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84 Uma saída restaurativa ao processo de vitimização secundária UMA SAÍDA RESTAURATIVA AO PROCESSO DE VITIMIZAÇÃO SECUNDÁRIA Fernanda Fonseca Rosenblatt1 Introdução Nos primórdios da Vitimologia, o estudo da vítima era limitado a discus- sões eminentemente positivistas acerca do papel dela na gênese ou na dinâmica do crime – é o que se depreende, por exemplo, do trabalho de classificação das vítimas proposto por Von Henting, ou da tipologia vitimária sugerida por Mendelsohn (Kosovski, Piedade Júnior e Mayr, 1990; Piedade Júnior, 2007). No início dos anos 1960, entretanto, surgem as primeiras pesquisas de vitimização, com o principal objetivo de “revelar” (na verdade, estimar) a denominada “cifra negra” ou “taxa de subnotificação” de crimes (Zilli, Marinho e Silva, 2014). Aos poucos, o enfoque vitimológico se amplia e passa a abranger estudos acadê- mico-científicos cada vez mais complexos e críticos acerca dos mais variados temas da Vitimologia contemporânea: a distribuição do risco de vitimização segundo critérios de raça/cor, gênero, classe e localidade; a percepção das víti- mas sobre a polícia e o sistema de justiça criminal; as causas e consequências do “medo do crime”; dentre outros (Hoyle, 2012). Esse “novo” enfoque vitimológico tem alargado o conhecimento sobre os mais variados processos de vitimização, inclusive sobre a sobrevitimização do processo penal – quer dizer, sobre o fenômeno da vitimização secundária –, apontando, fundamentalmente, para a necessidade de “mudanças, especial- mente no sistema penal e na política criminal, que impliquem apoio, respeito, 1 Doutora em Criminologia pela University of Oxford (Inglaterra). Mestre em Criminolo- gia pela Katholieke Universiteit Leuven (Bélgica). Professora de Direito Penal e Processo Penal da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia. Membra do Comitê Executivo da Sociedade Mundial de Vitimologia (World Society of Victimology). Fernanda Fonseca Rosenblatt | 85 tratamento justo e digno para a vítima” (Silva, 2009, p. 77). Na esteira desses de- senvolvimentos, o presente artigo tem por intuito, primeiro, expor (ou denun- ciar) o já mencionado processo de vitimização secundária, isto é, o paradoxo da imposição de danos à vítima no próprio processo penal. Num segundo mo- mento, buscar-se-á explorar um modelo alternativo de resolução de conflitos, a justiça restaurativa, o qual, argumentaremos ao final, aprimoraria o sistema penal vigente, inclusive no que diz respeito à posição da vítima. 1. A participação da vítima no processo penal e o processo de vitimização secundária A literatura costuma dividir a história da participação da vítima no proces- so penal em três grandes fases: protagonismo, neutralização e redescobrimen- to (Molina e Gomes, 2008). A primeira fase, de protagonismo, compreende a época da denominada “justiça privada” ou “vingança privada”, quando “cabia à vítima todo o desforço para aplacar a agressão [sofrida]” (Barros, 2008, p. 3). Progressivamente – “com o fortalecimento do ente jurídico e político que vem a ser, depois, denominado como Estado” – a vingança privada foi dando lugar à justiça pública e, ao se fazer plena, a intervenção do Poder soberano nos do- mínios punitivos “desapossa a vítima de seus direitos, sub-roga-se no direito de punir (e de perdoar) e, ao mesmo tempo, subalterniza a reparação dos danos” (Silva, 2009, p. 35-36). Iniciou-se, assim, a fase de neutralização da vítima que, de protagonista, passou a ser “relegada, geralmente, a um total desamparo, sem outro papel [no processo penal] que o puramente ‘testemunhal’” (Molina e Go- mes, 2008, p. 74). Dito doutro modo, com a publicização do processo penal, a vítima é excluí- da do processo de resolução do seu próprio conflito. Quer dizer, o conflito é ex- propriado pelo Estado – ou, nas palavras de Christie (1977), o Estado “rouba” o conflito –, e surge “a noção de proibição da justiça pelas próprias mãos, até hoje tipificada como conduta ilícita” (Barros, 2008, p. 5). Como revela Barros (2008, p. 16), essa “estrutura, que expropria o conflito, que cria uma superparte [o Estado], foi sendo inserida nas teorias do Direito Penal e do processo penal”. A consequência é que, até hoje, o Direito Penal segue centrado no conceito formal de crime como fato típico, antijurídico e culpável, quer dizer, na noção de delito como um desrespeito à lei e ao Estado – logo, a relação processual se dá entre aquela “superparte” e o réu. Dentro dessa lógica de despersonalização do conflito – ou de “coisificação”, como prefere Zaffaroni (1996) –, falta espaço 86 Uma saída restaurativa ao processo de vitimização secundária à vítima, que, por óbvio, acabou se tornando figura irrelevante na resolução da contenda penal. A partir da Segunda Guerra Mundial, e diante da catástrofe humana de- corrente do holocausto, surgem os primeiros sérios questionamentos em torno da vítima (Kosovski, 2008). Aos poucos, de simples capítulo da Criminologia, a Vitimologia vai se transformando em disciplina (ou, para alguns, ciência) autônoma.2 No início, como pontuamos na Introdução, e diante do seu en- trelaçamento com a Criminologia (à época, positivista), surge uma Vitimolo- gia com enfoque eminentemente positivista, interessada nas causas (biológi- cas, antropológicas e sociais) do crime – e, por isso, muito focada na figura da “vítima provocadora” (Barros, 2008). Depois, aos poucos, já influenciada pela Criminologia Crítica, em especial pela crítica abolicionista (feita contra a expropriação do conflito pelo Estado), foi sendo estruturada essa Vitimo- logia que conhecemos hoje. Uma Vitimologia que “não se presta a justificar o comportamento do agente, mas sim a buscar soluções para evitar ou ao menos amenizar a vitimização” (Barros, 2008, p. 48). Inicia-se, finalmente, a fase de redescobrimento da vítima, fase esta que desemboca nos atuais estudos de Viti- mologia relacionados ao processo penal e, particularmente, à preocupação em se encontrar modelos alternativos de resolução de conflitos que possam evitar o processo de vitimização secundária (Hoyle, 2012). Mas em que consiste, precisamente, a sobrevitimização do processo penal? Segundo Calhau (2004, p. 60, sem grifos no original): Ao contrário do aspecto racional, que seria o fim do sofrimento ou a amenização da situação em face da ação do sistema repressivo estatal, a vítima sofre danos psíquicos, físicos, sociais e econômicos adicionais, em consequência da reação formal e informal derivada do fato. A esse dano adicional causado pela própria mecânica da justiça penal for- mal dá-se o nome de “vitimização secundária” (ou sobrevitimização do pro- cesso penal), sendo a vitimização primária aquela decorrente do próprio fato criminoso (Oliveira, 1999). Com efeito, como se não bastasse o sofrimento com o crime, no modelo tradicional de justiça criminal, a vítima também sofre ao longo do processo penal, dentre outras razões, porque: é muitas vezes destrata- da em Delegacias de Polícia; tem sua participação no processo limitada às fun- ções de informante; segue aflita por desconhecer sobre o andamento do “seu” 2 Sobre as discussões em torno da autonomia científica da Vitimologia, vide Piedade Jú- nior (2007). Fernanda Fonseca Rosenblatt | 87 caso, e sobre os seus direitos enquanto vítima; raramente é atendida nas suas expectativas de reparação de danos; dentre outras situações de desprezo vividas pela vítima que, vale lembrar, também é protagonista na ocorrência criminosa (Oliveira, 1999). Insta esclarecer que a sobrevitimização do processo penal não é um proble- ma brasileiro, mas uma situação vivida por vítimas de todas as partes do mun- do, porquanto sua neutralização é fenômeno reconhecidamente internacional.3 O que se pode observar mundo afora, entretanto,em particular na América do Norte e em países da Europa Ocidental, é que, no curso do atual período de redescobrimento da vítima, a crescente força dos movimentos sociais orga- nizados em defesa dela (Victims’ Movements) tem impactado sobre os sistemas de justiça criminal modernos, resultando na incorporação, pela maioria dos países, de algumas reformas (ainda que fragmentadas) em prol da vítima. Por exemplo, em muitas jurisdições, a vítima agora tem o direito de ser informada sobre o andamento do “seu” caso, o direito de manifestar livremente suas opi- niões pessoais e o impacto emocional resultante do crime durante o julgamento (Victim Impact Statement), o direito à indenização (ou compensação) por parte do Estado, e assim por diante (Hoyle, 2012). No Brasil, também ocorreram algumas reformas sugestivas da “redesco- berta” da vítima, sendo a principal (ou menos tímida) delas a entrada em vigor da Lei 9099/95 (Lei dos Juizados Especiais), quer dizer, a introdução, no ordenamento jurídico brasileiro, de um modelo consensual de justiça crimi- nal (mais ou menos) preocupado com a reparação de danos (mormente nas hipóteses de transação e suspensão condicional do processo) (Gomes, 2001). Afora esse, podemos citar outros poucos exemplos nacionais, como a possi- bilidade, no caso de crimes sem violência e grave ameaça, de diminuir a pena do condenado frente à reparação do dano ou restituição da coisa4; e a forçosa consideração dos danos causados à vítima quando da fixação da “pena base” pelo magistrado5. Não obstante essas tentativas de realçar o papel da vítima no processo pe- nal, no Brasil ou fora dele, a vítima permanece amplamente excluída ou negli- 3 Basta lembrarmos, por exemplo, da declaração da ONU, denominada “Declaração dos Princípios Básicos de Justiça para as Vítimas de Delitos e Abusos de Poder”, para per- cebermos a relevância internacional do tema. Mais detalhes sobre a referida declaração podem ser encontrados em Piedade Júnior (2007). 4 Aqui nos referimos ao “arrependimento posterior”, previsto no artigo 16 do Código Penal Brasileiro. 5 É o que prevê o artigo 59, caput, do Código Penal, quando elenca, dentre as oito circuns- tâncias judiciais que arrola, uma sobre as consequências do crime. 88 Uma saída restaurativa ao processo de vitimização secundária genciada (Barros, 2008; Oliveira, 1999; Dignan, 2005; Groenhuijsen, 2004). E além do argumento mais clichê de má implementação dos supramencionados direitos (à informação, à reparação, ao Victim Impact Statement, etc.), alguns autores vão além, sugerindo que as necessidades da vítima não serão atendidas enquanto as reformas forem apenas graduais. Para eles, a reforma tem de ser completa: temos de embarcar num novo paradigma de justiça, que inclua a vítima como um de seus personagens principais, e que seja capaz de deslocar o enfoque da retribuição para a reparação (Strang e Sherman, 2003). É neste ponto que os movimentos em defesa da vítima e a justiça restaurativa começam a se entrelaçar. Com efeito, o fracasso do sistema de justiça criminal na satisfa- ção das necessidades das vítimas de crimes tem servido de impulso à busca por modos alternativos de resolução de conflitos, dentre eles, a justiça restaurativa. 2. O processo restaurativo e o seu ideal de devolução do conflito às partes diretamente afetadas Como vimos, o crime, ao invés de representar uma ofensa contra indivídu- os, é tradicionalmente (e muito abstratamente) concebido como uma infração cometida contra o Estado. Por sua vez, são os profissionais que, representando o Estado, tomam as decisões sobre como cada caso concreto deve ser resolvi- do (Morris, 2002). O próximo passo, dentro dessa lógica conservadora, é dar ênfase aos ideais mais desinteressados de punição e retribuição, ao invés de envidar esforços na realização de ideais mais íntimos ou pessoais de reparação e reconciliação. Em seu texto seminal “Conflitos como Propriedade” (Conflicts as Property), de 1977, Christie critica esse modelo tradicional de justiça criminal, argumen- tando que o Estado – e, em nome dele, os profissionais da justiça (advogados, juízes, promotores, psiquiatras, etc.) – se apropria dos conflitos pertencentes às partes diretamente afetadas pelo crime. Segundo ele, esses conflitos deveriam ser devolvidos a quem pertencem – às vítimas, aos infratores e à comunidade. A despeito de Christie, há época, não ter mencionado o termo “justiça restau- rativa”, nem mesmo en passant, o supramencionado texto se tornou a base de grande parte das construções teóricas sobre a justiça restaurativa. Nesse diapasão, um dos principais atributos da justiça restaurativa é que ela enxerga o crime como uma violação contra pessoas “reais” no lugar de uma violação dos interesses abstratos do Estado ou de normas jurídicas abstratas. Assim, no modelo restaurativo de justiça criminal, “o Estado não tem mais o Fernanda Fonseca Rosenblatt | 89 monopólio sobre a tomada de decisões” e “os principais tomadores de decisão são as próprias partes” (Morris e Young, 2000, p. 14). Isto é, os conflitos são devolvidos a quem pertencem (vítimas, infratores e comunidade), e a lógica da justiça criminal é invertida: no lugar da repressão contra o inimigo (o infrator), a busca é pelas respostas mais significativas de reparação (dos danos advindos do crime) e de reconciliação (entre as partes em conflito). Esse ideal de devolução dos conflitos às partes diretamente afetadas pres- supõe um processo inclusivo. Nesse sentido, a justiça restaurativa envolve um processo que permite e viabiliza o efetivo engajamento das partes; um processo no qual todos os participantes ajudam a definir o mal provocado pelo delito e a desenvolver um plano para a reparação desse mal. E quanto mais inclusivo for esse processo, melhor – quer dizer, quanto mais pessoas (atingidas pelo crime) forem incluídas, quanto mais cedo elas forem envolvidas, e quanto mais efetiva for a participação de cada uma delas ao longo do processo, maior será o potencial restaurativo desse processo. É principalmente por essa razão que o modelo ideal ou “purista” (McCold, 2000) de justiça restaurativa é de um processo em que as partes envolvidas se encontram “cara-a-cara”. Isto é, na prá- tica, os programas de justiça restaurativa devem envolver, sempre que possível, um (ou alguns) encontro(s) “ao vivo” entre as partes afetadas pela ocorrência criminosa, para que todos tenham a oportunidade de expressar seus sentimen- tos e partilhar suas opiniões sobre como enfrentar as consequências do crime (Morris e Young, 2000). Outro valor bastante atrelado aos processos de justiça restaurativa é a in- formalidade. O supracitado ideal de inclusão, diriam os restaurativistas (vide, por exemplo, McCold, 2000), está amarrado à ideia de um processo informal, através do qual os participantes possam se sentir confortáveis e capazes de falar por si mesmos. Com efeito, a justiça restaurativa se materializa através de um processo informal, e a principal razão de ser dessa informalidade é a necessi- dade de se criar um ambiente “ideal” para a ativa (e efetiva) participação de todos os interessados; ou, dito doutro modo, o processo restaurativo deve ser o mais informal possível para permitir um ambiente não-ameaçador e não- -estigmatizante, no qual todos os participantes possam se sentir livres para fa- lar (Van Ness e Strong, 2010). Por isso, em geral, os encontros restaurativos não ocorrem em salas de tribunais e fóruns, mas na própria comunidade local (por exemplo, em escolas ou em centros comunitários); os participantes se sen- tam num círculo; ninguém usa beca ou “juridiquês”; e, ao final do encontro, é comum servir café e lanche, como forma de criar mais uma oportunidade de interação (informal) entre as partes (Wachtel, 2013). 90 Uma saída restaurativa ao processode vitimização secundária O processo restaurativo também é concebido como um instrumento de “empoderamento” (empowerment) de vítimas, infratores e comunidades, a fim de que essas partes possam unir esforços na superação dos danos materiais, psicológicos e relacionais decorrentes do crime (Van Ness e Strong, 2010). Com efeito, para romper com a mentalidade de que os profissionais são os mais aptos a decidir como é que as pessoas diretamente afetadas por um crime devem ser ajudadas ou tratadas, as vítimas precisam de empoderamento para “assumir” o seu próprio conflito – quer dizer, elas devem ser empoderadas para opinar sobre o destino do seu próprio caso. Por outro lado, a fim de superar uma longa tradição em que o condenado “recebe”, passivamente, uma punição, os infra- tores devem ser empoderados para “assumir” o seu comportamento desviante, para realmente enfrentar as consequências de suas ações, reparando os danos provocados a indivíduos e relacionamentos, e aproveitando toda e qualquer oportunidade para demonstrar confiabilidade e buscar a sua reintegração na comunidade. Por fim, os membros da comunidade vitimizada devem ser em- poderados para perquirir sobre os problemas locais que favorecem a crimina- lidade, para resolver os seus próprios conflitos comunitários, e para ajudar a traçar um plano de ação por meio do qual os infratores arrependidos possam ser (re)inseridos naquela comunidade (Walgrave, 2008). Além desses (e de outros) valores operacionais (ou processuais), impende destacar que a justiça restaurativa é voltada para a reparação dos danos causa- dos pela conduta do infrator (Walgrave, 2008). Com efeito, “a menos que repa- rar o dano esteja na essência da definição de justiça restaurativa, [...] as partes interessadas e os profissionais envolvidos irão continuar escorregando para o modo tradicional e confortável de simplesmente tentar ajudar ou machucar o infrator” (Bazemore, 2000, p. 464). Assim, a “intuição restaurativa” é que “por- que o crime dói, a justiça deve curar” (Braithwaite, 2005, p. 296). Essa é a ideia central naquele que é provavelmente o primeiro escrito sistemático sobre justi- ça restaurativa: o livro de Howard Zehr, de 1990, “Trocando as Lentes” (Chan- ging Lenses). Segundo Zehr (1990), se o crime é para ser visto como um ato que causa danos a pessoas e comunidades (em oposição a uma mera violação de normas penais incriminadoras), o principal objetivo da justiça restaurativa deve ser o de reparar esses danos, atendendo às necessidades reais de todas as partes envolvidas nas implicações do delito. Portanto, um dos principais atri- butos da justiça restaurativa – se não o mais importante dentre todos eles – é que ela visa mudar a orientação normativa do sistema de justiça criminal da velha retribuição para a restauração. Em suma, o resultado mais representativo de um processo restaurativo é a reparação do dano, a qual, na prática, pode Fernanda Fonseca Rosenblatt | 91 assumir vários formatos: compensação financeira à vítima, compensação à ví- tima através da realização de algum trabalho (por exemplo, quando o infrator conserta a cerca que destruiu), pedido de perdão (a chamada “reparação sim- bólica”), prestação de serviços à comunidade, etc. (Walgrave, 1999). Em suma, o movimento restaurativo, muito influenciado pelo pensamento criminológico crítico, está atrelado a uma insatisfação crescente com o sistema tradicional de justiça criminal, e propõe, em contrapartida, um sistema dialo- gal de abordagem dos conflitos, o qual se contrapõe à utilização da prisão como principal instrumento de resposta ao crime, à supervalorização dos profissio- nais da justiça em detrimento do empoderamento das partes diretamente afe- tadas pelo delito, à falta de compromisso com a reparação dos danos sofridos, dentre outros aspectos negativos da justiça criminal tradicional. 3. A justiça restaurativa como uma saída (equilibrada) à sobrevitimização do processo penal Porque o crime é tradicionalmente concebido como uma infração contra o Estado, “não é de se estranhar que as vítimas são tão consistentemente dei- xadas de fora do processo [penal] e que suas necessidades e desejos são tão pouco atendidos” (Zehr, 1990, p. 82). De fato, o modelo tradicional de justi- ça criminal, ao conservar uma mentalidade orientada para o castigo, onde a ênfase é colocada na “justa medida da pena”, acaba por negligenciar “as mais complexas e não retributivas necessidades das vítimas” (Dzur e Olson, 2004, p. 91). Nesse contexto, as pesquisas vitimológicas têm reiteradamente reve- lado o que as vítimas de crime mais querem do sistema de justiça criminal: mais informações sobre o “seu” caso, mais “voz” dentro do “seu” processo, mais atenção aos danos emocionais e psicológicos decorrentes da “sua” ex- periência de vitimização, e assim por diante (Strang e Sherman, 2003). Nesse contexto, há fortes razões para acreditar que o sistema restaurativo de abor- dagem dos conflitos é mais benéfico para as vítimas do que a míope tradição de punição e retribuição profundamente arraigada no sistema de justiça cri- minal (Hoyle, 2002). Com efeito, existe crescente evidência empírica de que: diante do real envolvimento da vítima no processo, os programas de justiça restaurativa criam mais oportunidades para que elas fiquem sabendo sobre o andamento do “seu” caso; os processos restaurativos permitem a ativa participação das vítimas, porque a elas é devolvida a palavra, por meio da qual elas podem 92 Uma saída restaurativa ao processo de vitimização secundária expressar o seu sofrimento e compartilhar as suas opiniões sobre como o crime deve ser enxergado; práticas restaurativas oferecem ampla oportuni- dade de reparação emocional, na medida em que os encontros “cara-a-cara” entre vítimas e infratores aumentam a probabilidade de arrependimento e de um genuíno pedido de desculpas por parte do infrator; e, em última análise, o enfoque que a justiça restaurativa dá aos danos (materiais, psicológicos e relacionais) decorrentes do crime, e em seguida, à necessidade de reparação desses danos, são características do processo restaurativo de óbvio benefício às vítimas (Aertsen e Vanfraechem, 2014). Tem mais. A justiça restaurativa surgiu como um movimento diferente, e mais equilibrado, na medida em que se entrelaça ao movimento de reconhe- cimento dos direitos das vítimas de crime, sem adotar, contudo, aqueles dis- cursos de “lei e ordem” e “tolerância zero”, tão típicos de movimentos sociais organizados em defesa das vítimas (Garland, 2001). Com efeito, um dos pe- rigos da emergência da vítima nos debates públicos sobre crime e punição é o fortalecimento do chamado populismo punitivo, “definido como o discurso emotivo que clama por punição em nome das vítimas” (Alvarez et al., 2010, p. 16). Por exemplo, no Brasil, a Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) é um exemplo preciso dessa “instrumentalização da vítima em prol de uma política criminal de matriz neoconservadora, mais repressiva e não atenta às garantias fundamentais e aos direitos dos acusados” (Alvarez et al., 2010, p. 21). Mas a justiça restaurativa, porque também é muito influenciada pelo pensamento criminológico crítico, distancia-se desse “jogo de soma-zero”, onde qualquer relevo aos diretos ou interesses do infrator é interpretado como sendo às custas da vítima (Strang, 2002). De fato, o processo restaurativo não busca o reconhecimento da vítima com a exclusão ou redução dos direitos do acusado no processo penal. Ao contrário, a justiça restaurativa pode ser vista como uma forma construtiva de lidar com ambos, vítimas e infratores, “ficando de fora do, ao invés de se prendendo ao, movimento populista que acredita que o que ajuda a vítima deve, necessaria- mente, machucar o infrator” (Hudson, 2003, p. 178). Dessa forma, não se trata de resgatarum passado de “vingança privada” ou, como bem ressalta Barros (2008, p. 45, sem grifos no original), “não se trata de mero redescobrimento da vítima, decorrente da idade de ouro, mas uma nova definição da vítima com- preendida a partir de sua autonomia pública e privada”. Fernanda Fonseca Rosenblatt | 93 Considerações finais Como sugere Gomes (2001, p. 188), um exame superficial do artigo 5o da Constituição Federal “constitui a prova mais exuberante no Brasil de que a víti- ma foi efetivamente esquecida, neutralizada, marginalizada”. A constatação não gera surpresa se lembrarmos que, no modelo tradicional de justiça criminal, o crime é visto como “mero enfrentamento” entre o seu autor e as leis do Estado, esquecendo-se que em sua base há um conflito humano que gera expectativas outras bem distintas, muito além da mera pretensão punitiva estatal (fundada no castigo ao infrator) (Gomes, 2001, p. 187, grifos no original). Dentro dessa lógica formalista, orientada para a decisão sobre um fato típi- co, antijurídico e culpável, e não para a solução de um conflito intersubjetivo, de fato, a vítima é esquecida e, assim, acaba suportando um dano adicional causado pelo desenrolar do “seu” próprio processo penal. Por isso, um elemen- to chave do movimento que visa aprimorar o papel (ou a posição) da vítima no sistema de justiça criminal é a luta contra a sua vitimização secundária. No presente capítulo, pretendeu-se apresentar um modelo alternativo de resolução de conflitos capaz de obstar esse processo de vitimização secundária. Com efeito, exploramos a chamada “justiça restaurativa”, destacando um dos seus maiores apelos: o seu potencial para satisfazer a vítima de crime, particu- larmente para evitar a (ou amenizar os efeitos da) sobrevitimização do processo penal. Como Carvalho (p. 150), poderíamos afirmar que trazer a vítima ao processo é deflagar processo de revitimização, potencializando novamente os efeitos da lesão sofrida anteriormente, pois se o escopo do processo é a reconstrução de um fato pretérito não mais passível de experimentação para solucionar o caso penal, ao proporcionar tal experiência à vítima, estaríamos fazendo com que ela revivesse aquele momento de dor e angústia. A passagem acima, entretanto, ignora o fato de que, repetidamente, as pes- quisas têm revelado o descontentamento da vítima com o sistema de justiça criminal, mormente diante da falta de informação sobre o andamento do seu próprio caso, da falta de reconhecimento dos danos materiais e emocionais sofri- dos, e da falta de oportunidade para se tornar ativamente envolvida no processo de resolução do seu próprio conflito. Quer dizer, na verdade, as vítimas de crime 94 Uma saída restaurativa ao processo de vitimização secundária querem participar mais, e ter mais voz, dentro do “seu” processo penal. Preferi- mos, portanto, apostar na justiça restaurativa, um modelo dialogal de resolução de conflitos que permite essa “retomada” do conflito “roubado” pelo Estado. E impende destacar: sem que isso importe em respostas penais mais gravosas ao condenado. Com efeito, além de garantir a “redescoberta” da vítima, argumen- tamos, a justiça restaurativa, influenciada que é pelas críticas abolicionistas, “pode servir como um ‘dispositivo refrigerador’ para o atual ‘calor crimino- lógico’, que parece determinado a encarcerar um número cada vez maior de infratores, com pouquíssimos benefícios para as vítimas” (Hoyle, 2012, p. 419). Referências AERTSEN, Ivo; VANFRAECHEM, Inge. Victims and Restorative Justice. New York: Routledge, 2014. 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