi desenvolvida pelo cônego Vieira da Silva diante de seus inquiridores, quando já se 37 ADIM, 1980, vol. 1, p. 204. 12 encontrava preso no Rio de Janeiro, procurando provar que uma rebelião podia ser uma causa justa, mas, para se pensar em realizá-la, era preciso reunir condições objetivas (generais, armas, alianças, soldados), alegando o mesmo que tudo isso não existia emMinas e, portanto, que ele não poderia envolver-se numa conspiração 38 . Nas entrelinhas desse sinuoso mas lógico raciocínio, por meio do qual o cônego queria mostrar-se inocente diante da repressão, vê-se que a questão militar era presente entre suas preocupações (e, pode-se dizer, de outros Inconfidentes) e que, de fato, ele dela estava inteirado. Francisco de Oliveira Lopes, nas conversas com o irmão, parecia sintetizar os planos sediciosos dos Inconfidentes, contando-lhe as providências que tomavam e evidenciando como se passava da avaliação das potencialidades da capitania à rebelião. Segundo Lopes, José Álvares Maciel não apenas defendia ser possível como se empenhara em produzir pólvora ―para que o Brasil fosse independente‖, dizendo que cá havia ferro; Cláudio, Gonzaga e o Cônego Vieira fizeram as leis para o governo, as quais estabeleciam que todo ―o homem plebeu poderia vestir cetins‖ (o que se opunha às determinações legais que cruzavam vestes e hierarquia social), que a extração dos diamantes seria livre (o que punha fim ao monopólio da Coroa sobre os diamantes), que os vigários receberiam os dízimos em contrapartida à obrigação de manterem mestres, hospitais e ―outros estabelecimentos pios‖ (o que punha em xeque o direito da Coroa de recolher os dízimos, obtido pelo padroado); o Cônego Luís Vieira teria feito um plano para a segurança das Minas, defensável pela própria natureza, seja pela forma de entrada da baía de Guanabara, seja pelas dificuldades que a serra impunha a um presumível invasor. Lopes confidenciara, ainda, que para que os planos vingassem era preciso buscar ―a ocasião em que todo o povo estivesse descontente‖, o que se daria com a decretação da derrama pelo governador; que outras nações queriam que o Brasil 38 ADIM, 1980, vol. 5, p. 246-248. 13 fosse independente ―para virem negociar‖, que Tiradentes iria matar o governador Barbacena – isso, como se disse, foi descartado pelos Inconfidentes numa discussão – e, por fim, que no Rio de Janeiro, havia quatro ou cinco negociantes que ―queriam que a revolução principiasse por lá‖39. Oliveira Lopes também relatou uma conversa que manteve com Alvarenga Peixoto, em casa deste, na Vila de São João Del Rey. Lopes advertiu-lhe sobre a falta de gente e pólvora, munições, acrescentando e que, se viesse um exército de dez mil homens tudo estaria perdido. Peixoto, no entanto, desconsiderou essas ponderações, respondendo-lhe que a terra defendia-se por si e que, ―pelo Rio de Janeiro, nada podia entrar; por São Paulo, que levava meses‖, havendo, portanto, condições de enfrentar os invasores. A isso Lopes retrucou, com base nas informações da Gazeta, provavelmente de Lisboa, que a Rainha tinha recursos para custear a repressão ao levante, uma vez que fizera empréstimos a imperatriz da Rússia 40 . Peixoto, contudo, pôs em descrédito a notícia e suas possíveis conseqüências para os planos sediciosos, ao recomendar-lhe ―‗Ora, não creia nisso! Primeiro que lá vá e venha, em que termos estamos nós?‘‖ 41 O mesmo Peixoto contou a Lopes que havia encontrado o Visconde de Barbacena, governador da capitania, em Vila Rica, com o qual conversou sobre o fato do herdeiro do trono português ter ficado na Espanha, dizendo-lhe: ―— ‗Quem o desse cá, que o haviam de criar muito bem!‘ Ao que respondeu aquele Senhor: — ‗Isto era o que Vms. queriam, mas não o hão de apanhar!‘‖42. Toda essa conversa confirma que, por meio da comunicação oral, difundia-se o conteúdo de uma conversa travada com outras pessoas e em outro lugar (no caso, Alvarenga Peixoto e o governador da capitania, em seu Palácio, em Cachoeira), em São João. Sugere, igualmente, que havia alguma intenção presumível dos Inconfidentes em 39 ADIM, 1980, vol. 1, p. 214-215. 40 ADIM, 1980, vol. 2, p. 52. 41 ADIM, 1980, vol. 2, p. 52. 42 ADIM, 1980, vol. 2, p. 51. 14 relação ao Infante (matá-lo? Aclamá-lo? Persuadi-lo em favor da causa?) se ele cá estivesse. Revela também que acontecimentos contemporâneos, ocorridos na Europa (a retenção do infante na Espanha e o suposto empréstimo feito pela rainha de Portugal à czarina, por exemplo, noticiados pela Gazeta), eram lidos e tornavam-se objetos de conjecturas. Leitura e reflexões, ademais, tinham como referências básicas as próprias condições e os interesses dos Inconfidentes, em Minas, dentro dos quais se havia espaço para o aspecto estratégico-militar. A conversa compromete, ainda, de algum modo, o governador, que talvez tenha sido cooptado para a rebelião após receber a denúncia feita por Joaquim Silvério dos Reis 43 . Sugere, por fim, que, se entre os Inconfidentes havia referência ao Brasil, esse era quase uma abstração: o movimento tinha caráter regional, circunscrevendo-se às Minas Gerais, com ramificações no Rio de Janeiro e, talvez, em São Paulo. No Rio de Janeiro, os conjurados trataram do levante. Álvares Maciel, o filho, teria ouvido falar a primeira vez no assunto na capital do Vice-Reino do Brasil, em agosto de 1788, da boca do Tiradentes, logo ao chegar da Europa, não lhe dando muito crédito 44 . Tiradentes teria ido ao Rio de Janeiro, segundo Alvarenga Peixoto, tratar da construção de um aqueduto necessário para instalar moinhos (―meter umas águas, e fazer uns moinhos‖), ver como estavam os aguardados ―socorros de França, que esperavam para se fazer da República do Rio de Janeiro, depois a de Minas‖, explicando que, ―com o exemplo da do Rio era muito fácil; que os povos de Minas eram uns bacamartes falsos de espírito, e de dinheiro; e que tendo falado a muita gente, todos queriam mas nenhum se queria resolver a pôr em campo‖45. Aqui, novos elementos são vistos: ao lado da menção aos projetos pessoais de Tiradentes, que evidenciam seu espírito empreendedor e ousado, nota-se que havia o sonho com um apoio da França e 43 JARDIM, 1989, p. 224-5. 44 ADIM, 1980, vol. 5, p. 328. 45 ADIM, 1980, vol. 5. p. 122-3. Veja, sobre este assunto, Oiliam José (1974, p. 53-54). 15 que a aliança com o Rio de Janeiro era vista como estratégica, até mesmo para se resolver problemas como a falta de sustentação do movimento em Minas, seja em termos de adesão, seja de recursos financeiros. Tiradentes, além de ultrapassar os limites da Capitania de Minas Gerais, discutira o levante fora do espaço propriamente doméstico, difundindo a idéia de sedição em locais como os caminhos; a estalagem de João da Costa, na comarca do Rio da Mortes; e as casas de meretrizes de Vila Rica – segundo o cônego Vieira da Silva, o desembargador Bandeira tinha ouvido dizer que Tiradentes andara ―por casa de várias meretrizes, a prometer prêmios para o futuro, quando se formasse nesta terra uma república‖46. O proselitismo do Alferes, por fim, tinha como alvos privilegiados os seus colegas de farda, certamente porque seu objetivo era conquistar apoio militar (e o sucesso de uma rebelião, é óbvio, requer um suporte desse tipo): conversou, no regimento da cavalaria auxiliar de São José, com o sargento-mor Antônio de Afonseca Pestana 47 , o sargento-mor José de Vasconcelos Parada e Sousa 48 , o tenente José Antônio de Melo e o sargento-mor Pedro Afonso Galvão de São Marinho 49 . Ao porta-estandarte da cavalaria paga da Capitania Francisco Xavier de Machado, em casa do mesmo, ao que tudo indica no Rio de Janeiro, pedira para traduzir parte de ―um livro em francês A Coleção das Leis Constitutivas dos Estados Unidos da América‖ – Recueil des Loix Constitutives des États-Unis de l´Amérique, publicadana Filadélfia em 1778 e que trazia os artigos da Confederação e as Constituições de Pensilvânia, Nova Jersey, Delaware, Maryland, Carolinas e Massachusetts 50 –, o capítulo oitavo, que tratava da forma da eleição do conselho privado 51 . Em outra ocasião, no Rio de Janeiro, Tiradentes 46ADIM, 1980,, vol. 5, p. 39 e vol. 2, p. 147. 47 ADIM, 1980, vol. 1, p. 168. 48 ADIM, 1980, vol. 1, p. 173. 49 ADIM, 1980, vol. 1, p. 183. 50 MAXWELL, 1999, p. 163. 51 ADIM, 1980, vol. 1, p. 189. 16 fizera comentários sobre a ―fertilidade e riqueza do país de Minas Gerais, e que por estes motivos podia bem ficar independente assim como fez a América Inglesa‖, com o que não concordou o interlocutor, não só pelo princípio de ―honra e fidelidade‖ devidas à monarquia portuguesa, mas pela falta de força e de marinha, sem com isso demover o alferes, para quem ―Minas tinha muito povo‖ e por si só se defendia52. A América Inglesa, mais uma vez, comparece como referência fundamental, servindo de exemplo a ser imitado; a questão militar igualmente faz-se presente – e Minas é o país de referência, visto por Tiradentes, tal como por Alvarenga Peixoto, como auto-suficiente em termos militares. De Minas ao Rio, nas casas, nos caminhos, estalagens, sítios, residências de meretrizes, laços de sociabilidade e clientela (assim como refrações) constituíam-se. Nesses espaços, ao mesmo tempo, debatiam-se questões literárias e/ ou atualidades históricas (a revolução norte-americana, a retenção do infante na Espanha, o empréstimo da rainha à czarina etc.), formulavam-se e difundiam-se as idéias e planos de rebelião, demarcando o espaço por ela abarcado: Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e, de modo muito vago, impreciso e contraditório com o conjunto das referências geográficas, o Brasil. Os Inconfidentes, ao entremearem uma discussão literária e/ ou as avaliações sobre a situação mais imediata da capitania com o planejamento de uma conspiração, apropriaram-se de um universo diversificado de livros e idéias, sob o império da proibição dos prelos na Colônia e dos limites impostos pelos órgãos censórios, atuantes, mas freqüentemente driblados. Depreende-se que, em função da censura, da dificuldade de ler (sobretudo em língua estrangeira), do caráter conspiratório dos encontros e da tradição cultural luso-brasileira, a comunicação oral imperou, ainda que livros e escritos fossem discutidos. Nas discussões e escritos, vê-se o interesse dos Inconfidentes pela Independência dos Estados Unidos (de que tiveram 52 ADIM, 1980, vol. 1, p. 189. 17 notícia pelas Gazetas, pela obra de Raynal, pelo Recueil), pelos acontecimentos contemporâneos no Reino (ao que parece, em boa parte acompanhados pelas Gazetas, cujas informações nem sempre vistas como dignas de crédito, provavelmente por se saber serem submetidas à censura), pela própria produção poética de que eram autores e por letrados lusitanos. Pelas restrições à liberdade sob as quais viviam, não produziram, porém, escritos revolucionários, panfletos, pasquins, sermões, tratados ou coisas similares que visassem à difusão de suas idéias, como se deu na América Inglesa. As idéias ganharam o público graças à oralidade, da qual foi maestro Joaquim José da Silva Xavier. Examinemos, então, as identidades coletivas manipuladas pelos Inconfidentes em sua ação subversiva. Identidades coletivas, territórios de referência e espaços do devir Nos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, diferentes conceitos são utilizados na representação de identidades coletivas: ―mazombos‖, ―filhos de Minas‖, ―filhos da América‖, ―filhos de Portugal‖, ―filhos do Reino‖, ―americanos‖, ―americanos ingleses‖, ―americanos portugueses‖, ―nacionais‖, ―nacionais da América‖, ―nacionais das Minas‖, ―nacionais do Brasil‖, ―pátria‖, ―povos das Minas‖ e ―povos do Brasil‖. A partir dessas noções, os réus, testemunhas e desembargadores presentes nas Devassas definiam a sua naturalidade e expressavam a identidade coletiva a que se julgavam pertencentes. Na mesma documentação, vêem-se diferentes termos para a definição de territorialidade: ―América‖, ―América portuguesa‖, ―América inglesa‖, ―Brasil‖, ―Reino‖, ―Portugal‖, ―país das Minas‖, ―país‖ e ―nação‖. A partir do levantamento sistemático da ocorrência desses termos, queremos analisar esta diversidade de identidades, em suas contradições. Para alcançar este 18 objetivo, analisaremos, em primeiro lugar, os três primeiros volumes dos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, que contêm a documentação da devassa feita em Minas, por ordem do Visconde de Barbacena. Em seguida, examinaremos a devassa tirada no Rio de Janeiro pelo Vice-Rei Luís de Vasconcelos e Sousa , incluindo as inquirições feitas aos réus pela Alçada enviada pelo ministro Martinho de Melo e Castro. Deixaremos de lado o exame do sexto volume dos Autos, que também é parte da Devassa, por conter apenas documentos relativos ao seqüestro de bens dos Inconfidentes. Antes de examinarmos a disseminação diferenciada desses termos nos Autos de Devassa, porém, é imprescindível investigar o significado de três deles à época: ―nação‖, ―nacional‖ e ―pátria‖. No senso comum hoje, nação é ―um grupo de pessoas unidas por laços naturais e eternos‖ ou imemoráveis; a nação, ―por causa destes laços, se torna a base necessária para a organização do poder sob a forma do Estado nacional‖53. Examinando-se as histórias das nações, constata-se, primeiramente, que os elementos vistos como as bases das nacionalidades são variáveis (―raça‖‖? ―Pessoa coletiva‖ composta por grupos possuidores de características comuns, como língua, costumes, religião, etc. ou mesmo definido em função de uma ―vontade de viver juntos‖?). Em segundo lugar, observa-se que as nações são construções ideológicas, produzidas nas mentes dos indivíduos em meio a uma situação de poder e que servem para legitimar os Estados. Os Estados, por sua vez, tiveram um papel importante na história de constituição das nações 54 . Nação, enfim, como nos ensina Benedict Anderson, é uma comunidade imaginada (porque seus membros, não travando contatos diretos, pensam-se como nela integrados), que se vê como soberana e limitada (territorialmente) 55 . 53 ROSSOLILLO, 1997, p. 795. 54 ROSSOLILLO, 1997, p. 796-799. 55 ANDERSON, 2005, p. 25. Para Anderson, a idéia de nação é uma abstração, um construto da imaginação, vindo a ser consagrado durante o século XIX. 19 À época da Inconfidência Mineira, o processo de construção das nações ainda não havia se dado e o próprio termo possuía um significado diferente do que se vê hoje, quer no senso comum, que entre os letrados. É importante, antes de se analisar o uso do termo nos Autos de Devassa, considerar o que ele então significava. Segundo o Vocabulário Portuguez & Latino, áulico, anatômico, architetonico (1716), de Raphael Bluteau, ―nação‖ seria o: ―Nome collectivo, que se diz da Gente, que vive em alguma grande região, ou Reyno, debaixo do mesmo Senhorio. Nisto se differença nação de povo, porque nação comprehende muitos povos, & assim Beirões, Minhotos, Alentejoens, &c. compoem a nação Portugueza; Bávaros, Saxões, Suábos, Amburguezes, Brandeburguezes, &c. compoem a nação Alemãa; Castelhanos, Aragonozes, Andaluzes, &c. compoem a nação Hespanhola‖56. Vê-se, portanto, que nação correspondia ao agrupamento humano que vivia sob um mesmo soberano, compreendendo diferentes povos. ―Nacional‖, por sua vez, no mesmo Vocabulário Portuguez& Latino, é assim referido: ―De alguã nação, ou concernente a alguã nação [...]. Nacional. Aquelle que he da mesma nação [...]. Nacional nos usos. O que segue os costumes de huã nação [...]. (Se o Príncipe se não mostrar nacional nos usos, motivara desagrados, como estranho) [...] Os da mesma nação, pátria, terra &c‖57. Deste verbete, entende-se que ―nacional‖ significa o pertencimento a uma nação e três elementos aparecem associados a esta última: a existência de laços entre indivíduos, a referência a usos e costumes como a base de tais laços (e, de resto, da própria nação) e a figura do Príncipe, que, por sua vez, não deve distanciar-se dos mesmos usos e costumes. Logo, à presença do soberano, parecia acrescer-se a idéia de laços de natureza cultural. O próprio verbete também indica que ―pátria‖ e ―terra‖ são associadas ao ―nacional‖ e tomadas como sinônimo de ―nação‖. O mesmo Vocabulário Portuguez & 56 BLUTEAU, 1716, vol. 3, p. 658. 57 BLUTEAU, 1716, p. 664. 20 Latino, todavia, revela que ―pátria‖ possui um significado que não a restringe a ser o sinônimo de ―nação‖: ―A terra, Villa, Cidade, ou Reyno, em que se nasceu. Ama cada hu a sua pátria, como origem do teu ser, o centro do seu descanço. Raras vezes sahem as aves do bosque, em que tiverão seu ninho. Tem a pátria qualidades relectivas para os que nascem nella, & attractivas para os que della se apartão [...] A Patria de Ulysses, não era a Roma [...], nem era a sua pátria Athenas [...] era Ithaca [... de onde ele] sahio [...] para a Guerra de Troya [...]. O Adágio Portuguez diz: Ao bom varão terras alheas, Pátria são‖58. Logo, ―pátria‖ é, fundamentalmente, o local de nascimento, a terra de origem, cuja amplitude ia da Vila ao Reino de onde se era natural. Em torno dessa terra de origem, as pessoas desenvolveriam afetos, frise-se. Curiosamente, um adágio português implica uma idéia que se choca com esse laço calcado na origem, pois toma a ―pátria‖ como a terra alheia onde se vive, o que pode relacionar-se com o caráter amplo da territorialidade portuguesa, que envolvia o controle de porções da Europa, América, África e Ásia. Vejamos, agora, como esses termos e as demais referências identitárias e territoriais aparecem nos Autos de Devassa, analisando os dados das Tabelas I e II e atentando para o fato de que a última coluna da Tabela II traz a soma dos dados de ambas as tabelas. A primeira evidência é o pouco uso do termo ―nação‖, feito apenas por 3 vezes: na Tabela I, referente à devassa de Minas Gerais, 2 menções, e, na Tabela II, referente à devassa do Rio de Janeiro, 1 referência. Nos dois usos registrados na Tabela I, conforme se depreende dos autos, ―nação‖ representa, em termos territoriais, o todo da ―América portuguesa‖, e em ambos, o termo está associado a palavras de Tiradentes citadas por testemunhas. 58 BLUTEAU, 1716, p. 321. 21 Tabela I – Vocabulário utilizado para representação de identidades coletivas na Devassa-MG Termos Utilizados (I) Auto de Corpo de Delito Formação de Culpa I e II Apensos (IV) Total ―filho de Minas‖ - 3 1 4 ―filho da América‖ 1 3 1 5 ―filhos de Portugal‖ 1 1 2 4 ―filhos do Reino‖ - - 1(III) 1 ―mazombos‖ 2 1 1 4 ―pátria‖ (Minas) 1 3 4 8 ―pátria‖ (Portugal) 1 - - 1 ―nacionais‖ (Minas) 2 3 - 5 ―nacionais‖ (América) 4 3 - 7 ―nacionais‖ (Brasil) 1 1 - 2 ―País‖ 5 12 11 28 ―América‖ (Minas) - 3 - 3 ―América‖ 3 3 5 11 ―Brasil‖ 3 5 6 14 ―Nação‖ (II) 1 - 1 2 (I) – Entre parênteses está presente a localidade a que o uso do termo se refere. (II) – Somente contabilizadas as ocorrências em que o termo é utilizado para tratar do todo da colônia. (III) – Termo utilizado pelo Inquiridor. (VI) – Não contabilizamos o Apenso XXVIII (por reproduzir o Recueil Des Loix Constitutives). Fonte: ADIM, vol. I, II e III. Tabela II – Vocabulário utilizado para representação de identidades coletivas na Devassa-RJ Termos Utilizados (I) Corpo de Delito Formação de Culpa RJ Formação de Culpa MG Apensos Total da Devassa do RJ Total das 2 devassas ―filho de Minas‖ 1 - - 2 3 7 ―filho da América‖ 1 3 2 5 11 16 ―filhos de Portugal‖ 1 1 2 2 6 10 ―filhos do Reino‖ - - - 1 (III) 1 2 ―mazombos‖ - - - - - 4 ―pátria‖ (Minas) - - - 3 3 11 ―pátria‖ (Portugal) - - - - - 1 ―nacionais‖ (Minas) - 2 3 7 12 17 ―nacionais (América) - 2 2 2 6 13 ―nacionais‖ (Brasil) - 1 1 - 2 4 ―País‖ (Minas) 1 1 4 17 23 53 ―América‖ (Minas) - - 1 33 34 37 ―América‖ e ―América Portuguesa‖ - 4 5 9 18 29 ―Brasil‖ 1 3 1 2 5 19 ―Nação‖ (II) - 1 - - 1 3 I – Entre parênteses está presente a territorialidade a que o termo se refere. II – Somente contabilizadas as vezes em que é utilizada para tratar do todo da colônia. III – Utilizado por Gonzaga. Com exceção dos Desembargadores, ele é o único réu que utiliza tal termo. Fonte: ADIM, vol. IV e V. 22 É difícil precisar se ele realmente utilizava o termo nação, já que suas palavras foram reproduzidas indiretamente, via depoentes. Na ocorrência verificada na Tabela II, conforme se vê nos documentos, tem-se o uso feito por Domingos Vidal Barbosa ao narrar o contato que José Joaquim Maia teve com Thomas Jefferson na França, em que Maia se anunciou como representante da sua ―nação‖, para tratar de sua independência. Inserindo-se o termo no contexto geral do discurso, percebemos que os limites territoriais de que tratava confundiam-se com os da capitania do Rio de Janeiro. Nas outras vezes em que foi citado na devassa o caso José Joaquim da Maia, seja por Domingos Vidal Barbosa, seja por Francisco Antônio Lopes, todavia, ao invés de ―nação‖ emprega-se ―América portuguesa‖, o que demarca um domínio territorial maior do que o Rio de Janeiro. Saindo dos volumes dos autos que serviram para montar as Tabelas e examinando a carta que o próprio José Joaquim da Maia, sob o pseudônimo de Vendek, enviou, em 1786, para comunicar-se com Thomas Jefferson, contudo, vê-se que o uso do termo ―nação‖ possuía outras conotações territoriais e identitárias. Vendeck-Maia, primeiramente, declara-se ―brasileiro‖ e explica que sua ―pátria geme em atroz escravidão‖, sob o domínio de ―bárbaros portugueses‖ que não cuidam senão de oprimir e cujo domínio baseia-se unicamente no direito da ―força‖. Vendek acrescenta, ainda que a ―nação‖ de Jefferson seria a mais apropriada para dar apoio à sua causa, pois constituiria um exemplo a ser seguido e a ―natureza‖ fizera os brasileiros ―habitantes do mesmo continente‖ que os norte-americanos ―e, por conseguinte, de alguma sorte [seus] compatriotas‖59. Essa reflexão de Maia, feita na França em 1786, evidentemente, não pode ser anexada às feitas pelos Inconfidentes, em Minas e no Rio, nos idos de 1788-9, como se eles estivessem participando de um único movimento sedicioso ou mesmo de uma simples intenção de iniciar sua articulação. Para melhor compreender as 59 ADIM, 1980, vol. 8, p. 21-22 e MAXWELL, 1999, p. 157-158. 23 proposições dos Inconfidentes, cumpre, pois, sublinhar o que há de comum e o que há de distinto entre ambas as manifestações de inquietação. Vendeck manipula a noção de ―nação‖ de sorte a identificá-la com o território da América portuguesa, toma a ―pátria‖ como o Brasil, mas, talvez para sensibilizar o interlocutor, estende-a a todo o continente americano, juntando os brasileiros e os rebeldes americanos ingleses; as identidades―portuguesa‖ e ―brasileira‖, por sua vez, são por ele concebidas como antagônicas. Logo, ao mesmo tempo em que ele se calcava numa identidade que apontava para todo o Brasil, ele a diluía num proto-panamericanismo. Nos documentos referentes às conversas e reflexões protagonizadas pelos Inconfidentes de Minas Gerais, os usos dos termos e identidades, quantificados nas Tabelas, são diferentes dos registrados por Maia anos antes na França. Primeiramente, os Estados Unidos nunca são mencionados como uma nação, mas sempre nomeados como ―América inglesa‖. Não se encontra em nenhuma vez o uso do termo ―brasileiro‖. Tudo indica que, para a maior parte da população das Minas, as identidades coletivas não ultrapassavam o nível regional. Não há, ademais, a oposição tão clara entre ―portugueses‖ e – já que não se vê o termo ―brasileiros‖ – os ―naturais da América portuguesa‖, os chamados mazombos, (isto é, natural da colônia), expressão cujo emprego deu-se unicamente por Tiradentes, conforme seus acusadores, e sempre da mesma forma, dizendo ele que os ―mazombos também tinham valimento e sabiam governar‖60. Há também uma interessante citação de João da Costa Rodrigues, em que ele diz que ―o levante era coisa de crioulos da terra‖61. Tiradentes, se expressava o anseio de que os mazombos participassem do governo, não os opunha aos ―portugueses‖. Entre os Inconfidentes, além disso, quando se discutiram as formas de fazer a sedição e de torná-la vitoriosa, como se viu páginas atrás, cogitou-se em eliminar 60 ADIM, vol. 1, p.124, 144; vol. 2, p.20 (2 ocorrências do termo). 61 ADIM, vol. 5, p.430. 24 os ―europeus‖ – veja-se bem, ―europeus‖ e não, ―portugueses‖ –, o que se descartou. Logo, aos olhos dos conjurados de 1788-9, não havia um antagonismo insuperável entre os nascidos na América portuguesa ou ―mazombos‖ e os nascidos em Portugal. ―Nacionais‖, como se constata examinando as Tabelas I e II, aparece com conotações territoriais – e elas remetem a espaços distintos, sendo tanto Minas, América e Brasil, acepções que totalizam, somados os números das duas tabelas, respectivamente 17, 13 e 4 menções. Fala-se em ―nacionais das Minas‖, ―nacionais da América‖ e ―nacionais do Brasil. O termo, portanto, parece estar associado a uma das acepções definidas por Bluteau: ―pátria‖ e ―terra‖. Com efeito, o termo pode ser substituído por ―naturalidade‖, lugar de nascimento, significado então dicionarizado para ―pátria‖. ―Pátria‖, por sua vez, associada a Minas Gerais, aparece 8 vezes na Devassa de Minas Gerais, conforme se constata na Tabela I e 3 vezes, na Devassa do Rio, como se vê na Tabela II, e, referida a Portugal, apenas 1 vez, na Devassa de Minas (Tabela I), estando ausente na Devassa do Rio. O termo apresenta o simples significado de naturalidade, sendo usado, na maioria das vezes, tanto para indicar a Capitania de Minas Gerais, como também Portugal e a Comarca do Serro Frio 62 – emprega-se o termo também em referência à Irlanda, com este sentido de naturalidade, informação essa que não consta nas tabelas 63 . O termo ―país‖ é outro que merece nossa consideração. Segundo o Vocabulário Portuguez & Latino, de Bluteau, significava ―Terra, Região‖64. Nos autos, em consonância com este verbete, o termo refere-se unicamente a uma identidade regional. 62 ADIM, vol. 3, p. 464. 63 ADIM, vol. 3, p. 327-332. 64 BLUTEAU, 1716, vol. 3, p. 187. Em 1801, o promotor da Inquisição de Coimbra, referindo-se à ação herética e subversiva de Dom André de Morais Sarmento, em Vinhais, em Portugal, dizia que, ―naquele País‖ (isto é, Vinhais), o mesmo semeava ―principios desorganizadores de todos os Estabelecimtos. Sociaes‖ (IANTT- IC-CP, Nº 124-125, 1798-1802, Livros 416 e 417, p. 179v). 25 É utilizado pelos inconfidentes para se referir à capitania de Minas Gerais, aparecendo também uma ou outra ocorrência referente à capitania do Rio de Janeiro. Com maior ocorrência nas duas Devassas, como referência territorial, aparece ―América‖, termo muito mais utilizado para se referir à colônia do que ―Brasil‖. Na Tabela I, somando-se ―América‖ (Minas) com ―América‖, chega-se a 14 citações, enquanto na Tabela II, usando-se o mesmo procedimento, atinge-se 52 referências. A soma final de menções dá a cifra de 66. Mesmo assim, em mais da metade (37) deste total, vê-se que o território demarcado corresponde à Capitania de Minas Gerais. Logo, no uso de ―América‖ esta palavra designava parte do território luso-americano; simultaneamente, a identidade regional da Capitania de Minas era conferida pela mesma palavra, o que sugere uma fluidez semântica e identitária. As ocorrências deste termo nesse sentido mais regional, na maioria das vezes, estão relacionadas à figura de Tiradentes, constando em depoimentos de testemunhas e réus que narram o que ouviram este dizer. Extrapolando os dados das tabelas e restringindo-se à devassa mineira como exemplo, pode-se afirmar que, em nenhuma das seis cartas-denúncia e em nenhum dos 77 testemunhos, há a ocorrência da palavra ―América‖ por parte dos denunciantes ou testemunhas, seja para designar o todo da colônia ou a Capitania de Minas: em todas as situações, o termo é atribuído aos denunciados, inserindo-se seu uso em conversas e discursos que esses últimos teriam feito. ―Brasil‖, somados os números das Tabelas I e II, chega à cifra muito mais modesta: 19 menções. Em boa parte das ocorrências, significativamente, a palavra ―Brasil‖ está nos documentos oficiais, como portarias, correspondências entre as autoridades portuguesas, como o Visconde de Barbacena, o Vice-Rei Luís Vasconcelos e Sousa, e os juízes e escrivões das duas Devassas, além de conclusões, juntadas e despachos. Aparece sempre remetendo à colônia e, na maior parte das vezes, sob a 26 forma de ―Estado do Brasil‖. As outras ocorrências deste termo estão relacionadas às testemunhas e réus envolvidos com o aparato administrativo na colônia e bacharéis em leis. Este é o caso, por exemplo, do desembargador Tomás Antônio Gonzaga. A idéia de Brasil, portanto, era algo oficial, da administração régia: não constituía a base territorial com a qual se identificassem os protagonistas da Inconfidência, marco espacial que fundava suas identidades coletivas de referência. A este respeito, é interessante analisar o que faz Basílio de Brito Malheiros, português de nascimento, um dos denunciantes da Inconfidência, em sua carta apresentada ao Visconde de Barbacena em 15 de abril de 1789 65 . Ele utiliza o termo ―Brasil‖ por quatro vezes. Em todas as vezes em que cita uma ou outra conversação sediciosa dos homens que acusa, curiosamente, nunca faz referência ao uso por parte destes do termo ―Brasil‖, preferindo sempre as expressões ―América‖ e ―país das Minas‖. Além disso, ele apresenta a convicção de que somente os ―nacionais desta terra‖ (portanto, os nascidos cá) seriam capazes de fazer uma ―rebelião‖ contra o ―Estado e a mesma Soberana‖; segundo ele, os aqui nascidos sempre mostraram ―interno desejo de se sacudirem fora da obediência que devem prestar a seus legítimos soberanos‖. Ao afirmar que a eles se uniram alguns ―filhos de Portugal‖, define-os como aqueles ―que não têm modo de vida‖. Fica implícita em sua denúncia a constatação de uma alteridade entre os ―filhos da América‖ e os ―filhos de Portugal‖. Essa alteridade se mostra evidente também nos depoimentos de Tomás Antônio Gonzaga, nos quais o mesmo diz ser ―filho de Portugal‖, procurando com isso comprovar que não poderia ter participação no projeto sedicioso, uma vez que sua condiçãode reinol a tornava inconveniente aos inconfidentes. Este é um ponto essencial: os Inconfidentes de Minas Gerais de 1788-9 expressavam insatisfação com a 65 ADIM, vol. I, p. 95-105. 27 sujeição à Rainha Dona Maria I e, por conseguinte, com o vínculo com a ―nação portuguesa‖ (aqui compreendida nos termos da época), a qual englobava, dentre outros, os ―filhos da América‖ e os ―filhos da Europa‖. Essa insatisfação, no entanto, envolvia apenas um incipiente desconforto entre ―americanos‖ e ―europeus‖; aliás, os Inconfidentes não queriam eliminar os últimos, visto que a naturalidade européia era a de boa parte de seus progenitores: os maiores incomodados, isto sim, pareciam ser os ―europeus‖ que estavam a serviço e ao lado da administração régia. Nas Tabelas, não consta uma informação relevante: não há nenhuma citação ou uso do termo ―mineiro‖ para designar uma identidade regional para as Minas. Os naturais da áurea capitania, nas devassas, eram os ―filhos de Minas‖, ―nacionais‖ dela e os ―filhos da América‖, designações essas contabilizadas nas Tabelas I e II. A sua terra era o ―país de Minas‖, ou ―América‖. Eram também os ―americanos portugueses‖, ou ―nacionais‖ ou ―filhos‖ desta. Estas últimas denominações tinham a ver com uma relação de alteridade que se estabelecia com os ―filhos de Portugal‖ ou ―filhos do Reino‖, dentro do mundo luso-brasileiro. No entanto, nas Devassas, podem ser vistas referências às identidades ―pernambucanos‖ e ―cariocas‖. O Cônego Luís Vieira, como se verá no capítulo seguinte, falava sobre os ―pernambucanos‖ e sua luta para a expulsão dos holandeses, sendo esse feito um dos por ele rememorados para justificar sua tese de que um príncipe europeu não teria direito sobre a América. ―Carioca‖, por sua vez, apareceu, por exemplo, numa fala de Jerônimo de Souza Castro, alferes do regimento de cavalaria auxiliar do Rio de Janeiro. Em seu depoimento, referindo-se a uma manifestação de ira do Tiradentes, contou que o mesmo disse: ―pois que os cariocas e americanos eram fracos, vis, patifes, pusilânimes e de baixos espíritos, podendo passar sem o jugo que sofriam e viverem independente do Reino, o 28 toleravam‖66. Ao final do século XVIII, na verdade, eram perceptíveis, no interior da colônia, de um lado, diversas identidades coletivas de caráter estritamente regional e, de outro, o fato de que os ―filhos da América‖ também se viam, por prolongamento, como portugueses, como membros da ―nação portuguesa‖, estando sujeitos, ainda que a contragosto, à Dona Maria I, soberana da casa de Bragança. Nessa época, os colonos reconheciam-se como paulistas, baianos, pernambucanos e entendiam, ao mesmo tempo, que ―ser paulista, pernambucano ou bahiense significava ser português, ainda que se tratasse de uma forma diferenciada de sê-lo‖, isto é, ser português da América67. A partir do exame das identidades coletivas e dos marcos territoriais em que as mesmas se baseavam, tal como se encontram nas devassas da Inconfidência de Minas Gerais, pode-se, em suma, retirar algumas conclusões. A participação das Capitanias do Rio de Janeiro e de São Paulo no levante, aventada pelos Inconfidentes e analisada anteriormente, não implicava o compartilhamento de uma identidade coletiva comum às três capitanias: acima de cada uma delas isoladamente, o que havia era uma fugidia identidade americana e, mais forte, a identidade portuguesa, no interior da qual a primeira encontrava-se subsumida, sem que se demarcasse uma tensão clara entre ―portugueses‖ e ―filhos da América‖. Disso pode-se conjecturar que as referências às articulações das três capitanias do sudeste em torno de um projeto de sedição relacionavam-se mais às preocupações defensivas, aos interesses econômicos comuns, às estratégias militares e políticas e, ainda, à necessidade de uma saída para o mar para contato com nações estrangeiras. Ao mesmo tempo, os Inconfidentes de Minas tinham em vista o conjunto da América portuguesa apenas de modo fugidio, quase como abstração, não o levando, de modo nenhum, como o espaço da instalação, com certo exagero nosso, de sua utopia. A geografia dos sonhos que construíram, insistamos, 66 ADIM, 1980, vol. 4, p. 56. 67 JANCSÓ & PIMENTA, 2000, p. 136-7. 29 resumia-se às capitanias de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro (de modo efetivo, mais à primeira) e, ainda assim, marcadamente por motivos estratégicos, econômicos e políticos, sem que houvesse uma identidade coletiva a englobá-las (as três capitanias) e a separá-las (em termos identitários) da América portuguesa. Distantes de nossa concepção contemporânea de nação e, mais ainda, de uma idéia de ―nação brasileira‖ (como não poderia deixar de ser), os Inconfidentes, por fim, lidavam de forma ambígua com a ―nação portuguesa‖. Entendendo-a como à época se concebia nação, isto é, como aglomerado humano submetido a um mesmo soberano, é verdade, os Inconfidentes propunham uma ruptura, brandindo uma idéia de república e subtraindo-se da tutela da Rainha Dona Maria I. Todavia, como será mostrado no capítulo seguinte, entre os Inconfidentes, se houve os que abraçaram a idéia de instalação de uma república, imitando em alguma medida a América Inglesa, outros defenderam não apenas a aclamação aqui de um Infante da casa de Bragança, mas a coroação da rainha e/ ou a vinda para cá da família real. Referências: Documentos manuscritos: [IANTT-IC-CP], Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, Inquisição de Coimbra, Cadernos do Promotor Nº 124 e 125 (1798-1802) – Livro 416 e 417, p. 91- 180. Documentos impressos: [ADIM] AUTOS de devassa da Inconfidência Mineira. 2 ed. Brasília: Câmara dos Deputados: Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1980. 10 v AUTOS de Devassa da Inconfidência Mineira: complementação documental. Ouro Preto: MinC-IPHAN-Museu da Inconfidência, 2001, vol. 11. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez & Latino, áulico, anatômico, architetonico […]. Lisboa: Officina de Paschoal Silva, 1716. 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