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Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 1 Curso Online de Filosofia OLAVO DE CARVALHO Resumos de Aulas Vol. II Elaborado por Mário Chainho Índice Pag. Aula 06 – 02/05/2009 (Especial Eric Voegelin) 2 Aula 07 – 16/05/2009 12 Aula 08 – 23/05/2009 20 Aula 09 – 06/06/2009 27 Aula 10 – 13/06/2009 36 Notas: 1) Este material é para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia. Estes devem sempre recorrer às gravações e transcrições das aulas, como fontes primárias, para limitar a propagação dos erros involuntários aqui contidos e colmatar as lacunas. 2) Os resumos foram escritos em português de Portugal. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 2 Aula 06 – 02/05/2009 (Especial Eric Voegelin) Sinopse: Eric Vogelin procurou responder às questões fundamentais que se levantavam no seu tempo. Investigou a natureza dos movimentos de massas, o que o levou a iniciar linhas de estudo que não tinham paralelo. A sua metodologia recorria apenas a documentos auto-expressivos escritos em linguagem teorética, o que lhe permitia descobrir linhas de significado. Voegelin escreveu livros sobre a mente americana, a ideia de raça, as “religiões políticas” e um manual sobre a história das ideias políticas que foi abandonado, após a elaboração de 8 volumes, por ter percebido que não havia continuidade nas doutrinas. Iniciou, então, a sua grande obra, Order and History, uma história sobre os modelos de ordem, que era o terreno comum que ele tinha detectado nos seus anteriores trabalhos. Examinou primeiro as civilizações cosmológicas do oriente, que identificavam a ordem social com a ordem cósmica, e extraiam dessa ordem a sua representação existencial. A revelação hebraica vai consistir num primeiro salto no ser, que introduz uma dimensão histórica e uma existência face a Deus, que é mediada pelo profeta, que começa por colocar ordem na sua alma, de acordo com a ordem divina, e depois é obedecido pela comunidade, que assim atesta o seu maior ou menor grau de fidelidade à recordação da intervenção divina. Um segundo salto no ser ocorreu com o nascimento da filosofia na Grécia, onde se vai tentar apreender algo da ordem divina, as leis não escritas, por meios noéticos. A revelação hebraica e a filosofia grega vão combinar-se no cristianismo mas já ao nível do indivíduo. O modelo de ordem da modernidade, para Voegelin, é caracterizado pela perda da existência face a Deus e por um conteúdo efectivo dado pelas seitas gnósticas. Voegelin não conseguiu dispor os vários modelos de ordem em sequência, como imaginara, pois estes apareciam simultaneamente em vários locais e até no mesmo local, e daí ele vai afirmar que a ordem da História é a história da ordem. Afasta-se assim definitivamente das concepções simplistas que modulam a História como se fosse uma biografia humana e lhe determinam um sentido e um fim, como aconteceu com Compte e Marx. Nos movimentos revolucionários de massas vão confluir duas linhas, a gnóstica e a messiânica, que Voegelin chamava de apocalíptica e não tinha no início considerado. Os movimentos messiânicos surgem do escândalo face à corrupção da Igreja, e da descrença da possibilidade da ordem poder ser restaurada. Estes movimentos vão manifestar-se na reforma protestante, onde irão aparecer alguns elementos característicos das ideologias de massas, nomeadamente em Calvino, que vai criar a militância, a propaganda e a noção de Estado totalitário, e com Thomas Cramer, um precursor de António Gramsci, que criou a estratégia das mudanças graduais. Mais tarde estes movimentos infundem-se de gnosticismo e ocultismo e vão aparecer com um carácter radicalmente anticristão. Saber como isso aconteceu não podia ter sido feito por Eric Voegelin devido ao método por ele usado, já que os acontecimentos deram-se no seio de sociedades secretas ou discretas. Esta é uma primeira linha de investigação aberta que deve ser respondida. Outra linha de investigação prende-se como Islão e a necessidade de elaborar uma filosofia cristã da História. Eric Voegelin não se debruçou o suficiente sobre o Islão para perceber que se tratava de uma civilização eminentemente histórica, com uma filosofia da História pronta desde o início, algo Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 3 que ainda falta ao cristianismo. Por último, falta ainda desenvolver uma ciência, não nos moldes da ciência moderna, que possa estudar os milagres, pois estes são a intervenção de Deus na História e a força de expansão do cristianismo. Primeiros trabalhos: metodologia e campo de estudos Eric Voegelin teve o privilégio de frequentar a Universidade de Viena, nas décadas de 20 e 30 do século XX, quando esta instituição tinha intelectuais de alto gabarito, que lhe ajudaram a definir metodologias e o campo de estudo. Seguindo a boa tradição filosófica, as suas áreas de interesse intelectual visaram sempre responder aos maiores fenómenos sociais da sua época, obrigando-o a iniciar linhas de estudo que não tinham paralelo e a ter que interromper essas linhas para iniciar outras que lhe pudessem dar uma maior proximidade à verdade dos acontecimentos. Os primeiros trabalhos de Eric Voegelin procuraram definir o campo de estudos das ciências sociais e saber se a própria sociedade existia ou se existiam apenas os seus elementos. Ele acabou por delimitar o campo da sociologia como aquele que estuda a tensão entre o indivíduo e a sociedade. Hans Kelsen e Othmar Span foram duas influências contrastantes que marcaram a sua formação e o levaram directamente a estas investigações. Hans Kelsen foi o criador da Teoria Pura do Direito, procurando responder a uma necessidade de delimitar o direito como ciência autónoma (pura). Ele acabou por definir o campo jurídico como contendo apenas a estrutura formal da lógica normativa, onde não entravam nem os valores nem as ideias políticas. Já Othmar Span, na sociologia, fez um esforço de concepção de uma visão holística da sociedade, onde a independência das partes ficaria submetida ao todo. Após o seu doutoramento, Eric Voegelin vai para os Estados Unidos, como bolseiro da fundação Rockefeller, estudar o caso concreto americano, de onde resulta o livro On the Form of the American Mind (segundo o índice das The Collected Works of Eric Voegelin, publicação da “University of Missouri Press”, que será aqui utilizado como referência bibliográfica). Ele vai supor que existe mesmo uma sociedade americana com uma unidade, não apenas o aglomerado de grupos e indivíduos, sem que essa sociedade chegue a ser uma substância no sentido aristotélico. Eric Voegelin começou aqui a desenvolver uma metodologia de estudo que iria utilizar muitas vezes. Por um lado, ele recorreu a uma medida simplificadora em relação às suas fontes, recorrendo apenas a documentos auto-expressivos escritos em linguagem teorética, ou seja, no caso concreto da mentalidade americana Voegelin vai tentar apanhar a sua unidade a partir das interpretações dos próprios agentes históricos envolvidos, identificando uma unidade no diálogo e, assim, uma unidade na mentalidade. A utilização dos factos brutos tornaria o estudo de uma dimensão incomportável, além de não serem documentos auto-expressivos. As obras literárias também não são utilizadas por carecerem de linguagem teorética. Eric Voegelin terá sido inspirado nesta metodologia, presumivelmente, por Aristóteles quando este diz que a dialéctica nunca parte do exame dos factos em bruto mas do exame das opiniões dos sábios, ou seja, uma síntese de nível superior é elaborada a partir de sínteses parciais. Esta metodologia teve também a influência do historiador Eduard Meyer, com quem Voegelin teve contacto em Berlim. Eduard Meyer defendia que aCurso Online de Filosofia – Resumos de aulas 4 interpretação dos factos históricos tinha de partir da auto-interpretação feita pelos agentes, desde que elaborada em linguagem teorética. Este método utilizado por Eric Voegelin tem algumas limitações, como veremos, mas permitiu identificar linhas de significado pelo constante retorno das mesmas questões ao longo dos séculos, podendo mesmo falar-se de uma continuidade ao longo do processo mental. Outra parte do método utilizado por Eric Voegelin, já dentro da análise dos documentos, teve a influência de Paul Friedlander, especialista em Platão, com quem ele tinha mantido contacto em Viena. Friedlander queria tratar da história das pessoas reais, que tinham elaborado as concepções filosóficas, retirando da linguagem abstracta o fundo de experiência que as tinha desencadeado. Motivado pela situação vivida no início da década de 30, Voegelin escreveu dois livros sobre a ideia de raça (Race and State e The History of the Race Idea: From Ray to Carus). Com a sua metodologia, ele vai descobrir que a doutrina racista deriva da cultura iluminista e não podia ter sido constituída sem o conceito biológico de raça. Até ao século XVIII o conceito de raça era usado no sentido cultural e religioso. A doutrina racista é um longo processo de falsificações que tem um propósito de auto- identificação ideológico, e nada diz sobre a raça do outro grupo ou do nosso. A perseguição que Eric Voegelin sofreu pelos nazis devido aos seus livros sobre raça levou-o a se interessar ainda mais pelos fenómenos de massas e, em 1938, ano do seu exílio para os Estados Unidos, publicou o livro Political Religions (The Collected Works of Eric Voegelin, 5.º volume, em conjunto com os livros The New Science of Politics e Science, Politics, and Gnosticism). Voegelin tinha vindo a se interessar por autores tomistas e neotomistas, como Hans Urs von Balthazar e Henri de Lubac, que o despertaram para as ligações das ideologias de massas às heresias gnósticas. Henri de Lubac mostra no livro O Drama do Humanismo Ateu que a figura de Cristo não era simplesmente rejeitada por certas escolas de pensamento, o que levaria a uma rejeição, mas sim motivo de inveja, o que levaria a querer tomar o seu lugar. A ideia de Voegelin no livro Political Religions era mostrar que algumas ideologias políticas eram religiões substitutivas. Sendo possível fazer uma analogia, ele percebeu que isso não era um princípio explicativo suficiente. Depois Voegelin foi contratado para fazer um manual com a história das ideias políticas, em três volumes. Mas já ia no oitavo volume quando percebeu que havia algo de errado. Uma história deste género pressuponha uma continuidade das ideias políticas e das doutrinas, o que não se verificava. Ele percebeu que as próprias doutrinas tinham que ser encaradas como documentos auto-expressivos, mas isso iria alterar tanto o projecto que ele simplesmente abandonou-o e começou algo novo, a sua obra principal, Order and History. Civilizações cosmológicas e a representação Em Order and History, Voegelin vai elaborar uma história dos modelos de ordem, que lhe pareceu ser o terreno comum que tinha aparecido nos seus anteriores trabalhos. Estes modelos de ordem foram identificados pelos próprios intervenientes no processo histórico e depois utilizados para estruturar a vida humana. As primeiras civilizações abordadas foram as do oriente, China, Índia e Egipto, tendo Voegelin saltado por cima Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 5 das culturas tribais por estas não terem fornecido documentos auto-expressivos como era requerido pelo método por ele utilizado. Estas civilizações orientais desenvolveram aquilo a que Voegelin chamava de sociedades cosmológicas. Os teóricos destas civilizações não defendiam apenas uma aproximação do modelo da sociedade à ordem cósmica, eram bem mais radicais e acreditavam que a sua sociedade já fazia parte dessa ordem e era um elemento que servia para preservá-la. Rituais não cumpridos pelo imperador da China poderiam causar não só desordem social mas cataclismos naturais, acreditava-se. Isto introduziu uma visão unitária e fechada do mundo, que condenava à inexistência quem não estivesse integrado na sociedade. A existência de outras ordens era motivo de crise. As outras ordens eram consideradas ilegítimas e representavam o caos. No livro The New Science of Politics (The Collected Works of Eric Voegelin, 5.º volume) surge a ideia de que a ordem vigente representa o povo. Não se trata de uma representação política mas existencial, em que a ordem fornece à sociedade, retroactivamente, o critério para distinguir o certo do errado, o verdadeiro do falso. Numa civilização cosmológica, onde a verdade como um todo é a ordem social, indistinta da ordem cósmica, nada fora dessa ordem pode ser considerado legítimo ou verdadeiro e a própria existência de outras ordens era um escândalo e uma ameaça. Esta tensão era eliminada quando os impérios, como nos casos do Egipto e de Roma, invadiam terrenos vizinhos e absorviam elementos dessas culturas, fazendo rearranjos simbólicos entre as ordens parciais, o que permitia manter a ordem global. A revelação hebraica e a inauguração da dimensão histórica na humanidade A revelação hebraica surge numa envolvente hostil dominada por grandes civilizações cósmicas que se viam a si mesmas como o centro do mundo, sendo tudo o resto uma periferia anormal e provisória. Esta nova ordem constituiu-se pela abertura de alguns indivíduos para uma ordem supra-cósmica, transcendente. A sociedade já não era ordenada directamente mas através dos profetas, que construíam primeiro a sua ordem interna e se tornavam juízes e reordenadores da sociedade. Esta ordem divina era superior à ordem cósmica, mas não tinha a estabilidade desta e vivia em permanente crise pois dependia da obediência do profeta a Deus e de que a sociedade se deixasse guiar pelo profeta. A relação entre Deus e o profeta é subtil. A revelação é gradual e pode ser incompreendida, e pode ainda existir infidelidade. A fidelidade do profeta à revelação não é uma mera compreensão mental, aquilo tem que se transformar num novo modo de existência e ele vai ter de incorporar essa ordem em si pois a revelação já não está mais presente, ao contrário da ordem cósmica, com uma presença sempre evidente no movimento dos astros e na sequência das estações. A nova ordem era mais exigente e subtil, aconteciam muitos percalços e episódios onde se evidenciava a tentação de voltar à ordem anterior, que sobrevivia sempre em resquícios. Sendo a revelação gradual e o processo de transmissão à sociedade complexo, mediado pelo profeta, a nova ordem teve uma implementação gradual. Isto é a inauguração da dimensão histórica na humanidade, marcada pela incerteza, pela dependência do elo frágil da fidelidade à recordação da revelação e onde o esquecimento de Deus é frequente, ao ponto de se tornar em tema recorrente na Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 6 literatura universal. A nova dimensão inaugurada, segundo Voegelin no Êxodo para o Egipto, é a vida na incerteza histórica, onde não há um término pré-determinado e apenas umas promessas vagas de Deus a serem cumpridas em data incerta e por meios imprevisíveis. Um novo Salto no Ser com o nascimento da filosofia na Grécia Quase ao mesmo tempo que ocorria a revelação hebraica, na Grécia nascia a filosofia, constituindo um segundo salto para dentro do ser. Estes saltos são novas dimensões para a consciência humana, onde antes apenas existiam vestígios. Os indivíduos das civilizações cosmológicas não chegavam ter consciência da sua existência histórica. Essa consciência de uma existência histórica apareceu em Israel, e implicava um dever em cumprir uma missão, sem garantias de isso ser possível nemo conhecimento dos meios a ser utilizados. Sendo a relação da fé muito mais legítima e profunda que a confiança total na ordem cosmológica fechada, não podemos dizer que anteriormente se vivia no erro total. As civilizações cosmológicas mais importantes duraram milénios e não podiam ter se baseado num conhecimento totalmente errado para obter esta longevidade. Só recentemente se tentou recuperar este conhecimento a partir dos seus próprios termos, com todas as dificuldades inerentes aos trabalhos pioneiros, em trabalhos como Temple de l’Homme e Le Miracle Egipcian, de Schwaller de Lubicz e Serpent in the Sky, de John Anthony West. Nem todos os elementos da ordem cosmológica foram eliminados, mantendo-se na própria cultura cristã na forma de ocultismo e esoterismo. O que as novas ordens vieram acrescentar foi uma percepção mais fina quando antes as coisas eram nebulosas e vistas de forma simbólica. O salto no ser ocorrido no mundo helénico, apesar de ter se dado por meios diferentes, teve um teor idêntico ao da revelação hebraica. A filosofia era também uma abertura à ordem divina, da qual se tentava descobrir alguma coisa através da razão ou logos. Essa ordem evidenciava-se nas leis não escritas, que se encontravam para além da ordem social ou cósmica. Um exemplo de uma lei não escrita, retirado da Antígona de Sófocles, é que não é decente recusar uma sepultura a um morto, o que se sobrepõe a um costume social de repudiar uma pessoa quando ela ter lutou por uma nação estrangeira. Inicialmente a razão não significava pensamento lógico, já que a própria lógica não havia sido criada. Para Eric Voegelin, a razão é a simples tendência da inteligência humana ir em direcção ao fundamento, que é a ordem divina. A lógica limita-se a absorver e desenvolver princípios universais provindos da ordem divina, que não dependem do próprio cosmos, como o princípio de identidade enunciado por Aristóteles. Quando os pré-socráticos tentaram descobrir o elemento fundamental da natureza, o que realmente procuravam era um factor transcendente estruturante de todo o cosmos. Era uma busca de uma intuição da ordem divina supra-cósmica, mas ainda estavam presos à linguagem cósmica porque faziam as primeiras aproximações a uma nova dimensão. Tanto no desenvolvimento da filosofia como na construção da lei hebraica há a necessidade de desenvolver meios expressivos adequados para a comunidade poder compreender e absorver a nova ordem. Ambos os saltos no ser têm a sua substância na ordem divina, mas diferem nos meios. A revelação hebraica é de ordem neumática, relativa ao espírito que inspira o profeta. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 7 A filosofia grega é de ordem noética, puramente cognitiva, mas os primeiros filósofos acabam por ter a estatura de profetas devido ao papel que desempenharam e à própria inspiração que acabou por ser também divina. Antes destes saltos no ser os homens não tinham consciência, eram como bonecos nas mãos de ventríloquos – os deuses cósmicos –, como alude Julian Jaynes no livro A origem da consciência na ruptura da mente bicameral. A dimensão histórica é uma dialéctica entre ordem e desordem; o homem está numa fronteira entre o finito e o infinito; a sua existência é a tensão do finito em relação ao infinito, uma tensão que nunca se acalma ou pode ser satisfeita. Não existe esta tensão na ordem cosmológica, que é estática e fechada. Os elementos de desordem tinham que ser explicados como fazendo parte intrínseca da própria ordem e por isso os deuses deles também eram meio demónios. A ideia de que a condição humana é a existência numa rede de tensões, a que Platão chamava metaxis, é um dos patamares da filosofia, os quais constituem a sua história como se degraus fossem que não podiam mais ser ignorados. O mecanicismo introduzido por Newton é um retrocesso, que apareceu como a restauração da ordem cósmica, e só no século XX o elemento tensional voltou a ser reintroduzido com o indeterminismo e a mecânica quântica. Começaram a proliferar os estudos sobre o caos, mas na verdade, nem caos nem ordem existem, apenas uma tensão entre ambos. Vão fundir-se no cristianismo os dois saltos no ser ocorridos no mundo hebraico e no mundo helénico, agora já ao nível da dimensão da vida de cada indivíduo. Cada indivíduo em particular, e não apenas a comunidade, vive na tensão histórica perante Deus. Existe aqui um nível cognitivo superior nesta descoberta de se ver a si mesma como uma civilização histórica, quando as outras ainda permaneciam de algum modo presas às concepções cíclicas anteriores. Para além do cristianismo, apenas o islamismo tem também esta concepção histórica de si mesmo. O gnosticismo como modelo de ordem da modernidade Eric Voegelin questionou-se depois sobre o modelo de ordem da modernidade. A modernidade caracteriza-se pela perda de uma existência diante de Deus, mas o seu conteúdo efectivo, para Voegelin, tinha sido dado pelas seitas gnósticas. Ele achava que o modelo de ordem fundado na revelação hebraica e na razão grega era demasiado exigente e enervante, dependendo de uma contínua transmissão de geração para geração, por meios essencialmente discursivos e onde apenas alguns rituais poderiam dar alguma vivência da recordação original. Basta um pequeno enfraquecimento nessa transmissão e as pessoas vão logo procurar modos de existência anteriores que lhes dêem maiores certezas e estabilidade. Mas isso é impossível porque nem as civilizações cósmicas, nem o mundo greco-romano existem mais. O que subsistiu desse mundo antigo desaparecido são apenas resíduos, que se misturaram com elementos novos e se combinaram em fórmulas saídas da própria Igreja, originando comunidades heréticas, onde a principal era a gnóstica. O que há de comum na enorme quantidade de teorias gnósticas é a experiência do terror, do caos e da desordem. Esta experiência não é atenuada pela fé, pois os gnósticos já não têm a recordação da revelação diante deles; perderam a fé. A própria noção do que é a fé mudou totalmente de sentido e passou a ser a crença numa doutrina. A doutrina é apenas um elemento discursivo que tenta explicar por meios racionais os acontecimentos relatados. A fé Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 8 significava anteriormente a fidelidade à recordação desses acontecimentos mas, originalmente, era a confiança numa presença, que podia ser a presença de Deus quando Moisés recebeu as tábuas da lei a Moisés, ou na divindade de Cristo realizando milagres. Os milagres foram se repetindo ao longo da História e nem tudo dependeu da recordação dos eventos primordiais. Mas quando já não há presença divina nem a sua recordação, restava apenas a doutrina que, por ser um discurso, sujeita-se a uma dialéctica que faz aparecer a sua negação e dá origem a uma discussão que se afasta cada vez mais dos factos originários, que eram os elementos realmente estruturantes da ordem. O gnosticismo é uma experiência do caos que tenta ser resolvida pelo domínio intelectual completo da situação e daí proclama uma ordem total, que é apenas hipotética e o indivíduo acaba por ficar ainda mais desesperado. As variantes do gnosticismo que apareceram traduzem este choque entre ordem hipotética e desordem real. As variantes “evasionistas” querem apenas sair deste mundo e ir para um mundo espiritual onde vigora a ordem e a paz. Mas também surgiram variantes activistas que projectam essa ordem ideal no futuro, e daí surge o ímpeto de criar um mundo melhor. A ordem da História é a história da ordem Eric Voegelin imaginou que podia dispor os modelos de ordem ao longo da História para que a própria sequência fosse a ordem da História. Mas os vários modelos ocorriam em vários lugares e por vezes no mesmo lugar simultaneamente, e daí ele formulou a sua sentença final de que a ordem da Históriaé a história da ordem. Nada mais existiria que uma sequência de buscas de ordem. Afastou-se assim definitivamente das visões simplistas que tentam encontrar um fio condutor na História que permitiria conhecer o seu percurso pré-determinado, como no caso de Compte, que preconizava uma sequência de três ordens (mítica, metafísica e positiva), ou da sequência inevitável apontada por Marx (comunidade primitiva, feudalismo, capitalismo e socialismo). Estas filosofias da História são falsas na base porque tentam ver desde fora a História como um objecto. Esta ordem que eles projectam na História é apenas a ordem por eles concebida, que não passa de um novo capítulo na história da ordem que não tem término pré-determinado nem sabemos onde vai dar. A História não pode ser vista como a vida de um indivíduo, que tem uma duração expectável. A História não tem um fim pré-determinado que possa ser conhecido por nós. O impulso de querer conhecer o fim da História não se iniciou com o gnosticismo mas nas primeiras gerações de cristãos que interpretaram mal o que S. Paulo quis dizer ao afirmar que a vinda do Cristo era iminente. Isso era para ser interpretado em termos da história individual de cada um, que iria ser confrontada com o Juízo Final “após” a morte. Mas foi entendido como um desígnio colectivo e histórico e, mesmo tendo sido reunido um concílio para explicar o assunto, permaneceu sempre a ambiguidade. Por outro lado, os saltos no ser ocorridos na Grécia e em Israel transferiram a identificação da sociedade, anteriormente com o cosmos, para a alma do profeta. Daí foi um passo para ver a História como a vida de um ser humano, porque a comunidade se identificava com o profeta. Santo Agostinho tentou colocar ordem nesta confusão ao afirmar que não existia uma História mas duas, a História terrestre e a História da salvação. A História terrestre não tinha um sentido definido muito menos um término pré-estabelecido, ao contrário da História da salvação que terminava com o Juízo Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 9 Final. A própria Igreja tinha a sua História terrestre, caótica, e a sua História espiritual, que só poderia realizar-se na eternidade, já fora da dimensão temporal. Apesar da explicação de Agostinho, muitos continuaram a ver a História como a biografia de um indivíduo. A formação dos movimentos de massas modernos Os movimentos de massas modernos tiveram origem em duas linhas, a gnóstica e a messiânica, a que Voegelin chamava de apocalíptica. Os movimentos messiânicos que se iniciaram no século XVI não tinham inspiração gnóstica, não surgiram de um desespero mas do escândalo face à decadência e corrupção da Igreja, sobretudo quando o papado de deslocou para Avignon. Os líderes messiânicos deixaram de acreditar que fosse possível restaurar a ordem a partir do interior da Igreja e decidiram fazer o trabalho no lugar do Cristo, como que forçando a sua segunda vinda, impondo a ordem a ferro e fogo. Nas reformas protestantes surgiram alguns elementos das ideologias de massas. O messianismo entrou sobretudo do final do luteranismo, na Suíça, com as reformas de Zuínglio e Calvino e, na Inglaterra, com a reforma de Thomas Cramer. Calvino criou a noção de um estado totalitário, que tudo controla na sociedade. Para ele não existia vida privada e tudo podia ser denunciado na vida pública. Criou também a militância, as manifestações, a propaganda e também a noção de actividade política capaz de animar um movimento para derrubar um poder e o substituir por outro. A reforma em Inglaterra não prometia ser uma ruptura em relação à substância, mas uma disputa de poder, onde o rei Henrique VIII se declarou ser chefe da Igreja no seu território mas ainda permanecia católico. As ideias mais radicais apareceram depois da sua morte, mas surgiram de forma gradual, primeiro com alterações no ritual da missa. Esta estratégia das pequenas mudanças, que ao longo do tempo provocam grandes alterações sem que as pessoas se apercebessem, mostra que António Gramsci teve um percursor em Thomas Cramer. Apenas quando restavam algumas comunidades resistentes, a Reforma investiu sobre estas e matou mais de 40 mil pessoas, mais que o resultado de quatro séculos de Inquisição. No século XVIII as várias reformas já haviam fracassado no objectivo de criar uma igreja melhor e a Igreja católica não tinha conseguido restaurar a sua autoridade. Os movimentos revolucionários, de origem messiânica, perderam a sua substância cristã e caíram no patamar menos diferenciado e que estivesse ao alcance, que era o gnosticismo (teoria do professor Olavo). Esta incorporação de ideias gnósticas nos movimentos revolucionários não podia ser explicada por Eric Voegelin porque a documentação que ele exigia não existia devido à natureza oculta dos movimentos, e é algo que ainda está por ser esclarecido. Inicialmente Voegelin só considerou relevante o elemento gnóstico, mas mais para o fim da vida perceberia que também existia o elemento messiânico, mas não conseguiu esclarecer a relação. Voegelin deixou várias linhas abertas para a investigação, pois a sua vida intelectual é um imenso programa de estudos para várias gerações. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 10 A continuação dos estudos de Eric Voegelin Das várias linhas de investigação que Eric Voegelin deixou em aberto, a que tem primazia será saber como foi que os movimentos messiânicos absorveram o gnosticismo e se tornaram anticristãos. No século XVIII ocorreu uma infusão de gnosticismo e ocultismo nos movimentos messiânicos e no século seguinte esses movimentos já eram radicalmente anticristãos. Para descobrir como isso ocorreu não é possível seguir o método de Eric Voegelin porque não existem análises teóricas dos próprios agentes do processo. Pelo contrário, eles não tinham qualquer interesse em explicar as ocorrências pois estas deram-se no seio de sociedades secretas ou discretas. Apenas se assiste ao resultado final mas não se sabe onde está o agente. Para interpretar este tipo de situações é necessário utilizar métodos mais próximos da psicopatologia do que da análise histórica cultural ou ideológica. Uma segunda questão por esclarecer prende-se com o Islão, que Eric Voegelin não chegou a tomar em conta como sendo também uma civilização histórica com uma existência diante de Deus. Para ele apenas a civilização ocidental tinha atingido esse patamar de consciência. Depois da descoberta da visão da eternidade, o mundo cosmológico passa a ser o inferno, onde o indivíduo está à mercê dos demónios. A realidade humana é muito melhor expressa pela tensão entre História e Eternidade, onde a incerteza é contrabalançada pela caridade e pela fé, a fidelidade a uma recordação, que não dá o plano dos acontecimentos mas indica o próximo passo a seguir. Mas o Islão veio trazer também uma existência diante de Deus e é eminentemente uma civilização histórica, que engloba Jesus Cristo e as revelações anteriores, culminando no Juízo Final. O ingresso do indivíduo no Islão é progressivo, há uma imitação da vida do profeta que recebeu a revelação ao longo de 28 anos. A islamização da pessoa é feita com o auxílio de duas narrativas, a do Corão e a da vida do profeta, que consta em 40 mil ahadith. Esta islamização progressiva mas total do indivíduo seria idêntica ao que prevê a história do Islão, onde no culminar do Juízo Final já não restariam processos de vida por islamizar. Então, o Islão tem este elemento totalitário, de regulação completa da sociedade, característico das civilizações cosmológicas, com a diferença de o encarar como um processo dinâmico. Eric Voegelin percebeu que a incapacidade da Igreja em formular uma filosofia da História levou a que os movimentos de massas tomassem a iniciativa e fossem incorporados na sociedade. Mas quando asideologias de massas pareciam dominar o mundo, o Islão apareceu na disputa, restando saber quem levará a melhor. Para o Islão, os movimentos de massas são um dos aspectos da decomposição do ocidente. Efectivamente, esses movimentos são apenas efectivos na destruição da civilização e não têm qualquer força organizativa, e quem pode aproveitar os destroços é o Islão, que tem os meios para isso porque desenvolveu uma filosofia da História. Uma terceira lacuna nos estudos de Eric Voegelin é a ausência de Deus como personagem histórica. O seu método apenas podia examinar as aberturas para Ele, mas não ver Deus como agente. Para isso era necessário ver não as aberturas do homem para Deus mas as intervenções directas de Deus na História através dos milagres. Eric Voegelin trabalhou no cenário das ciências físicas e estas não podem estudar os milagres. A ciência moderna só lida com fenómenos recortados segundo uma hipótese prévia. Para resultar, só pode estudar os fenómenos que efectivamente são regidos pela Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 11 uniformidade posta como hipótese, o que implica que ela só possa estudar aspectos e não fenómenos concretos. Mas no fenómeno miraculoso confluem factores heterogéneos inseparáveis. O milagre é eminentemente concreto, não pode ser enquadrado dentro de nenhuma das classificações admitidas pela ciência. Inevitavelmente, o método determina o alcance do que se pode estudar, algo que Voegelin criticava mas acabou por cair na mesma limitação. Ele não chegou a colocar em cima da mesa o problema da existência objectiva de Deus, também por influência de William James, quando este dizia que o sujeito e o objecto não existiam separadamente e se auto-constituem e distinguem no próprio processo da relação. Então considera-se que Deus é apenas é um objecto alcançado no salto no ser, por meios neumáticos ou noéticos e apenas se terá em conta aquilo que os homens apreenderam sobre Deus. Voegelin definiu a quaternidade da ordem do real como Deus, o homem, o mundo e a sociedade. O Mundo, a sociedade e o homem são, na perspectiva da revelação cristã, apenas a criação, finitos e irrisórios face a Deus. Esta quaternidade só existe na escala da História humana, sendo um cenário que exclui uma multidão de fenómenos que nós sabemos ser reais, a começar pelos milagres. Voegelin chegou à limitação natural do método, mas quando percebeu isso estava velho demais para continuar, mas não fez como Kant, que caiu na idolatria do método e definia o objecto de acordo com o método. A expansão islâmica não se baseia na intervenção divina, como no cristianismo, mas na acção política e social, usando os meios mais banais, frequentemente desonestos, e com grande investimento de dinheiro, tudo baseado numa grande auto-consciência colectiva numa forma de existência histórica diante de Deus. Já a civilização cristã não poderá ignorar a acção divina ou irá cai na fé metastática, que é uma expectativa, meio messiânica, meio gnóstica, de poder transformar totalmente a sociedade mediante um acto de fé. Esta expectativa é característica das ideologias de massas e vai contra a estrutura da realidade, que pode apenas ser transfigurada por Deus e não pela fé. Deus pode nos salvar mesmo se não tivermos fé, como aconteceu com S. Paulo, mas é uma heresia pensar que Deus pode agir em nosso lugar e não connosco. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 12 Aula 07 – 16/05/2009 Sinopse: O ser humano vive num sistema de virtualidades e estaria reduzido a um estado de quase inconsciência se a sua existência estivesse limitada aos estímulos sensoriais. A rede de virtualidades desenvolve-se através da linguagem, que permite que coisas que não estão mais presentes se possam efectivar. Mas o crescimento da linguagem pode não acompanhar o desenvolvimento do mundo virtual e a pessoa cria uma auto-imagem muito simplista. O descompasso entre a linguagem e experiência devia ser colmatado pela educação, que começaria por fornecer os meios de expressão linguísticos. Nesse âmbito iremos começar por imitar os grandes escritores de língua portuguesa para absorver os seus recursos linguísticos e aprender a modular o nosso tom expressivo. A passagem da literatura para a filosofia, entrando no reino da dialéctica, faz-se através da retórica, que medeia toda a sociedade humana. Por isso a filosofia é uma actividade para pessoas maduras, cidadãos habituados a fazer escolhas e com poder de persuasão baseado no conhecimentos dos valores que é suposto os outros possuírem. Só podemos conhecer o possível através da imaginação. Uma forma de exercitar esta capacidade é assistir a ficção dramática, que é tomada como realidade fazendo a suspensão da descrença, ou pela ficção simbólica, assistida como um sonho, onde histórias aparentemente impossíveis exprimem possibilidades reais. Mas muita da ficção moderna paralisa a imaginação, que é usada apenas para colorir hipóteses racionais realmente impossíveis. A modernidade faz um culto de um realismo imediato que separa a vocação dos deveres. Contudo, os ideais só podem ser realizados por quem cumpre as suas obrigações e ame o seu trabalho. A filosofia é uma técnica e uma tradição, e ambas se desenvolvem por mútua realização. A filosofia deve ser estudada por problemas e no início existe uma tarefa bibliográfica para apurar o status quaestionis. O milenarismo, apesar de ter sido proibido por Cristo e desautorizado por Santo Agostinho, incorporou-se fortemente na mentalidade ocidental e deu a fórmula da inversão do tempo presente nas ideologias de massas, por partir do erro de conceber a História como um objecto que pode ser visto desde de fora e análogo à história de um indivíduo. A vivência num sistema de virtualidades O seminário de filosofia é uma comunidade dita virtual. Em geral, quando dizemos que algo é virtual estamos a fazer um comentário pejorativo. Virtual vem do latim virtus, que significa potência, ou seja, algo que não está efectivado. Mas um mundo concebido apenas segundo o que está efectivamente presente ficaria drasticamente reduzido. Estaríamos como um doente que saiu do coma, sem qualquer memória, apenas com os estímulos sensoriais físicos, o que seria um estado de quase inconsciência, abaixo da consciência de um cão ou um gato porque estes animais se orientam num mundo virtual, como uma certa recordação do passado e expectativa de futuro. A biografia ou a personalidade de uma pessoa, tomadas como um todo, apenas existem virtualmente, não há nenhum lugar físico onde residam. O reconhecimento que fazemos de algo efectiva-se na memória e não está presente fisicamente. O código penal rege as relações entre as pessoas, mas é apenas um cenário hipotético que não Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 13 está efectivado. Mas existe toda uma série de regras de conduta que nem escritas estão mas usamo-las para orientação, contamos com elas, criamos expectativas e fazemos avaliações tendo-as por base. O ser humano vive, então, num sistema de virtualidades e não num universo físico, que é apenas uma componente minoritária. A existência humana, composta de alegrias, tristezas e expectativas não está presente fisicamente, é virtual, e os indícios físicos podem significar coisas distintas para diferentes pessoas. O que realmente nos orienta é uma rede virtual de sinais do passado e expectativas do futuro e estas coisas, mais a nossa história e a pressão do meio, oprimem-nos muito mais que os obstáculos físicos. Por isso, uma visão do mundo centrada no mundo físico é falsa. O real é uma rede imensa de possibilidades anunciadas por sinais ou símbolos a que chamamos de virtual. A construção do mundo virtual e a imitação dos grandes escritores O crescimento do ser humano caracteriza-se por uma passagem gradual do actual parao virtual. De início o bebé vive quase só em função do que está manifesto, mas aos poucos começa a entrar no universo do possível. A rede de virtualidades abre-se através da linguagem, que permite efectivar coisas que não estão mais presentes. Podemos assim contar a nossa história pois fizemos uma conquista do passado e da própria memória. Mas a linguagem pode não conseguir acompanhar o crescimento do mundo virtual e o indivíduo não conseguirá raciocinar sobre a sua experiência porque lhe faltam os símbolos adequados. A educação deveria servir para corrigir este descompasso entre linguagem e experiência, porque se ele não é suprimido a pessoa vai banalizar-se e criar uma auto-imagem demasiado simplista e afastada da realidade. Mesmo a mente mais simplória é enormemente complexa porque tem uma história e uma memória, e descrevê-la é um enorme desafio mesmo para grandes escritores. A educação devia começar por fornecer, em primeiro lugar, os meios de expressão, sobretudo os linguísticos. O importante é saber usar a linguagem e não tomá-la como objecto de estudo, porque assim estaremos logo a separá-la de nós. Iremos adquirir os instrumentos expressivos tomando posse das obras literárias da mesma forma que as crianças aprendem a falar, ou seja, pela imitação. Os escritores exprimiram algo que tinham em memória ou imaginaram, ou então o que estão sentido. Os instrumentos que utilizaram também podem ser utilizados por nós para situações análogas. Fazendo esta apreensão, vamos começar a modelar o tom conforme as necessidades. Em termos práticos, devemos começar a imitação por um só escritor e ler o maior número de obras dele. Faremos uma imitação servil, não vamos querer obter logo originalidade, que é uma conquista e não uma obrigação. Os males da imitação serão corrigidos pela própria imitação, já que ao ir mudando de autor vão começar a aparecer tantas influências que já teremos uma linguagem própria. Podemos começar por um autor com uma técnica simples, como Graciliano Ramos, mas há outros que utilizam todas as palavras da língua, como Camilo Castelo Branco ou Aquilino Ribeiro. A ideia é acumular recursos sem ganhar vícios. Há várias qualidades que podemos obter, como a sobriedade, mas algumas delas são incompatíveis entre si e isso implica uma escolha. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 14 Devemos ler os diários de Herberto Sales onde ele foi apontando as coisas que aprendia sobre a arte de escrever. Uma lista de autores fundamentais, em língua portuguesa, inclui, entre os poetas portugueses, Camões, Bocage, Antero de Quental, Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro. Na literatura histórica são imprescindíveis Alexandre Herculano e Oliveira Martins. Na ficção temos Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Vergílio Ferreira e Lobo Antunes. Poetas brasileiros: Gonçalves Dias, Cruz de Sousa, Manuel Bandeira, Carlos Drumond de Andrade, Jorge de Lima, Murilo Mendes e Bruno Tolentino. Ficção brasileira: Machado de Assis, Roberto Pompeia (livro Ateneu), José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Marques Rebelo, José Geraldo Vieira e Herberto Sales. Devemos procurar ler o máximo de cada um. Lima Barreto serve para entender o Brasil mas não para aprender a escrever. Guimarães Rosa é para esquecer, artificioso, bobo, apesar do talento, criou vício de linguagem a muita gente. Devemos ainda ter conhecimentos de outras línguas. O inglês é fundamental porque os americanos traduziram tudo. O francês, o espanhol e o italiano também nos ajudarão a melhorar o português numa segunda fase. O latim tem uma importância própria para a filosofia, e permite-nos também ler os discursos de Cícero, que são imperdíveis. A transição da literatura para a filosofia A filosofia é uma busca da verdade partindo da expressão e só depois passa à reflexão. Vai utilizar todos os recursos expressivos da literatura e mais alguns que esta desconhece, e vai levá-los muito mais além até os tornar quase numa ciência. Não é coincidência que o primeiro filósofo, Sócrates, apenas se expressasse oralmente e o segundo, Platão, fosse um poeta. Até chegar à perfeição científica de Aristóteles foi necessário um certo trajecto, que será refeito aqui no curso. A literatura propriamente dita não procura explicar o que está exprimindo, o que é tarefa da filosofia e das ciências teoréticas. A passagem da literatura para a filosofia não é directa e dá-se através da retórica. Segundo a teoria dos quatro discursos, a expressão directa da experiência é dada pela poética, o primeiro andar, que conta aquilo que podia ter acontecido. A poética é uma contemplação das possibilidades de escolha, reais ou hipotéticas, mas não há tomada de posição. Mas na vida é necessário fazer escolhas, e para isso temos de nos persuadir a nós mesmos e, muitas vezes, outros também. Aí estamos no segundo andar, a retórica. A dialéctica só é possível depois de feitas muitas escolhas e percebido as contradições entre elas, pois ela é a confrontação ente os vários discursos retóricos. A sequência dos quatro discursos segue o percurso natural da educação humana. Primeiro aprendemos a imaginar o mundo e conquistamos uma linguagem que possa exprimir a nossa experiência real. Depois entramos na esfera da moralidade, das escolhas pessoais, onde surge o problema do certo e do errado, do preferível e do preterível, do melhor e do pior, não justificados em termos abstractos e universais mas usados como legitimação das próprias acções e escolhas. E só depois de ter aprendido a usar a linguagem como instrumento para influenciar as outras pessoas é que podemos reflectir. A reflexão filosófica só pode surgir depois da conquista do poder Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 15 inerente à retórica, o poder de nos justificarmos com base nos valores que acreditamos que os outros possuem. Antes de chegarmos à filosofia temos de conseguir fazer alguma mediação dentro da sociedade, o que implica entrar nas escolhas pessoais, no poder, na propaganda, na influência, na política. Por isso a filosofia não é uma actividade para crianças mas apenas para quem já pode agir como cidadão. O conhecimento do possível Só através da imaginação podemos conhecer o possível. Essa representação não tem que ser exacta e pode ser condensada em símbolos que formam uma história aparentemente impossível mas que expressa possibilidades reais. Na literatura vai ainda ocorrer uma compactação de experiências que normalmente se encontram separadas. A imaginação trata ainda da experiência concreta, quer ela recorra à memória ou seja elaborada em conjunção com a auto-consciência e, como num sonho, poderá expressar compactamente coisas que estão muito afastadas entre si mas cuja junção faz sentido. A capacidade expressiva não será assim perdida quando se trata de um filme dramático, que se sente como sendo real pela suspensão da descrença, ou num filme como O senhor dos anéis, que se assiste como um sonho. Mas muita ficção moderna é elaborada em cima de hipóteses realmente impossíveis, como o exterminador que vem do futuro, as pessoas que trocam de corpo ou a quase omnipotência do super-homem. A imaginação vai ficar paralisada com hipóteses idiotas. Há aqui um problema de coerência imaginativa. As hipóteses impossíveis não entram no enredo como elementos oníricos mas como premissas logicamente inventadas. A razão construtiva consegue criar hipóteses que vão muito além do que aquilo que a imaginação pode conceber. A imaginação vai apenas colorir com imagens hipóteses racionais que já se afastaram da realidade. Já não se trata do conhecimento do possível mas de uma simples transição entre hipóteses idiotas que nos emburrece. Devemos desconfiar dos produtos imaginativos que estão logicamente muito estruturados. Na imaginação e na linguagem onírica edos mitos existe uma contínua transformação dos símbolos. Mas numa ficção como o super-homem há uma regra imutável, não é um produto do imaginário humano mas um jogo disfarçado com imagens. O culto modernista do realismo imediato Citando o poeta Jorge de Lima, a propósito do movimento modernista brasileiro: Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 16 Devemos recordar a influência do grande Graça Aranha, que foi o maior animador do movimento. Ele pretendia impor normas filosóficas à revolução com a sua estética da vida. Pretendia que o homem brasileiro atingisse a unidade vencendo a natureza que o esmagava. Era chavão repetir: “No Brasil só o homem é pequeno dentro da colossalidade da Natureza”. Aconselhava o reformador que o homem vencesse o terror, o medo metafísico, a compreensão subjectiva impregnada de supostos atrasos que a deturpavam. Aconteceu, porém, o contrário. Os modernistas brasileiros compreenderam que, ao invés do que aconselhava Graça Aranha, o homem devia se entregar às suas tendências naturais, às suas pretendidas deficiências, identificar-se com a exuberância da sua natureza, à sua metafísica mesmo que saturada de superstições, a essa amalgama de inferioridades. O ser humano ficará em isolamento total se ficar apegado ao mundo sensorial directo, ao telúrico, pois isso o colocará numa impotência completa face à natureza. A força humana reúne-se no mundo virtual, a começar pela linguagem. O livro Cangaceiros, de José Lins do Rego, mostra o nascimento da civilização através da linguagem. Aqueles dados do mundo físico recebidos pelos sentidos não têm qualquer unidade, que só é obtida no mundo virtual mediante a transferência efectuada pela linguagem. É preciso fazer um certo sacrifício do mundo sensorial, do carnaval, do sensualismo imediato. Não significa eliminar estas coisas mas enquadrá-las num cenário mais alargado onde vão adquirir a justa proporção. Se passarmos de um sensualismo imediato para um sensualismo virtual estamos subindo na camada de personalidade, abrindo-nos para critérios superiores de integração da personalidade que nos colocam na rota de objectivos mais elevados e abrangentes. O culto modernista prestado a um realismo imediato, dos instintos, é para alguém que permaneceu na segunda camada. Nenhum instinto manifesta-se em contínuo, e uma vida neles baseada revela uma ausência de personalidade. A realidade do ser humano é um trajecto em direcção ao ideal, mas as pessoas são pressionadas a ignorar que as suas vidas decorrem num mundo virtual. A linguagem fica orientada apenas para a experiência física e as pessoas ficam com uma forma diminuída de existência onde acham natural fracassar. A atitude face ao trabalho desliga o mundo das necessidades do mundo dos sonhos. A necessidade de trabalhar é vista como a imposição de um mundo mau; o dever e a vocação são opostos inconciliáveis e a justiça é ser alimentado por outros. Esta é uma temática presente no livro O feijão e o sonho, de Orígenes Lessa. Há aqui uma moralidade invertida, que se recusa a ver o trabalho como um dever moral e que, feito com amor, nos dará energia para a vida intelectual. Há que modificar a relação entre o ideal e o real. Quem tem uma carreira baseada na fraude e na exploração do próximo não tem direito a ter um ideal. Conquista-se esse direito cumprindo as nossas obrigações, em primeiro lugar vendo-as como um dever de bondade para com os outros. A cruz é também um símbolo para a estrutura da realidade. A noção de um plano de vida está condicionada à existência de uma cruz a carregar; esse plano não é necessário no paraíso. Mas para Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 17 conceber esse plano temos de ter uma correcta visão moral, que não se compadece com o desprezo pelo trabalho e pela realidade. A tarefa bibliográfica e a tradição filosófica O artigo “Quem é filósofo e quem não é”, publicado no Diário do Comércio (disponibilizado em http://www.olavodecarvalho.org/semana/090507dc.html) lida com a tarefa de elaborar uma bibliografia essencial, e foi escrito a pensar nos alunos do COF. Não devemos receber uma lista de livros, temos de ser nós a elaborar uma, e esta tarefa vai criar em nós uma capacidade quase instintiva de discernimento acerca dos autores realmente valiosos. Isto terá que ser feito por tentativa e erro, socorrendo-nos de tudo que esteja ao nosso alcance, dicionários e enciclopédias de filosofia, incluindo muita coisa valiosa da Internet. Se ao fim de 2, 3 anos conseguirmos elaborar uma lista crítica de livros sobre uma data área da filosofia, mesmo sem ter lido livro algum, já saberíamos mais do que alguém que tivesse passado o tempo a ler os livros. Um novo campo de estudos deve ser para nós como um território inexplorado que tem que ser cartografado e, para isso, devemos adquirir uma paixão pela informação, pela sua ordenação e classificação. O padre Stanislavs Ladusãns utilizava o seguinte método, que demonstrava o poder da dialéctica: para um novo problema filosófico ele começava a análise segundo os métodos e perspectivas dos vários filósofos que o tinham abordado. Seguindo uma direcção cronológica, simplesmente assumia a postura de um discípulo fiel de cada filósofo, sem ainda entrar numa postura crítica. As dificuldades e polémicas apareciam por si mesmas, e eram depois ordenadas, analisadas e, no final, articuladas para produzir a melhor solução considerando os elementos mais sólidos apresentados. Esta era uma forma de chegar ao status quaestionis, baseada na emulação do pensamento dos filósofos passados. Esta prática fazia chegar à conclusão de que a filosofia é uma tradição e uma prática, e que o domínio da técnica ocorre pela absorção da tradição e esta, por sua vez, é absorvida pela prática da técnica. Tradição vem de traditio, com o significado de “trazer”, “entregar”, e a tradição filosofia significa revivificar os filósofos passados e as experiências interiores que os motivaram, o que se afasta definitivamente da aquisição de informação filosófica, que é uma busca de erudição que encerra os filósofos passados como se fossem peças de museu. O culto da opinião própria leva muitas pessoas a repudiarem a entrada nesta tradição, por medo de serem influenciadas. Mas é próprio da dialéctica fazer esta integração para que as várias influências se melhorem. Mesmo as piores coisas ajudam-nos a chegar longe por nos alertarem para os erros naturais que obstaculizam a progressão da inteligência. A partir daqui obtemos um critério para julgar outros filósofos. Devemos verificar se eles conseguiram incorporar mentalmente o percurso dos filósofos do passado. Obtemos também uma orientação para os estudos filosóficos. Estes devem ser regidos por problemas e não abordando os autores. E os problemas escolhidos têm de ter real interesse e importância para nós, mas não devemos estranhar se a formulação do problema se alterar, o que é normal no decurso da pesquisa. Em seguida vamos procurar os textos clássicos que abordaram o problema, e vamos lê-los por ordem cronológica procurando reconstruir mentalmente a história daquela discussão. As Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 18 lacunas devem ser preenchidas com uma nova pesquisa bibliográfica até termos obtido um desenvolvimento histórico contínuo o suficiente. Antes de montarmos a discussão numa ordem lógica temos de classificar as opiniões segundo os pontos de concordância e discordância, sem nos iludirmos com discordâncias de pormenor que podem ocultar um profundo acordo relativo às categorias essenciais em discussão. Quando a discussão é montada logicamente, ela irá aparecer como uma única hipótese, que poderá conter ainda muitas contradições internas e perguntas por responder. Só daqui em diante podemos dar a nossa própria contribuição para oesclarecimento do problema, se tal for possível. O milenarismo Jesus Cristo proibiu formalmente a especulação sobre as datas dos planos de Deus para o futuro (Actos dos Apóstolos, Cap. I, versículo 7). A expectativa milenarista, de mil anos de paz com a vinda de Cristo, é uma especulação à volta destas coisas. Santo Agostinho iniciou uma filosofia cristã da História que pretendia encerrar esta questão. Para ele havia apenas duas formas de entender as profecias do Apocalipse e o símbolo mil. Podia relacionar-se com o destino espiritual da história da Igreja e o seu governo no mundo. Esse milénio já haveria começado, e desde o século IV de Agostinho até 1400 a Igreja espalhou por toda a parte o senso da imortalidade da alma, o senso da sacralidade da pessoa humana, a caridade, inventou os hospitais, os orfanatos, as escolas, aboliu a escravidão; pelo que esta interpretação será válida. Uma segunda interpretação, que não é incompatível com a primeira, via o milénio, o símbolo mil, como totalidade, nem seria um número mas a designação de algo fechado. A salvação das almas é a tarefa da Igreja e para isso de nada servem expectativas milenaristas, nunca existiu uma sentença papal baseada no milenarismo. Especular sobre o fim da História implica simular uma posição existencial situada na eternidade, que permite ver a História e Deus como objectos na nossa mente, quando eles só podem ser concebidos como participação. Deus só pode ser concebido como força agente em nós. Mesmo uma pessoa só pode ser conhecida como uma virtualidade, com as suas potencialidades, tensões, e não como objecto. Só podemos conhecer uma coisa de acordo com o seu modo real de existência, e isto nada tem a ver com cepticismo. A ignorância do fim dos tempos é parte da nossa constituição, e o cristianismo realçou muitas vezes esta incerteza constitutiva. Mas depois de Agostinho a Igreja abandonou a filosofia da História, talvez por ele ter uma visão muito realista que não via sentido na História fora do cristianismo. Mas a Igreja também abandonou os estudos sobre a filosofia da natureza e as suas forças ocultas, sobre alquimia e astrologia, e estas coisas passaram a ser monopólio das sociedades secretas com todo o tipo de disparates associados. As especulações milenaristas continuaram e trouxeram um elemento essencial da mentalidade revolucionária, que foi a inversão do tempo. O milenarismo entrou violentamente na mentalidade ocidental e todos nós temos algo desta concepção. Ela tem o erro fundamental de conceber a História da humanidade como se fosse a de um indivíduo. Mas, ao contrário da vida do indivíduo, a História não tem um fim expectável nem uma unidade, é composta de narrativas de sociedades sem contacto Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 19 entre si. Apenas existe unidade histórica perante a eternidade ou na cabeça dos historiadores. À medida que os vários historiadores vão tentando captar alguma ordem na História, a sucessão desses esforços é a única ordem da História, e por isso Eric Voegelin dirá que a ordem da História é a história da ordem. Fora disto existe a ordem divina, que pode ser conhecida miticamente através da visão dada pela revelação, mas o mito é compactado, confuso e pode não nos esclarecer. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 20 Aula 08 – 23/05/2009 Sinopse: Esta aula sintetiza as aulas anteriores e traça algumas linhas para o curso e para a restante vida intelectual. Existe uma série de blocos a serem desenvolvidos na vida intelectual, de acordo com o espírito do COF e tendo em conta o estado actual da sociedade. Esses blocos são independentes mas terão de ser trabalhados em paralelo e articulados. A própria filosofia é o modelo da vida intelectual, na senda de Sertillanges, onde as indicações práticas são emanadas da visão unificada dos princípios mais gerais. A vida intelectual consiste em vencer as dificuldades e os empecilhos com que nos defrontamos, que não devem ser vistos como meros acidentes de percurso mas componentes essenciais. O primeiro bloco trata do Adestramento do Imaginário, baseado no longo convívio com a literatura de ficção, o romance, a poesia, o teatro e o cinema. Apenas através da imaginação podemos conhecer pessoas diferentes de nós e que viveram em contextos diferentes. O segundo bloco é o Adestramento Linguístico e terá de ser articulado com o anterior. Compreender e saber utilizar a linguagem, juntamente com a imaginação, são condições necessárias para retirar o fundo de experiência que se encontra por detrás da linguagem filosófica. Quando entramos no terceiro bloco, o Adestramento da Auto-consciência, procuramos dar um sentido ao nosso trabalho intelectual. O senso do ideal é um elemento unificante que dá à nossa consciência um padrão que permite absorver cada situação real da vida à sua luz. No quarto bloco entramos na tarefa de pesquisa erudita, que segue de perto, em técnicas e métodos, a investigação histórica. No quinto bloco entramos, finalmente, na técnica filosófica propriamente dita, que se sustenta nos quatro blocos anteriores. Na técnica filosófica partimos da opinião dos sábios, como dizia Aristóteles, e vamos também incluir o conhecimento por presença. A razão hipotética é um tipo especial de imaginação, que foi formalizada e petrificada para permitir a repetição exacta. A crítica literária é a primeira disciplina filosófica e permite criar um consenso sobre as obras com real valor, enquadrando-as culturalmente e historicamente. Respeitar todas as opiniões é desrespeitar a verdade. O Adestramento do Imaginário Só através da imaginação podemos compreender pessoas diferentes de nós, que terão sempre um ponto de contacto connosco mesmo tendo vivido em épocas passadas ou em contextos totalmente diferentes e mesmo que sejam personagens de ficção, como Antígona, Ulisses ou Hamlet, já que não existe o totalmente heterogéneo. Na nossa vida cotidiana só podemos compreender o próximo através da imaginação, e se não fizermos o exercício de nos colocarmos na situação do outro, a base do amor ao próximo, iremos julgá-lo baseados num qualquer estereótipo. O adestramento do imaginário é feito pela longa convivência com a literatura de ficção, a poesia, o romance, o teatro e o cinema. Tudo isto é por nós fruído como um sonho acordado dirigido que permite nos identificarmos com aquelas personagens retratadas. Mais tarde, com a incorporação de novos dramas, conflitos, tensões, situações, estaremos habilitados a criar as nossas próprias personagens e situações, mesmo que estas fiquem apenas no nosso imaginário e não sejamos capazes de as transpor para o papel. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 21 Também a experiência é importante para a filosofia mas ela nos compromete e vai pesar no nosso futuro. Não é possível experimentar “de tudo” apenas para aumentar o nosso arsenal experiencial sem assumir as devidas responsabilidades. Para conhecer alguém com inteligibilidade é necessário enquadrar a pessoa num padrão geral e abstracto. Mas o ajustamento ao caso concreto que a pessoa configura só pode ser feito através da imaginação. Esse ajustamento imaginário é facilitado se já tivermos uma galeria suficiente de personagens e situações dramáticas que se possam combinar para formar uma imagem da pessoa real. A boa ficção isola eventos pertinentes e intensifica-os para ganhar nitidez. Mas na vida real existe uma pluralidade de dramas desconexos. Como os problemas aparecem todos mesclados, torna-se quase impossível às pessoas dar inteligibilidade ao seu sofrimento. O sofrimento só pode ganhar sentido se integrado num projecto biográfico. É preciso ganhar discernimento com o adestramento do imaginário para, retroactivamente, articular as situações vividas com os nossos objectivos mais elevados.Neste adestramento as obras de literatura têm que ser vistas como documentos da vida humana, depoimentos e não textos que vamos logo analisar. Essa análise faz parte da vida intelectual mas ficará para mais tarde. O adestramento do imaginário pode ainda prosseguir com o estudo da psicologia, tendo em vista a compreensão dos seres humanos reais e não como disciplina teorética. Os livros de filosofia não devem ser lidos como teses das quais devemos concordar ou discordar. A primeira tarefa a realizar é a reconstituição do drama cognitivo e humano ali presente. Antes de vermos estes livros como verdadeiros ou falsos, a proclamar ou a impugnar, temos de os perceber como expressões de uma busca humana. A fase crítica não pode chegar antes de termos revivido experiências análogas às vividas pelos autores que lemos. Nos livros de filosofia há o drama humano, que é o primeiro a ser entendido, as respostas a outros filósofos, por exemplo, e existem os dramas puramente cognitivos que advêm da luta contra a opacidade dos factos e dos fenómenos. Não são estes dramas sangrentos como certos dramas que ocorrem nas relações entre as pessoas, mas a longo prazo são determinantes para a humanidade. Adestramento Linguístico Juntamente e articulado com o adestramento do imaginário, terá de ser desenvolvido um segundo bloco respeitante ao adestramento linguístico, mais concretamente, sobre a compreensão e utilização da linguagem. A obra literária veicula a experiência concreta, segundo Benedetto Croce, e terá de ser esse o nosso foco e não entrar logo na linguagem abstracta da filosofia e das ciências. Às experiências intelectuais correspondem experiências existenciais concretas que temos de refazer imaginariamente para saber realmente do que se está a falar. Se recorrermos a um dicionário filosófico teremos acesso apenas a definições de termos, atitudes ou correntes esquematizados, que não correspondem à realidade dos dramas intelectuais que foram vivenciados longamente. A mera evocação do conceito abstracto não permite evocar esse drama, mas se nos atermos a isso faremos como a criança que usa a imitação de palavras sem perceber o contexto. Precisamos de lastro imaginário e linguístico para retirar a situação existencial efectiva da linguagem filosófica. Por isso o adestramento da linguagem tem de vir junto ao adestramento do imaginário. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 22 O Adestramento da Auto-consciência e o Senso do Ideal A nossa tarefa intelectual tem que ter uma real importância para nós. Mas para determinar isso a nossa vida tem que ter uma unidade, que só pode existir mediante a adquirição de sentido. Ao desenvolver um senso do ideal, o que remete para o Exercício do Necrológio, temos um padrão para a nossa auto-consciência que permite que a nossa vida se torne numa sucessão de esforços que têm o objectivo de dar sentido à miríade de coisas que nos chegam desconexas. Não podemos achar que a nossa vida, daí em diante, passou a ser como um mito onde tudo decorre da providência divina. As coisas continuarão a chegar-nos sem ligação entre elas e é o nosso trajecto que será unificado na medida em que damos sentido às coisas e reaproveitamos os obstáculos como instrumentos para desenvolver em nós certas qualidades e habilidades necessárias para realizar a nossa vocação. Deixamos uma posição onde encarávamos o mundo como estando contra nós ou sendo indiferente à nossa existência, para outra posição em que nos vemos como uma tensão entre a circunstância e a idealidade para a qual devemos tender. Ortega y Gasset complementou a frase “Eu sou eu e a minha circunstância”, afirmando depois que “A reabsorção da circunstância é o destino concreto do homem”. No mesmo sentido, Goethe dizia que o talento se desenvolvia na solidão mas o carácter na agitação do mundo. As dificuldades e os obstáculos devem ser encarados com o máximo de boa vontade, seguindo o exemplo de Leon Bloy, pois assim iremos fortalecer o nosso carácter e dar conteúdo humano ao nosso trabalho intelectual. Não nos podemos preservar da nossa própria experiência ou a boa vida irá tornar-se num elemento corruptor. A falta de densidade humana não pode ser compensada por uma grande abrangência dos estudos. Algumas ideias em voga são um empecilho para a unificação da auto-consciência, como achar que o “eu” não existe ou que temos uma multiplicidade de “eus” que aparecem consoante o papel social que estamos desempenhando. Raul Seixas dizia que “Eu sou a metamorfose ambulante”, e isto descreve a realidade da condição humana, em que uma personagem se forma através da sucessão contínua de transformações. O “eu” real só pode ser descrito num drama, e não de forma estática num quadro ou numa escultura. Mas se esse “eu” não existisse também não poderíamos contar a nossa biografia. Mesmo sendo a nossa personalidade constituída por uma data de fragmentos, ela também tem um elemento unificante, sem o qual não seria possível fazer a transição entre os vários papéis. Alguém que tenta realizar algo está fazendo um esforço para unir a sua consciência. Este terceiro bloco será aqui denominado de adestramento da auto-consciência, que remete para a compreensão de cada situação real vista à luz de um senso do ideal. As principais dificuldades surgem dos nossos antagonismos internos. É preciso um cuidado especial com a formação de uma auto-imagem, que acaba por ser o oposto do auto-conhecimento. Formamos a nossa auto-imagem a partir de supostos defeitos e qualidades nossos, que surgem de um discurso interior de defesa e acusação. Mas trata-se de uma armadilha porque não revela efectivamente o que somos. A nossa consciência não tem uma forma determinada e só existe na tensão entre um senso do ideal perseguido e os recursos que nos são fornecidos. Nós somos apenas um operante Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 23 sem forma, um foco de luz que ilumina o que está obscuro à nossa volta e no nosso interior. Apenas o observador omnisciente nos conhece verdadeiramente e tudo o que podemos dizer sobre nós são auto-imagens provisórias e, na melhor das hipóteses, apenas parcialmente verdadeiras. Desistir da auto-imagem e atermo-nos apenas a um núcleo de auto-consciência pode nos desorientar por momentos e nos criar uma sensação de falta de identidade, mas isso é provisório. Temos de chegar a uma fase onde não seremos mais um retrato mas uma acção, seremos uma auto-criação permanente que se substitui a uma auto-contemplação passiva e viciosa. O Necrológio, antes de ser uma auto-imagem, é o antagónico dela. É um projecto para o qual temos de achar os meios para o realizar, e à medida que o vamos concretizando vai deixando de ser uma meta para passar a ser um dever. Queremos ter uma auto- imagem porque desejamos expressar na perfeição o mundo dos nossos pensamentos. Mas a extinção e o desaparecimento fazem parte da natureza das coisas temporais, o que permite nos libertarmos de uns pensamentos para dar espaço a outros melhores. Mas aquilo que desaparece da escala temporal não vai para o mundo do não-ser, não pode tornar-se num nada, porque o nada nunca foi nada. Tudo o que alguma vez existiu não se perde na escala da eternidade, onde tudo é eterno e Deus pode colocar em nós o conhecimento perdido as vezes que quiser. É esta a memória espiritual a que se refere Platão quando fala da anamnese. Só quando começamos a perceber a permanência da eternidade por detrás da impermanência é que teremos um terreno firme, como dizia S. Paulo apóstolo, n’Ele nos movemos, vivemos e somos. A visão da individualidade fechada, do ego cartesiano, serve para paralisar a inteligência. Quando acreditamos que tudo é um estado subjectivo nosso, incluindo pensamentos e percepções elementares, passamos a dar substância a essa subjectividade e negamos aexistência de algo fora dela. O eu subjectivo na verdade não existe, limita-se a ser uma sucessão de estados impermanentes, mas se o considerarmos como um recipiente fechado, ele deixa de conseguir fazer a ponte entre os nossos estados interiores e o mundo exterior, que é a outra sucessão de impermanências. Penso, logo existo, tem implícita, como a primeira e fundadora certeza das restantes, a existência do próprio ser cognoscente. Mas a própria formulação da frase implica a utilização de uma linguagem que veio de fora, ou seja, a afirmação da nossa existência não pode ser uma certeza fundadora mas já necessita da certeza da existência do mundo exterior. Só que a frase é dita para sugerir o contrário. O ser com verdadeira substância só existe na escala eterna, quando já adquiriu a sua forma fechada, e na escala temporal tudo é precário e impermanente. Mas também não pode existir uma impermanência absoluta, que reduziria as coisas a nada, pelo que as coisas no mundo temporal estão num estado intermédio, são semi-naturezas, semi- substâncias em permanente estado de fluxo que só adquirem a verdadeira substancialidade vistas desde a eternidade. Ao invés de nos encerrarmos sobre o nosso eu subjectivo, o nosso processo de auto-construção consiste em nos darmos e prestarmos atenção a coisas incomparavelmente mais importantes que nós, e depois podemos passar a personificar esses valores para outras pessoas, não por os termos em nós mas por abrirmos a porta para eles. Muita gente não quer ver essas portas abertas e irá odiar o nosso exemplo. Ninguém foi mais odiado que Cristo. Mas isso é uma posição alienada que está contra a estrutura da realidade e não podemos temer as reacções de pessoas como essas. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 24 A tarefa de pesquisa Apenas quando chegamos ao quarto bloco, relativo às ferramentas de pesquisa erudita, o ensino moderno vai dedicar alguma atenção, se bem que deficitária. Devemos nos documentar sobre as questões que nos interessam. A investigação filosófica segue de perto a investigação histórica, partilhando técnicas e métodos. Um livro sugerido quanto a isto é The Modern Researcher, de Jacques Barzun, mas como devemos adequar a investigação ao país e momento vivido, devemos também considerar os livros de José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil e Pesquisa Histórica no Brasil. Depois de reunir o máximo de documentação possível há que interpretar esse material e relacioná-lo, seguindo na linha do historiador da filosofia ou das ideias. Para saber mais sobre como trabalhar estes assuntos devemos ler a apostila “Problemas de métodos nas ciências sociais”. O artigo “Quem é filósofo e quem não é”, publicado no Diário do Comércio (disponibilizado em http://www.olavodecarvalho.org/semana/090507dc.html), aconselha que, em primeiro lugar, se faça uma pergunta que nos desperte real interesse. Segue-se depois uma tarefa bibliográfica e depois todo aquele material será montado como se fosse uma teoria única, ou seja, a partir da história do problema é composta a sua estrutura. Normalmente os livros fazem uma apresentação sistemática que não revela a investigação histórica que esteve por detrás. Este processo está ilustrado de forma magistral no livro de Joseph Marechal, Le Point de Départ de la Métaphysique. Neste livro é colocado de início o problema da afirmação metafísica e depois é visto como este problema foi evoluindo ao longo do tempo nos pontos que interessavam ao autor. Na filosofia não é seguida a investigação histórica estritamente, que avalia todos os problemas. Há uma criação de foco na escolha de pontos considerados essenciais. A técnica filosófica e o conhecimento por presença Apenas no 5.º bloco vamos chegar à técnica filosófica propriamente dita. O 5.º bloco é suportado pelos blocos anteriores, como se fosse o tampo da mesa suportado pelos 4 pés, que representam os outros blocos. Existe uma ponte com o bloco anterior, relativo à tarefa documental, que é efectuado pelo livro de Joseph Marechal já referido, onde é seguida a ordem da pesquisa. Um filósofo merecedor de atenção é aquele que coloca problemas que são mortalmente sérios para si e envolve toda a sua experiência para recriar o drama passado pelos outros filósofos que fizeram esforços no mesmo sentido. A linguagem que ele utiliza terá de mostrar todo o seu arsenal memorativo e imaginário, onde reside a substância da vida intelectual. Isto os distingue daqueles que usam esquemas verbais e intelectuais com uma certa habilidade mas apenas na base da imitação. A técnica filosófica sintetiza uma série de esforços, que deve ser vista como um drama a se desenrolar em nós e não como fenómeno histórico, desenvolvidos com vista a lançar alguma luz sobre certos problemas. Todos os filósofos seguiram a sugestão de Aristóteles de que se devia partir das opiniões dos sábios, que eram opiniões qualificadas que já tinham resolvido os problemas elementares. Quando entrarmos na Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 25 técnica filosófica iremos usar dois livros, Manual de Metodologia Dialéctica, de Louis Lavelle (a ser traduzido e disponibilizado no COF) e Logique de la Philosophie, de Eric Weil. Na técnica filosófica será incluído o conhecimento por presença, algo negligenciado na história da filosofia mas cujas elaborações científicas das últimas décadas tornaram possível desde que se começou a estudar a comunicação não verbal, a ressonância mórfica descrita por Rupert Sheldrake, juntando ainda a obra de António Damásio, se bem que sofrendo de alguma confusão de terminologia. A nossa orientação no mundo depende de muito mais conhecimento que aquele que sabemos que sabemos. O conhecimento por presença está sempre presente e preenche os espaços vazios. Ele advém do aparato de percepção que nasceu connosco, trazendo a marca da perfeição divina; todas as crianças sabem que vivem no mesmo mundo sem terem disso sido informadas. Esse conhecimento permite que nos orientemos sem qualquer problema no mundo da mutação e da permanência, e sabemos instintivamente o que há de aparente e real tanto na mutação como na aparência. Mas quando tentamos transferir este mundo da percepção para o mundo da razão, apenas uma pequena fracção do que sabemos é comunicável. Os filósofos pré-socráticos tinham a mesma experiência do mundo, mas Heraclito realçava o fluxo de mutações, enquanto Parménides achava que existia um ser absoluto e imutável por detrás das mutações, e Zenão de Eleia, com os seus famosos paradoxos, punha em dúvida a própria realidade do movimento e da transformação. Eles sabiam que viviam no mesmo mundo e não em mundos diferentes, viam o mesmo mundo mas expressavam-no de forma diferente porque a razão é muito limitada em comparação com o mundo da percepção. O que nós conhecemos deles resume-se apenas àquilo que eles conseguiram transmitir e não o que eles efectivamente sabiam. O conhecimento por presença está por baixo do efectivamente percebido, estando mesmo por baixo do inconsciente, que só pode ter origem na memória ou em algum processo interno, que é a própria presença no real, pressuposto de tudo. O esforço filosófico consiste em transferir uma pequena parcela da riqueza infinita da percepção real para o mundo da razão, onde as coisas são humanamente comunicáveis e podem ser discutidas. A crítica moderna do conhecimento, iniciada por Hume, seguido por Kant, criou a ideia de que tudo o que não era absorvido pelos sentidos era criação mental, existindo assim o mundo natural e o da criação cultural. Como suposta prova disto temos as diferentes imagens do mundo presentes em culturas diferentes. Estas imagens são realmente diferentes mas isto não implica que a percepção do mundo também acompanhe estas diferenças. Aquilo que as civilizações passadas nos deixaram
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