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1 AS FASES DE EVOLUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS A pré-história dos direitos humanos Como já visto, esta fase compreende o mundo antigo (doutrina estóica greco- romana) e a concepção medieval de Estado. Coincide, pois com a antiguidade clássica e o feudalismo. Ingo Sarlet mostra que da doutrina estóica greco- romana e do cristianismo surgiram as teses da unidade da humanidade e da igualdade de todos os homens em dignidade perante Deus, ou seja, “os valores da dignidade humana, da liberdade e da igualdade dos homens encontram suas raízes na filosofia clássica, especialmente na greco-romana, e no pensamento cristão. Saliente-se, aqui, a circunstância de que a democracia ateniense constituía um modelo político fundado na figura do homem livre e dotado de individualidade. Do antigo testamento, herdamos a idéia de que o ser humano representa o ponto culminante da criação divina, tendo sido feito à imagem e semelhança de Deus”. (Cf. Ob. cit. p. 41). Já no campo teórico do Estado Medieval, destacamos a concepção dual de poder, vale explicitar a luta pelo poder político entre a Igreja e o Estado. O conceito de soberania ainda não é uno, na medida em que há uma disputa por supremacia entre o poder temporal e o poder eclesiástico. É nesse contexto que sobressai o pensamento de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) e em especial sua obra seminal Summa Theologica. É importante aqui destacar que, muito embora Santo Tomás de Aquino já tivesse desenvolvido sua teoria acerca da coexistência harmônica dos poderes temporal e eclesiástico, o fato é que permanecia a idéia de supremacia da autoridade espiritual, não se podendo falar ainda em doutrinas do direito natural da pessoa humana e muito menos ainda em doutrinas eminentemente democráticas acerca da origem e do exercício do poder político. 2 E assim é que, a constatação inevitável que se faz é a de que, em pleno alvorecer da modernidade, ainda não é possível falar-se nem sequer em afirmação dos direitos naturais do homem. A sociedade encontra-se ainda em uma fase de pré-história dos direitos humanos, caracterizada pela doutrina estóica grego-romana e pela doutrina cristã da igualdade do homem perante Deus. Destacam-se dentro desse contexto histórico-filosófico, dentre outros, o pensamento escolástico de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, o nominalismo de Guilherme de Ockham e, logicamente, a Carta Magna de 1215 do Rei João Sem-Terra na Inglaterra, principal documento da Idade Média atinente à evolução dos direitos humanos. No entanto, como bem alerta Ingo Sarlet, a Carta Magna não foi nem o único, nem o primeiro documento a tratar sobre direitos do homem, destacando-se, já nos séculos XII e XIII, as cartas de franquia e os forais outorgados pelos reis portugueses e espanhóis, e.g., o documento firmado por Afonso IX em 1188 (Cf. ob. cit.,p. 45). A fase de afirmação dos direitos naturais Esta etapa se desenvolve em plena vigência do Estado Absoluto. Realmente, por mais paradoxal que possa parecer, foi durante o absolutismo que a doutrina do direito natural começou a florescer com o surgimento dos grandes filósofos do contratualismo jurídico (Thomas Hobbes, John Locke e Jean- Jacques Rousseau). Antes da obra de Hobbes, a noção de direitos do homem ainda não prevalecia diante da idéia de poder originário divino e supraterreno, que legitimava as monarquias absolutistas. Hobbes constrói dessarte a noção de que o Estado enquanto sociedade política nasce de um contrato celebrado pelos cidadãos que aceitam ceder seus direitos naturais a um poder comum, a cuja autoridade passam a respeitar, sem qualquer tipo de contestação. É o pacto de submissão amparando a formação do Estado–Leviatã, único capaz de gerar paz e segurança no estado societal. Observe, com atenção, que o pacto de submissão é um ato de transferência de direitos inerentes ao homem. A 3 passagem do estado de natureza (caos) para o estado societal (Estado) depende exclusivamente dos direitos naturais do homem. Nessa mesma linha de pensamento do contratualismo jurídico, porém mais de quarenta anos depois (1692), surge a obra de John Locke. A teorização política de Locke faz avançar a afirmação dos direitos naturais, na medida em que altera o paradigma contratual que passa a ser um “pacto de consentimento” e, não, mais um “pacto de submissão” como na obra hobbesiana. É pelo pacto de consentimento que se legitima a ação do governo civil, porém com o único objetivo de assegurar as liberdades individuais ante a possibilidade de abuso das autoridades estatais. Na visão de Locke, o que realmente importa saber é se o governo civil está apto ou não a garantir seus direitos à vida, à liberdade e à propriedade, surgindo daí, portanto, o direito de resistência. Tal conceito é ponto nuclear na evolução dos direitos fundamentais, uma vez que reconhece ao cidadão comum a prerrogativa de resistir às autoridades tirânicas, na hipótese de violação de seus direitos naturais. Isto significa dizer por outras palavras que o pacto de consentimento de John Locke não pressupõe a cessão de direitos naturais ao Estado, ao contrário, caracteriza-se em sua obra a retenção de direitos nas mãos de seus verdadeiros titulares. Em suma, na visão de Locke, o ato de constituição do Estado é um contrato social, no qual cada indivíduo abre mão de realizar a justiça privada em prol do Estado que fica com a obrigação de garantir as liberdades individuais. Não há cessão de direitos naturais, mas tão-somente reconhecimento do governo civil como elemento assegurador de direitos como a propriedade, vida, liberdade religiosa, liberdade de pensamento, etc. Finalmente, a teorização do contrato social de Jean Jacques Rousseau, terceira e última grande subcorrente do contratualismo moderno. Contrariamente à formulação teórica de Thomas Hobbes, a concepção de 4 Rousseau rejeita a idéia de caos, da guerra de todos contra todos, do homem lobo do homem. Para Rousseau, o homem nasce livre, feliz e bom; é a sociedade que o torna escravo e mau. E tudo isso acontece em função da divisão do trabalho e da propriedade privada que geram grandes diferenças entre ricos e pobres, desestabilizando a sociedade politicamente organizada. Nesse sentido, o contratualismo de Rousseau entende que no estado da natureza, o homem essencialmente bom só se preocupa com a sua própria conservação. A ordem social é, pois, um direito sagrado que serve de base a todos os demais. (Cf. O Contrato Social. São Paulo: Ed. Cultrix, 1965, Livro I, Cap.III). Assim sendo, na obra de Rousseau, o pacto volitivo constitutivo do Estado já não mais representa a cessão incondicional da totalidade de direitos naturais de liberdade e autodeterminação, ao contrário, a justificação do Estado surge em nome de uma vontade geral, manifestação inconteste da soberania da nação. Com isso, podemos afirmar que, dentre os contratualistas, Rousseau é aquele que assume posição teorizante que mais se aproxima do princípio democrático e da democracia plebiscitária de participação direta do povo. Enfim, é inquestionável a importância das correntes contratualistas na afirmação dos direitos naturais da pessoa humana e por via de conseqüência na evolução da teoria dos direitos fundamentais como um todo. Vamos em seguida estudar a fase de positivação dos direitos fundamentais, que se estende desde a democracia liberal até os dias de hoje, perpassando antes pela social democracia do welfare state. A fase de constitucionalização dos direitos fundamentais Examinadas as correntes do contratualismo jurídico, vale agora iniciar o estudo da última fase de evolução dos direitos fundamentais, qual seja sua atual fase de constitucionalização. 5 O marco inicial da fasede constitucionalização dos direitos fundamentais é controverso, havendo certa divergência doutrinária acerca de sua paternidade, isto é, se tal homenagem deve ser prestada à Declaração de Direitos do Povo da Virgínia de 1776, ou, à Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. De toda sorte, independentemente de qualquer que seja a posição adotada em relação à paternidade da constitucionalização dos direitos fundamentais, o importante é compreender o papel das Declarações francesa e americana na evolução dos direitos humanos. Com efeito, são os americanos que projetam a idéia de direitos fundamentais, enquanto que os franceses legam ao mundo os direitos humanos. Esta fase possui três grandes etapas bem definidas que correspondem respectivamente ao estado liberal, ao estado social e ao estado pós-moderno ou estado pós-social. A fase liberal começa com a Revolução francesa de 1789 e vai até a Constituição de Weimar na Alemanha de 1919; já a fase da democracia social se estende de Weimar até o fim da queda do muro de Berlim em 1989 e, finalmente, o atual período correspondente ao estado pós- moderno, que se inicia com o fim da bipolaridade geopolítica e também com o colapso do welfare state. A primeira etapa da fase de constitucionalização dos direitos fundamentais coincide com o liberalismo político da burguesia francesa em ascensão. Com base na negação do absolutismo, o constitucionalismo liberal fixa uma concepção jurídica de Estado mínimo que rejeita os privilégios estamentais do Estado absolutista. Para tanto, estabelece constitucionalmente um catálogo de direitos negativos com ênfase especial nos direitos civis e políticos. Diferente é a concepção do welfare state, entre nós, denominado de Estado do Bem-Estar Social ou simplesmente Estado Social. Sem descurar dos direitos civis e políticos, o Estado Social procura ampliar o catálogo de 6 direitos fundamentais do cidadão comum, incorporando uma nova plêiade de direitos sociais, econômicos, culturais e trabalhistas. Nesse sentido, o Estado social surge como reação ao liberalismo, na medida em que impele o Estado a ampliar suas próprias responsabilidades constitucionais garantidoras da igualdade real ou material. Sem embargo da sua nobre aspiração, o fato é que o advento da globalização econômica vem pondo em xeque a soberania estatal e a legitimidade do Estado para intervir nas relações jurídicas privadas. A crise do Estado de bem- estar social é, também, a crise do constitucionalismo dirigente. Nesse sentido, é inelutável a argumentação de que a consecução dos objetivos do welfarismo (igualdade material e distribuição da justiça social) é dependente de grandes recursos financeiros do Estado. Da mesma forma, é inquestionável que o fim da bipolaridade geopolítica e o triunfo do capitalismo sobre o socialismo real vêm criando as condições ideais para a formação de um novo paradigma estatal, agora dito pós-moderno ou pós-social. Enfim, com isso chegamos ao fim da análise das fases de evolução dos direitos humanos, desde sua pré-história, perpassando-se pela fase de afirmação dos direitos naturais dos filósofos contratualistas Hobbes, Locke e Rousseau, até finalmente alcançar-se a fase de constitucionalização e suas três grandes etapas, quais sejam: a democracia liberal, a social democracia e a democracia pós-social ou pós-moderna, ainda em construção.
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