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ARTIGO O GUARDADOR DE MEMÓRIAS

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A Tradição e a Não tradição em O Guardador de Memórias de Isabel Ferreira
Gilson Ventura*
Resumo
Pretende o presente trabalho discorrer sobre a força da tradição no romance O Guardador de memórias, da escritora angolana Isabel Ferreira. Tal estudo dar-se-á buscando analisar a encenação da condição de subalternidade feminina e o poder patriarcalista na obra. Sob a égide de tal premissa, estabelece-se que o objeto de estudo examinado seja a literatura africana, dada a importância da riqueza cultural de tal literatura.
Palavras chave: Tradição, África, cultura, mulher, narrativa.
Abstract
	Want this paper discuss the power of tradition in the novel The memories of Keeper of the Angolan writer Isabel Ferreira. This study will give seeking to analyze the staging of the condition of female submission and patriarchal power at work. Under the aegis of this premise then, it is hereby established that the examined object of study is the African literature.
Keywords: tradition, African, culture, women, narrative.
______________________________________
*Mestrando em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC-MG. Bolsista da CAPES. Este estudo foi desenvolvido como parte das atividades da disciplina Literaturas de língua portuguesa: Interseções, ministrada pela Professora Terezinha Taborda Moreira.
Introdução 
	A reflexão pretendida neste trabalho dar-se á a partir do estudo comparativo entre duas vozes que permeiam o romance O Guardador de Memórias (2008) da escritora angolana Isabel Ferreira. A primeira voz, a da viúva Kiluva, resistente aos ditames tradicionais angolanos que subjugam as mulheres a uma condição de extrema anulação de si mesmas em função da manutenção de uma tradição. Tradição essa que não mais se sustenta em um mundo com tendências ao constante progresso moral e intelectual. A segunda voz, representada pela cunhada “bem casada” de Kiluva, Mavinda Massogi, vivendo um casamento que se apresenta em seu discurso, muito bem resolvido e consistente, o que não a impede, entretanto de se envolver em ideologias feministas que a fazem lutar muito mais pela ruptura com tal tradição do que com a ideia de perpetuá-la. 
	
A tradição e a dominação masculina
	Decerto seria ingenuidade iniciar tal reflexão sem antes fazer uma menção do que afirma Pierre Bordieu em sua obra A dominação masculina (2014), sobre a questão da fascinante força inerente à tradição e sua tenaz atuação sobre o indivíduo. Bordieu afirma que “Há uma fronteira mágica entre os dominantes e dominados, que a magia do poder simbólico desencadeia, e para as quais os dominados contribuem muitas vezes à sua revelia” (BORDIEU 2014, p. 61). Nessa perspectiva o presente artigo deambulará então entre duas vozes latentes e agônicas presentes na obra de Isabel Ferreira, representantes de duas distintas posições quanto à tradição: uma que se insurge radicalmente contra tais tradições, representada por Kiluva, e outra que se esforça por se manter dentro dos moldes tradicionais impostos pela sociedade angolana, representada pela cunhada, Mavinda Massogi. Essas duas personagens florescerão como alegorias dessas duas forças imperantes na sociedade luandense, a força da tradição ou da modernidade. Para tal abordagem vale evocar aqui Jaime Ginzburg e seu trabalho Linguagem e trauma na escrita do testemunho (2011), quando afirma que “Indígenas, mulheres operárias, camponeses, donas de casa, homossexuais, exilados e
outros por meio do testemunho, convertem o livro, instrumento de cultura em arma de libertação e defesa de direitos” (GARCIA apud GINZBURG, 2011, p. 5). A narrativa testemunhal que dá voz à intrigante personagem Kiluva e suas proposições, servirão como mola propulsora à libertação de muitas mulheres amarradas em crenças tacanhas impostas à classe feminina de sua nação e seu tempo, a exemplo da personagem Mavinda Massogi, que vai paulatinamente recebendo forte influência do discurso da outra ao longo da narrativa. 
	A origem de Kiluva e seu drama não destoam da imensa maioria das origens e dramas das moças de sua idade em Luanda. Ela, assim como tantas, é mais uma das vítimas de muitos casos de casamentos recorrentes em Angola, em que, para o cumprimento de uma tradição patriarcalista e capitalista, os tios eram os responsáveis por negociarem seus alambamentos1, e as mesmas se viam a partir de então, obrigadas a se subordinarem a uma sina que lhes tolhia qualquer chance de sonhar com um futuro que lhes proporcionasse qualquer prazer de viver. Kiluva, enquadrada então dentro desse sistema tradicional opressor, vai se casar seguindo o mesmo curso de milhares de moças de sua época contribuindo assim, como apenas mais um número na estatística. A jovem se mantém nesta condição, até ocorrer em sua vida uma grande reversão em decorrência da morte do marido, quando ela optará por um estilo de vida que, doravante, a colocará como representante, no romance, da negação da tradição. Seu relato, no decorrer do diálogo com a cunhada, vai revelar inclusive, o valor atribuído pela família ao seu alambamento. Ou seja, o valor atribuído à sua vida: 
Quando foi do alambamento, nem imaginas como foi... Sabias que os meus tios e tias exigiram a entrega de um dote? O pagamento do meu alambamento foi feito aos meus tios, conforme a tradição. Que ódio! [...] A minha família pediu três machados, duas charruas, cinco bois e três vacas... Pediu também panos, chapéus para o meu avô, cachimbos e uma sanga para pôr água. . (FERREIRA, 2004, p. 188)
	A morte do marido vai ser então seu grande trunfo para a conquista de sua liberdade. Rezava a tradição que por ocasião da morte do marido, ficava a 
1O alambamento é uma cerimônia tradicional na cultura angolana e necessário quando os jovens se amam e pretendem viver juntos.
viúva à disposição do irmão do falecido para ser-lhe entregue. À vista disso, 
Kiluva dá para si mesma seu verdadeiro grito de independência se negando a sujeitar-se a tal prática tradicional.
E agora a família do defunto vem com truques. Que tenho de ir para a terra dele, tratar-me. A família impõe. Dizem que é tradição! Continuam com a ideia de que eu tenho de viver com o irmão dele. O meu cunhado! Nem pensar! Isso é que eles queriam... [...] Se quiserem, que paguem a tradição com a família deles! Eu não sou propriedade deles nem do defunto. Que ódio! Não suporto esses costumes. (FERREIRA, 2008, p.194)
	A própria cena da aparição de Kiluva no romance, antes mesmo que comece seu extasiante testemunho verbal, já é impactante e transgressor. Na perspectiva de expressão ou imposição corporal do indivíduo em seu modo de estar no mundo, de se apresentar como sujeito parte de uma existência, Bordieu destaca, na sociedade Cabília, a forma de expressar-se do homem e da mulher e o papel subjugado dessa. Ele explica que é na 
divisão sexual dos usos legítimos do corpo que se estabelece o vínculo (enunciado pela psicanálise) entre o falo e o logos: os usos públicos e ativos da parte alta masculina do corpo são monopólio dos homens; a mulher, que na Cabília, mantém-se afastada dos lugares públicos, deve de algum modo renunciar a fazer uso público do próprio rosto e de sua palavra; Ela anda em público com os olhos baixos, voltados para os pés, e a única expressão que lhe convém é “eu não sei”, logo, antítese da palavra viril, que é a afirmação decisiva, cortante, e ao mesmo tempo que refletida e calculada. (BORDIAU, 2014, p. 33, grifos do autor)
	
	
	Embora Bordieu nessa altura se refira à sociedade Cabília, a realidade luandinense de Kiluva e milhares de mulheres presentes ali, não desalinha dessa realidade exposta por Bordieu. Até que, por um despertar, um encanto mágico, Kiluva resolve tendo como ponto ignitor, a morte do marido, dar um basta naquele sistema prisional utilizando-se de sua força interior para se libertar daquilo que Bornheim vai chamar de “Peias da tradição”. (BORNHEIM, 1987, p. 18)
	
A impactante aparição da viúva Kiluva 
	O surgimento de Kiluva no romancevai então confrontar com essa situação que tanto em Cabília como em Luanda coloca a mulher aquém da capacidade e do direito de narrar sua própria história, sendo privada de ter chance de expressar uma opinião sequer. Ao desfilar então pelas ruas de Coqueirense, seus mais tênues movimentos vão bradar contra essa (i) moralidade imposta pelo patriarcalismo, deixando os demais estupefatos com tal coragem e determinação. Seu andar libidinoso e sensual é um convite à discussão, ao debate em que deveriam participar todas as mulheres que, se negam, ao menos, a levantar os olhos em direção à possibilidade de existir:
É sábado. O dia está quente e o sol apela ao convívio a céu aberto. Kiluva prepara-se para cruzar as ruas do bairro Coqueirense. [...] Caminha solta, gingando de um modo curvilíneo o corpo. Ondeia as ancas ora para o lado esquerdo, ora para o direito. A vizinhança carrega-lhe um olhar contemplativo e de espanto. (FERREIRA, 2004, p. 183)
	Sua narrativa testemunhal promove um gradativo choque cultural entre a cultura tradicional e a modernidade angolana. E é nesse embate que Kiluva vai se reafirmar identitariamente ao assumir sua alteridade em relação ao comportamento das viúvas de sua terra mesmo em face da contra voz da cunhada que serve o tempo todo, como a “tesoura do sistema” em cada palavra da outra, até ser também paulatinamente tocada pelo metamorfoseante antídoto Kiluviano. 
 O narrador onisciente nos dá uma espécie de raio-X da mente de Kiluva ao nos explicitar o que pensa ela no caminho para a casa de Mavinda, onde como uma espécie de diálogo do banquete de Platão (PLATÃO, 1972. P. 46), haverá o debate desencadeador da reflexão tradição versus não tradição ao longo do romance. Já em seu primeiro pensamento é possível perceber o tom antetradicionalista:
O meu corpo não obedece às tradições. O meu corpo não obedece ao luto. O meu corpo enquanto matéria viva sente e quer prazer. Nunca ouvi alguém dizer ao corpo: Corpo não sente vontade. Estás de luto. O luto! Luto! Luto... O defunto não corta tesão, nem dinamismo nas pernas, nem vontade de passear, nem desejo de amor... A carne está quente, está viva. Eu também preciso de tarraxar, pensou. Eu quero é tchilar no amor. O amanhã não me pertence! Quem serei eu amanhã? (FERREIRA, 2008, p. 184)
 
 Em casa de Mavinda, na medida em que se desenvolve a discussão, a partir da narrativa testemunhal de Kiluva, traumas são desfeitos, couraças amolecidas e, ao final percebemos a inegável transformação operada nas personagens Mavinda Massogi e Madian, pela força das palavras de Kiluva, que inicia seu discurso com um tom contestador-para depois torná-lo em claro desabafo- e digno de um divã. Ao entrar em confronto com a realidade pregressa, kiluva vai percebendo o quão ameaçadora é a realidade sutilmente tangenciada pelos comentários das amigas. Tal constatação feita pela personagem pode ser confirmada pelo comentário de Ginzburg quando afirma que “o narrador testemunhal pode ser examinado como um narrador em confronto com um senso de ameaça constante por parte da realidade” (GINZBURG, 2011, p. 2) 
	O tom contestador vai pouco a pouco sendo quebrado, até se tornar em testemunho:
Depois do ritual de iniciação, vivia nervosa, ansiosa com a vida que levava. Tive pai, mãe e tia a me espionar. Eu, menina de doze anos, inocente e ingênua, esperando a liberdade. Nunca me entreguei à vida como ela merecia que eu a entregasse... [...] Um dia na lavra do meu tio, no outro, nas nossas lavras. Eu sempre a capinar debaixo do sol ardente. Brinquei muito pouco. Os meus tempos livres, de saltitar e correr, eram quando ia com as minhas amigas apanhar dendém, ou buscar água no rio. (FERREIRA, 2008, p.187)
	
 Contestadora ou testemunhal, a narrativa vai apresentar uma Kiluva, como proposto neste trabalho, incontestavelmente ante tradicional:
-Não quero nada com esse adjetivo! Eu viúva?... Só no papel. [...] - Tradição? Achas que se fosse eu quem tivesse ido, ele no terceiro dia, não ia à procura de outra? “Cansei-me das tradições, dos rituais, das bocas dos mais velhos.” [...] - Não estou hipnotizada por deus nenhum. Deixa-te disso! Eu apenas sigo o meu coração que me transporta no caminho das estrelas. Já sofri muito nesta vida. Quero ser feliz. (FERREIRA, 2008, p. 185-186)
Suas falas irônicas, revoltadas e inquiridoras, vão se alinhando para este caminho até ser questionada pela cunhada, figura representativa da tradição. Tais palavras revelam uma personagem representando um tipo de mulher que, como diz Franciane Conceição da Silva, “tem desejos e busca a satisfação das suas vontades, sem o sentimento de culpa e o medo da punição” (SILVA, 2014, p. 58). A antítese de tal personagem vai ser manifesta nas palavras de Mavinda quando ao contestar as palavras da cunhada, demonstra total submissão aos costumes de sua terra ainda que insatisfeita por fazê-lo:
“Desculpe amiga, quem te viu e quem te vê... Puxa nem respeitas mais a tradição? Estás a provocar a ira dos kotas, e a amaldiçoar a tua casa. [...] –Mas, tens que ter calma e discrição. Olha para o teu traje tão vermelho? Estás recheada de pinturas no rosto! [...]Deus nosso senhor não há de gostar disso! Até parece que o deus Morfeu te persegue! [...]- Se foi assim...São coisas da tradição! A terra e seus costumes. (FERRREIRA, 2008, p.185-189)
O efeito libertário da narrativa testemunhal
	
	A insatisfação contida nas palavras contestadoras declinará na medida em que a narrativa vai surtindo um efeito libertário em sua ouvinte. Durante a narrativa de Kiluva, Mavinda vai sendo sacudida pelas palavras arrebatadoras da amiga que vai e volta no tempo enquanto, no jogo entre passado e presente proposto pela narradora, o leitor vai percebendo o efeito que a narrativa causa na interlocutora de Kiluva. Não só a tradição angolana, mas o patriarcado em geral também vai ser questionado nas entrelinhas da narrativa denunciadora de Isabel Ferreira. Ao contrapor as duas perspectivas, a obra O Guardador de Memórias funciona como objeto de contestação de uma sociedade que mantém uma tradição patriarcalista extremamente fechada. A narrativa rompe ainda com o paradigma literário no qual às mulheres que fogem de certos padrões sociais, ou seja, os de submissão são reservados os mais terríveis castigos como aponta Silva:
Em alguns casos isolados, escritores mais liberais colocavam as personagens femininas com um perfil mais arrojado, subvertendo a ordem vigente e questionando os padrões de comportamento determinados pela sociedade patriarcal. Essas personagens ousadas, contestadoras, no entanto, acabavam sendo demonizadas
2São os casos, por exemplo, de Luiza de O primo Basílio e Amélia n’O crime do Padre Amaro, ambas as obras do escritor português Eça de Queiroz. 
pelos seus criadores e, por fugirem dos padrões de conduta cconvencionais, sofriam severas punições no desfecho da narrativa. (SILVA, 2014, p. 58)2
Isabel Ferreira em O Guardador de Memórias cria uma narrativa que destoa de tais tendências ao tecer uma trama em que Kiluva, mesmo após entregar-se a uma vida desregrada e descumpridora dos padrões sociais exigidos pela tradição da sociedade em que vivia, não apenas tem preservada sua integridade física e sociológica, como também redesenha sua identidade feminina fora dos padrões tradicionais definidos para a mulher.
	Se pretendêssemos procurar um ponto mais convergente em que se possa perceber a troca de influências entre as personagens do romance, certamente seria o momento em que Mavinda discorre sobre a possibilidade da existência de um relacionamento em par de igualdades, ou seja, cita exatamente aquilo que está longe das expectativas da grande maioria das mulheres luandinenses de sua época: o amor em forma de companheirismo, amizade, inclusive fidelidade, o que, para a sociedade patriarcalista de Luanda, estaria longe de ser considerado algo natural. Mavinda aparentemente adere ao discurso da emancipaçãofeminina. Ela que era toda tradição, se abre ao questionamento da posição da mulher em Angola:
A relação a dois deve ser benéfica para ambos: homem e mulher: A proteção deve ser biunívoca. Como tudo na vida deve haver reciprocidade. O amor é entrega, companheirismo e amizade; claro que depois tudo é acrescido, tendo como base a fidelidade. Senão... Estamos mal com estas teorias da emancipação da mulher. (FERREIRA, 2008, p. 201)
	Se de um lado está Kiluva, representando a não tradição e do outro Mavinda, representando a tradição, há, entre essas duas personagens, alegorias de distintas perspectivas, um entremeio, como um ponto de equilíbrio no debate entre a tradição e a não tradição ao longo do romance: uma figura que entra em cena posteriormente, enquanto as duas amigas conversam à, a vizinha Madian. Esta será o símbolo da transição entre um viés e outro. 
Nos momentos finais do debate há o que podemos chamar de constatação do efeito das palavras em cada uma das amigas de Kiluva, Madian e Mavinda, que traziam inicialmente o discurso tradicional. Como representante então da transição entre a tradição e não tradição tem-se Madian divagando estre essas duas concepções.
Ao oscilar entre uma extrema exigência e censura ao comportamento de Kiluva e aceitar um relacionamento poligâmico na tradição angolana, Madian se torna uma forma de representação dessa transição acima citado, ou seja, nem está totalmente em defesa da tradição como a vizinha Mavinda, nem na condenação dessa tradição como Kiluva. Chega com um discurso altamente dogmático, dizendo à Kiluva que “- Num pode se vestir assim. porque tá a chamar homem. Se é viúva tem que ficar dentro de casa três a seis meses. Num pode sair assim”. (FERREIRA, 2008, p. 197), vai se mostrar uma Madian totalmente conformada com a poligamia masculina, se valendo inclusive de sua fé na bíblia como base de sustentação para tal condição mental: 
Pra mim o homem pode ter duas ou três, se aguenta! Que importa! Se ele aguenta, tem dinheiro, é saudável e trabalhador pode sustentar as mulheres que quiser [...] Repartir o homem é um ato de generosidade, de tolerância para com a outra mulher... [...] Mesmo no tempo de Abraão, ele á tinha bué de mulheres. Então Elcana, pai do profeta Samuel, não tinha duas mulheres? Uma era Ana e a outra Penina. Será que essas mulheres eram mais do que nós? (FERREIRA, 2008, p.202)
	E enquanto se dá esse processo em Madian, Mavinda divaga em seu passado, relembra as palavras do avô e o leitor tem então uma visão de onde advinham as ideias libertárias de Mavinda Massogi, o que vai inclusive fazê-la ao fim se tornar uma exímia oradora no que se refere a assuntos ligados a questões de cunho feminista:
O avô defendia que a África não era um continente onde reinava a barbárie, pelo contrário, temos uma cultura muito rica, precisamos de adequar os nossos costumes, tradições com moderação, sem que para isso violemos o pensamento do Ocidente [...] Temos que modificar , adaptar a nossa realidade atual sem que para isso tenhamos que reprimir a mulher ou desvalorizar a nossa cultura... [...] A mudança requer reflexão, não aceitação a tudo que o ocidente quer! (FERREIRA, 2008, p. 203)
	O que se concebe ao longo da narrativa de Kiluva é que esta vai exercer um poder incrivelmente transformador sobre as ouvintes. O desdém de Madian por Kiluva demonstrado no início da narrativa quando faz menção à sua roupa (FERREIRA, 2008, p. 197), não a deixa admitir o impacto que as palavras e a atitudes da desregrada viúva causaram-lhe ao sair da casa de Mavinda, e o narrador onisciente nos entrega seus pensamentos ao final da narrativa quando nos faz saber o que a personagem pensava a respeito da intrigante viúva: “Cogitando em seus botões concluiu de si para si: “é uma pena, a rapariga era uma pérola da cabeça aos pés, mas a mente pensava curto’” (FERREIRA, 2008, p. 241). A perplexidade experimentada ao perceber o contraste entre sua dificuldade de fala e a facilidade narrativa da outra, a faz levantar com um único pensamento: o de se tornar uma nova mulher, mais engajada, quiçá tão bem na oratória quanto a outra: 
Madian esboçou um breve sorriso. Levantou-se. Havia uma sombra no olhar que não deixou que as amigas se apercebessem. Como em tudo na vida, conformou-se dizendo tudo passa... Só Deus não passa! No dia seguinte Madian, matriculou-se numa escola de alfabetização para adultos, com a consciência de que tudo na vida é uma questão de fé e empenho. (FERREIRA, 2008 p. 241)
Ao primeiro contato com a personagem Mavinda Massogi, tem-se a impressão de que a tradição arraigada em sua forma de ver a vida em Angola está de certa forma cauterizada e inflexível. Tais pensamentos são observados em afirmações como: “-Desculpe amiga, quem te viu e quem te vê... Puxa nem respeitas mais a tradição? Estás a provocar a ira dos kotas, e a amaldiçoar a tua casa!”. (FERREIRA, 2008, p. 185). Ao longo da narrativa, entretanto, o diálogo com Kiluva vai exercer certa influência nos pensamentos de Mavinda, que começa a desinibir seus pensamentos mais libertários, que confrontam a tradição. Sua primeira manifestação de inconformidade com a tradição vigente se dá no momento em que afirma enfaticamente à Kiluva: -“Patrão? Acho que é mais que isso. O marido é nosso dono e senhor. É assim que nos educam as nossas tias e avós. Mas temos de mudar essa mentalidade”. É nessa perspectiva que afirmo que a obra de Isabel Ferreira discute proficuamente o problema da tradição patriarcalista angolana.
A mudança que a narrativa testemunhal de Kiluva faz com a amiga Mavinda e sua vizinha vai retratar aquilo que é muito bem trabalhado por Antônio Cândido em Literatura e Sociedade (2000), quando diz que “a arte produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais”. (CÂNDIDO, 2000, p. 29) 
	É notória na narrativa a mescla que há entre tradição e religião. A religião não se propagaria sem a tradição, e nem essa sem a religião. Podemos observar a comprovação de tal afirmativa na seguinte passagem da reflexão de Márcio Luiz Fernandes e Adriano Dídimo Kutassi sobre os ritos celebrativos na cultura Bantu:
O alambamento é uma garantia de que o namoro entre o casal africano passa a ser encarado com mais seriedade, pois espera o matrimônio. Uma vez que o matrimônio é um sacramento por excelência na cultura bantu, o alambamento é celebrado com muita pompa, pois é prenúncio da união de dois seres que, por toda a vida, partilharão da alegria de fazerem parte da “Força Vital”, de forma direta pelo nascimento dos seus filhos. (FERNANDES, KUTASSI, 209, p. 165)
	E é pela propagação de tal cultura que vai lutar a transformada Mavinda Massogi quando se torna presidente da associação defensora dessa cultura. Seu discurso de abertura no mercado luandinense vai, inclusive, confirmar a influência da arte sobre o indivíduo, da qual nos fala Antônio Cândido, como citado acima.
A concepção de Kiluva como a grande protagonista da ruptura com a tradição vai se confirmar ao analisarmos isoladamente o efeito da conversa entre as três amigas ao longo da narrativa. 	Mormente observamos a ocorrência de um Insight  em Madian quando a personagem percebe após sair da casa de Mavinda, a necessidade de se matricular em uma escola de alfabetização. Mesmo defendendo uma teoria de que tudo passa (só Deus não passa), a personagem faz ainda um paralelo entre a questão da fé e o empenho pessoal, ou seja, para ela, naquele momento, fé por fé seria insuficiente para dar conta dos avanços sociais que exigiam de si um engajamento social maior, o qual, sem um contato pequeno que fosse com a escolarização, tornar-se-ia um impedimento para uma maior assimilação das transformações correntes em Luanda naquela altura. 
	Em Mavinda, a começar por alguns comentários que entremeiam a narrativa testemunhal de Kiluva, é perceptível sua tendência para uma mudança libertária do sistema em que vivia. E o narrador nosmostra isso perspicazmente:
Mavinda Massogi ouvia com recato a história da vida de Kiluva. O passado da amiga enternecia-a. [...] Mavinda Massogi inconformada enfatizou: - Patrão? Acho que é mais do que isso. O marido é nosso dono e senhor. É assim que nos educam as nossas tias e avós. Más, temos de mudar esta mentalidade. [...] – Então não te amava? O tempo que viveram não serviu para nascer um amor verdadeiro? [...] Mavinda Massogi de quando em vez deixava cair o pano. E foi no campo íntimo que, Mavinda pôs a nu o seu lado indiscreto. Acendeu os olhos. Pestanejou. Olhou para os lados. E como se tivesse formigueiro no corpo fez uma pergunta, qual faísca. -Então não gozavas? Ele não te mexia, não te seduzia? Não te preparava antes do sexo, do entalo? Eu... é que não podia ter um homem assim. (FERREIRA, 2008, p. 187-193)
	Tais inserções, vindas da cunhada de Kiluva, nos deixam cônscios de sua gradativa libertação da tradição, como já citado. Percebemos que suas palavras vão se tornando mais e mais liberais até presenciarmos sua palestra na associação da tradição da cultura bantu.
	Já Kiluva, portadora de uma visão a respeito da tradição adquirida com a triste experiência de seu alambamento, funciona aqui como uma influenciadora de comportamento nas amigas. Ao passo que ela, já com sua opinião formada a respeito da inadequada tradição vigente em Angola, permanece durante esse diálogo, intacta em sua posição, tornando-se assim, uma guardiã dessa experiência, gerando uma narrativa testemunhal capaz de causar uma ressignificação nas amigas, se cumprido o que Antônio Cândido expõe quando afirma que
as palavras organizadas são mais do que a presença de um código: elas comunicam sempre alguma coisa, que nos toca porque obedece a certa ordem. Quando recebemos o impacto de uma produção literária, oral ou escrita, ela é devido à fusão inextricável da mensagem com a sua organização. (CÂNDIDO, 2004, p. 180)
	Analisando o que acontece a partir da conversa entre as amigas, à luz das palavras de Cândido, é possível perceber o impacto que receberam as amigas ouvintes. A narrativa oral de Kiluva vai causar essa fusão inextricável, capaz de culminar com as atitudes dinâmicas assumidas pelas amigas, uma resolve se render à necessidade de uma escolarização, ainda que temporã, enquanto a outra vai além, buscando um curso superior de História e, acabando por se tornar a própria presidente de uma associação ligada a questões culturais. 
	Ao iniciar seu trabalho como presidente da associação de defensoras da cultura Bantu, Mavinda Massogi faz-nos refletir a respeito da pergunta de Gayatri C. Spivak, que afinal é título de seu artigo: pode o subalterno falar? (2010). No artigo, Spivak faz uma abordagem sobre a questão da subalternidade feminina. Argumenta que “a questão da mulher parece ser a mais problemática nesse contexto. Evidentemente, diz Spivak, se você é pobre, negra e mulher, está envolvida de três maneiras”, ou seja, está a mulher, nessa perspectiva, rodeada de distintas peias do preconceito e da tradição. Em um paralelo direto entre a subalternidade trabalhada por Spivak e a tradição presente na obra de Ferreira pode-se eleger tais tradições como uma das principais vilãs responsáveis pela instauração e perpetuação da subalternidade questionada em O guardador de memórias (2008). Podendo afirmar que, da mesma forma que a tradição é, como citado acima, par inseparável da religião, a subalternidade nos permite fazer um terceiro elo dessa tríade perturbadora: a tradição, a religião e a subalternidade.
Conclusão 
	Podemos concluir que a obra de Isabel Ferreira sai do aspecto apenas literário, passando também para o sociológico, de forma poética e sedutora. Ao dar voz às três personagens, Isabel nos abre a visão para uma discussão, partindo de uma sociedade que conviveu e convive com grandes reflexos de uma tradição que aprisiona e engessa toda uma cultura.
	Descontruindo ideias tacanhas ligadas à tradição angolana a obra faz emergir uma proficiente discussão sobre o preconceito feminino, fomentado por essas tradições, que a despeito de muitas e variadas manifestações culturais, ainda sobrevivem em detrimento a muitas Mavindas, Madians e Kiluvas espalhadas pela África, Europa, América... Mundo a fora.
Referências 
BORNHEIM, Alfredo Gerd. (org.) et al., Tradição contradição. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar Editor Ltda., 1987. 152 p.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kuhner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
CÃNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. 8° Edição. São Paulo: Publifolha, 2000.
CÃNDIDO, Antônio. Vários escritos, 4° edição organizada pelo autor. São Paulo: Ouro sobre o azul, 2004.
FEREIRA, Isabel. O guardador de memórias. Luanda: Kujizakuami, 2008.
FERNADES, Marcio Luiz; KUTASSI, Dídimo Adriano. Análise fenomenológica dos ritos celebrativos na cultura bantu, Curitiba, 2009.
GINZBURG, Jaime. Linguagem e trauma na escrita do testemunho. In: Wilberth Clayton Salgueiro. (Org.). O testemunho na literatura. Representações de genocídios, ditaduras e outras violências. Vitória: Editora da UFES, 2011, v. p. 19-32.
HEGEL. Estética. Lisboa: Guimarães, 1993. Apud GINZBURG, 2010, p.5
PLATÃO. O banquete. Tradução de Jorge Peleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Victor Civita, 1972.
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