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1. COMO A DASEINSANALYSE ENTROU NA PSIQUIATRIA O termo “Daseinsanalyse” foi traduzido por “Analyse Existentielle” em francês e “Existencial Analysis” em inglês. Estas denominações, entretanto, passaram logo a abranger divergentes concepções da existência humana e métodos terapêuticos e com isso perderam quase todo o significado. Tentando recuperá-lo, passou-se a manter o termo alemão Daseinsanalyse mesmo em língua estrangeira. As designações de "Análise do Dasein" e “Dasein Analyses” apareceram pela primeira vez na obra de Heidegger - Ser e Tempo – em 1927. Esses dois termos tinham como objetivo denominar a explicitação filosófica dos “existenciais”, isto é, das características ontológicas constituintes do existir humano. Heidegger descreveu como “existenciais” a abertura original ao mundo, a temporalidade do homem, sua espacialidade original, sua afinação ou estado de humor, seu estar-com-o-outro, sua corporeidade, palavra criada para traduzir o alemão Leibhaftigkeit, designando a essência específica do corpo do homem vivo (Leib) oposta àquela de um corpo físico (Körper) e seu caráter de ser mortal. A análise desses “existenciais” foi chamada de Daseinsanalytik. O intuito principal de Heidegger foi esclarecer o sentido do Ser enquanto tal. As explicitações do existir humano que aparecem em Ser e Tempo devem ser consideradas como uma primeira etapa no caminho de seu pensamento. Não foi sua intenção fazer uma antropologia. Ludwig Binswanger percebeu a importância da concepção heideggeriana da essência do existir humano para a Psiquiatria. A conselho do psiquiatra suíço Jakob Wirsch, Binswanger utilizou o conceito de Daseinsanalyse, que era originalmente de ordem puramente filosófica e ontológica, num sentido completamente diferente, ôntico. Em 1941 Binswanger considerou que uma “Daseinsanalyse Psiquiátrica” traria um novo método de investigação para compreender e descrever, sob um ângulo fenomenológico, as síndromes e os sintomas concretos, distintos e diretamente perceptíveis da psicopatologia, afastando-se do método científico que até então prevalecia na Psiquiatria e na Psicanálise. Seguindo o pensamento de Heidegger, Binswanger dedicou-se a um caminho fenomenológico: julgando não haver nada a procurar atrás dos fenômenos, quis esclarecer, de modo mais diferenciado, os significados e as relações que se mostravam imediatamente a partir deles mesmos. Já antes de conhecer o pensamento “daseinsanalítico”, Binswanger havia percebido os limites da aplicação do método das ciências naturais na Psiquiatria. Os trabalhos do psiquiatra parisiense Eugene Minkowski, influenciado por Bergson, tinham despertado sua atenção. Binswanger mostrou que o pensamento das ciências naturais era insuficiente para estudar o comportamento humano, pois deixava de lado o caráter específico da existência, provocando danos no domínio da psiquiatria. Apoiou-se, então, na “desconstrução” proposta por Heidegger da idéia cartesiana que divide o mundo em res–cogitans e res- extensa. Binswanger considerava que a divisão cartesiana do mundo em sujeito e objeto era prejudicial para a Psiquiatria, constituindo mesmo um verdadeiro câncer da ciência. Segundo ele, a concepção de uma res- cogitans existindo primordialmente em si, não consegue explicitar como o espírito humano pode se dar conta da existência do mundo exterior, como esse espírito pode sair dele mesmo e descobrir o que compõe esse mundo e atingi-lo. Binswanger fez uma descrição daseinsanalítica de numerosos casos de esquizofrenia. Afastou-se, entretanto, do pensamento de Heidegger num ponto capital, isto é, achou necessário acrescentar o conceito de “amor” ao conceito heideggeriano de “zelar”. (N.T.- Do alemão “sorge” que significa: cuidar, zelar, preocupar-se, etc...). Não percebeu que nesse termo “zelar”, empregado por Heidegger num sentido ontológico, já estavam incluídas todas as formas de relações afetivas, portanto também o amor. Quando reconheceu o próprio engano, deixou de qualificar suas pesquisas como “daseinsanalíticas” e chamou sua nova orientação de pesquisa de “fenomenologia antropológica”. Em seguida voltou a se aproximar mais do pensamento de Husserl, o mestre de Heidegger. O psiquiatra e psicoterapeuta suíço Medard Boss, descontente também com os fundamentos da Psiquiatria tradicional e estimulado pelos trabalhos de Binswanger, voltou-se para o pensamento de Heidegger, motivado sobretudo por preocupações de ordem terapêutica. 2. A CONSTITUIÇÃO FUNDAMENTAL DO HOMEM À LUZ DA DASEINSANALYSE Medard Boss e seus alunos, a partir de 1959, reuniram-se com Heidegger por vários anos nos “Seminários de Zollikon”. Esses encontros permitiram que a Psicopatologia se enriquecesse com um pensamento fundamental e novo que procurou ultrapassar a distinção cartesiana sujeito – objeto. Esse pensamento serviu como base para a elaboração de novos caminhos para uma aproximação entre a Medicina e a Psicologia. A Daseinsanalyse não deve ser considerada como uma escola a mais ao lado de outras, pois sua abordagem do conjunto dos fenômenos, chamados normais e patológicos, do existir humano não leva a um tesouro de conclusões científicas. Esta nova visão é mais um caminho, um meio de acesso, da medicina e da psicologia para o existir. A abordagem daseinsanalítica é fenomenológica, procura ver sem deformações aquilo que de si mesmo se mostra a nós. Isto não é tão simples como parece, pois esbarra no hábito de pensar sob as exigências das explicações científicas que há tempo adquirimos e que nos dificulta ver a essência das coisas. É frequente considerarmos o homem como um corpo a mais entre os outros num espaço que os contém. No entanto, o modo de ser-no-mundo que é o característico do homem, não se confunde com a maneira como as coisas em geral estão no espaço. O existir não cessa nos limites da pele e não está contido nela. A existência é essencialmente aberta. Essa abertura consiste no poder compreender as diversas referências significativas que vêm ao encontro do ser-aí (Dasein). Assim, por exemplo, ao ver uma casa, esta ao primeiro olhar já fala ao homem como uma casa com todos os seus significados e referências específicas. Estas referências não são feitas posteriormente pelo homem, elas pertencem primordialmente à casa. A existência pode ser comparada a uma clareira transparente e estendida para o mundo, onde tudo, do mais próximo ao mais longínquo, tanto espacial como temporalmente, pode vir a seu encontro. O existir humano é sempre um “ek-stare” no sentido próprio desse termo, é um poder encontrar-se numa livre relação com aquilo que se oferece a ele na abertura iluminadora de seu mundo. Em sua essência, o homem, relacionando-se com os diferentes entes que se apresentam, tem possibilidades de escolhas e toma decisões pessoais. Assim, ele — e somente ele — deve ser qualificado de ser-si-mesmo. Esta possibilidade de existir no modo de ser-si-mesmo não exclui, ao contrário, inclui uma outra característica da existência: co-existir. O homem não é primordialmente um sujeito isolado que só depois entra em contato com os outros. Ele tem primordialmente o caráter fundamental de ser-com-o- outro. Co-existindo, os homens mantêm aberto este mundo “descoberto”. Além de ser sempre no modo de ser-com-o-outro, o homem está sempre em relação com as coisas, ainda quando isso se dá sob a forma da indiferença. Ele está sempre situado numa relação de proximidade ou de afastamento com o que se apresenta a ele no mundo. Outra marca fundamental da existência humana é a sua finitude. E é precisamente quando o homem morre que fica evidenciado também algo muito importante. Morto, ele é um corpo inanimado no espaço físico mensurável e isto ressalta a diferença entreeste corpo e a corporeidade do homem vivo. Enquanto o homem existe, a Medicina não deve considerar seu corpo apenas como algo cujo conhecimento se esgota através de estudos baseados em quantificações, medidas e cálculos. A corporeidade do homem é de tal natureza que só poderá ser compreendida quando considerada como a corporeidade da relação com aquilo que se desvela para ele. Por exemplo, a mão do sapateiro que coloca uma sola num sapato não constitui uma parte objetivada de seu corpo, mas é primordialmente integrante do todo relacional da tarefa em que ele está empenhado. A verdadeira essência da corporeidade escapa sempre quando queremos vê-la como qualquer objeto mensurável. Essas são as grandes linhas que caracterizam a constituição fundamental do ser-aí humano, e que cada um de nós é capaz de perceber a cada momento, tal qual Heidegger nos ensinou a ver. Essa concepção é de grande importância para a Medicina e para a Psiquiatria em particular. De fato, só uma compreensão da constituição fundamental do homem permite a compreensão de qualquer modo de ser- doente. Não só isso. Uma tal compreensão do homem permite-nos olhar criticamente o predomínio das Ciências Naturais e do espírito calculista e tecnológico reinantes na sociedade hoje, com todas as limitações patogênicas que disso advêm para a humanidade. 3. O ALCANCE TERAPÊUTICO DA DASEINSANALYSE A abordagem daseinsanalítica da constituição fundamental do ser humano não se limita a permitir uma compreensão dos diferentes modos de ser-doente completamente nova e mais própria do homem. É igualmente importante na prática terapêutica. Permite uma nova compreensão dos sonhos, assim como uma concepção totalmente diferente daquilo que se chamou ”transferência” entre paciente e terapeuta. Além disso, há modificações sobretudo relativas ao respeito incondicional ao caráter próprio dos fenômenos do existir humano, em contraste com a noção da realidade verdadeira dos comportamentos como pulsões. A compreensão daseinsanalítica da constituição fundamental do existir humano abre igualmente um caminho para a medicina preventiva e para a higiene mental, significativas para toda a sociedade. 4. INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PESQUISA E DA TERAPÊUTICA DASEINSANALÍTICA O pensamento daseinsanalítico, apoiado com uma determinação crescente sobre as concepções fundamentais da Daseinanalytik, em contraposição aos modelos tradicionais, tornou inevitável uma institucionalização no plano da pesquisa e de métodos terapêuticos. No outono de 1971 foi fundada a “Sociedade Suíça de Daseinsanalyse”. Nesse mesmo ano foi também criado o “Instituto Daseinsanalítico de Psicoterapia e Psicossomática, Fundação Medard Boss”. Em 1973 foi fundada a “Associação Internacional de Daseinsanalyse” que compreende organizações em Boston, Tel-Aviv, Buenos Aires, Mendonça e São Paulo. Fonte: Associação Brasileira de Daseinsanalyse. Disponível em: http://www.daseinsanalyse.org/index.php. Acesso em: 17 fev. 2016