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17 APLICAÇÃO DA PENA ____________________________ 17.1 NOÇÕES GERAIS Instaurado o processo penal, por meio do qual se busca descobrir a verdade, e assegurado o mais amplo direito de defesa, o juiz, se concluir que o acusado praticou um fato típico, ilícito e culpável – um crime –, deverá prolatar a sentença, condenando- o a sofrer a pena criminal, a mais grave das sanções do direito. A aplicação da pena não é tarefa fácil, nem simples, e constitui a mais importante das fases da individualização da pena, garantia constitucional de todo cidadão, segundo a qual a reprimenda penal deve ser particularizada, adaptada ao condenado, conforme suas características pessoais e as do fato praticado. Aplicar a pena é dar, ao condenado, a pena justa, que deverá ser aquela suficiente e necessária para a reprovação e a prevenção do crime. A cada fato definido como crime, numa norma penal incriminadora, corresponde uma sanção, que pode ser a privação de liberdade – detenção ou reclusão – e multa, ou apenas aquela ou somente esta. A pena privativa de liberdade é cominada, para cada tipo legal de crime, num grau mínimo e num grau máximo, como, por exemplo, consta da sanção do tipo de estupro, do art. 213 do Código Penal: “reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos”. Já a pena de multa é, em regra, de no mínimo 10 (dez), no máximo 360 (trezentos e sessenta) dias-multa. Como deve proceder o juiz, após reconhecer que o acusado praticou mesmo um crime, para determinar a pena, em qualidade e em quantidade? Tem ele a liberdade total para fixar a pena que considerar justa? Ao deixar margem para fixação, a lei quer conferir ao juiz o arbítrio para impor a pena que bem entender? Se não, quais são os critérios, as regras, os parâmetros, enfim, as normas que regulam essa importante atividade jurisdicional? 2 – Direito Penal – Ney Moura Teles Para que a pena possa ser individualizada, a lei possibilita ao juiz oportunidade para particularizá-la a cada um dos condenados, de tal modo que, ainda que duas pessoas tenham concorrido para um mesmo crime, com igual intensidade de vontade, executando ações materiais idênticas ou semelhantes, a pena que uma receberá não será, necessariamente, igual à da outra, porque outras circunstâncias podem levar à diferenciação da quantidade da sanção. É de todo claro que não pode ficar ao arbítrio do juiz a aplicação da pena. Se ele tem a liberdade para determiná-la, tal liberdade, todavia, há de ser exercida com a estrita observância de um conjunto de regras claras, que presidem essa tarefa do julgador. Em vez de arbítrio, fala-se em poder discricionário do juiz, pelo que não há arbitrariedade. Tanto que o juiz é obrigado a motivar a aplicação da pena, externando as razões que o levaram ao quantum estabelecido. Este dever de motivar decorre do preceito constitucional inserto no art. 93, IX, da Constituição Federal, que diz: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”. A motivação da aplicação da pena elimina qualquer possibilidade de arbítrio. “A motivação da sentença é exigência de todas as legislações modernas, onde exerce, como diz Franco Cordero, função de defesa do cidadão contra o arbítrio do juiz. De outra parte, a motivação constitui também garantia para o Estado, pois interessa a este que sua vontade superior seja exatamente cumprida e se administre corretamente a justiça. O juiz mesmo protege-se, mediante a obrigação de motivar a sentença, contra a suspeita de arbitrariedade, de parcialidade, ou de outra qualquer injustiça (Manzini).”1 Se o juiz não fundamentar a decisão, ela será nula. Se não explicar o porquê e o como chegou à pena aplicada, sua decisão contraria a ordem constitucional e processual. O condenado tem o direito de saber não apenas por que foi condenado, mas, principalmente, porque recebeu essa ou aquela pena, exatamente para poder verificar se ela é justa, vale dizer, se ela foi aplicada levando em conta os fins a que se destina: reprovar e prevenir o crime. A pena justa é aquela que será apenas suficiente e necessária para a reprovação e para a prevenção do delito, nem além, nem aquém. Direito também do acusador, de saber o motivo da qualidade e quantidade da pena aplicada. 1 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 320. Aplicação da Pena - 3 Ambas, acusação e defesa, para, se quiserem, pleitearem a reforma da decisão na instância superior, necessitam saber os motivos que levaram o julgador a optar pela pena aplicada. 17.2 CÁLCULO DA PENA O art. 68 do Código Penal estabelece o caminho que o juiz deve seguir para encontrar a pena justa a ser aplicada ao condenado. Com base nele e no disposto no art. 59 pode-se construir o seguinte roteiro, ao qual o juiz está necessariamente vinculado. O primeiro passo a ser dado é o da fixação da pena-base, devendo o juiz fazê-lo observando minudentemente as circunstâncias judiciais estabelecidas no art. 59 do Código Penal. Depois de encontrar a pena-base, o juiz deverá considerar a existência de circunstâncias atenuantes (descritas nos arts. 65 e 66, CP) e de circunstâncias agravantes (definidas nos arts. 61 e 62, CP), com observância da regra do art. 67 do Código Penal. Depois, deverá verificar a presença ou não das chamadas causas de diminuição e das causas de aumento de pena, previstas tanto na parte geral, quanto na parte especial do Código Penal. Finalmente, se se tratar de pena privativa de liberdade, o juiz deverá verificar a possibilidade de sua substituição por pena restritiva de direitos ou de multa, e, caso não o possa fazer, fixará o regime inicial de cumprimento da privação de liberdade. Em síntese, a pena é determinada, assim, em quatro etapas, bem distintas: (1ª) Pena-base. (2ª) Atenuação e agravação. (3ª) Diminuição e aumento. (4ª) Substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, ou Fixação do regime inicial de seu cumprimento. Estabelecido o roteiro, vai-se percorrê-lo, um a um, com todos os detalhes considerados importantes. 17.3 FIXAÇÃO DA PENA-BASE A primeira etapa a ser percorrida e concluída pelo juiz é a da fixação da pena- base, durante a qual deverá observar as regras estabelecidas no art. 59 do Código Penal. O princípio diretor da aplicação da pena nas quatro fases – mas que se 4 – Direito Penal – Ney Moura Teles manifesta de modo vigoroso na primeira etapa – é o seguinte: o juiz estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente, para reprovação e prevenção do crime, as penas aplicáveis, entre as cominadas, e sua quantidade, dentro dos limites previstos. Daí decorrem duas regras: (a) a pena, em qualidade e em quantidade, deve ser fixada com a finalidade de tão-somente reprovar e prevenir o crime; e (b) deve ser estabelecida dentro dos limites da necessidade e da suficiência para o alcance daquela finalidade. Essas duas bases devem orientar o juiz em toda a sua atividade de aplicar a pena, e, nesse primeiro momento, da fixação da pena-base, deve presidir sua opção pela pena a ser aplicada, e por sua quantidade. Delas decorrem algumas observações importantíssimas. O juiz não pode fixar pena sem aqueles objetivos de reprovar e prevenir o crime. Se a necessidade de reprovação for grande, a pena deverá ser, igualmente, mais severa. Se a necessidade da prevenção for pequena, a pena será menos severa. O juiz não pode fixar pena em quantidade além da necessária, nem mais do que o suficiente para a reprovação. Como proceder paraatender ao preceito? Nortear-se pelos próprios parâmetros indicados no mesmo art. 59. O juiz fixará a pena com atenção “à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima”. Essas circunstâncias, chamadas judiciais, deverão ser analisadas pelo julgador, que, à vista de sua presença ou ausência, fixará a pena-base. É necessário, pois, falar sobre essas circunstâncias, uma a uma, cada qual com suas particularidades. 17.3.1 Culpabilidade Culpabilidade é a reprovabilidade da conduta do agente imputável que, com potencial consciência da ilicitude, poderia ter agido de outro modo. É um juízo de reprovação, de censura, que o julgador faz, em nome da sociedade, ao imputável agente do fato típico e ilícito. É a valoração feita acerca do fato praticado, possível quando o agente tinha possibilidade de conhecer a proibição que recaía sobre seu comportamento, e quando se lhe podia exigir outra atitude. É de todo claro que algumas condutas típicas e ilícitas são mais reprováveis que outras, ainda que sejam igualmente ilícitas. Aplicação da Pena - 5 Basta pensar: dois homicídios simples não são, necessariamente, censuráveis no mesmo grau, na mesma amplitude, dependendo das circunstâncias que cercaram a atitude de cada um dos seus agentes. Ou então: dois homicídios qualificados por terem sido praticados, ambos, por motivo fútil, não são reprováveis, obrigatoriamente na mesma intensidade, até porque dois motivos distintamente fúteis podem ser reprováveis em graus diferentes. Um será mais fútil que o outro. Mais insignificante que o outro. Um infunde maior revolta no que o vê. Outro merece maior compreensão. Dois crimes praticados mediante uso de meio cruel não serão, necessariamente, censuráveis na mesma medida, porque um meio pode ser um pouco mais cruel que o outro, ou porque o ânimo de um dos agentes pode repugnar mais que o do outro. A censurabilidade, a reprovabilidade, de cada fato, é graduável, mensurável. Um será menos ou mais reprovável que outro. Um será muito repugnante, outro, apesar de repugnante, um pouco menos. Os comportamentos humanos, todos, são analisáveis e valoráveis, merecendo graus diferentes de censura, de reprovação. Alguns atos são mais culpáveis que outros, que são merecedores de menor censura. Os homens são, uns em relação aos outros, ainda que por comportamentos idênticos ou assemelhados, mais ou menos culpados. O homem rico, instruído, intelectual, bem situado no meio social do ponto de vista econômico-financeiro, será mais culpado que o pobre, analfabeto, marginalizado, se ambos, em situações idênticas, reagirem de modo igual, por exemplo, diante da notícia de que a filha engravidou do namorado. Do primeiro se exigirá comportamento mais compatível com o direito do que do segundo. Se ambos reagirem com violência, matando, por exemplo, o namorado, o instruído, bem formado, será, a princípio, mais culpado que o segundo. Enfim, a culpabilidade, enquanto juízo de reprovação, é graduável, com base em seus dois elementos: a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. Aquele que age com consciência real da ilicitude é mais culpado do que aquele que age sem a consciência, podendo alcançá-la. Basta pensar em dois homens distintos: um, advogado, conhecedor do direito, tem consciência real de que se encontrar sua mulher em flagrante de adultério, não lhe será lícito matá-la, nem o amante, e o outro, um rude lavrador, do interior de um Estado pouco desenvolvido do país, que, na mesma situação, considera que matá-la é “lavar sua honra com o sangue da adúltera”, conduta permitida pelo Direito. Evidente que ambos cometem fato típico e ilícito. O primeiro agiu com consciência real, atual, verdadeira. O segundo agiu sem essa consciência, mas podia, à 6 – Direito Penal – Ney Moura Teles evidência, tê-la alcançado. Ainda que o primeiro não tivesse agido com real consciência, dele se podia exigir, mais que do segundo, alcançar tal consciência. Por isso, o primeiro será mais culpado que o segundo. Do mesmo modo, aquele do qual se exige com grande intensidade comportamento diferente do que o realizado será, igualmente, mais culpado do que o outro, do qual se exige, de modo menos rigoroso, conduta diversa da praticada. Imagine-se duas situações idênticas, com dois cidadãos diferentes. Em ambas, um indivíduo invade uma casa, subjuga uma família, sob a mira de uma arma branca (faca da cozinha, que está sendo apenas portada, sem encostá-la em qualquer pessoa), e aguarda a chegada do chefe da família, marido e pai dos reféns. Quando este chega, é instado a retornar à empresa onde trabalha como tesoureiro e de lá trazer certa quantia em dinheiro, como condição para a cessação da ameaça que paira sobre seus familiares. Não há, nos dois exemplos, por parte do agressor, nenhuma outra atitude mais séria contra os familiares. As duas situações fáticas são quase idênticas, com uma única diferença: numa o pai é ex-policial, com larga experiência em lidar com seqüestradores, exímio atirador, praticante de artes marciais, negociador frio, ao passo que na outra o pai é um ex-seminarista, fisicamente frágil, sem qualquer experiência de vida no trato com acusados da prática de crimes etc. Tratando-se, à evidência, de duas situações de coações de natureza moral, plenamente resistíveis, e se nenhum dos pais a elas tiver resistido, mas atendido aos anseios dos seqüestradores, é de todo claro que o ex-policial é mais culpado que o ex-seminarista, pois que dele pode-se exigir mais do que do segundo. Em síntese, os que tiverem realizado o fato típico e ilícito com maior culpa, merecendo maior reprovação, haverão de receber maior resposta penal. Por outro lado, aqueles sob os quais incidirá censura normal, comum, terão menor, menos dura, mais branda, sanção penal. Na causação dos resultados danosos, lesivos dos bens jurídicos, as causas e seus causadores são, distintamente, mais ou menos eficazes e responsáveis, respectivamente. Quem é o maior culpado pela derrota do Corinthians, no último jogo: o goleiro, que não segurou aquela cobrança de falta, o zagueiro, que não impediu o adversário, ainda que faltosamente, naquela arrancada fatal, o árbitro, que não viu aquele impedimento, ou o atacante, que cobrou mal o pênalti? A responsabilidade dos indivíduos pelos fatos da vida é mensurável, graduável, cada qual merecendo, de quem julga seus comportamentos, maior ou menor grau de censura. Isso é culpabilidade. Aplicação da Pena - 7 A culpabilidade é, assim, não apenas fundamento da sanção penal, da pena, mas o principal fator de sua limitação. Vale dizer, sem culpabilidade, ainda que o fato seja típico e ilícito, não se aperfeiçoa o crime, e de conseqüência, não pode haver pena. Nesse sentido, a culpabilidade, tanto quanto a tipicidade e a ilicitude, é fundamento da pena. Em outras palavras, sem nenhuma culpa, em sentido amplo, sem culpabilidade, sem possibilidade de conhecimento da ilicitude, ou sem possibilidade de exigência de outro comportamento, não há a mínima culpabilidade. Logo, não há o crime, nem a pena. A culpabilidade, além de fundamentar a aplicação da pena, é seu elemento limitador. Quanto maior a culpabilidade, maior a pena. Inversamente, pequena culpabilidade, pena menor, mais branda. A tipicidade e a ilicitude constituem pressupostos indispensáveis à imposição da sanção penal, mas é a culpabilidade que, além de condicioná-la, limita-a e a gradua. Esta é a primeira das circunstâncias que o juiz analisa, quando vai fixar a pena- base.É a mais importante delas, e por isso a que deve ser verificada com o maior cuidado. Não basta que considere ser ele culpável – imputável, com possibilidade de conhecer a ilicitude e do qual se pode exigir conduta diferente –, que isso é requisito para a condenação. Deve o juiz analisar e conhecer o grau da consciência da ilicitude, e o grau da exigibilidade de conduta diversa, para, então, concluir se o agente agiu com maior ou menor culpabilidade, merecendo, então, elevada ou pequena reprovação. 17.3.2 Antecedentes Diz o art. 59 que o juiz considerará os antecedentes do agente do fato, como circunstância no momento da fixação da pena-base. Os antecedentes são, em síntese, a história do acusado, seu passado, o que lhe aconteceu, o filme de sua vida, antes do fato de que vai tratar a sentença. Quer a lei que o juiz pergunte quem é o acusado? Será que sua intenção é saber se o condenado é um homem que jamais esteve envolvido em qualquer outra história de fato típico, ou um indivíduo acostumado a envolver-se com violações de normas penais? O fim da norma é que sejam formuladas indagações dessa natureza? Um delinqüente contumaz, experiente, ou um cidadão que, pela vez primeira, se vê diante do julgamento do Poder Judiciário? O crime é mais um em sua vida, ou o primeiro evento dessa natureza? 8 – Direito Penal – Ney Moura Teles O agente, tendo cometido, pela vez primeira, um ilícito culpável, mereceria tratamento diferenciado do que aquele que reiteradas vezes tem sido chamado a responder perante a justiça criminal, e daquele que, inclusive, até cumpriu pena, ou que ainda está a cumpri-la? Os antecedentes que abonam, que enobrecem, seriam de molde a justificar menor reprimenda, ao passo que o mau passado, o rosário de incidentes, acidentes e, até, de crimes, apontaria para a necessidade de buscar maior prevenção? Em face da exigência de que a pena seja suficiente e necessária, para reprovar e prevenir o crime, é de se perguntar: qual a importância de o juiz saber quem está sendo julgado: um homem de passado limpo, ou um velho conhecido da justiça criminal? Existiria alguma relação entre o passado do agente e seu futuro? Seriam verdadeiras as afirmações: quem já delinqüiu tem maior probabilidade de voltar a delinqüir, e quem nunca delinqüiu, provavelmente não cometerá outros crimes? É evidente que tais assertivas não se sustentam em qualquer critério científico. O passado das pessoas não é indicador de seu futuro, nem um rosário de crimes indica, necessariamente, sua continuidade. Por isso, não se pode aceitar que aquele que já cometeu crime, só por isso, deverá merecer maior censura se vier a cometer outro crime. Por outro lado, tendo a Constituição Brasileira adotado o princípio da culpabilidade, e o da presunção da inocência, não se pode aceitar a inclusão, entre as circunstâncias que informam a fixação da pena, dos antecedentes do agente do crime, que são características ou componentes absolutamente estranhos ao fato típico e ilícito. Fixar pena com base no passado do agente é o mesmo que fixá-la com fundamento em sua raça, na religião que professa, na cor de seus olhos ou de sua pele, ou na textura de seus cabelos. É fixá-la com base em elemento completamente dissociado do fato criminoso por ele praticado. Os antecedentes, por isso, num direito penal de cariz democrático – o direito penal do fato –, não podem influir na determinação da qualidade e da quantidade de pena, da reprimenda, da resposta penal. Lamentavelmente, o art. 59 do Código Penal a eles faz expressa referência, mas tal referência colide frontalmente com o princípio da culpabilidade, daí por que os juízes, no momento da fixação da pena, não devem considerá-los enquanto circunstância judicial que prejudique o agente do crime. Parte da doutrina entende que os antecedentes do condenado poderiam, quando muito, servir como condicionante para a concessão de benefícios durante a execução da pena. Por exemplo: ao portador de maus antecedentes não se concederia a Aplicação da Pena - 9 suspensão condicional da pena, nem o livramento condicional, bem assim, até mesmo, a progressão a regime mais brando, mas jamais servir como circunstância que eleve a pena, ou a torne distante do grau mínimo. “Importa perceber que um ordenamento jurídico-penal fundamentado no princípio da culpabilidade do agente, no fato concreto, é incompatível com a majoração da pena com base em fatos anteriores ao que se analisa no processo de referência. O Direito Penal moderno é um direito penal do fato e o agente deve ser punido pelo que efetivamente fez e não pelo que é. A consideração sobre os antecedentes não pode influir de maneira a agravar a pena do agente, transpondo os limites estipulados por sua culpabilidade no caso concreto que se analisa. Sustentar o contrário significa estabelecer dupla punição para o agente de um mesmo fato.”2 Em razão dessas considerações, a inclusão dos antecedentes no art. 59 só pode ser analisada e entendida no sentido positivo, o de que, sendo eles abonadores, tal circunstância é autorizadora de menor reprimenda. Ou seja, bons antecedentes implicam necessariamente sanção penal próxima do grau mínimo. Para os que não aceitam essas ponderações, e consideram certo levar em conta também os antecedentes desabonadores, dúvidas não podem restar de que, ao fixar a pena-base, deverá o juiz observar: a) inquérito policial arquivado ou em andamento, simples folha de antecedentes, informação sobre inquéritos, denúncia apenas oferecida, processos em andamento, ou sentença condenatória recorrível – porquanto não dizem respeito à condenação transitada em julgado, verdade processual definitiva –, não podem ser considerados maus antecedentes; b) condenação por fato posterior ao da condenação, igualmente, não pode ser levada em conta no momento da fixação da pena, pois que a expressão “antecedentes” deve ser entendida como “fato que antecede ao fato da condenação”. 17.3.3 Conduta social Dispõe o art. 59 que o juiz analisará também a conduta do condenado em seu meio social: se ele está ou não adaptado em seu ambiente social, vale dizer, se ele é ou não bem aceito por seus concidadãos, seus semelhantes, seus iguais. 2 GALVÃO, Fernando. Aplicação da pena. Belo Horizonte: Del Rey. 1995. p. 146. 10 – Direito Penal – Ney Moura Teles Se se tratar de alguém harmonicamente integrado na vida de sua comunidade, a reprimenda deve ser minimizada, do contrário, elevada? O juiz deve verificar a integração do condenado no meio social em que ele vive, e não no meio social que o juiz considera adequado. Deve verificar se seu comportamento é compatível com o aceito no ambiente de seu estrato social, por exemplo, na favela, com todas as suas características. Se, em seu meio, o condenado cumpre seus deveres, suas obrigações sociais, respeita os valores ali cultivados, convive harmoniosamente com seus pares, tal circunstância lhe será favorável, militará em seu favor, beneficiando-o com pena-base próxima do mínimo. Se, todavia, o condenado não se ajusta às regras de sua comunidade – é por ela considerado um revoltado –, se a ela se opõe, se não a respeita, se é rejeitado, por suas atitudes, por seus concidadãos, então terá um comportamento social desajustado a seu meio, o que importará em considerar a circunstância desfavorável, tendente a autorizar o afastamento da pena do grau mínimo? Essa é outra circunstância que nada tem a ver com o fato criminoso praticado pelo agente e que diz respeito exclusivamente a seu passado anterior ao crime e à sentença. Tanto quanto os antecedentes,essa circunstância colide com o princípio da culpabilidade, e só pode ser examinada do ponto de vista positivo. Se o condenado tiver conduta social harmônica, ajustada a seu meio, será beneficiado por isso, mas, do contrário, a circunstância não deve ser levada em consideração no momento da fixação da pena, pois que representaria o julgamento do homem pelo que ele é, e não do homem pelo que ele fez. 17.3.4 Personalidade Aqui, outra circunstância que não tem relação direta com o fato praticado, a personalidade, característica interna do homem, é incluída entre as circunstâncias judiciais. Deve o juiz, a teor do art. 59, considerá-la no momento da fixação da pena- base? MIRABETE diz que, “quanto à personalidade, registram-se as qualidades morais, a boa ou má índole, o sentido moral do criminoso, bem como sua agressividade e o antagonismo com a ordem social intrínseco a seu comportamento”3. 3 Manual de direito penal. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1991. v. 1, p. 277. Aplicação da Pena - 11 Para DAMÁSIO E. DE JESUS, é o retrato psíquico do delinqüente, incluindo a periculosidade4. Ora, a personalidade não é um conceito jurídico, mas do âmbito de outras ciências – Psicologia, Psiquiatria, Antropologia –, e deve ser entendida como um complexo de características individuais próprias, adquiridas, que determinam ou influenciam o comportamento do sujeito. Considerá-la no momento da fixação da pena é considerar o homem, enquanto ser, e não o fato por ele praticado. Se, como já se observou, o elemento que fundamenta e limita a pena é a culpabilidade, e se essa é a reprovabilidade do comportamento, de todo óbvio que qualquer conduta é determinada também pela personalidade do homem. Por exemplo: um homem agressivo, que reage ao primeiro impulso, e agride um bem jurídico, tendo plena consciência da proibição, e não se tendo contido, podendo plenamente fazê-lo, será culpado em grau elevado, pelo que realizou e não exatamente por ser dotado de personalidade desequilibrada, violenta. Inegável, entretanto, que, quando o juiz examina a culpabilidade, estará examinando implicitamente a personalidade do agente. Não poderá fazê-lo outra vez, isoladamente, o que seria um verdadeiro bis in idem. O exame da personalidade, de outro lado, não pode ser feito a contento pelo juiz, no âmbito restrito do processo penal, sem o concurso de especialistas – psiquiatras, psicólogos etc. O magistrado não é formado e preparado para o exame aprofundado de características psíquicas do homem, e permitir-lhe exame apenas superficial, para um desiderato tão grave – perda da liberdade –, seria de uma leviandade inaceitável num ordenamento jurídico democrático e sério. Facultar ao juiz a consideração sobre a personalidade do condenado importa em conceder ao julgador um poder quase divino, de invadir toda a alma do indivíduo, para julgá-la e aplicar-lhe pena pelo que ela é, não pelo que ele, homem, fez. Por isso, ao fixar a pena-base, deve o juiz limitar-se – quanto às circunstâncias judiciais do agente – a examinar em profundidade o grau da culpabilidade – conceito jurídico – do condenado, não se detendo em exames superficiais, incompletos, para os quais nem está preparado, dos antecedentes, da conduta social e da personalidade. Essas circunstâncias, vale repetir, desde que positivas, devem ser levadas em conta no sentido de conduzir a fixação de uma menor pena-base, mais próxima do grau mínimo. Se negativas, não poderão fazer a pena-base distanciar-se do mínimo. 4 Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 484. 12 – Direito Penal – Ney Moura Teles A doutrina e a jurisprudência não têm tratado essa questão com o cuidado que ela exige. Talvez a insuficiente compreensão da culpabilidade – enquanto juízo de reprovação, puramente normativo – por grande parte dos operadores do direito penal tenha levado a que, na prática, se limitem os juízes, quando da fixação da pena-base, a analisar, isoladamente, cada uma das circunstâncias pessoais – antecedentes, conduta social e personalidade – referindo-se aos fatores conhecidos, e, em razão deles, fixando a pena-base, deixando de, como deve ser, aprofundar o exame da culpabilidade, para encontrar seu grau. Talvez seja mesmo, mais fácil, para o juiz, ao fixar a pena, verificar dois ou três fatos antecedentes, uma notícia de mau comportamento social, ou lembrar-se da atitude agressiva do acusado no interrogatório, para encontrar o quantum da pena. Até porque analisar o grau da reprovação – e, principalmente, fundamentar a opção – exige maior atividade intelectual, principalmente na formulação das idéias e em sua transposição para o papel. Essas dificuldades, todavia, não podem autorizar a inexistência de qualquer discussão a esse respeito, e tampouco impedir a busca de sua superação. 17.3.5 Motivos Os motivos do crime, sim, devem ser considerados, na fixação da pena, e devem ser compreendidos não como um fator integrado na culpabilidade, e tampouco como o grau de culpa ou intensidade do dolo, de que tratava o antigo art. 42 do Código Penal de 1940. O homem, consciente das leis da natureza, capaz de prever os acontecimentos, e de dirigir sua atividade no rumo de alcançar esse ou aquele resultado, age, sempre, com uma finalidade. O fim da conduta, já se disse, pode ser exatamente alcançar o resultado proibido, que lesa o bem jurídico penalmente protegido. O dolo, já se explicou, é um dos elementos do fato típico, de modo que examiná-lo é verificar a existência da própria tipicidade do fato. A análise do comportamento negligente, igualmente, faz parte da valoração acerca do fato típico. No momento da fixação da pena-base, tais etapas já terão sido superadas, pois o juiz já terá concluído pela existência de um fato típico, ilícito e culpável. Trata-se, aqui, de fixar a pena-base; por isso, o exame dos motivos não se confunde com o exame do dolo ou da culpa, em sentido estrito, e tampouco de outros elementos subjetivos de Aplicação da Pena - 13 alguns tipos, qualificadores ou privilegiadores (“por motivo fútil”, “por motivo de relevante valor moral ou social”), nem dos motivos que se encontram descritos nos arts. 61 e 65 do Código Penal, que tratam das circunstâncias agravantes e atenuantes, pois que serão considerados na segunda etapa da aplicação da pena. Igualmente, não se cuidará dos motivos que implicam causa de diminuição ou de aumento da pena, objeto da terceira fase. Nesse primeiro momento, os motivos que devem ser analisados dizem respeito aos antecedentes causais psicológicos que norteiam o comportamento do sujeito. Os motivos podem qualificar a própria conduta, no sentido positivo ou negativo, vale dizer, no sentido reprovador ou enobrecedor. Às vezes, o motivo não se ajusta perfeitamente a um elemento subjetivo privilegiador, nem a uma circunstância atenuante, mas, ainda assim, constitui-se em uma circunstância que atua em benefício do condenado. Por exemplo: João matou Fausto, porque este, ex-namorado de sua filha, enviou – sem nenhuma intenção de ofender – um convite de seu casamento com a rival para a ex-namorada, magoando-a, todavia, profundamente. Diante da tristeza da filha, o pai não relutou e matou o ex- namorado, antes de seu casamento. A motivação do pai não pode ser considerada fútil, insignificante, diante do sofrimento de sua filha. Não pode, igualmente, ser considerada de relevante valor moral, nem social. Da mesma forma, podemosconcluir que estamos diante de um homicídio simples, pois nem fora cometido sob influência de violenta emoção provocada por ato injusto da vítima, nem por motivo fútil. O motivo do crime – reagir ao sofrimento da própria filha –, se não qualifica, não privilegia, nem justifica a conduta do pai, haverá de ser considerado em seu favor no momento da fixação da pena-base, ainda porque não poderá ser compreendido como atenuante, na segunda etapa. Em outras oportunidades, o motivo que leva alguém a praticar um crime não se ajusta, exatamente, a uma circunstância qualificadora do tipo, nem a uma agravante da pena, e, ainda assim, merece ser considerado em prejuízo do condenado. Um motivo, às vezes, não atinge a qualidade da torpeza a que se refere o inciso I do § 2º do art. 121 do Código Penal, causando repugnância, mas, mesmo assim, merece ser desvalorizado, em menor grau que o da qualificadora. A vingança, por exemplo, entende a jurisprudência, não é, por si só, circunstância que torna torpe a motivação do agente. Em outras palavras, não é qualquer vingança que deve ser considerada torpe. 14 – Direito Penal – Ney Moura Teles Vinganças há que, apesar de não torpes, mas exatamente por serem vinganças, merecerão consideração em prejuízo do condenado, no momento da fixação da pena- base. Em conclusão, a motivação do agente – os antecedentes psicológicos que impulsionam a vontade e que põem em movimento a conduta –, se merecedora de valoração negativa, militará em desfavor do condenado; caso contrário, o beneficiará, e deverá, em qualquer caso, ser considerada pelo juiz. 17.3.6 Circunstâncias do crime As circunstâncias do crime referidas no art. 59 não são as circunstâncias agravantes dos arts. 61 e 62, nem as atenuantes dos arts. 65 e 66, as quais serão examinadas na segunda fase da aplicação da pena, nem aquelas que importam em causas de aumento ou de diminuição, que serão objeto de consideração na terceira etapa, características de certas infrações penais, como “durante o repouso noturno”, “em lugar ermo”, “com o emprego de arma” etc. As circunstâncias de que trata o art. 59 são elementos acidentais outros que não integram os tipos, nem influem na agravação, atenuação, aumento ou diminuição expressamente previstos no Código Penal, mas que, nem por isso, deixam de importar para a busca da pena justa, necessária e suficiente, para reprovar e prevenir o crime. Se Antônio mata João, que sempre lhe devotara profunda amizade e respeito, essa é uma circunstância desfavorável ao condenado que o juiz deverá levar em conta no momento da aplicação da pena. Se, todavia, João, antes, traíra o antigo e fiel amigo, tal circunstância só poderá favorecer o condenado. ALBERTO SILVA FRANCO chama essas circunstâncias de “inominadas”; ensina que elas devem decorrer de uma avaliação discricionária do juiz e sugere que sejam “o lugar do crime, o tempo de sua duração, o relacionamento existente entre autor e vítima, a atitude assumida pelo delinqüente no decorrer da realização do fato criminoso etc.”5 De todo claro que se, no decorrer da execução do crime, o agente mostra profunda indiferença para com o resultado, essa é uma atitude interna que revela uma circunstância desfavorável. De outro lado, se ele, após desencadear o processo causal no rumo do resultado, se arrependeu e tentou evitá-lo, sem conseguir, tal circunstância, 5 Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 602. Aplicação da Pena - 15 por si só, há de ser levada em conta para favorecê-lo no momento da fixação da pena. Enfim, é permitido ao juiz conhecer o fato, em sua integridade, e verificar quais as circunstâncias que, ainda que não definidas em lei, são de molde a beneficiar o condenado. 17.3.7 Conseqüências Efeitos do fato típico, as conseqüências da conduta – nos crimes formais e de mera atividade – e as conseqüências do resultado – nos crimes materiais – devem ser consideradas pelo julgador, quando da fixação da pena-base. O resultado, é óbvio, não é conseqüência do crime, mas da conduta, e, como tal, é parte integrante do crime, e não seu efeito. Dois crimes de homicídio podem ter conseqüências absolutamente distintas, para terceiros e para a própria sociedade. O homicídio que tem como vítima o chefe de uma família de dez integrantes, quase todos menores de idade, que dependem do trabalho daquele, importa em conseqüências muito mais graves e danosas do que o homicídio perpetrado contra um andarilho na rodovia, que não tem ascendentes, nem descendentes. A morte de um cientista que trabalha na descoberta de uma importante vacina contra uma doença incurável, apesar de ser tão ilícita e injusta quanto a morte de qualquer recém-nascido, traz prejuízos indiscutivelmente maiores para a sociedade. As conseqüências de todo e qualquer crime são, por isso, graduáveis, e quando causadoras de grandes prejuízos aos homens ou à sociedade, importarão em reprimenda maior ao condenado. 17.3.8 Comportamento da vítima Essa circunstância não é a que justifica a conduta do agente, pois, se o for, não terá havido o crime, mas apenas um fato típico lícito. A agressão injusta da vítima, repelida com o meio necessário, moderadamente, importa na exclusão do crime, por ser o fato lícito. Já o comportamento provocador da vítima que enseja a instalação de violenta emoção no íntimo do sujeito, de molde a inspirar seu comportamento, constitui circunstância privilegiadora, no homicídio – causa obrigatória de diminuição, a ser examinada na terceira etapa da aplicação da pena –, e atenuante em outros crimes, que 16 – Direito Penal – Ney Moura Teles será examinada na segunda fase. Aqui, cuidamos de outras atitudes das vítimas que, sem justificar, nem desculpar o comportamento do agente, e tampouco diminuir ou atenuar a pena, contribuem, de algum modo, para a ocorrência do fato e, se assim for, funcionará em favor do condenado, quando da fixação da pena. Algumas pessoas, por seu modo de vida, agem, cotidianamente, de modo a colocar-se em situação de receber ataques a alguns de seus bens jurídicos. Certos indivíduos costumam freqüentar bares de muito movimento, e ali se colocam nas mais diferentes situações de colidência com outros freqüentadores, discutindo com eles, posicionando-se de modo diametralmente oposto ao do outro, de tal modo que, invariavelmente, instala-se situação de conflito que acaba, inevitavelmente, em desforço físico. É, por exemplo, o caso do torcedor de certo time de futebol que, derrotado no último jogo, não se conforma e parte para a discussão e a “briga”. Há pessoas que têm enorme facilidade para discutir assuntos absolutamente complexos e apaixonantes, e por isso mesmo extremamente perigosos: religião, futebol, política são temas que, mal discutidos, podem transformar-se em situações de desavenças e conflitos. Pessoas que se colocam sempre nessa posição são consideradas alimentadoras, ou, no mínimo, atraidoras de conflitos. Não que devam ser responsabilizadas pelos acontecimentos, mas que, com seu modo de agir, favorecem, possibilitam certos acontecimentos típicos. É certo que o agente não será desculpado, mas o que tiver realizado comportamento injusto – típico ilícito –, em circunstância na qual se pode verificar o comportamento da vítima como elemento incentivador, favorecedor, haverá de merecer maior compreensão do julgador e, de conseqüência, menor reprovação. A vítima do furto que se apresentava coberta de jóias, em atitude de ostentação, numa rua deserta e durante a noite, com seu comportamentoestá favorecendo a subtração. O mesmo se diga do que deixa seu veículo aberto ou destrancado, em estacionamento de estádio de futebol. A jovem que, em trajes sumários, desfila provocantemente diante de homens desconhecidos, em lugares pouco recomendáveis, está, de certa forma, despertando neles a cobiça e o desejo libidinoso. Se chega a ser agredida em sua liberdade sexual, terá, para o fato, colaborado, ainda que não intencionalmente. O agressor merecerá, em seu favor, a consideração dessa circunstância, no Aplicação da Pena - 17 momento da fixação da pena-base. 17.3.9 Conclusão da análise das circunstâncias judiciais A missão do juiz, ao fixar a pena-base, é das mais difíceis, em toda a atividade jurisdicional. Os juízes das varas cíveis, de família, das fazendas públicas, enfim, das varas distantes da área criminal, não se defrontam com dificuldades tão cruciais quanto os que encaram a necessidade de decidir sobre o futuro de pessoas tão diferentes. São negros e pardos, em sua maioria, são pobres quase todos, invariavelmente marginalizados. E o que é mais grave: quase sempre sem informações precisas, sem muitas provas e com muitas dúvidas. Nem sempre os processos contêm os elementos indispensáveis à análise dessas circunstâncias; por isso, a tarefa do juiz se torna ainda mais difícil. Ao analisar as circunstâncias judiciais, o juiz não pode valer-se de qualquer critério de uso da aritmética, para encontrar o grau médio, o submáximo e o submédio. Tal processo aritmético consistia em achar o grau médio somando-se o mínimo e o máximo, o submáximo, somando o máximo com o médio, e o submédio, adicionando ao médio o mínimo, dividindo-se cada resultado por dois. O quociente encontrado era o grau da pena que se desejava. Verificadas as circunstâncias judiciais do art. 59, o juiz deve proceder a um raciocínio claro, preciso, sob a orientação do princípio diretor da individualização da pena: necessidade e suficiência para prevenir e reprovar o crime, tendo como fundamento e limite a culpabilidade do condenado. Se concluir por ter havido comportamento muito culpável, se entender que do agente se podia, em grau elevado, exigir conduta diversa, e se concluir que ele agiu com plena consciência da ilicitude, ou com grande possibilidade de alcançá-la, a pena-base deverá distanciar-se do grau mínimo. À medida que as outras circunstâncias ali referidas – motivos, circunstâncias, conseqüências, comportamento da vítima – igualmente se revelarem desfavoráveis ao condenado, mais se distanciará a pena-base do grau mínimo. Se o juiz verificar que o condenado laborou com pequeno grau de culpabilidade – se a possibilidade de conhecer a ilicitude fosse pequena, ou se menor fosse a exigência de outra conduta –, então a pena será próxima do grau mínimo. Considerará igualmente as outras circunstâncias que, se favorecerem o agente, importarão em pena- base igual ao grau mínimo. 18 – Direito Penal – Ney Moura Teles Dificilmente haverá colidência entre a culpabilidade e as demais circunstâncias. Na maior parte das vezes, quando for elevada a culpabilidade, uma ou mais das circunstâncias estarão contra o agente. E quando a culpabilidade for pequena, a maior parte das circunstâncias igualmente será benéfica ao agente. Não deve o juiz elaborar duas colunas, de débito e crédito, com as circunstâncias do art. 59, somando-as e encontrando a média. Deve o juiz pensar: se há muita culpabilidade, a pena-base se afastará do grau mínimo, e à medida que outras circunstâncias prejudiquem o condenado, tal afastamento será maior, ou seja, a pena-base vai ser maior. Por exemplo: condenado que age com plena consciência da ilicitude e do qual se podia exigir, com grau elevado, um comportamento conforme o direito agiu com muita culpabilidade. Tudo indica a fixação de pena-base um pouco acima do grau mínimo. Se os motivos do crime forem igualmente reprováveis, será elevado o grau um pouco mais. Se as conseqüências forem ponderáveis, as circunstâncias inominadas não favorecerem, e a vítima não tiver se comportado de modo censurável, então a pena-base se distanciará ainda mais do grau mínimo. Dessa forma não há menor possibilidade de fixação de pena-base próxima do grau máximo. Somente com muita culpabilidade e com todas as circunstâncias do art. 59 militando contra o condenado é que deverá o juiz fixar pena-base bastante próxima do grau médio. Por uma razão muito simples: esta é apenas a primeira fase da aplicação da pena; somente podem ser admitidas penas próximas ou iguais ao grau máximo, após a conclusão das três fases, com a consideração das circunstâncias legais e das causas de aumento e diminuição da pena. Não seria harmônico o sistema legal da individualização da pena se, desde a primeira das três fases, já fosse possível a fixação de uma pena equivalente ao grau máximo. Se tal fosse possível, qual seria a razão de a lei mandar considerar uma segunda e ainda uma terceira etapas, em que outras circunstâncias devessem ser analisadas? Imaginar tal possibilidade seria concluir pela insuficiência da quantidade máxima de pena cominada. Se o limite máximo da cominação não há de ser ultrapassado, e se há um tempo máximo de duração do cumprimento das penas privativas de liberdade, não se pode aceitar a possibilidade de que o grau máximo seja alcançado apenas pela consideração das circunstâncias do art. 59. Se assim fosse possível, não haveria necessidade de realizar as duas etapas seguintes. Qualquer pena-base que se aproxime do grau máximo terá sido encontrada com Aplicação da Pena - 19 total desrespeito às regras do art. 59. Indispensável que o juiz fundamente cada um dos passos dados no rumo da fixação da pena-base. Não basta que diga: “O réu era imputável, tinha consciência da ilicitude e dele se podia exigir conduta diversa. Os motivos do crime foram reprováveis, as conseqüências sérias, a vítima não se comportou de modo a facilitar sua ação; por isso, fixo a pena-base em ‘x’ anos, além do mínimo, mas aquém do máximo.” Tais assertivas não constituem fundamentação. O encontro da pena-base deve ser minuciosamente descrito, com a justificação do quantum encontrado, com base em elementos de prova que tenham sido carreados para os autos do processo. A fundamentação é indispensável para que o condenado saiba a razão por que recebeu aquela pena, em qualidade e quantidade, e possa, se considerá-la injusta, atacá-la por meio de recurso de apelação para a instância superior. Sem fundamentação, a sentença será nula. 17.4 CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES E ATENUANTES 17.4.1 Questões gerais Fixada a pena-base, o juiz deverá passar para a segunda etapa da aplicação da pena, verificando a existência das circunstâncias agravantes e das circunstâncias atenuantes para, em razão delas, proceder a um processo de agravação ou de atenuação, elevando ou decrescendo a quantidade da pena-base. Se houver circunstâncias agravantes, a pena-base será acrescida; se houver atenuantes, reduzida. A lei não estabelece um quantum de agravação ou de atenuação, devendo ele ser estabelecido pelo juiz que, com prudente arbítrio, fundamentando sua decisão, determinará a quantidade da diminuição ou do aumento que fará incidir sobre a pena- base. Questão da mais alta importância é saber: se o juiz tiver fixado a pena-base no grau mínimo, diante de uma circunstância atenuante, poderia fazer incidir uma diminuição, trazendo a pena para um patamar abaixo do grau mínimo? A doutrina e a jurisprudência dominantes são no sentido negativo de que as circunstâncias atenuantes não têm o poder de trazer a pena aquém do grau mínimo. Anote-se a opiniãode ALBERTO SILVA FRANCO: “O entendimento de que o legislador de 84 permitiu ao juiz superar tais 20 – Direito Penal – Ney Moura Teles limites encerra um sério perigo ao direito de liberdade do cidadão, pois, se, de um lado, autoriza que a pena, em virtude de atenuantes, possa ser estabelecida abaixo do mínimo, não exclui, de outro, a possibilidade de que, em razão de agravantes, seja determinada acima do máximo. Nessa situação, o princípio da legalidade da pena sofreria golpe mortal, e a liberdade do cidadão ficaria à mercê dos humores, dos preconceitos, das ideologias e dos ‘segundos códigos’ do magistrado. Além disso, atribui-se às agravantes e às atenuantes, que são circunstâncias acidentais, relevância punitiva maior do que a dos elementos da própria estrutura típica, porque, em relação a estes, o juiz está preso às balizas quantitativas determinadas em cada figura típica. Ademais, estabelece-se linha divisória inaceitável entre as circunstâncias legais, sem limites punitivos, e as causas de aumento e de diminuição, com limites determinados, emprestando-se àquelas uma importância maior do que a estas, o que não parece ser correto, nem ter sido a intenção do legislador. Por fim, a margem de deliberação demasiadamente ampla, deixada ao juiz, perturbaria o processo de individualização da pena que se pretendeu tornar, através do art. 68 do CP, o mais transparente possível e o mais livre de intercorrências subjetivas.”6 Igual é o entendimento de FERNANDO GALVÃO: “Inicialmente, cabe observar a inexistência de critérios legais que orientam o juiz quanto à dimensão da redução de pena decorrente da aplicação de uma atenuante. Enfrentando essa dificuldade, a doutrina e a jurisprudência predominantes posicionam-se no sentido de que uma circunstância atenuante somente poderá modificar a pena-base nos limites estabelecidos pela pena cominada ao tipo de injusto. Certamente, o posicionamento contrário leva à absurda possibilidade de, em face da consideração de determinada atenuante, o juiz diminuir a pena a zero.”7 No mesmo sentido são as lições de DAMÁSIO E. DE JESUS8, JULIO FABBRINI MIRABETE9 e HELENO FRAGOSO10. 6 Op. cit. p. 826. 7 Op. cit. p. 195. 8 Op. cit. p. 501. 9 Op. cit. p. 290. 10 Op. cit. p. 339. Aplicação da Pena - 21 O Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 231: “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal.” Penso diferente: a presença de circunstâncias atenuantes pode fazer com que a pena seja reduzida a quantidade abaixo do grau mínimo, o que deve ocorrer pelo menos em todas as situações em que a pena-base, fixada com atenção às circunstâncias do art. 59 do Código Penal, tiver sido fixada no grau mínimo, e estiver presente pelo menos uma circunstância atenuante, sem o concurso de qualquer agravante. Vale dizer, na segunda etapa, o juiz, tendo fixado a pena-base no grau mínimo, verificando a existência de pelo menos uma circunstância atenuante, deverá incidir, sobre o quantum fixado na primeira etapa, uma diminuição, fazendo com que a pena-base seja reduzida aquém do grau mínimo. Por que tal não poderia ser feito? Por que a lei não permitiria tal operação? Ora, a lei não a proíbe. Não há nenhuma norma afirmando tal impossibilidade, e, se não há vedação expressa, não se pode aceitá-la. FERNANDO GALVÃO afirmou que não há critérios legais que orientem o juiz quanto à determinação do quantum atenuador. Não é verdade. O critério é o geral inserto no art. 59, que deve presidir todas as etapas da aplicação da pena: a necessidade e a suficiência, da quantidade, para a reprovação e prevenção do crime. O juiz atenuará, conforme seja o necessário e suficiente, dentro de seu prudente arbítrio. Só não há um critério expressa e especificamente determinado, como nas causas de diminuição, mas nem por isso se pode afirmar a inexistência de critério. Imaginemos a seguinte situação: num crime de estupro, o juiz fixou a pena-base em nove anos de reclusão, incorretamente, pois muito próxima do grau máximo. Presente uma circunstância atenuante, por exemplo, a da idade do agente (19 anos), o juiz pode aplicá-la, reduzindo a pena de quanto tempo: seis meses, um, dois, ou três anos? Qual a orientação legal para o juiz? Não há, é claro, um quantum máximo ou mínimo de redutor, mas, nem por isso, se pode afirmar inexistir qualquer critério. Este é o da necessidade e suficiência para a prevenção e reprovação do crime. Para os que entendem impossível uma atenuante fazer a pena ficar aquém do mínimo, o critério orientador do quantum da atenuação é o grau mínimo legal contido na norma penal incriminadora, daí que, se o juiz reduzisse aquela pena-base ao mínimo, de seis anos, não teria violado qualquer norma legal. Todavia, é claro que a simples idade do agente não pode fazer uma pena-base ser diminuída em um terço. A falta de critério fixo de determinação do redutor não significa ausência de 22 – Direito Penal – Ney Moura Teles qualquer critério, que será sempre a necessidade e suficiência da pena, para a reprovação e prevenção do crime. Não pode prosperar o argumento de que, se possível a queda da pena-base abaixo do grau mínimo, poderia ocorrer o absurdo de uma pena igual a zero, porque a lei manda a pena ser atenuada, e não ser reduzida a zero. Atenuar significa abrandar, diminuir, e, é de todo muito óbvio, abrandar uma reprimenda jamais vai significar a eliminação da repreensão. As observações do sempre respeitado ALBERTO SILVA FRANCO, do mesmo modo, não podem ser aceitas. A primeira, de que, se aceitarmos a redução da pena abaixo do mínimo, pela presença de atenuante, deveremos, necessariamente, aceitar seu aumento além do máximo, diante de agravante, não faz sentido. Primeiramente, de ver que, como pensamos, nenhuma pena-base pode ser fixada acima do grau médio, sob pena de violação do art. 59. Assim, com pena-base próxima do grau médio, muito provavelmente jamais haveria tantas agravantes capazes de fazer a pena chegar próxima do grau máximo. Se, todavia, tal ocorresse, não haveria qualquer violação ao princípio da legalidade, até porque as normas dos arts. 61 e 62 são igualmente legais. Quanto ao perigo de ficar o condenado à mercê dos humores e preconceitos do magistrado, este não ocorre apenas na segunda etapa, mas em todo o processo, passível, é óbvio, de correção pela instância superior. Não importa qual tenha sido a vontade do legislador, importa a da lei, e a norma do art. 65 é precisa: “São circunstâncias que sempre atenuam a pena.” O advérbio sempre é induvidoso. Presente uma atenuante, ela sempre atenuará a pena. Sempre, em qualquer situação, em qualquer hipótese, mesmo que a pena-base tenha sido fixada em quantidade igual ao grau mínimo, a presença de uma circunstância descrita no art. 65 importará no abrandamento do grau da pena, em seu decréscimo, mesmo que seja necessário fazê-la transitar para uma quantidade abaixo da quantidade mínima. Essa é a vontade da norma do art. 65, e não há nenhuma norma que desautorize essa interpretação. Imaginemos a seguinte situação: dois partícipes de um mesmo crime, um de 19 anos, outro de 22 anos de idade, irmãos, condenados, recebem do juiz a mesma pena- base, igual ao mínimo legal, porquanto teriam agido com reduzidíssima culpabilidade, e todas as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal militavam em seu favor. Se o juiz não puder reduzir a pena do primeiro, pela idade, apenas para não reduzi-la abaixo do mínimo, estará cometendo profunda injustiça com ele, e desobedecendo ao comandodo art. 65, I, que manda o juiz sempre atenuar a pena do que tiver menos de Aplicação da Pena - 23 21 anos na data do fato. Não terá havido individualização da pena, para o primeiro. MIGUEL LOEBMANN ensina: “O advérbio ‘sempre’ não deixa nenhuma margem de dúvida quanto ao seu significado” e “a não-redução abaixo do mínimo legal, em presença de atenuantes nos coloca à frente de um verdadeiro absurdo jurídico: a redução da pena na presença de atenuantes só se aplica aos réus que, pelas circunstâncias judiciais, tenham a sua pena-base fixada acima do mínimo legal, isto é, em face de sua culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos etc., apresentem maior reprovabilidade.”11 A observação é da mais alta importância. Um condenado merecedor de maior pena-base, por ter agido com maior culpabilidade, vai ser beneficiado com a redução da pena, pela presença de uma atenuante, ao passo que outro condenado que, por ter agido com menor culpabilidade, e, por isso, recebeu pena-base igual ao mínimo, não merecerá qualquer benefício, qualquer vantagem por ter agido sob o pálio de uma circunstância atenuante, por exemplo, por ter “procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências”. Essa atitude concreta desse condenado em nada o beneficiará, exatamente porque ele recebeu pena-base igual ao mínimo. Esse é, sim, um verdadeiro absurdo jurídico. Por essas razões, correto é o entendimento segundo o qual as circunstâncias atenuantes autorizam a redução da pena-base aquém do grau mínimo, desde, é evidente, que estejam presentes e, fundamentadamente, o juiz demonstre que, assim decidindo, o faz para encontrar a pena necessária e suficiente para reprovar e prevenir o crime. Examine-se agora cada uma das circunstâncias agravantes e, depois, as atenuantes. 17.4.2 Agravantes As circunstâncias agravantes estão definidas nos arts. 61 e 62 do Código Penal. O art. 61 esclarece que tais circunstâncias sempre agravarão a pena, quando não constituírem ou qualificarem o crime. É dizer, só serão consideradas, nesta segunda 11 As circunstâncias atenuantes podem sim fazer descer a pena abaixo do mínimo legal, RT, nº 676, p. 391, 1992. 24 – Direito Penal – Ney Moura Teles fase, circunstâncias que não integram os tipos legais de crime, como um de seus elementos, nem as que constituem uma de suas formas qualificadas ou agravadas. Igualmente, não se trata, nesta segunda etapa, de qualquer das circunstâncias já examinadas na primeira, da fixação da pena-base, quando se examinam as chamadas circunstâncias judiciais, nem daquelas constantes das causas de aumento que serão objeto de análise na terceira etapa da aplicação da pena. A seguir, as circunstâncias legais agravantes. 17.4.2.1 Reincidência Esta é outra circunstância – tal qual os antecedentes, conduta social e personalidade – cuja inclusão como informadora da quantificação da pena merece profundas críticas, porquanto absolutamente estranha ao fato criminoso. Nem é certo referir-se a ela como “circunstância do crime”, porque se trata de uma particularidade que diz respeito exclusivamente ao agente e nenhuma relação tem com o fato. A razão de sua consideração pela lei, diz a doutrina tradicional, estaria em que o indivíduo, tendo sido condenado por um crime e posteriormente cometido outro, mereceria maior censura por não ter correspondido às exigências do direito. Raciocínio absolutamente inaceitável, como, igualmente incoerente aquele oposto, segundo o qual a reincidência deveria ser levada em favor do condenado que, por não ter-se redimido, revelaria, com isso, possuir menor capacidade de correção e, por isso, menor culpabilidade. Nem uma coisa, nem outra. A reincidência, por si só, não implica necessariamente inadaptação ao meio social, e tampouco falta de capacidade de adaptação que signifique menor capacidade de culpa, em sentido amplo. Além disso, diante do princípio da culpabilidade, e tratando-se o nosso de um direito penal do fato, não se pode aceitar que a reincidência conduza à necessidade de maior agravação da pena. Conquanto seja uma circunstância exclusivamente ligada ao indivíduo, a seu passado, e, assim, absolutamente independente do fato criminoso, não deve sequer ser considerada no momento da fixação da pena. LUIZ VICENTE CERNICCHIARO não chega a esse extremo que defendemos, pugnando, todavia, por uma interpretação diferente da esposada pela doutrina dominante. Para o grande penalista, “só há uma forma de conciliar, no particular, à Constituição: conjugar os crimes. Aplicação da Pena - 25 A reincidência somente poderá agravar a pena se entre os delitos houver conexão que recomende recrudescer a sanctio juris. (...) A reincidência, assim, não é imperativo de aumento, baseada em dados meramente objetivos. Afetaria até o princípio da individualização da pena. (...) A reincidência, assim, há de ser analisada pelo juiz; decidirá ser ou não, no caso em julgamento, causa de majoração da pena”.12 ALBERTO SILVA FRANCO considera duvidosa a constitucionalidade da agravante da reincidência, dizendo que “não se compreende como uma pessoa possa, por mais vezes, ser punida pela mesma infração. O fato criminoso que deu origem à primeira condenação não pode, depois, servir de fundamento a uma agravação obrigatória da pena, em relação a um outro fato delitivo, a não ser que se admita, num Estado Democrático de Direito, um Direito Penal atado ao tipo de autor (ser reincidente), o que constitui uma verdadeira e manifesta contradição lógica”.13 O Código, infelizmente, inclui a reincidência entre as circunstâncias que, por si sós, importam em majoração da pena-base, posição adotada e aceita pela doutrina e jurisprudência predominantes. O conceito de reincidência encontra-se no art. 63 do Código Penal: “Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.” Só é reincidente o agente que, antes da prática do crime, já estivesse condenado definitivamente – com sentença transitada em julgado – por outro crime. A norma fala em condenação definitiva anterior por fato definido como crime, pelo que não se pode falar em reincidência se a condenação anterior tiver sido por contravenção penal. Não há critério legal para a fixação do quantum do aumento da pena-base em razão da reincidência, como, de resto, não o há para qualquer agravante ou atenuante, ficando ao prudente arbítrio do juiz. É nesse ponto que a agravação da pena, pela reincidência, gera as mais profundas injustiças. Imagine-se a seguinte situação: João foi condenado definitivamente, pelo crime do art. 348 do Código Penal – favorecimento pessoal – a uma pena de l (um) mês de detenção. Tempos depois, 12 Reincidência. Correio Braziliense, 13 maio 1996. Caderno Direito & Justiça. 13 Op. cit. p. 781. 26 – Direito Penal – Ney Moura Teles comete um homicídio simples, e, após fixar a pena-base em seis anos de reclusão, o juiz, verificando a reincidência, deve, segundo manda o art. 61, I, combinado com o art. 63, agravá-la. De quanto o fará? De seis meses ou de apenas um mês? Na primeira hipótese, a agravante significará tempo de pena maior do que a pena pelo crime anterior, e na segunda, tempo igual ao da condenação anterior, o que, em qualquer dos casos, constitui verdadeiro absurdo. Conforme determina o art. 64, I, do Código Penal, não se considerará oindivíduo reincidente se entre a data do cumprimento ou extinção da pena pelo crime anterior e a data do crime posterior tiver decorrido tempo superior a cinco anos. Nesse lapso temporal, será computado o tempo do período de prova de suspensão condicional da pena ou do livramento condicional, desde que não tenha havido revogação. Para efeito de reincidência, não se considerarão os crimes militares próprios e os crimes políticos (art. 64, II, CP). A reincidência, como posta no direito penal positivo, tem outros reflexos na situação do condenado: a) influi na determinação do regime de cumprimento da pena (art. 33, § 2º, b e c); b) impede a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos ou pela de multa (arts. 44, II, e 60, § 2º); c) proíbe a concessão da suspensão condicional da pena (sursis), se em crime doloso (art. 77, I); d) aumenta o prazo de cumprimento de pena como requisito para obtenção do livramento condicional (art. 83, II e V); e) é causa de revogação da reabilitação (art. 95); f) interrompe a prescrição (art. 117, VI); g) impede a incidência de causas de diminuição da pena (arts. 155, § 2º, 170 e 171, § 1º); h) aumenta o prazo prescricional da pretensão executória (art. 110). 17.4.2.2 Motivo fútil ou torpe Fútil é o motivo ínfimo, mesquinho, vazio, leviano, insignificante, frívolo, extremamente desproporcionado, de somenos importância, revelador da intensa insensibilidade do agente para com o bem jurídico atacado. Tendo realizado o crime Aplicação da Pena - 27 movido por uma motivação banal, além de ter agido com muita culpabilidade, merecerá, em razão dessa atitude interna para com o bem alheio, uma reprimenda agravada. É verdade, a futilidade do motivo importa na necessidade de maior reprovação do condenado, pois reflete um comportamento ditado por um elemento psíquico censurável em grau elevado. Duas questões particularmente interessantes, quanto à futilidade: (a) ciúme é um motivo fútil? (b) a embriaguez é compatível com a futilidade? Inclinaram-se, desde muito, a doutrina e a jurisprudência predominantes de nossos tribunais por entenderem que o sentimento de ciúmes não é fútil, porquanto um dos que perturbam de modo mais intenso o espírito do homem, levando-o a desatinos e a atitudes incontroláveis. É certo que é injusto, mas, pensamos, nem por isso frívolo ou insignificante. Há até quem veja no ciúme um motivo de relevante valor moral, posto que exteriorização do sentimento de amor, ou de bem-querer. Modernamente, entretanto, surgem decisões no sentido de que os ciúmes não decorrem do amor, mas de um atrasado sentimento de propriedade ou de posse sobre o outro – mulher ou homem, companheiro ou companheira, amante, cônjuge. Cremos que em nenhuma hipótese se pode considerar privilegiado, ou atenuado, o crime cometido exclusivamente por ciúmes, que é, verdadeiramente, um sentimento que não há de ser cultivado, pois, efetivamente, reflete aquela idéia atrasada e retrógrada de dominação, de propriedade ou de posse sobre pessoa. Mas, nem por isso, se pode afirmá-lo fútil, frívolo, mesquinho. Se não é um motivo nobre, que deve ser levado em favor do agente, nem por isso há de ser considerado insignificante, pois que, apesar de criticável, não perde sua qualidade, sua determinação psíquica que, mesmo inaceitável nos tempos modernos, é fruto de longos e longos anos de concepção utilitarista do relacionamento entre homem e mulher. Dividem-se os estudiosos do direito e a jurisprudência entre os que entendem compatível o estado de embriaguez do agente e a futilidade do motivo, e os que demonstram sua absoluta incompatibilidade. Não se pode, optar, a priori, por uma ou por outra posição. Tanto será possível agente embriagado cometer crime por motivo fútil, quanto, em razão da embriaguez, não poder, em face da perturbação mental, formular juízo de proporção entre o motivo e a conduta. É preciso, em cada caso, verificar o grau da embriaguez e as outras razões que levaram o agente ao cometimento do fato, para se concluir se era possível a convivência entre o estado de embriaguez e a motivação, fútil ou não. 28 – Direito Penal – Ney Moura Teles Não se podem igualmente considerar fúteis as agressões decorrentes de conflitos em razão de valores monetários, dinheiro, bens, propriedade, e tampouco aqueles relativos a sentimentos de paixão, especialmente decorrentes de separações judiciais. Já torpe é o motivo repugnante, imoral, abjeto, desprezível, vil, e que ofende a nobreza do espírito do homem e a moralidade das pessoas. O Código Penal, ao definir o primeiro dos homicídios qualificados, equipara o motivo torpe à paga ou promessa de recompensa. Com efeito, cometer um homicídio determinado por um pagamento, ou pela oferta de qualquer promessa, é de uma torpeza inominável, ensejando profunda e incontida revolta no espírito da maioria dos homens. Esse homicida revela profundo desprezo pela vida humana, privilegiando valores monetários ou econômicos. Muita discussão existe sobre a possibilidade de um crime ser cometido a um só tempo por motivo torpe e, ao mesmo tempo, fútil. De modo geral, a maior parte dos motivos fúteis, insignificantes, não se apresenta simultaneamente com um caráter de torpeza, mas nada impede a compatibilidade, bastando lembrar a hipótese de alguém cometer um homicídio, mediante paga, e portanto torpe, encomendado por um motivo fútil. Vingança não é sinônimo de torpeza, até porque pode haver crime cometido por vingança, e, ao mesmo tempo, por um motivo razoável, e, até mesmo, de relevante valor moral ou social. Basta lembrar a hipótese do homicídio cometido contra o estuprador, encomendado pelo pai da vítima de violência sexual. Tanto o motivo fútil, quanto o motivo torpe são circunstâncias qualificadoras do homicídio, daí que, se reconhecidas ao nível do tipo, não serão consideradas na aplicação da pena, pois o contrário seria bis in idem intolerável. 17.4.2.3 Finalidade de facilitar ou assegurar outro crime Também é agravante da pena a finalidade de facilitar ou assegurar a execução, a ocultação, a impunidade, ou a vantagem de outro crime. Para Aníbal Bruno, essa é uma modalidade de torpeza, pois estaríamos diante de um agente que, após cometer um crime, ou prestes a cometê-lo, não reluta em cometer outro, para melhor possibilitar a vantagem, a impunidade, a ocultação e, até mesmo, a conclusão do outro crime. Não é necessário que o outro crime seja executado pelo agente do crime-meio, bastando a conexão teleológica de um crime, vale dizer, o elemento subjetivo finalístico Aplicação da Pena - 29 consistente na obtenção de facilidade para a execução do outro crime. Por exemplo, João furta um veículo, a fim de com ele executar um assalto a mão-armada, um roubo num banco. O primeiro crime, furto, é cometido com o fim de facilitar a execução de um roubo. Supondo que o roubo seja apenas tentado, ou, executado, dele o agente do crime-meio não venha a obter qualquer vantagem, ou, ainda, venha a ser realizado por outro agente, mesmo assim a pena do crime de furto, provando-se a conexão teleológica, deverá ser agravada na forma do art. 61, II, b, do Código Penal. Se o crime-fim se consuma, ou se é apenas tentado, somente será agravada a pena do crime-meio. No homicídio, esta circunstância é qualificadora e não agravante. 17.4.2.4 Recursos que dificultam ou impossibilitam a defesa do ofendido Todos os crimes cometidos à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação, ou com a utilização de qualquer outro recurso que torne mais difícil ou, até mesmo, impossibilite qualquer defesa doofendido, merecerão maior reprimenda penal. Em qualquer dessas hipóteses, o comportamento do agente é merecedor de resposta penal mais severa em face do uso de meio que diminua ou elimine a capacidade de vigilância e, de conseqüência, de reação da vítima, colocando-a em situação inferiorizada, o que facilita enormemente a execução material do crime. É o que ocorre na traição e na emboscada, quando o agente, súbita ou sorrateiramente, coloca-se em posição de extrema vantagem. O mesmo ocorre quando o fato é cometido de “surpresa”, quando a vítima jamais esperava fosse o agente atingi-la. Inegável que tal conduta é fator de agravação da pena-base. Tanto quanto as agravantes anteriores, esta é qualificadora do homicídio, e só será considerada como tal uma única vez. 17.4.2.5 Meios insidiosos ou cruéis, ou dos quais resulta perigo comum Do mesmo modo, a utilização de meios insidiosos ou cruéis, como veneno, fogo, explosivo ou tortura, ou dos quais possa resultar perigo comum, importa na agravação da pena. 30 – Direito Penal – Ney Moura Teles Meio cruel é o que impõe ao ofendido sofrimento maior do que o necessário para a execução do crime, é o sofrimento desnecessário. Insídia é a perfídia, o uso de estratagema, para ludibriar a vítima que não se apercebe do mal que vai lhe ocorrer, ou já está acontecendo, e, por isso, não esboça qualquer reação defensiva. O veneno pode ser, a um só tempo, insidioso, no primeiro momento à medida que dele e dos efeitos de sua ingestão não se apercebe a vítima, nada realizando no sentido de evitar-lhe as conseqüências, e cruel, no momento posterior, em que se instala profundo sofrimento físico e moral no ofendido que, ao descobrir-lhe a ingestão e antevendo as conseqüências, nada mais pode realizar, a não ser abreviar o sofrimento, pelo suicídio. A crueldade não está na reiteração, nem na quantidade de golpes, ferimentos, mas no excesso de sofrimento imposto à vitima. Também essa circunstância, no homicídio, é qualificadora do crime, e não agravante da pena. 17.4.2.6 Ascendente, descendente, irmão ou cônjuge A qualidade do sujeito passivo é motivo de maior resposta penal. Trata-se de circunstância objetiva, reveladora de atitude extremamente insensível do agente, para com a preservação do respeito entre as relações com as pessoas mais íntimas, inclusive as que com ele guardam laços sangüíneos. Praticar o crime contra o próprio pai, ou contra a mãe, ou o filho, o irmão, ou o cônjuge é voltar-se contra as pessoas mais importantes na vida do agente, as mais benquistas, queridas, amigas, exatamente aquelas que, em tese, só deveriam receber gestos de amor, de paz, de solidariedade. Essa agravante não diz respeito ao fato em si, mas à qualidade do sujeito passivo, que, como tal, integra a relação jurídica que é o crime. Se é justa a agravação, em face da maior censurabilidade do comportamento praticado contra pessoas íntimas, estimadas, não se pode aplicá-la se o crime é cometido contra o cônjuge do qual o outro já se encontrava separado, ainda que tão- somente de fato, porquanto entre eles já não existiam relações cuja agressão autoriza a majoração da reprimenda. Por essa mesma razão, não se irá exigir, para a incidência da agravante, a existência de casamento civil, bastando que haja união livre entre os sujeitos do crime, concubinato, companheirismo, vida em comum, qualquer que seja o nome dado. Se a Carta Magna, no § 3º do art. 226, reconhece, para efeito de proteção estatal, como Aplicação da Pena - 31 entidade familiar, a união estável entre homem e mulher, não há por que se recusar a incidência dessa agravante, pela simples razão da inexistência de casamento civil. 17.4.2.7 Abuso de autoridade, de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade ou com violência contra a mulher Em algumas relações de natureza privada, existe um poder de autoridade, como nos casos de tutela e curatela, bem como em organizações religiosas e civis, em que há hierarquia semelhante à que ocorre no âmbito do direito público. O abuso de autoridade referido na alínea f do inciso II do art. 61 é o exercício arbitrário, indevido, ilegítimo, desse poder de autoridade, por meio da força moral que decorre da posição do agente nessas relações privadas. Nas de natureza pública, tem incidência a alínea g do mesmo inciso II, objeto de nosso comentário da seção seguinte. Aqui, alcança-se o tutor, o curador, o dirigente religioso, o cardeal, o bispo, o pastor, o diretor do clube, em relação ao tutelado, ao curatelado, ao subordinado hierárquico na igreja e ao associado. Tais pessoas, pelo poder que desfrutam perante outras, se contra essas cometem esse ou aquele delito, devem merecer maior reprimenda, exatamente porque abusam do poder que detêm, aproveitando-se dele para cometer o crime. A maior resposta penal decorre da maior exigibilidade de conduta diversa que se faz a quem detém poder diante da vítima. O poder legítimo há de ser exercido de modo a não ser transformado em opressão, agressão, dominação, exploração. Entre os homens, exigem-se solidariedade, colaboração, amistosidade, e não agressão. A agravante aplica-se também nos casos em que o agente se prevalece de relações domésticas, da coabitação, bem como de hospitalidade. Relações domésticas são aquelas existentes no meio familiar, entre pais e filhos, irmãos, empregados domésticos e amigos que convivam no ambiente da família. A intimidade entre as pessoas conduz a maior confiança mútua, que produz comunhão de interesses no meio familiar, de modo que a prática de crime entre elas merece reprovação maior, também porque de cada um mais se exigirá comportamento conforme o direito. O mesmo ocorre na coabitação, que “significa a convivência em um mesmo espaço físico e pressupõe uma relação mais restrita e próxima do que as relações domésticas. Na verdade, nem todas as pessoas que freqüentam uma mesma casa residem ali. A coabitação é, assim, um estado de fato em que duas ou mais pessoas se acham reunidas para a vida em 32 – Direito Penal – Ney Moura Teles comum, no mesmo lugar, por qualquer tempo”14. Hospitalidade difere da coabitação pela temporariedade. É o que ocorre quando alguém recebe uma pessoa para um almoço, um jantar, um final de semana, um churrasco, um pernoite, férias etc. Existe a confiança, exigindo-se de ambos – convidado e anfitrião – comportamentos amistosos, nunca violações de normas penais. Por isso, impõe-se a agravação da pena para aquele que se prevalecer dessas relações para cometer um crime. A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, alterou a redação da alínea f do inciso II do art. 61 do Código Penal, para acrescentar a expressão “ou com violência contra a mulher, na forma da lei específica.” O acréscimo nada acrescentou ao preceito, uma vez que a referência à mulher já se encontrava alcançada pelo texto original. 17.4.2.8 Abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofício, ministério ou profissão O que se disse anteriormente ao abuso de poder nas relações privadas reitera-se aqui relativamente aos que exercem cargo público, ofício, ministério ou profissão. A primeira hipótese é daquele que comete o crime com abuso de poder inerente ao exercício de cargo público. Não se cuida dos crimes de funcionários públicos, já que essa é uma circunstância elementar aos crimes próprios, dos arts. 312 a 326 do Código Penal. Nesses casos, a agravante não incide, pois que, sendo a condição de funcionário público um elemento daqueles tipos, seria um inadmissível bis in idem. A agravação impõe-se quando o funcionário público prevalecer-se
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