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DIREITO CONSTITUCIONAL I - 2017.1 PROFESSOR MS. LUIZ FELIPE PINHEIRO NETO professorluizpinheiro@gmail.com Ponto I – TEORIA DA CONSTITUIÇÃO: Direito Constitucional: noção, objeto e conteúdo. Constitucionalismo: sentidos, evolução, antigo, medieval, moderno, contemporâneo, neoconstitucionalismo e transconstitucionalismo. 1. O ESTUDO DO DIREITO CONSTITUCIONAL Direito Constitucional é a ciência que propicia o conhecimento da organização fundamental do Estado. Ou seja, refere-se à estruturação do poder político, seus contornos jurídicos e limites de atuação (direitos humanos fundamentais e controle de constitucionalidade). O Estudo do Direito Constitucional é o estudo da aplicação e interpretação da constituição, das normas fundamentais do Estado, sua organização e estruturação política, bem como os limites de atuação e os princípios fundamentais que o norteiam. É um estudo que aborda fatores políticos, econômicos, sociais, culturais, religiosos e antropológicos que circunscrevem os ordenamentos constitucionais. Jorge Miranda: Direito Constitucional é “a parcela da ordem jurídica que rege o próprio Estado, enquanto comunidade e enquanto poder. É o conjunto de normas (dosposições e princípios) que recordam o contexto jurídico correspondente à comunidade política como um todo e aí situam os indivíduos e os grupos uns em face dos outros e em frente ao Estado-poder e que, ao mesmo tempo, definem a titularidade do poder, os modos de formação e manifestação da vontade política, os órgãos de que esta carece e os actos em que se concretiza.” José Afonso da Silva: “O direito constitucional configura-se como Direito Público fundamental, por referir-se diretamente à organização e funcionamento do Estado, à articulação dos elementos primários do mesmo e ao estabelecimento das bases da estrutura política.” A divisão do direito é meramente didática, por conveniência acadêmica, classificando-se em direito público (que estuda as relações entre os particulares e o Estado e abrange também o direito administrativo, ambiental, econômico, penal, processual...) e privado (relações entre particulares - direito civil e o comercial, classicamente). Esta dicotomia estaria superada com a “Constitucionalização do Direito”, que implica inclusive na “constitucionalização do direito privado”. Modernamente, vem se entendendo que o direito é uno e indivisível, devendo ser estudado como um grande sistema harmônico. Ingo Sarlet: “A primeira e principal característica do direito constitucional reside na sua supremacia hierárquica, no sentido de que as normas constitucionais prevalecem em relação a toda e qualquer forma normativa (incluídas as leis elaboradas pelo Poder Legislativo) e todo e qualquer ato jurídico na esfera interna da ordem estatal. Tal característica corresponde ao postulado da supremacia da constituição e de que esta é a expressão da vontade de um poder constituinte, já que as normas constitucionais encontram seu fundamento de validade na própria constituição (razão pela qual se aqui fala em autoprimazia normativa), e não em alguma outra fonte normativa que lhes seja externa e superior, do que resulta não apenas a distinção entre direito constitucional e direito ordinário, mas também o postulado da constitucionalidade das leis e atos normativos infraconstitucionais, que não poderão, portanto, estar em desconformidade com a Constituição.” Alexandre de Moraes: “Como produto legislativo máximo do Direito Constitucional encontramos a própria Constituição, elaborada para exercer dupla função: garantia do existente e programa ou linha de direção para o futuro.” Alguns doutrinadores entendem que o estudo do Direito Constitucional envolve sua compreensão em seguimentos: em Direito Constitucional positivo, Direito Constitucional comparado, Direito Constitucional geral, Direito Constitucional material e formal, Direito Constitucional internacional e Direito Constitucional comunitário. Direito Constitucional positivo: Análise das normas fundamentais vigentes, interpretação, crítica e sistematização destas normas. Há o exame das peculiaridades da organização jurídica de cada Estado (daí se falar ainda em Direito Constitucional particular, especial ou interno) Direito Constitucional comparado: Análise de diversas Constituições para obter da comparação dessas normas positivas dados sobre semelhanças ou diferenças que são úteis ao estudo jurídico, captando o que há de essencial na unidade e na diversidade entre elas. Direito Constitucional geral: Utiliza normas positivas, peculiares ao Direito Constitucional daquele Estado, estabelecendo conceitos, princípios e apontando tendências gerais. Ou seja, é a própria teoria geral do Direito Constitucional. Direito Constitucional material: Entende-se o conjunto de normas jurídicas que traçam a estrutura, as atribuições e as competências dos órgãos do Estado. Para entender a funcionalidade do Direito Constitucional material, deve-se entender que ele se reporta ao conteúdo das disposições constitucionais, determinando a substância, a estrutura, a competência, os direitos dos cidadãos, os fins essenciais da organização política. Direito Constitucional formal: Entendimento da Constituição como conjunto de normas e princípios inseridos num documento solene, que só pode ser elaborado e modificado mediante a observância de um procedimento técnico e cerimonioso, instituído especificamente para esse fim. Direito Constitucional internacional: Estudo do conjunto de normas e princípios que disciplinam as relações entre preceitos de Estados estrangeiros e as normas constitucionais de determinado país, fusão de dois ramos do fenômeno jurídico: constitucional e internacional. Direito Constitucional comunitário: Análise do subsistema normativo integrante de uma realidade maior, o Direito comunitário. A expressão “Direito Constitucional comunitário” não designa um novo ramo da ciência do Direito, lida com um conjunto de normas supranacionais, as quais consignam disposições comuns aos Estados membros da associação. A IDÉIA CONSTITUCIONAL Canotilho: “Constituição ideal e Estado constitucional são o suporte de uma idéia e de uma ideologia: a idéia constitucional e a ideologia do constitucionalismo. A idéia constitucional, também designada por telos constitucional (Loewenstein), significa, em síntese, a criação de instituições através de lei formal para limitar e controlar o poder político e vincular o exercício desse poder a normas bilateralmente vinculantes para os detentores dos poderes políticos e para os cidadãos (Kági). A ordenação da comunidade política através de um documento escrito, de uma lei formal-constitucional, torna claro que para o constitucionalismo a constituição já não é o modo de ser de ordenação da comunidade mas o acto constitutivo dessa ordenação no plano sensível (Rogério Soares). O constitucionalismo exprime também uma ideologia: ‘o liberalismo é constitucionalismo, é o governo das leis e não dos homens’ (McIlwain). A idéia constitucional deixa de ser apenas a limitação do poder e a garantia de direitos individuais para se converter numa ideologia, abarcando os vários domínios da vida política, econômica e social (ideologia liberal ou burguesa). Por isso se pôde afirmar já que o constitucionalismo moderno é, sob o ponto de vista histórico, um ‘produto da ideologia liberal.’” 2. CONSTITUCIONALISMO 2.1. CONCEITO DE CONSTITUCIONALISMO André Ramos Tavares: “(...) numa primeira acepção, emprega-se a referência ao movimento político-social com origens históricas bastante remotas que pretende, em especial, limitaro poder arbitrário. Numa segunda acepção, é identificado com a imposição de que haja cartas constitucionais escritas. Tem-se utilizado, numa terceira acepção possível, para indicar os propósitos mais latentes e atuais da função e posição das constituições nas diversas sociedades. Numa vertente mais restrita, o constitucionalismo é reduzido à evolução histórico-constitucional de um determinado Estado.” Lenio Luis Streck: "o constitucionalismo pode ser visto, em seu nascedouro, como uma aspiração de uma Constituição escrita, como modo de estabelecer um mecanismo de dominação lega-racional, como oposição à tradição do medievo, onde era predominante o modo de dominação carismática, e ao poder absolutista do rei, próprio da primeira forma do Estado Moderno". Barroso: “Constitucionalismo significa, em essência, limitação do poder e supremacia da lei (Estado de Direito, rule of the law, Rechtsstaat). O nome sugere, de modo explícito, a existência de uma Constituição, mas a associação nem sempre é necessária ou verdadeira. Há pelo menos um caso notório em que o ideal constitucionalista está presente independentemente de Constituição escrita – o do Reino Unido – e outros, muito mais numerosos, em que ele passa longe, apesar da vigência formal e solene de Cartas escritas. Exemplo inequívoco é o fornecido pelas múltiplas ditaduras latino-americanas nos últimos quarenta anos. Não basta, portanto, a existência de uma ordem jurídica qualquer. É preciso que ela seja dotada de determinados atributos e que tenha legitimidade, a adesão voluntária e espontânea de seus destinatários.” Em um sentido amplo, Constitucionalismo é o fenômeno relacionado ao ato de todo Estado possuir uma constituição em qualquer época da humanidade, independentemente do regime político adotado ou do perfil jurídico que lhe pretenda irrogar; Em um sentido estrito, é a técnica jurídica de tutela de liberdades, surgida nos fins do século XVIII, que possibilitou aos cidadãos exercerem, com base em constituições escritas, os seus direitos e garantias fundamentais, sem que o Estado lhes pudesse oprimir pelo uso da força e do arbítrio. Alexandre de Moraes: “A origem formal do constitucionalismo está ligada às Constituições escritas e rígidas dos Estados Unidos da América, em 1787, após a independência das 13 Colônias, e da França, em 1971, a partir da Revolução francesa, apresentando dois traços marcantes: organização do Estado e limitação do poder estatal, por meio da previsão de direitos e garantias fundamentais.” Ou seja, está ligada com o surgimento do ESTADO LIBERAL. 2.2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONSTITUCIONALISMO – ANTIGUIDADE, IDADE MÉDIA E IDADE MODERNA Antiguidade – pré-Constitucionalismo primitivo: Canotilho: “As constituições escritas são uma criação da época moderna. No entanto, todas as sociedades politicamente organizadas, quaisquer que sejam as suas estruturas sociais, possuem certas formas de ordenação susceptíveis de serem designadas por constituição.” Hebreus (limitações ao poder político - Torah) e Cidades-Estados gregas (democracia direta – A constituição como modo de ser da comunidade). Canotilho: “Aristóteles oferece-nos um conceito de constituição (politeia) que significa o próprio modo de ser da polis, ou seja, a totalidade da estrutura social da comunidade. (...) No conceito aristotélico de constituição juntam-se dois aspectos modernos: (1) a constituição como ordenamento fundamental de uma associação política; (2) a constituição como conjunto de regras organizatórias destinadas a disciplinas as relações entre os vários órgãos de soberania.” Direito Romano (A constituição como organização jurídica do povo): No império, eram fonte escrita de direito (com valor de lei). Na República, é vista como organização jurídica do povo. Barroso: “A despeito de seu caráter aristocrático, o poder na República era repartido por instituições que se controlavam e temiam reciprocamente. (...) Quando a República ruiu e deu-se a coroação do imperador, não foi o fim de Roma, cujo domínio duraria ainda mais meio milênio. O que terminou na véspera do início da era cristã, foram a experiência e o ideal constitucionalistas, que vinham dos gregos e haviam sito retomados pelos romanos. A partir dali, o constitucionalismo desapareceria do mundo ocidental por bem mais de mil anos, até o fim da Idade Média.” Idade Média: Canotilho: “Na Idade Média assistimos ao desenvolvimento da noção de LEI FUNDAMENTAL. Nos primeiros tempos, corresponde a sedimentação, em termos vagos, de um conjunto de princípios ético-religiosos e de normas consuetudinárias ou pactícias, que vinculam reciprocamente o rei e as várias classes sociais, não podendo ser violadas pelo titular do poder soberano.” Magna Charta (1215), na Inglaterra, imposta ao rei João sem Terra, era um documento que resguardava os direitos feudais dos barões, especialmente em relação à propriedade e às liberdades individuais, tendo assumido, ao longo do tempo, o caráter de uma carta sobre liberdades públicas. Predominância da concepção jus naturalista de constituição, baseada no pensamento de que as leis preexistem aos próprios homens. Surge a idéia de que a autoridade do governante se fundava num contrato com os súditos, os quais obedeceriam à realeza na proporção do comprometimento do rei com a justiça (e Deus seria o árbitro do fiel cumprimento deste acordo de vontades). Idade moderna: Petition of Rights (Petição dos Direitos) (1628), na Inglaterra, ocorrido após o fortalecimento do Parlamento inglês1, havendo limitação do poder do monarca. 1 História do Parlamento Inglês: Surgido na Inglaterra, a partir da submissão do Rei João sem terra à Carta Magna e ao baronato, em 1215 (Casa dos Lordes). Posterior consolidação da Câmara dos Comuns, em que houve combinação da burguesia ascendente e a pequena e média nobreza rural, firmando-se na Inglaterra um parlamentarismo bicameral (1332), existente até hoje. Submissão do rei à Petition of Rights em 1628. Guerra Civil entre 1642/1648, execução do rei Charles I e breve república dos Cromwell. Retorno da Monarquia em 1660, com os reis católicos Charles II e James II. Revolução Gloriosa em 1688, que resultou na expulsão de Jaime II, substituído por Guilherme de Orange, protestante (casado com a irmã de Jaime II) - O Parlamento passa a ser predominante, formando-se o Conselho de Gabinete. Era basicamente um protesto contra lançamento de tributos sem aprovação do parlamento, prisões arbitrárias, o uso da lei marcial em tempos de paz e ocupação de casas particulares pelo Estado. Habeas Corpus Act (1679), na Inglaterra. Bill of Rights (Declaração de Direitos) (1689), limitando em definitivo a monarquia, fazendo com que o rei não pudesse mais governar sem apoio parlamentar, pois do próprio parlamento dependeria a administração das Forças Armadas em tempos de paz, criação de leis e a instituição e cobrança de impostos. Estabelecia ainda a imunidade parlamentar e a necessidade do devido processo legal para a imposição de penas. Act of Settlement (1701) estabelecia que somente um príncipe de religião anglicana poderia ascender ao trono e impunha novas limitações ao poder real em relação aos poderes legislativo e judiciário. Iluminismo, Estado liberal e as constituições francesa e norte-americana. 2.3. ESTADO LIBERAL: CONSTITUIÇÕES FRANCESA E NORTE- AMERICANA O Estado Constitucional é o Estado de Direito em que impera a Constituição, surgido junto com o constitucionalismo democrático. Do liberalismo, surgem os doismarcos históricos e formais do constitucionalismo moderno: a Constituição norte-americana de 1787 e a francesa de 1791. Lenza: “Podemos destacar, nesse primeiro momento, na concepção do constitucionalismo liberal, marcado pelo liberalismo clássico, os seguintes Promulgação da Declaração de Direitos (Bill of Rights). A maioria dos autores correlaciona o surgimento da figura do Primeiro-Ministro à chegada ao poder na Inglaterra dos “reis impossíveis” da dinastia dos Hanover (Jorge I e Jorge II), após a morte da Rainha Ana, em 1714. Os Hannover foram soberanos alemães que nem mesmo sabiam falar inglês, desconheciam os problemas políticos do Reino e eram negligentes com ele, nem mesmo participando de reuniões de gabinete. A partir daí, o Gabinete passou a ganhar mais autonomia, passando a se reunir e tomar decisões sozinho, surgindo o cargo de Primeiro Ministro (um representante do Gabinete que trataria diretamente com os reis da Dinastia Hannover, servindo originalmente de intérprete/emissário, mas passando a reunir poder executivo) – “o rei reina, mas não governa”. Consolidação do Primeiro Ministro como Chefe do Poder Executivo, enquanto o Rei permanece como Chefe do Estado. Acquaviva: “Com o Ato do Estabelecimento, no dealbar do século XVIII, já se nota que, se ao gabinete compete a função governamental, ao monarca resta apenas a função representativa ou chefia do Estado.” Bertrand Russel: “O Primeiro-Ministro tem mais poder do que glória, e o rei mais glória do que poder.” A partir de 1782, o Primeiro Ministro Inglês só pode ser escolhido de acordo com a decisão da Câmara dos Comuns – supremacia da representação popular. Institui-se também o “voto de desconfiança”, que permitiria a destituição do governo. Dallari: “Quanto às razões que determinam seu aparecimento, não é difícil explicá- las. Houve, antes de tudo, o temor dos excessos do poder pessoal e, em conseqüência, o desejo de transferir a maior soma de poder político para os Parlamentos.” valores: individualismo, absenteísmo estatal, valorização da propriedade privada e proteção do indivíduo.” Paulo Bonavides: “A noção jurídica e formal de uma Constituição tutelar de direitos humanos parece (...) constituir a herança mais importante e considerável da tese liberal.” O Estado Constitucional atual é fruto da evolução Estado Absolutista (que surge por volta de 1648, com a Paz de Westfália) – Estado Liberal (1789 – Era das Revoluções) – Estado Social (1919, Constituição de Weimar, na Alemanha). Streck afirma que o Estado moderno surge primeiramente como Estado Absolutista, surgindo o Estado Liberal, que divide-se entre Estado legal (mero império de lei) e Estado de Direito (mais complexo, império do direito em si), o qual evolui para o Estado liberal de Direito, em seguida para o Estado Social de Direito. Por fim, chegar-se-ia ao Estado Democrático de Direito. Streck: “(...) pensamos poder situar o liberalismo como uma doutrina que foi-se forjando mas marchas contra o absolutismo onde se situa o crescimento do individualismo que se formula desde os embates pela liberdade de consciência (religiosa). Todavia, isso avança na doutrina dos direitos e do constitucionalismo, este como garantia(s) contra o poder arbitrário, da mesma forma que contra o exercício arbitrário do poder legal.” Streck: “No século XIX, os liberais e os movimentos e partidos liberais mudaram a estrutura econômica, social e política da Europa e modificaram drasticamente a comunidade internacional. Pôs-se fim à escravidão, incapacidades religiosas (tolerância), inaugurou-se a liberdade de imprensa, discurso e associação à educação foi estendido, o sufrágio foi se estendendo até a universalização, constituições escritas foram elaboradas; o governo representativo consolidou-se como modelo; garantiu-se o livre comércio e eliminaram-se taxações até então impostas, etc. O liberalismo teve um impacto profundo na vida econômica, e a liberdade de movimento se realiza. Lar e propriedade se tornam invioláveis; eliminam-se taxações de mercadorias para a facilitação do livre comércio mundial.” Streck: “(...) para Roy Macridis, o liberalismo é uma ética individualista pura e simples que se expressa, num primeiro momento, em termos de direitos naturais e, posteriormente, numa psicologia que considera os interesses materiais e sua satisfação como importantes na motivação do indivíduo.” O núcleo constitucional do Estado Liberal se dá pela limitação do poder estatal (pelo equilíbrio e independência entre os três poderes) e o respeito ao catálogo de liberdades públicas, mais precisamente a proteção dos direitos civis e políticos. Bobbio (Liberalismo e democracia): “(...) o liberalismo é uma determinada concepção de Estado, na qual o Estado tem poderes e funções limitadas, e como tal se contrapõe tanto ao Estado absoluto quanto ao Estado que hoje chamamos de Social.” Economicamente, o liberalismo se baseia (dentre outros) na obra de Adam Smith (A riqueza das nações), sustentando que cada homem é o melhor juiz de seus interesses e deve ter a liberdade de promove-los segundo sua livre vontade, estabelecendo-se a importância da livre iniciativa. Politicamente, se baseia na obra de Stuart Mill (Da Liberdade), dentre outros. O livro de Mill preconiza que é necessário que os indivíduos observem certas regras gerais no seu relacionamento recíproco, a fim de que as pessoas possam saber o que as espera. Mas, acreditando nas virtudes naturais do homem, acrescenta que no tocante aos assuntos que respeitam a cada um deve ser assegurado o livre exercício da espontaneidade individual. O indivíduo é melhor árbitro de seus interesses do que o Estado, não podendo haver mal maior do que permitir que outra pessoa julgue o que convém a cada um. Assim, qualquer erro que alguém cometa, consciente ou inconscientemente, não produz tanto mal quanto a submissão ao Estado (Dallari). Conforme Dallari, Mill apresenta três objeções fundamentais à interferência do Estado na vida dos particulares: Ninguém seria mais capaz de realizar qualquer negócio ou de determinar como ou porque deva ser realizado do que aquele que tem interesse direto (o indivíduo). Caso os indivíduos não realizem o negócio tão bem, o que seria igual à ação dos agentes do Estado, é preferível ainda que ele o faça, para que aprenda com o erro. Cada função que se acrescenta às que o governo já exerce, provoca maior difusão da influência que lhe cabe sobre esperanças e temores, convertendo, cada vez mais, a parte ativa e ambiciosa do público em parasitas do poder público, ou de qualquer partido que aspire ao poder. Assim, vê-se que o Estado liberal busca estabelecer limites na intervenção do Estado no campo privado, protegendo o direito de propriedade e as liberdades individuais ante o arbítrio do poder político, a partir de uma estatalidade mínima, não interventora. Streck: “O liberalismo se apresentou como uma teoria antiestado. O aspecto central de seus interesses era o indivíduo e suas iniciativas. A atividade estatal, quando se dá, recobre um espectro reduzido e previamente reconhecido. Suas tarefas circunscrevem-se à manutenção da ordem e segurança, zelando que as disputas porventura surgidas sejam resolvidas pelo juízo imparcial sem recurso a força privada, além de proteger as liberdades civis e a liberdade pessoal e assegurar a liberdade econômica dos indivíduos exercitada no âmbito do mercado capitalista. O papel do Estado é negativo, no sentido da proteção dos indivíduos. Toda a intervenção do Estado queextrapole estas tarefas é má, pois enfraquece a independência e a iniciativa individuais. Há uma dependência entre o crescimento do Estado e o espaço da(s) liberdade(s) individual(is).” Prevalência da autonomia privada. Rejeita-se o Estado de Polícia de privilégios dos Estamentos (estratos sociais) do Estado Absoluto. Fixa-se um mero Estado Polícia para assegurar a segurança, sem fixação dos privilégios antigos. Na idéia de Estado Mínimo, o foco está centrado ao catálogo mais básico de garantias, os direitos de participação política e relacionados às liberdades individuais, incluindo-se livre iniciativa e propriedade – os denominados direitos políticos e civis. A tutela dos direitos individuais não exige a ação positiva do Estado. Dallari: “predominância do liberalismo assegurou, entretanto, a prevalência da orientação passiva do Estado, como simples conservador dos direitos dos que já os possuíam, sem nada fazer pelos que não tinham qualquer direito a conservar.” Consagração do princípio da igualdade formal perante a lei, que pode ser estabelecido como o tratamento igual de desiguais. Não há foco em direitos sociais e trabalhistas. As constituições passam a ser escritas, instrumentalizando as ordenações constitucionais dos Estados em documentos formais com o estabelecimento de um processo legislativo cerimonioso. Primado da supremacia material e formal das constituições, elevando o Direito Constitucional ao posto de ramo do Direito Público por excelência, fonte primeira de toda a produção normativa. Primazia do princípio da separação dos poderes e tutela reforçada dos direitos e garantias fundamentais. Inicial fortalecimento do legislativo frente o executivo. Posterior limitação das funções estatais, não apenas as executivas e judiciárias, mas também as legislativas. Surgimento das concepções de controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos. Inicialmente, há uma visão da Constituição sem poder normativo, uma “folha de papel”, aparecendo posteriormente o princípio da força normativa da Constituição e reconhecimento normativo da dimensão principiológica do Direito. Constituição Francesa Crise econômica e social na França. Revolução Francesa – queda do antigo regime. Barroso: “(...) foi a Revolução Francesa, com seu caráter universal, que incendiou o mundo e mudou a face do Estado – convertido de absolutista em liberal – e da sociedade, não mais feudal e aristocrática, mas burguesa.” Barroso: “A revolução não foi contra a monarquia, que, de início, manteve-se inquestionada, mas contra o absolutismo, os privilégios da nobreza, do clero e as relações feudais no campo. Sob o lema liberdade, igualdade e fraternidade, promoveu-se um conjunto amplo de reformas anti-aristocráticas, que incluíram: a) a abolição do sistema feudal; b) a promulgação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão; c) a elaboração de uma nova Constituição, concluída em 1791; d) a denominada constituição civil do clero.” Posteriores fases de radicalismo (Robespierre e a fase do terror). Fragilidade do governo e ascensão de Napoleão. Constituição norte-americana Reação dos colonos a imposições tributárias e restrições a atividades econômicas e ao comércio impostas pela Metrópole. Revolução (Guerra de independência – até 1781) e surgimento de uma confederação de ex-colônias (Declaração dos Direitos da Virginia, 1776), posteriormente transformada em federação, pela Convenção da Filadélfia, com a confecção de uma Constituição (1787). Barroso: “A primeira Constituição escrita do mundo moderno passou a ser o marco simbólico da conclusão da Revolução Americana em seu tríplice conteúdo: a) independência das colônias; b) superação do modelo monárquico; c) implantação de um governo constitucional, fundado na separação dos Poderes, na igualdade e na supremacia da lei (rule of the law). (...) Nela institucionalizou-se, de forma pioneira e duradoura, um modelo de separação nítida entre Executivo, Legislativo e Judiciário, em um Estado republicano e sob o sistema presidencialista.” Barroso: “Em sua versão original, a Constituição não possuía uma declaração de direitos, que só foi introduzida em 1791, com as primeiras dez emendas, conhecidas como Bill of Rights. Nelas se consagravam direitos que já constavam das Constituições de diversos Estados e que incluíam as liberdades de expressão, religião, reunião e os direitos ao devido processo legal e a um julgamento justo.” 2.4. CONSTITUIÇÕES DE SEGUNDA GERAÇÃO Crise no Estado Liberal. Dallari: “predominância do liberalismo assegurou, entretanto, a prevalência da orientação passiva do Estado, como simples conservador dos direitos dos que já os possuíam, sem nada fazer pelos que não tinham qualquer direito a conservar.” Dallari: “O Estado liberal, com um mínimo de interferência na vida social, trouxe, de início, alguns inegáveis benefícios: houve um progresso econômico acentuado, criando-se as condições para a revolução industrial; o indivíduo foi valorizado, despertando-se a consciência para a importância da liberdade humana; desenvolveram-se as técnicas de poder, surgindo e impondo-se a idéia do poder legal em lugar do poder pessoal. Mas, em sentido contrário, o Estado liberal criou as condições para sua própria superação.” Streck aponta que não haveria necessariamente uma reação antiliberal, mas, graças às liberdades trazidas por este modelo de estado, incluindo liberdade de expressão e sufrágio universal, os governos tornaram-se “suscetíveis às solicitações populares, o que vai impor uma mudança de rota no projeto do Estado Mínimo no sentido da intervenção do poder público estatal em espaços até então próprios à iniciativa privada.” Streck: “No fim do século (XIX), um fator novo foi injetado na filosofia liberal. Era a justiça social, vista como a necessidade de apoiar os indivíduos de uma ou outra forma quando sua autoconfiança e iniciativa não podiam mais dar-lhes proteção, ou quando o mercado não mostrava a flexibilidade ou a sensibilidade que era suposto demonstrar na satisfação de suas necessidades básicas.” No Estado Social, há uma passagem de uma estatalidade mínima para uma estatalidade positiva, em que o Estado atuaria positivamente (ativamente) para garantia de direitos sociais, como previdência, transporte, moradia, etc. Surgimento e consolidação dos direitos fundamentais de segunda geração, buscando-se combater o déficit econômico-social das classes hipossuficientes. Sem negar os direitos civis e políticos conquistados pelo Estado Liberal, o Welfare State (Estado Social ou État Providence) se vê compelido a proteger também os direitos atrelados à igualdade material. Deixa-se a visão do Estado como opositor da sociedade para ser compreendido como esperança de geração de dignidade e igualdade material (tratamento desigual dos desiguais na medida de suas desigualdades). Constituição de Weimar (Constituição alemã de 1919 a 1945) e Tratado de Versalhes, ambos de 1919 – influência de diversas ideologias políticas, incluindo- se o anarquismo, o socialismo, etc. Deve-se observar também a Constituição Mexicana de 1917. Franklin Delano Roosevelt buscou implantar um pacote de políticas positivas do Estado ao assumir a presidência dos EUA em 1932: o New Deal. Alguns entendem, contudo, que esta intervenção estatal levou a um aprofundamento da crise econômica surgida em 1929 (embora sua intenção fosse combate-la). Apesar do estabelecimento das Constituições sociais, como a de Weimar (Alemanha, 1919), não se vê uma forte obediência à Constituição –vide as ações do governo nazista na Alemanha das décadas de 1930 e 40. Embate entre a Constituição real e a constituição escrita (formal, a folha de papel, de Lassale). O direito passava, então, por sua fase positivista, sendo a sociedade regida por leis que não atuavam na concretização dos ditames constitucionais, estes despidos de eficácia normativa, e que acabavam fechando-se em um sistema estéril Após a II Guerra Mundial, surge o neoconstitucionalismo. 2.5. NEOCONSTITUCIONALISMO E CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO 1948: Declaração Universal dos Direitos Humanos. Estabelece-se uma fase marcada pela existência de documentos constitucionais amplos, analíticos e extensos, com o alargamento dos textos constitucionais, isentando os indivíduos das coações autoritárias em nome da democracia política, dos direitos econômicos e dos direitos dos trabalhadores. Disseminação da idéia de constituição dirigente (constituição programática) Ocorre, então, a formação de um novo Estado Constitucional de Direito, em oposição ao Estado “Legislativo” de Direito, e a observância da influência material do Direito Constitucional no ordenamento jurídico, sendo o alvorecer de um neoconstitucionalismo, que se caracterizaria pelo reconhecimento da força normativa da Lei Suprema,2 pela expansão da jurisdição constitucional e decorrente criação de Cortes Constitucionais, uma nova interpretação das Cartas Magnas, utilizando da ponderação entre Direitos e interesses, e pela rejeição da pura submissão do aplicador do direito às regras positivadas, típica do modelo positivista/legalista. Materializa-se a visão que Konrad Hesse tem da Constituição, que não seria mero pedaço de papel. Para o autor, embora a Constituição Jurídica, enquanto documento formal, seja pautada pela histórica, vinda dos fatos e das estruturas de poder, não se limita aos ditames desta, como preconizava Lassale, mas deve impor a realização de seus valores. O ápice do neoconstitucionalismo é o processo de constitucionalização do direito, termo este que, amplamente, refere-se a diversas mutações na estrutura jurídico- política de uma sociedade, podendo significar a introdução de uma Lei Fundamental em um ordenamento que não dispunha anteriormente dela, além de tornar jurídico o relacionamento entre os detentores do poder político e os sujeitos a estes, não sendo necessário para isto, contudo, a introdução de uma Constituição escrita A constitucionalização do direito estaria associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, que teriam seu conteúdo material e axiológico irradiado pelo sistema jurídico, com força normativa, caracterizando-se uma constituição extremamente invasora – Constituição invasora (Marcelo Neves) Quanto à atuação dos poderes, destaca-se a redução do campo de discricionariedade, seja na elaboração de leis pelo legislativo, que passa a ter que realizar um determinado programa constitucional, seja quanto ao poder executivo, que deve atuar para promoção deste programa em uma aplicação direta e imediata da Constituição, independente de determinação legal infraconstitucional, e também quanto ao judiciário, condicionando-se a interpretação de todas as normas do sistema (Luis Barroso) Transconstitucionalismo: decorre do caráter multicêntrico dos sistemas jurídicos mundiais. O autor brasileiro Marcelo Neves, apoiado em Niklas Luhmann, vê a Constituição como mecanismo de racionalidade transversal entre política e direito, e não um mero acoplamento de estruturas políticas e jurídicas. Aí está o embrião da idéia de Constituição transversal, que ultrapassa os limites territoriais de um dado 2 DIMOULIS, Dimitri. Neoconstitucionalismo e moralismo. In: SARMENTO, Daniel (org.) Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 213. Estado, culminando no transconstitucionalismo como fator de integração sistêmica da sociedade hipercomplexa da atualidade. Próximo ponto: II. TEORIA DA CONSTITUIÇÃO Este material não substitui a doutrina, sendo mero fichamento orientador do conteúdo ministrado em sala de aula. O aluno deverá pautar seus estudos pela leitura da doutrina, jurisprudência e legislação. Referências: BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2015. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: Fundamentos de uma dogmática Constitucional transformada. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 1999. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 1999. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. A Constituição e o Supremo. 5 ed. Brasília: STF, Secretaria de Documentação, 2016. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 6 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993. GOTTI, Alessandra. Direitos Sociais: Fundamentos, regime jurídico, implementação e aferição de resultados. São Paulo: Saraiva, 2012. LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. MARTINS, Ives Gandra da Silva, MENDES, Gilmar Ferreira e NASCIMENTO, Carlos Valder do (coord). Tratado de Direito Constitucional. V 1. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. MATTOS NETO, Antônio José de, LAMARÃO NETO, Homero e SANTANA, Raimundo Rodrigues (orgs). Direitos Humanos e democracia inclusiva. São Paulo: Saraiva, 2012. MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. MENDES, Gilmar Ferreira. Estado de Direito e Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, Tomo I: Preliminares, o Estado e os sistemas constitucionais. 6 ed. Lisboa: Coimbra editora, 1997. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 32 ed. São Paulo: Atlas, 2016. MORAES, Guilherme Peña. Curso de Direito Constitucional. 3 ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2010. NEVES, Marcelo. A constituição simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994. PUCCINELLI JÚNIOR, André. Curso de Direito Constitucional. 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