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Vasari Vida de Michelangelo

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 VIDA DE MICHELANGELO BUONARROTI
 		 Florentino. Pintor, Escultor e Arquiteto
[1. Proêmio]
Enquanto os industriosos e egrégios espíritos, ao lume1 do famosíssimo Giotto e de seus discípulos2, esforçavam‑se em dar ao mundo prova do valor que a benignidade das estrelas e a bem proporcionada mescla dos humores haviam dado a seus engenhos3 e, por toda a parte, em vão se esmeravam, desejosos de imitar com a excelência da arte a grandiosidade da natureza, por se aproximar quanto pudessem desta suma cognição que muitos chamam inteligência4, o boníssimo Reitor do Céu volveu clemente os olhos à Terra e, ao ver a vã infinitude de tanta labuta, os ardentíssimos estudos sem fruto5 e a presunçosa opinião dos homens6, bem mais distante da verdade que as trevas da luz, dispôs‑se, para arrancar-nos de tantos erros, a enviar à Terra um espírito que em cada arte e em todas as profissões fosse universalmente hábil7, trabalhando só, a fim de mostrar a perfeição da arte do desenho, no delineamento, nos contornos, no sombreado e na luz, para criar relevo na pintura8, com correto juízo trabalhar a escultura e pela arquitetura, tornar cômodas as habitações, seguras, sãs, alegres, bem proporcionadas e ricas em ornamentos. Quis, ademais, incutir‑lhe a verdadeira filosofia moral9, ornada com a doce poesia10, de modo a que o mundo o elegesse e admirasse como singularíssimo espelho, na vida, nas obras, na santidade dos costumes e em todas as ações humanas e para que fosse por nós chamado, não terrena criatura, mas celestial. E vendo que em tais práticas e nestas artes singularíssimas, isto é, na pintura, na escultura e na arquitetura, sempre fossem os engenhos toscanos, mais que outra gente na Itália, sumamente elevados, por serem muito observantes dos trabalhos e dos estudos de todas as faculdades, quis dar‑lhe por pátria Florença11, digníssima entre as cidades, para merecidamente coroar enfim a sua perfeição em todas as virtudes por meio de um seu cidadão12.
[2. Nascimento e ascendência de Michelangelo]
Nasceu assim um filho sob fadada e feliz estrela13, no Casentino14, de honesta e nobre mulher15, em 147416, para Lodovico di Leonardo Buonarroti Simoni17, descendente, segundo se diz, da nobilíssima e antiquíssima família dos condes de Canossa18. Naquele ano, sendo Lodovico podestà19 do castelo de Chiusi e Caprese, próximo ao monte de Vernia, onde São Francisco recebeu os estigmas, diocese aretina20, nasceu‑lhe, como disse, um filho ao sexto dia de março, um domingo, por volta das oito horas da noite, a que chamou Michelangelo21; porque, sem hesitar e como que tomado de superna inspiração, intuiu que aquele era ente celeste e divino, para além da condição mortal, como depois o confirmaram as figuras do seu nascimento, pois com aspecto benigno recebeu Mercúrio e Vênus na segunda casa de Júpiter22, o que pressagiava trabalhos maravilhosos e estupendos nas artes da mão e no engenho. 
Terminados os encargos da podesteria, Lodovico voltou a Florença. E no povoado de Settignano, a três milhas da cidade, onde mantinha uma herdade de seus antepassados ‑ lugar copioso de pedras e de jazidas de macigni23 constantemente utilizados por canteiros e escultores, na maior parte ali nascidos ‑, Lodovico entregou Michelangelo a uma ama‑de-leite, mulher de um desses canteiros, o que o levou de certa feita a dizer a Vasari: "Giorgio, se tenho algo de bom na mente, isto se deve a ter nascido na sutileza do ar da vossa região de Arezzo; tal como extraí do leite de minha ama os cinzéis e macetes com que esculpo"24.
[3. Instrução e primeira formação artística]
Com o tempo, cresceu bem o número de filhos de Lodovico25 e, homem de poucos recursos, foi ele acomodando seus filhos na corporação da lã e seda26, enquanto Michelangelo, já crescido, foi posto na escola de gramática com mestre Francesco da Urbino27. Mas como, por natural inclinação, deleitava‑se com o desenho, passava o tempo que podia entretido às ocultas em desenhar, e era repreendido e até algumas vezes surrado pelo pai e pelos mais velhos, que acreditavam ser talvez coisa baixa e indigna de sua antiga estirpe dar vasão a um dom por eles desconhecido28. Michelangelo estreitara amizade então com Francesco Granacci29, que, igualmente jovem, aproximara‑se de Domenico del Ghirlandaio para aprender a arte da pintura. E como estimasse Michelangelo e nele notasse grande dom para o desenho, fornecia-lhe diariamente desenhos de Ghirlandaio29a, então reputado, não apenas em Florença, mas em toda a Itália, entre os melhores mestres30. 
Desse modo, crescendo dia a dia em Michelangelo o desejo de devotar-se ao desenho, Lodovico viu esgotadas suas possibilidades de impedi‑lo e decidiu, aconselhado por amigos, para tirar algum proveito e para o habilitar àquela arte, confiá‑lo aos cuidados de Domenico Ghirlandaio. Quando se iniciou na arte com Domenico, Michelangelo tinha quatorze anos. E como quem escreveu sua vida após 155031, quando estas Vidas pela primeira vez escrevi, afirme que alguns por não terem com ele privado registraram fatos jamais ocorridos e calaram sobre muitos outros dignos de nota32, taxando Domenico, neste caso preciso, de invejoso33 e acusando-o de jamais haver prestado ajuda a Michelangelo, convém rebater aqui tal calúnia. Pois pode‑se ler num manuscrito de Lodovico, pai de Michelangelo, constante nos livros de Domenico34, atualmente em poder dos herdeiros, o seguinte registro: "1488. Hoje, dia primeiro de abril, eu, Lodovico di Leonardo di Buonarrota, emprego Michelangelo meu filho junto a Domenico e David di Tommaso di Currado pelos próximos três anos, nestas condições e modos, que o dito Michelangelo deva estar com os supra nomeados, durante este tempo, para aprender a pintar e nisto se exercitar, sob suas ordens; e nestes três anos os ditos Domenico e David devem-lhe dar vinte e quatro florins, a título de garantia: no primeiro ano seis florins, no segundo ano oito florins, no terceiro dez florins, totalizando noventa e seis liras". E mais abaixo está este registro ou lançamento, escrito também pela mão de Lodovico: "Deste total recebeu o supramencionado Michelangelo, neste dia 16 de abril, dois florins de ouro, em ouro, tive eu, Lodovico di Leonardo, seu pai, doze liras e doze soldos em dinheiro". Estas contas, copiei‑as eu do próprio livro, para mostrar que tudo o que então escrevi, e doravante escreverei, é a verdade. Não conheço quem tenha frequentado mais Michelangelo que eu ou lhe tenha sido mais fiel amigo e servidor, como testemunharia até quem nada sabe a respeito; nem creio que haja alguém que possa mostrar maior número de cartas escritas por ele mesmo, nem com mais afeto que as que me escreveu35. Fiz esta digressão36 por amor à fidedignidade; e tanto baste para todo o resto da sua vida. Voltemos agora à história.
Cresciam o talento e a pessoa de Michelangelo e Domenico enchia‑se de assombro37, ao vê-lo fazer coisas extraordinárias para um jovem, porque lhe parecia não apenas superar os demais discípulos, que os tinha em grande número38, mas rivalizar muitas vezes consigo mesmo, seu mestre. Um dia, um dos aprendizes de Domenico copiava a pena dos trabalhos do mestre algumas figuras femininas vestidas. Michelangelo tomou daquele papel e, com pena mais grossa, redesenhou por sobre uma delas os lineamentos que deveria ter tido para que fosse perfeita. É extraordinário ver a diferença entre as duas maneiras39 e o valor e juízo de um rapazinho de tal ânimo e orgulho, a quem não faltava coragem para corrigir as coisas do mestre. Esta folha de papel, ainda hoje conservo‑a como relíquia, que a recebi de Granacci para a pôr no livro dos desenhos, entre outros desenhos seus, recebidos de Michelangelo40. E em 1550, em Roma, Giorgio mostrou‑a a Michelangelo, a quem foi prazeroso reconhecê‑la, dizendo por modéstia que sabia mais desta arte quando era menino, que agora, quando velho41. 
Domenico decorava então a capela grande de Santa Maria Novella e estando fora um dia, Michelangelocomeçou a desenhar diretamente o andaime42, com algumas mesas e todos os instrumentos de trabalho, e a representar alguns jovens que ali trabalhavam. Ao voltar e ver o desenho, Ghirlandaio disse: "Este aqui supera meu conhecimento de desenho", e ficou boquiaberto com a nova maneira e imitação43 que, com o juízo recebido do céu, aquele jovem possuía em idade tão tenra. Era, na verdade, o que de melhor se poderia desejar da prática de um artista que já houvesse trabalhado muitos anos, pois todo o saber e poder da graça estavam na natureza, aperfeiçoada pelo estudo e pela arte. Pois em Michelangelo despontavam a cada dia frutos mais divinos que humanos, como claramente começou a se demonstrar com a cópia de uma gravura de Martino Tedesco, que lhe deu grandíssima reputação.
[4. As cópias e o Jardim de São Marco]
Chegara em Florença uma cena do dito Martino, com os demônios que surram Santo Antônio, gravada em cobre, e Michelangelo copiou‑a a pena, em uma maneira desconhecida, colorindo‑a em seguida44. E obteve grande renome quando se inspirou em peixes com escamas de cor bizarra, para simular algumas estranhas formas de demônios45. Copiou ainda desenhos de vários mestres antigos e com tanta similaridade que nem pareciam cópias; pois, tingidas e envelhecidas com fumo e várias coisas, de tal modo as encardia, que pareciam velhas e não se distinguiam do original, se a ele comparadas; não o fazia senão para conseguir os originais, trocando‑os pelas cópias, pois admirava‑os por sua excelência e procurava superá‑los na execução46, com o que adquiriu grandíssimo nome.
Naquele tempo, o Magnífico Lorenzo de' Medici em seu jardim na praça San Marco47 mantinha Bertoldo escultor, não tanto como guardião das numerosas e belas antigualhas que reunira ali a grande custo48, quanto porque, desejando criar uma escola de pintores e escultores excelentes49, queria que tivessem por guia e chefe Bertoldo, discípulo de Donatello50; e embora sua velhice o impedisse de trabalhar, era, porém, mestre de muita prática e muito reputado, não apenas por ter fundido os púlpitos de Donatello, seu mestre51, mas por ter fundido muitos outros bronzes de batalhas e de algumas outras pequenas coisas52, ofício no qual não se encontrava então, em Florença, quem o superasse. 
Lastimando assim Lorenzo, cujo amor à pintura e à escultura era grandíssimo, que em seus dias não houvesse escultores tão celebrados e nobres quanto os pintores53, decidiu, como disse, fazer uma escola. E pediu a Domenico Ghirlandaio, se em seu ateliê tivesse jovens com tal inclinação, que os enviasse ao jardim, onde desejava exercitá‑los e educá‑los em uma maneira que honrasse a si próprio, a ele e à cidade sua. Deu‑lhe Domenico ótimos jovens, entre os quais Michelangelo e Francesco Granacci54. E uma vez em que perambulavam pelo jardim, depararam com Torrigiano, jovem da família dos Torrigiani, que copiava em argila certas esculturas dadas por Bertoldo. Michelangelo fez logo algumas por emulação, o que suscitou em Lorenzo grande expectativa, diante de tão belo espírito. Encorajado pelos resultados, copiou alguns dias depois em mármore uma cabeça antiga de um fauno, velho e rugoso, de nariz quebrado e boca ridente. Sem ter jamais tocado mármore ou buris, conseguiu imitá-la tão bem, que deixou Lorenzo assombrado. E como, sem respeitar o modelo antigo, houvesse por sua fantasia trabalhado a boca com o buril, acrescentando-lhe a língua e pondo‑lhe à mostra os dentes, Lorenzo, brincalhão, disse‑lhe: "Mas tu deverias saber que os velhos jamais têm todos os dentes, faltando‑lhes sempre algum". Pareceu a Michelangelo, em sua simplicidade, que aquele Senhor, que ele temia e amava, dizia‑lhe a verdade, e mal Lorenzo partira, que já rompia um dente àquela boca e trabalhava com o buril a gengiva, como se tivesse caído. Esperou ansioso o retorno do Magnífico, que, admirado com a simplicidade e presteza de Michelangelo, riu‑se muito, contando o feito aos amigos55; e tendo‑se proposto a ajudar e favorecer Michelangelo, mandou chamar Lodovico, seu pai, e pediu‑lhe Michelangelo, dizendo que o queria ter como um de seus filhos, o que lhe foi prazeirosamente concedido.
[5. A Centauromaquia e a Madonna della Scala]
O Magnífico providenciou‑lhe então um quarto em sua casa, e que fosse servido, e o fez sempre comer à mesa com seus filhos e outras pessoas dignas e de nobreza56, que estavam com o Magnífico, pelo qual foi honrado. Isto se deu no ano seguinte ao da iniciação com Domenico, quando tinha quinze ou dezesseis anos, e por quatro anos ali habitou, até a morte do Magnífico Lorenzo, em 149257. Durante esse tempo, Michelangelo obteve daquele Senhor, além de um manto violeta para o alegrar58, proventos de cinco ducados ao mês, para ajudar a seu pai, que recebeu também emprego na alfândega59. É bem verdade que todos aqueles jovens do jardim eram assalariados, uns mais, outros menos, graças à liberalidade daquele magnífico e nobilíssimo cidadão, que os premiou enquanto viveu. Nesse tempo, aconselhado por Poliziano, homem singular nas letras60, Michelangelo numa peça de mármore dada por aquele Senhor esculpiu a batalha de Hércules contra os Centauros, tão bela, que, por vezes a quem hoje a considera não parece da mão de um jovem, mas de mestre consumado nos estudos e experiente naquela arte61. Está hoje em sua casa, mantida como raridade, em sua memória, por Leonardo, seu sobrinho. Não faz muitos anos, Leonardo tinha em sua casa, em memória de seu tio, um mármore de Nossa Senhora, em baixo‑relevo62, da mão de Michelangelo, pouco mais alto que uma braça, no qual, desejando o jovem artista imitar63 a maneira de Donatello64, tão bem se houve que o resultado se lhe assemelha, exceto pela maior graça e desenho. Leonardo doou‑a, depois, ao duque Cosimo de’ Medici65, que a tem por coisa singularíssima, não havendo, além deste, outro baixo‑relevo de sua autoria.
E voltando ao jardim do Magnífico Lorenzo, era ele todo ornado de antigualhas e excelentes pinturas, reunidas por sua beleza, para estudo e por prazer e suas chaves eram guardadas por Michelangelo, que em tudo se mostrava mais diligente que os outros. Desenhou meses a fio no Carmine as pinturas de Masaccio66, representando‑as com tanto juízo, que os artistas e outros homens se maravilhavam, crescendo assim, com seu nome, a inveja que se lhe tinha.
Diz‑se que Torrigiano, de quem se tornara amigo, por brincadeira, mas movido pela inveja de vê-lo mais honrado e mais valoroso na arte, esmurrou‑o com tanta força que lhe fraturou o nariz, marcando‑o para sempre, razão pela qual foi banido de Florença, como já se disse alhures67.
[6. O Hércules e o Crucifixo de S. Spirito]
Morto o Magnífico Lorenzo, Michelangelo voltou à casa do pai com infinito luto pela morte de um homem tão amigo de todas as virtudes68. Por tal razão, Michelangelo comprou um grande bloco de mármore e escavou-lhe um Hércules de quatro braças, que por muitos anos esteve no palácio dos Strozzi, estimado como coisa admirável. Depois, no ano do assédio, foi enviado à França, ao rei Francisco, por Giovambattista della Palla69. Diz-se que Piero de’ Medici, que muito convivera com Michelangelo70 e assumira a herança de Lorenzo, seu pai, consultava-o frequentemente ao adquirir camafeus e outros entalhes71 e num inverno em que nevou muito em Florença, fê-lo fazer em seu pátio uma estátua de neve, belíssima, e homenageou sobremaneira Michelangelo por suas qualidades72, pois já o pai, começando a perceber que era estimado entre os grandes, vestira-o com mais honras que de costume.
Fez para a igreja de Santo Spirito da cidade de Florença um Crucifixo de madeira, posto e mantido na abside do altar-mor, com aprovação do prior73, que lhe pôs à disposição alguns cômodos onde, dissecando amiúde cadáveres para estudar anatomia, aperfeiçoou a grande arte do desenho que veio a ter74.
[7. A primeira estada em Bolonha]
Ocorreu então a expulsão dos Medici de Florença, mas Michelangelo algumassemanas antes já havia viajado a Bolonha e em seguida a Veneza, temendo que lhe adviesse, por ser muito chegado àquela casa, algum sinistro revés, haja vista as insolências e o mau governo de Piero de’ Medici75. Mas sem ter o que fazer em Veneza76, voltou a Bolonha, onde, por infelicidade, não cuidou de pegar na porta da cidade a senha de saída, como era então obrigatório, mercê da vigilância que Giovanni Bentivogli mantinha sobre os forasteiros, condenando os dela desprovidos a pagar cinquenta liras bolonhesas77. Incorrendo Michelangelo em tal contravenção e sem ter como pagar o exigido, seu caso foi compassivamente examinado por Gianfrancesco Aldovrandi, um dos dezesseis do governo, o qual, ciente do ocorrido, liberou-o e o trouxe ao seu convívio por mais de um ano78. 
Um dia Aldovrando levou-o para ver a arca de São Domingos, feita, como se disse, por Giovanni Pisano79, e depois pelo mestre Niccolò dell’Arca80, antigos escultores. E como faltava um anjo que segurava um candelabro e um São Petrônio, figuras de uma braça aproximadamente81, perguntou-lhe se tinha ânimo para fazê-las, ao que Michelangelo respondeu que sim. Providenciado o mármore, esculpiu então as melhores figuras que ali estão, recebendo de Aldovrando trinta ducados por ambas82. 
Michelangelo demorou-se em Bolonha pouco mais de um ano e teria ficado mais para satisfazer à cortesia de Aldovrandi, que admirava seu desenho e deleitava-se, agradando-lhe em Michelangelo a pronúncia toscana, à leitura que este lhe fazia de Dante, Petrarca, Boccaccio e outros poetas toscanos83. Sabendo, contudo, que estava a perder tempo, voltou de bom grado a Florença84.
 [8. O San Giovannino, o Cupido e a primeira viagem a Roma]
Fez para Lorenzo di Pierfrancesco de’ Medici85, em mármore, um S. Giovannino86 e em seguida, de outro mármore, pôs-se a fazer um Cupido adormecido87, em tamanho natural, bela obra, apresentada por intermédio de Baldassare del Milanese88 a Pierfrancesco, que lhe disse, após a examinar: “Se a enterrasseis, estou certo que passaria por antiga; manda-la-ías a Roma com aparência envelhecida e ganharíeis muito mais do que se a vendesseis aqui”. Diz-se que Michelangelo então a preparou para que parecesse antiga, o que não é de admirar, pois tinha engenho para isso e mais89. Segundo alguns, Milanese levou-a a Roma e enterrou-a em um vinhedo de sua propriedade para, em seguida, vendê-la como antiguidade ao cardeal de San Giorgio90, por duzentos ducados. Dizem outros que o cardeal a comprou de um agente de Milanese, que escreveu a Pierfrancesco para que fizesse dar a Michelangelo trinta escudos, que mais não obtivera pelo Cupido, enganando assim o cardeal, Pierfrancesco e Michelangelo. Mas revelado depois, por quem a havia visto, que a peça era feita em Florença, Pierfrancesco simulou que se inteirara da verdade por intermédio de um seu enviado e tanto fez, que o agente de Milanese enviou-lha de volta91.	
Recuperado, o Cupido passou depois para as mãos do duque Valentino, que o deu à marquesa de Mântua92, sendo enfim levado para esta cidade, onde ainda hoje é visto93. Isto não se passou sem os reclamos do cardeal S. Giorgio, incapaz de reconhecer a virtude da obra, que consiste na perfeição, pois que equivalem as modernas às antigas, quando excelentes. Maior vaidade é a dos que preferem nomes a fatos, gênero de homens que se encontra em todos os tempos e que leva mais em conta o parecer que o ser94.
O caso deu, entrementes, tal reputação a Michelangelo, que foi imediatamente levado a Roma95 e introduzido ao cardeal S. Giorgio, com quem esteve por um ano, sem que ele, pouco versado em arte, nada lhe encomendasse96. Nessa ocasião, um barbeiro do cardeal que fora pintor e a têmpera coloria muito bem, embora não tivesse desenho, tornou-se amigo de Michelangelo, que lhe fez um cartão de um S. Francisco recebendo os estigmas. O barbeiro aplicou-o sobre uma madeira e coloriu-o com grande diligência, e hoje esta pintura está em uma primeira capela à esquerda de quem entra, em S. Pietro in Montorio97.
[9. O Cupido Galli, o Baco e a Pietà]
	As qualidades de Michelangelo chegaram então ao conhecimento de Iacopo Galli98, fidalgo romano de grande engenho, que lhe encomendou um Cupido de mármore99, de tamanho natural, ao lado de uma figura de Baco de dez palmos, com uma taça na mão direita e, na esquerda, uma pele de tigre e um cacho de uvas que um satirozinho tenta comer. Vê-se bem como Michelangelo procurou dar a essa figura maravilhosa articulação entre os membros e, particularmente, a esbelta juventude do homem e a carnação roliça da mulher, algo admirável, em que se mostrou superior a qualquer moderno que houvesse até então trabalhado100.
	Com a estada em Roma, tanto conquistou no estudo da arte, que era inacreditável quão altos iam seus pensamentos, e a maneira difícil que com facílima facilidade101 dominava, para o espanto não só dos que não estavam habituados a ver tais coisas, como também dos afeitos às belas, porque as obras que se viam pareciam nada comparadas às suas, o que suscitou no cardeal francês de Saint-Denis, chamado cardeal Rovano102, francês, o desejo de deixar mediante artista tão insigne digna memória de si em cidade tão famosa. E encomendou-lhe uma Pietà de mármore, que, terminada, foi posta em São Pedro na capela da Virgem Maria della Febbre, no templo de Marte103, obra que nenhum escultor ou artista insigne julgue poder jamais igualar em desenho e graça, ou com sumo esforço ser capaz de tal finura e acabamento e de perfurar o mármore com tanta maestria quanto Michelangelo o fez, porque nela se entrevêem todo o valor e o poder da arte. Em meio ao que de belo aí se vê, além de seu panos divinos104, está o Cristo morto, e não se pense ver outro de tanta beleza de membros e artifício de corpo105, um nu tão bem dotado de músculos, veias, nervos sobre a ossatura, nem um morto mais semelhante ao morto106. É dulcíssimo o semblante107 e tal a concordância na articulação e na conjunção dos braços, do corpo e das pernas108 e tão trabalhados os pulsos e as veias, que o próprio assombro se maravilha109 que mão de artista tenha podido tão divina e apropriadamente fazer em tão pouco tempo110 algo tão admirável. Porque é decerto milagre que uma pedra, de início sem forma alguma, seja elevada àquela perfeição com que só a custo a natureza plasma-se na carne111. Puderam tanto o amor de Michelangelo e o labor nesta obra, que nela (abstendo-se de fazê-lo em outras) deixou o seu nome escrito de través em uma cinta de que o peito de Nossa Senhora se cinge. Isto porque, ao entrar um dia na capela em que está posta, Michelangelo deparou com grande número de forasteiros lombardos que muito a elogiavam. Mas à pergunta de um deles sobre quem a havia feito, respondeu o outro: “O nosso Gobbo de Milão”112. Michelangelo ficou quieto, mas lhe pareceu estranho que seus trabalhos fossem atribuídos a outros. Uma noite trancou-se na capela com uma luzinha e, tendo trazido os cinzéis, ali entalhou seu nome113. 
E tanto é assim que, por ser a figura verdadeira e viva, disse um belíssimo espírito114:
Bellezza et onestate,
E doglia e pièta in vivo marmo morte, 
Deh, come voi pur fate, 
Non piangete sì forte 
Che anzi tempo risveglisi da morte, 
E pur, mal grado suo, 
Nostro Signore e tuo, 
Sposo, figliuolo e padre, 
Unica sposa sua, figliuola e madre.
(Beleza e honestidade, / E luto e piedade em vivo mármore mortas, / Ai, como fazeis para / Não chorar tão forte / Que antes do tempo ele se desperte da morte, / Malgrado seu, Nosso Senhor, e teu / Esposo, filho e pai, / Única esposa sua, filha e mãe).
O que lhe grangeou grandíssima fama. Alguns tolos dizem que ele fez a Nossa Senhora demasiado jovem, mas não percebem, não sabem eles que as pessoas virgens, imaculadas, mantêm-se jovens e por muito tempo conservam o semblante sem marca, e que com os aflitos, como foi Cristo, sucede o contrário?115 E é esta a razão por que tal obra acrescentou muito mais à glória e fama à virtudedele que todas as anteriores.
[10. O retorno a Florença e o Davi]
Foi-lhe escrito de Florença, da parte de alguns amigos, que retornasse116, pois não era fora de cogitação obter aquele mármore desperdiçado na Catedral117, que Pier Soderini, eleito então gonfaloniere118 vitalício daquela cidade, havia pensado muitas vezes em confiar a Leonardo da Vinci119, e agora estava em vias de dar ao mestre Andrea Contucci dal Monte Sansavino120, excelente escultor que tentava consegui-lo121; e Michelangelo, conquanto fosse difícil fazer ali uma figura de peça única, para o que não bastava a simples vontade de qualquer outro, senão a sua, e como tinha já há muitos anos o desejo de fazê-lo, veio a Florença com esta disposição122.
Era de nove braças este mármore, no qual por má sorte certo mestre Simone da Fiesole123 começara um colosso; mas tão mal iniciara a obra, que a tinha furado entre as pernas e a tudo tão mal conduzido e estropiado, que os Operai124 de S. Maria del Fiore125, que a tinham sob custódia, sem cuidar em terminá-la, haviam-na tempos atrás posto de lado e assim como estavam deviam as coisas continuar126. Michelangelo esquadrinhou de novo o mármore e julgando poder-se extrair uma razoável figura daquele bloco, adaptando-se sua posição ao bloco estropiado por mestre Simone, decidiu pedi-lo aos Operai e a Soderini, os quais, por considerá-lo inútil, lho concederam, pensando que qualquer coisa que dele se fizesse seria melhor que o deixar no estado em que se encontrava, do qual nada de útil resultava para os trabalhos da Catedral. Michelangelo fez então, num modelo de cera127, para servir de emblema ao palácio128, um Davi jovem com uma funda, de modo que, assim como defendera seu povo e o governara com justiça, assim também quem governava aquela cidade devia resolutamente defendê-la e justamente governá-la129. E começou-o na fábrica de S. Maria del Fiore, na qual fechou um espaço entre a parede e divisórias de madeira, e ao mármore assim circundado130, trabalhando-o sem pausa, sem que ninguém o visse, conduziu à suprema perfeição131. O mármore que mestre Simone estropiara e danificara fora em alguns pontos tão desbastado, que já não bastava ao que Michelangelo queria. Esculpiu-o, mas na extremidade do mármore eram ainda visíveis algumas das primeiras cinzeladas de mestre Simone132; e foi, decerto, milagre de Michelangelo ressuscitar o que estava morto133. Encontrava‑se essa estátua, quando finda, em tais condições, que várias foram as discussões travadas para conduzi‑la à praça de' Signori134. Para tanto, Giuliano da Sangallo e Antonio, seu irmão135, construíram uma armação de madeira fortíssima, na qual suspenderam com cordas a figura de modo que não se rompesse em caso de algum solavanco, mas viesse balançando; e com traves plainas apoiadas no solo, puxaram‑na com engrenagens de correntes e puseram‑na em movimento. Na corda que mantinha suspensa a figura, fez-se um laço, facílimo de correr, que cerrava segundo a pressão do peso, coisa belíssima e engenhosa, que tenho ainda em nosso livro, desenhado por sua mão136, e que é notável, seguro e forte no amarramento de pesos. 
Aconteceu então que Pier Soderini, vendo de pé a estátua, que muito lhe agradara, disse a Michelangelo – que entrementes a retocava em certos pontos137 –, que o nariz parecia muito grande. Michelangelo percebeu que o gonfaloniere estava sob o colosso e que seu ponto de vista não lhe permitia correto ângulo de visão, mas para satisfazê-lo, subiu no andaime às costas da figura e, pegando um cinzel com a mão esquerda, com um pouco de pó de mármore que ali havia, começou a bater de leve com o cinzel, enquanto deixava cair aos poucos o pó, sem entretanto tocar no nariz. Voltando‑se então para o gonfaloniere, que estava em baixo, disse: "Olhe agora". "Assim, agrada‑me mais", disse o gonfaloniere, "você deu‑lhe vida". Rindo‑se consigo mesmo, Michelangelo desceu, contente por ter satisfeito aquele senhor, mas compadecido dos que, posando de entendidos, não sabem do que falam138.
Quando enfim a escultura foi fixada e terminada, Michelangelo descobriu‑a139 e verdadeiramente esta obra suplantou140 todas as estátuas modernas e antigas, gregas ou latinas141. Pode‑se dizer que nem o Marforio de Roma, nem o Tibre ou o Nilo do Belvedere142 ou os colossos de Montecavallo143 lhe são equiparáveis em nenhum aspecto, tal a medida e beleza e tal a felicidade com que a levou a termo. Pois nela mostram-se contornos de pernas belíssimas, articulações e esbelteza de flancos divinas; nem dantes se viu tão doce pose, nem graça que a ela se compare, nem pés, nem mãos, nem cabeça que com os membros tanto se harmonizem, com felicidade, artifício, paridade e desenho144. E decerto quem a vê não deve cuidar em ver qualquer outra obra de escultura feita em nossos ou em outros tempos, por qualquer artista.
[11. O Davi em bronze, os tondos e o São Mateus]
Michelangelo recebeu de Pier Soderini, por sua mercê, 400 escudos145 , tendo sido a obra erguida no ano de 1504. E pela fama que graças a ela conquistou como escultor, fez para o gonfaloniere um Davi em bronze, belíssimo, que ele mandou para a França146. E nesse mesmo período esboçou, sem os terminar, dois tondos147 de mármore, um para Taddeo Taddei, hoje em sua casa148, e para Bartolomeo Pitti149, outro que, por frei Miniato Pitti de Monte Oliveto, conhecedor como poucos de cosmografia e de muitas ciências, e particularmente de pintura150, foi dado a Luigi Guicciardini, de quem era grande amigo151. Ambas as obras foram tidas por egrégias e admiráveis. E foi ainda na mesma época que esboçou uma estátua de mármore de São Mateus em S. Maria del Fiore152, que, assim esboçada, mostra a sua perfeição e ensina aos escultores de que modo se retiram figuras dos mármores sem estropiá-los. Pois é preciso desbastá-los sempre com o juízo, conservando-os de maneira a se poder, em caso de necessidade, subtrair matéria e mudar algo153. 
[12. A Madona de Bruges e o Tondo Doni]
Fez ainda em bronze uma escultura de Nossa Senhora154 por encomenda de certos comerciantes flamengos da família Moscheroni155, pessoas nobilíssimas em seus países, que por ela pagaram cem escudos156 e a enviaram para Flandres.
Agnolo Doni – cidadão florentino e amigo seu157, que muito se deleitava com belas obras de artistas antigos e modernos158 –, teve vontade, então, de possuir uma obra de Michelangelo. Começou-lhe este a pintar um tondo159 com uma Nossa Senhora ajoelhada sobre as pernas, segurando uma criança e estendendo-a a José que a recebe. Michelangelo mostra, no voltar-se da cabeça da mãe de Cristo e nos olhos demorados na suma beleza do filho, o maravilhoso contentamento dela e o afeto com que o compartilha com o santíssimo velho, que o segura com o mesmo amor, ternura e reverência, como bem se lhe observa no rosto, já à primeira vista. Michelangelo, não lhe bastando isto, e para mostrar ainda mais ser grandíssima sua arte, pintou ao fundo diversos nus, apoiados, de pé e sentados160, e com tal diligência e acabamento trabalhou esta obra que das suas pinturas sobre madeira, embora poucas161, é decerto considerada a mais acabada e bela. Terminada, mandou-a por um portador, coberta e com a fatura, à casa de Agnolo, pedindo‑lhe setenta ducados por pagamento. Pareceu estranho a Agnolo, que era pessoa sensata, gastar tanto em uma pintura, mesmo sabendo que valia mais, e disse ao portador que quarenta bastavam e deu‑lhos. Michelangelo restituiu‑lhos, exigindo já cem ducados, ou a pintura de volta. Diante disso, Agnolo, a quem a obra agradava, disse: "Eu lhe darei aqueles setenta". Mas ele não apenas não se contentou, como, pela pouca confiança demonstrada por Agnolo, cobrou o dobro do que lhe pedira inicialmente. E Agnolo, que quis a pintura, foi forçado a mandar‑lhe cento e quarenta162.
[13. A Batalha de Cascina]
A pintar na sala grande do Conselho163 estava Leonardo da Vinci, pintor raríssimo como em sua Vida se narra164, e Piero Soderini, então gonfaloniere,confiou a Michelangelo, pelas grandes qualidades que lhe reconhecia, uma parte daquela sala165, o que o levou, competindo com Leonardo, a cuidar da outra parede, para a qual escolheu por tema a guerra de Pisa166. Para tanto, Michelangelo instalou‑se em uma sala do Spedale de' Tintori, em Sant’Onofrio e aí começou um grandíssimo cartão, não permitindo, porém, que ninguém o visse167. E o fez pleno de nus, que se banhavam por causa do calor no rio Arno no momento em que soava o alarme no campo, figurando-os sob o assalto inimigo; e enquanto os soldados abandonavam as águas para vestir-se, viam‑se pelas divinas mãos de Michelangelo, um a armar‑se, apressado, para auxiliar os companheiros, outro a afivelar‑se a couraça, e muitos a endossar outras armas, e infinitos, a cavalo, a começar a escaramuça168. Surgia entre outras figuras a de um velho sentado que, para se fazer sombra, cobrira‑se com uma guirlanda de hera e não conseguia vestir as calças por ter as pernas úmidas e, ouvindo o tumulto dos soldados e os gritos e o rufo dos tambores, apressava‑se a enfiá‑las à força; e além de se ver nele todos os músculos e nervos, fazia uma contorção na boca que bem demonstrava quanto sofria e se empenhava até a ponta dos pés. Havia os tambores também e figuras que, apenas envoltas em panos, corriam nuas ao encontro da rixa, em posições extravagantes, estes eretos, aqueles ajoelhados ou curvados ou suspensos no ar esboçados em escorços difíceis. Havia ainda muitas figuras agrupadas e em várias maneiras esboçadas, umas com contorno a carvão, outras desenhadas a traço, outras ainda esfumadas e realçadas com branco169, desejando ele mostrar quanto conhecesse no ofício do desenho170, o que deixou assombrados os artistas, ao lhes ser mostrado o cartão, tão superlativa era sua arte171. 
Quem viu tão divinas figuras, assegura nada haver de sua própria mão ou de outras que se assemelhe e que engenho algum igualará tão divina arte172. E é certamente de crer, porque após terminado o cartão e levado à Sala do Papa173 com grande notoriedade da arte e grandíssima glória de Michelangelo, todos os que, forasteiros ou conterrâneos, o estudaram e desenharam, como viria a ocorrer por muitos anos em Florença, tornaram‑se pessoas excelentes em tal arte, como Aristotile da Sangallo, amigo seu174, Ridolfo Ghirlandaio175, Rafael Sanzio da Urbino176, Francesco Granacci177, Baccio Bandinelli178 e Alonso Berugette espanhol179; em seguida, Andrea del Sarto180, Franciabigio181, Iacopo Sansovino182, Rosso183, Maturino184, Lorenzetto185 e Tribolo, então criança186, Iacopo da Pontormo187 e Perin del Vaga188, todos eles ótimos mestres florentinos189. Assim, tornando‑se este cartão modelo de estudo, foi levado à casa dos Medici, no salão superior190, onde sua conservação ficou confiada em demasia apenas aos artistas. Com a enfermidade do duque Giuliano191, enquanto ninguém atentava ao cartão, foi, como se disse alhures, rasgado, desmembrado em muitas partes e dispersado, como atestam alguns fragmentos ainda existentes em Mântua, na casa de Uberto Strozzi, fidalgo mantuano, que os conserva com grande reverência192.
[14. Roma e a encomenda do Sepulcro]
Era tal a fama de Michelangelo, pela Pietà, pelo Colosso de Florença193 e pelo cartão, que, sobrevinda em 1503 a morte do Papa Alexandre VI194 e eleito Júlio II194, Michelangelo (aos vinte e nove anos aproximadamente)196, foi chamado a Roma pelo novo papa, com grande distinção sua, para lhe fazer o sepulcro197. Para as despesas de viagem foram‑lhe pagos cem escudos por intermédio dos oradores de Julio II198. Em Roma, ficou muitos meses antes que este o incumbisse de algo199. Finalmente, resolveu‑se por um desenho, ótimo testemunho da virtude de Michelangelo que, em beleza e soberba, em ornamento e riqueza de estátuas, suplantava qualquer antigo e imperial sepulcro200. Tal foi o entusiasmo do papa Júlio pelo desenho, que decidiu, para abrigar sua sepultura, refazer inteiramente a igreja de São Pedro de Roma, como se disse alhures201.
Michelangelo lançou‑se ao trabalho com grande ânimo e para dar‑lhe início foi com dois aprendizes a Carrara202 extrair todos os mármores necessários, obtendo por conta disso, em Florença, mil escudos de Alamanno Salviati203, com os quais passou sem outras rendas ou provisões oito meses naqueles montes204. E como que convidado por aqueles rochedos, veio‑lhe a fantasia de esculpir para deixar memória de si, como já o haviam feito os antigos, estátuas colossais205. Escolhidos, embarcados na marina206 e conduzidos à Roma, os mármores ocuparam metade da praça de São Pedro, nas imediações de Santa Catarina207, entre a igreja e o corredor que vai ao Castelo208, onde Michelangelo tinha montado o ateliê209 para trabalhar as figuras e o resto da sepultura; e para que comodamente pudesse ir vê‑lo trabalhar, o Papa mandou fazer uma ponte elevada desde o corredor o ateliê, tornando‑se‑lhe assim muito próximo, de modo que tais favores com o tempo causaram a Michelangelo grandes contrariedades e perseguições, gerando muita inveja entre os demais artistas do Papa210.
Desta obra, executou Michelangelo durante a vida de Júlio e após a morte dele quatro estátuas terminadas e oito esboçadas, como se dirá oportunamente211. E como foi composta com grandíssima invenção, relataremos aqui sua ordem, tal como ele a concebeu212. Para que mostrasse maior grandeza quis que ficasse isolada, de modo que se pudesse vê‑la dos quatro lados, que mediam dozes braças por dezoito, na proporção de um quadrado e meio213. Tinha uma ordem de nichos exteriores que a percorria inteiramente, nos quais se entremeavam hermas vestidas da cintura para cima, cujas cabeças sustentavam a primeira cornija e cada figura com estranha e bizarra atitude mantinha amarrado um prisioneiro nu, que pousava os pés na saliência de uma base214. Estes prisioneiros eram todas as províncias subjugadas pelo pontífice e reduzidas à obediência da Igreja apostólica215; e outras estátuas diversas, também amarradas, eram todas as virtudes e artes do engenho que se mostravam sujeitas à morte, não se servisse aquele pontífice delas tão honradamente216. Nos cantos da primeira cornija, sucediam‑se quatro figuras grandes, a Vida ativa, a Vida contemplativa, São Paulo e Moisés217.
 Acima da cornija, a obra ascendia em gradual diminuendo, com uma frisa de histórias em bronze e outras figuras, anjos e ornamentos em torno. E encimando tudo havia, enfim, duas figuras, uma era o Céu, que, risonho, sustentava nos ombros uma arca218, e outra, Cibele, deusa da Terra, a quem parecia doer permanecer no mundo, privando‑se, com morrer este homem, de todas as virtudes. E o Céu parecia rir, que sua alma ascendera à glória celeste. Era previsto no projeto que se pudesse entrar e sair pelas extremidades do retângulo, por entre nichos, e que o interior fosse como um templo de planta elíptica no centro do qual jazeria em um caixão o corpo morto daquele Papa. Compunham toda a obra quarenta estátuas de mármore219, além de cenas historiadas, gênios, ornamentos e todas as cornijas e outras membraturas da arquitetura adornadas com motivos em relevo220. 
Para facilitar o trabalho, Michelangelo ordenou que uma parte dos mármores fosse levada a Florença, onde planejava, para fugir aos maus ares de Roma221, vez ou outra passar o verão. Em Florença executou em diversas peças uma das fachadas desta obra, com todos os detalhes222, e em Roma terminou com as próprias mãos dois prisioneiros, figuras realmente divinas, e outras estátuas de qualidade insuperável que não foram incluídas no sepulcro223. Michelangelo deu estes prisioneiros ao senhor Roberto Strozzi, por se encontrar enfermo na casa dele224. E estas esculturas foram depois dadas ao rei Francisco, estando hoje em Cevan, na França225. Em Roma, esboçou oito estátuas e em Florença, cinco226; terminou uma Vitória sob a qual havia um prisioneiro227, hoje em poder do duque Cosimo, doada que foi por seu sobrinho, Leonardo, à Sua Excelência, que a colocou na sala grande de seu palácio, pintadapor Vasari228.
[15. O Moisés e o retorno a Florença]
Terminou o Moisés, de cinco braças, de mármore229, estátua que não terá jamais coisa moderna que lhe possa disputar a beleza, e das antigas pode‑se dizer o mesmo230: sentando‑se com gravíssima atitude231, pousa um braço sobre as tábuas seguras por uma das mãos, e com a outra traz a barba anelada e longa232, esculpida no mármore em tal maneira, que os cabelos, onde tanta dificuldade encontra a escultura, são executados muito sutilmente plumosos, suaves, desfiados, a ponto de o ferro parecer transformar-se em pincel233. Além disso, parece que ao contemplares a beleza da face, com aura de verdadeiro santo e terribilíssimo príncipe, sintas o desejo de pedir-lhe um véu para cobri-la, tão esplêndida e brilhante se mostra234. E tão bem retratou no mármore a divindade que Deus emprestara àquele santíssimo semblante, para não falar dos panos revoltos, finalizados no giro belíssimo das pregas, dos músculos dos braços e da ossatura e nervos das mãos, executados com tanta beleza e perfeição, e das pernas, dos joelhos e dos pés tão bem plantados, que Moisés pode, hoje mais que nunca, chamar‑se amigo de Deus, que tão antes dos outros quis, pelas mãos de Michelangelo, compor‑lhe e preparar‑lhe o corpo para a ressurreição235. E prossigam os judeus, como fazem a cada Sabath, homens e mulheres, tal qual estorninhos, a ir em fila visitá‑lo e adorá‑lo, que não o adorarão como coisa humana, mas divina236. Chegou‑se enfim a um acordo sobre a destinação desta obra, murando‑se mais tarde das quatro partes a face menor em S. Pietro in Vincoli237.
Diz‑se que enquanto Michelangelo fazia esta obra, chegou a Ripa238 o restante dos mármores para a sepultura, que haviam permanecido em Carrara, os quais foram levados à praça de São Pedro. E como se havia de pagar a quem os transportara, Michelangelo como de hábito foi ter com o Papa. Naquele dia, contudo, Sua Santidade tinha questões de importância relativas à Bolonha239, e assim Michelangelo voltou para casa e pagou do próprio bolso pelos mármores, certo de ter imediato acordo de Sua Santidade. Voltou outro dia para falar disso com o Papa, mas foi barrado por um palafreneiro que, alegando ordens de não o deixar passar, disse‑lhe que esperasse. Um bispo perguntou então ao palafreneiro: "Não conheces talvez este homem?". "Conheço‑o e muito bem", retrucou o palafraneiro, "mas estou aqui para fazer o que me ordenam meus superiores e o Papa"240. Aborrecido e sentindo que aquele impedimento contrariava sua experiência anterior, Michelangelo mandou com desdém dizer à Sua Santidade, quando o procurasse, que havia partido241. E voltando para casa às duas horas da madrugada, tomou a diligência dos correios, deixando aos dois criados ordens para que vendessem todas as coisas de casa aos judeus242 e o seguissem a Florença; e parou apenas em Poggibonsi, já seguro, pois que sob jurisdição dos Florentinos243. Nem bem o fizera, chegaram cinco mensageiros com cartas do Papa para levá‑lo de volta, mas Michelangelo não quis saber nem dos rogos, nem da carta que lhe ordenava o retorno, sob pena de desgraça. Finalmente, os pedidos dos mensageiros persuadiram‑no a escrever algumas palavras à Sua Santidade, com as quais pedia que o perdoasse, que não voltaria mais à sua presença, pois o fizera expulsar como a um miserável, que a sua fiel solicitude tal não merecia e que se provesse alhures de quem necessitasse244. 
Os três meses em que demorou em Florença, Michelangelo dedicou‑os ao término do cartão da sala grande, pois Pier Soderini desejava que iniciasse a pintura245. Entrementes, chegaram à Signoria três breves246, solicitando o envio de Michelangelo a Roma. Vendo a fúria do Papa e duvidando de suas intenções247, cogitou ele, segundo se diz, ir a Constantinopla, por intermédio de certos frades de S. Francisco, a serviço do Turco, que o desejava para fazer uma ponte de Constantinopla a Pera248. Foi, contudo, persuadido por Pier Soderini a ir ter com o Papa, mesmo a contragosto, mas por medida de segurança na qualidade de pessoa pública com o título de embaixador da cidade249 e recomendado ademais aos cuidados do cardeal Soderini, seu irmão, que o introduziu ao Papa e o enviou a Bolonha, onde já havia chegado Sua Santidade. Conta‑se ainda de outro modo esta partida de Roma250: que o Papa zangara‑se com Michelangelo porque este não permitia que visse seus trabalhos. Michelangelo começou então a duvidar dos auxiliares e a suspeitar que, disfarçado, o Papa visse o que fazia, como ocorreu mais de uma vez quando não estava em casa ou no ateliê em que trabalhava. E tendo o Papa subornado seus aprendizes com dinheiro para entrar e ver a capela de Sisto, seu tio, cuja decoração, como se disse acima, fora‑lhe encomendada, Michelangelo, desconfiando de traição, certa feita escondeu‑se e quando o Papa entrou na capela arremessou contra ele umas tábuas e, furioso e sem pensar a quem o fazia, obrigou‑o a retirar‑se. Basta saber que, de um modo ou de outro, destratou o Papa e depois temeu, a ponto de precisar furtar‑se à sua presença251.
[16. Segunda estada em Bolonha e a estátua de Júlio II]
Em Bolonha252, mal acomodara as botas, foi conduzido pelos próximos do Papa à Sua Santidade, que estava no Palácio de' Sedici, acompanhado por um bispo enviado pelo cardeal Soderini, o qual, adoentado, não pudera ir. Em presença do Papa, Michelangelo ajoelhou‑se e Sua Santidade, olhando‑o de soslaio e como que desdenhoso, disse‑lhe: "Em vez de vires tu a nos encontrar, esperaste que viéssemos a teu encontro?", aludindo ao fato que Bologna é mais próxima de Florença que Roma. Michelangelo, com gesto cortês e em voz alta pediu humildemente perdão, desculpando‑se do que havia feito por desdém, não suportando ter sido expulso daquele modo, e que, tendo errado, novamente o perdoasse. O bispo que introduzira Michelangelo ao Papa, escusando‑o, dizia à Sua Santidade que tais homens são ignorantes e que fora de sua arte não valiam para outra coisa e que de boa vontade o perdoasse. O Papa então encolerizou-se e com um bastão que tinha à mão golpeou o bispo, dizendo‑lhe: "Ignorante és tu, que lhe atribui vilania, que tal não o fazemos nós"253. Assim, os palafreneiros empurraram o bispo a sopapos254 porta fora, e o Papa, aliviada a cólera sobre ele, abençoou Michelangelo, mantendo‑o em Bolonha com dons e esperanças, pois Sua Santidade ordenou‑lhe que o retratasse em uma estátua de bronze de cinco braças de altura, na qual Michelangelo empregou arte belíssima na atitude, porque em tudo a escultura tinha majestade e grandeza e nos panos mostrava riqueza e magnificência e no rosto, ânimo e força, decisão e terribilidade255. Foi posta em um nicho sobre a porta de S. Petrônio256. Diz‑se que, enquanto Michelangelo a trabalhava, acercou‑se‑lhe o Francia, ourives e pintor excelente257, para vê‑la, pois embora já bom conhecedor de sua fama e dos elogios que se faziam dele e de suas obras, não vira ainda nenhuma. Alguns mediadores intervieram e a demanda foi‑lhe concedida. Vendo então a arte de Michelangelo, assombrou‑se. E ao lhe perguntarem o que achava daquela figura, respondeu que era uma belíssima fundição e bela matéria. Parecendo a Michelangelo que ele louvasse mais o bronze que a arte, disse: "Eu tenho a mesma obrigação ao Papa Júlio pelo bronze que me deu, que vós aos speziali que vos dão os pigmentos para pintar" e, encolerizado, em presença daqueles senhores, disse-lhe que era um tolo258. E com o mesmo propósito, deparando com um filho do Francia, um jovenzinho muito bonito, disse‑lhe: "Teu pai faz mais belas figuras vivas, que pintadas"259. Entre os mesmos senhores houve um, não sei qual, que perguntou a Michelangelo o que acreditava ser maior, se a estátua daquele Papa, ou se um par de bois; a que ele respondeu: "Depende do boi: se destes bolonheses, ah, sem dúvida são menores os nossos de Florença"260. Michelangelo executou esta estátua em terracota antes que o Papa retornasse a Roma e indo Sua Santidade vê‑la261, não sabia ele o que lhepôr na mão esquerda, levantando a direita com um gesto tão orgulhoso, que o Papa perguntou se ela abençoava ou amaldiçoava. Respondeu que advertia o povo de Bolonha que fosse ajuizado262. E consultada Sua Santidade sobre se lhe parecia dever‑se pôr um livro na esquerda, disse: "Ponha uma espada, pois nada sei das letras"263. O Papa deixou no banco de Antonmaria da Lignano mil escudos para terminá‑la e, ao cabo de dezesseis meses de labuta para finalizá‑la264, foi ela colocada na entrada da igreja de S. Petronio, na fachada externa, como já se disse, assim como já me referi às suas dimensões. Esta estátua foi arruinada pelos Bentivogli e seu bronze, vendido ao duque Alfonso de Ferrara, que dele fez uma peça de artilharia chamada Giulia, salvando‑se apenas a cabeça, que se conserva entre seus pertences265.
[17. Os afrescos da abóbada da Capela Sistina]
O Papa retornara a Roma enquanto Michelangelo executava esta estátua266. Em sua ausência, Bramante, amigo e parente de Rafael da Urbino267, e por isso pouco amigo de Michelangelo, percebendo que o Papa favorecia e exaltava suas esculturas, procurava, com Rafael, dissuadir Sua Santidade de empregar Michelangelo, quando voltasse a Roma, na conclusão de sua sepultura, dizendo que quem fazia seu sepulcro em vida parecia querer apressar a morte e atrair-se mau agouro268. E persuadiram-no a encomendar a Michelangelo, ao seu retorno, que, em memória de Sisto, seu tio, pintasse a abóbada da capela que ele havia feito no palácio269. Bramante e outros êmulos de Michelangelo julgavam assim afastá-lo da escultura, onde o viam perfeito, e levá-lo ao desespero, pensando que, por causa da inexperiência na pintura em afresco, deveria realizar obra menos louvável e menos exitosa que a de Rafael. E ainda que Michelangelo se mostrasse capaz de realizá-la, fariam-no se indispor de todas as maneiras com o Papa, atingindo assim, de um modo ou de outro, o intento de se livrar dele270. Foi assim que o Papa, decidido a não terminar o sepulcro, procurou Michelangelo ao retorno deste271 para que pintasse o teto da capela. A Michelangelo, que desejava terminar o sepulcro, o teto da capela parecia trabalho grande e difícil, considerando sua pouca familiaridade com as cores, de modo que tentou de qualquer maneira livrar-se deste peso, sugerindo Rafael em seu lugar272. Mas quanto mais recusava, mais fortalecia a vontade do Papa, impetuoso em suas empresas e, além disso, mais e mais estimulado pelos êmulos de Michelangelo e especialmente por Bramante, de tal maneira que o Papa, que era impulsivo, estava a ponto de enfurecer-se. Visto que Sua Santidade perseverava neste projeto, Michelangelo resolveu realizá-lo273. 
O Papa encomendou então a Bramante que fizesse o andaime para que se pudesse pintar o teto. Ele o fez todo suspenso em cordas fincadas no teto, à vista das quais Michelangelo perguntou a Bramante como se obturariam as perfurações do teto, uma vez terminados os trabalhos. “Nisto se pensará depois”, respondeu ele, alegando que não era possível fazer de outro jeito. Michelangelo percebeu que Bramante, ou era pouco competente na matéria, ou pouco amigo, e foi ter com o Papa. Disse-lhe que os andaimes não estavam bons e que Bramante não os soubera montar, ao que o Papa respondeu, em presença de Bramante, que os fizesse a seu modo. Ordenou assim, Michelangelo, que fossem apoiados sobre escoras de modo que não tocassem a parede. Mais tarde, ensinou tal solução a Bramante e a outros, que assim aprenderam a armar abóbadas e a realizar belas obras. Ao marceneiro que lhe refez os andaimes, Michelangelo deu todas as cordas, cuja venda garantiu o dote para a filha274.
	Iniciados os cartões para esta abóbada, quis ainda o Papa que se destruíssem as fachadas outrora pintadas por mestres do tempo de Sisto275. E determinou que receberia pelo custo total da obra quinze mil ducados, preço calculado por Giuliano da Sangallo276. Forçado pela grandeza da empresa, Michelangelo decidiu pedir ajuda, e mandou buscar homens em Florença277, decidido que estava a subjugar os que o haviam precedido na capela278, mostrando também aos artistas modernos como se desenha e se pinta279. O tema dos afrescos, por sua vez, estimulou-o a elevar-se tão alto em fama e em prol da salvação da arte280, que ele iniciou os cartões e não descansou enquanto não os deu por findos281. Chegado o momento de passar às cores em afresco, e não tendo feito mais que os cartões282, entraram em cena, de Florença, alguns pintores amigos seus, para lhe prestar auxílio e lhe mostrar uma técnica em que alguns eram experientes283. Contavam-se entre eles, Granacci284, Giuliano Bugiardini285, Iacopo di Sandro286, Indaco, o Velho287, Agnolo di Donnino288 e Aristotile289. A obra iniciou-se com alguns testes, cujos resultados permaneciam, contudo, por demais distantes de sua ambição. Insatisfeito, Michelangelo resolveu certa manhã deitar por terra tudo o que haviam feito seus auxiliares. E fechou-se na capela, nela não mais os admitiu e nem sequer em casa aceitou recebê-los. Frente a tal desfeita, e como esta durasse, todos por fim melindraram-se e voltaram para Florença, não pouco envergonhados. Quanto a Michelangelo, resolvido a desincumbir-se só de toda a empresa, levou-a a boníssimo termo, com máximo desvelo e sem se poupar fadiga ou estudo290. Esquivava-se de todos para que não se criasse ocasião em que devesse mostrar a obra em curso, o que apenas espicaçava a curiosidade geral291. 
	O Papa Júlio nutria grande desejo de ver as obras que ali nasciam, tanto mais por sabê-las tão defendidas. Um dia, resolveu examiná-las, mas não lhe foi aberta a porta de acesso, pois Michelangelo determinara nada lhe mostrar. De onde o já referido desentendimento, que o levou a deixar Roma292. E não as queria mostrar porque, segundo o que dele próprio ouvi a fim de esclarecer esta dúvida, havendo executado um terço dos afrescos, começaram a surgir certos mofos em decorrência de uma invernada trazida pelo tramontano. Isto se deve a que a cal de Roma, por ser branca de travertino, não seca tão rapidamente e, misturada com a pozzolana, taninosa de cor, produz uma resultante escura. Ao secar, este preparado aquoso aplicado sobre a parede molhada faz frequentemente aflorar mofo e, de fato, em vários pontos do afresco despontavam aqueles humores salinos, que, contudo, se consumiriam com o tempo ao simples contato com o ar. Michelangelo estava por isso tão desesperado, que não queria prosseguir e já se desculpava com o Papa pelo insucesso do trabalho. Enviou-lhe então, Sua Santidade, Giuliano da Sangallo, que lhe explicou a causa do problema, encorajou-o a continuar e ensinou-o a remover as placas de umidade293. Realizada metade da empresa, o Papa, que de qualquer modo fora ver algumas vezes os afrescos, a eles ascendendo com o auxílio de Michelangelo por uma escada de mão, determinou que fossem descobertos294. Sendo por natureza precipitoso e impaciente, não podia esperar que fossem levados a termo e recebessem, como se diz, a última mão295.
	Descobertos os afrescos, o Papa levou toda Roma a vê-los, e ele próprio, não se contendo de impaciência, foi o primeiro a admirá-los, antes ainda que baixasse a poeira da desmontagem dos andaimes. E ao vê-los, Rafael de Urbino, excelente na arte de imitar, mudou subitamente de estilo e executou de uma só vez, para mostrar seu talento, os Profetas e as Sibilas de S. Maria della Pace296. Bramante, por sua vez, tentou convencer o Papa a dar a Rafael a outra metade da capela. Ao saber disso, Michelangelo queixou-se de Bramante e sem mais lhe guardar respeito contou ao Papa os muitos defeitos de sua vida e das suas obras de arquitetura, que Michelangelo, de resto, viria a corrigir mais tarde na construção de São Pedro297. Percebendo cada vez melhor o talento de Michelangelo, o Papa preferiu mantê-lo, julgando pela metade descoberta que Michelangelo podia melhorar a outra ainda mais. E assim completou sozinho a obra toda em vinte meses298, sem ajuda sequer de quem lhe moesse os pigmentos299.Por vezes, Michelangelo queixou-se de não ter conseguido terminar a obra como gostaria, tanto o apressava o Papa, perguntando-lhe incessantemente quando a terminaria. Até que em uma dessas vezes respondeu-lhe que estaria terminada quando o satisfizesse a si próprio como arte. “E nós queremos”, respondeu o Papa, “que nos satisfaças em nossa vontade que a faças rapidamente”. E acrescentou ao fim que se não a terminasse em breve, mandaria jogá-lo do alto dos andaimes. Michelangelo que temia, e com razão, a fúria do Papa, terminou logo os trabalhos sem se delongar no que faltava. Desfeito o resto dos andaimes, descobriu os afrescos na manhã do dia de Todos os Santos, quando o Papa foi cantar a missa na capela, com satisfação de toda a cidade300.
	Michelangelo desejava retocar algumas coisas a seco, como haviam feito aqueles velhos mestres nas histórias de baixo, certos campos e drapeados e céus de azul ultramarino e ornamentos de ouro em alguns lugares, de maneira a lhes dar maior riqueza e torná-los mais vistosos. Pois entendendo o Papa que isto ainda faltava e ao ouvir tantos elogios de parte de quem via os afrescos, desejava que se lhes fornecessem tais acabamentos. Mas como tomaria tempo demais a Michelangelo refazer os andaimes, as coisas ficaram assim. Vendo-o com frequência, o Papa dizia-lhe sempre: “Que a capela se enriqueça de cores e de ouro, que está pobre”. E ele, com familiaridade, respondia: “Pai Santo, naquele tempo os homens não trajavam ouro e os ali pintados jamais foram ricos, mas santos homens, pois desprezavam as riquezas”301. Pagaram-se-lhe por tal obra em várias vezes, de parte do Papa, trinta mil escudos, dos quais vinte e cinco dispendeu Michelangelo nas tintas302. Foi executada com grandíssimo desconforto por trabalhar com a cabeça levantada, o que de tal maneira lhe prejudicou a vista, que por muitos meses não podia ler nem olhar desenhos se não com a cabeça naquela posição. E posso dar fé disto, pois não teria conseguido executar a decoração das abóbadas de cinco salas do palácio do duque Cosimo, se não tivesse feito para tanto uma cadeira com apoio para a cabeça, e com dossal reclinante. O que, mesmo assim, de tal maneira arruinou-me a vista e enfraqueceu-me a cabeça, que ainda disto me ressinto; e espanto-me que Michelangelo possa ter suportado tal desconforto: é que, inflamado sempre mais pelo desejo de fazer e pelas conquistas que fez, não sentia nem cuidava em desconfortos303.
As divisões desta obra distribuem-se pelos seis penachos da abóbada em cada lado, e por um em cada uma das duas extremidades304, nos quais Michelangelo pintou Sibilas e Profetas de seis braças de altura305; no centro, desde a Criação306 até o Dilúvio e a Embriaguez de Noé307, e nas lunetas, toda a genealogia de Jesus Cristo308. Em tais divisões não usou ordem alguma de perspectivas ou de escorços, nem ponto de vista fixo, mas acomodou mais as divisões às figuras que estas às divisões309, bastando executar os nus e os vestidos com um desenho de uma perfeição que não se atingiu, nem se pode atingir, sendo no máximo possível, com esforço, imitá-lo310. Esta obra tornou-se e permanece o farol de nossa arte, e tanto beneficiou e trouxe luz à pintura, que bastou para iluminar o mundo, após centenas e centenas de anos imerso em trevas311. E na verdade não cuide mais quem for pintor em ver novidades e invenções de atitudes e de drapeados sobre as figuras, modos novos de expressões e terribilidade de coisas variamente pintadas, pois toda a perfeição que se pode conferir a todas as coisas que em tal mister se façam, ele lhas conferiu. Todo homem que na pintura souber discernir a beleza das figuras ficará assombrado com a perfeição dos escorços e a estupenda rotundidade dos contornos, graciosos e esguios, torneados com a bela proporção que se vê nos belos nus. Para mostrar os extremos e a perfeição da arte, Michelangelo representou-os em todas as idades, assim como em expressões e formas diversas, tanto nas feições como nas compleições, na esbeltez ou robustez dos membros, como se pode ainda perceber nas belíssimas posturas que tais nus variadamente adotam, sentando-se, girando e sustentando festões de folhas de carvalho e guirlandas312, alusivas às armas e insígnias do Papa Júlio, como a denotar que seu pontificado correspondia à Idade de Ouro313, pois a Itália não se encontrava entre as atribulações e misérias que sobreviriam depois314. Tais festões prendem ao meio alguns medalhões com representações esboçadas, imitando relevos em bronze e em ouro, e retiradas do Livro dos Reis315.	
Para mostrar ademais a perfeição da arte e a grandeza de Deus, Michelangelo o fez separando a luz das trevas, sustentando-se a majestade divina sobre si própria, os braços abertos, mostrando amor e artifício316. Na segunda cena, tratou com belíssimo discernimento e engenho o ato pelo qual Deus cria o sol e a lua, quando, sustentado por muitos meninos, mostra-se, terrível, em seu escorço de braços e pernas. O mesmo fez na mesma cena quando, abençoada a Terra e criados os animais, voando se vê naquela abóbada uma figura que escorça; e ao caminhares pela capela, tal figura girará, posicionando-se em todos os ângulos317. Assim também na outra cena, quando separa as águas da terra em figuras belíssimas e agudas de engenho, dignas de nascerem tão somente das diviníssimas mãos de Michelangelo318. Seguiu-se a esta, a criação de Adão, em que Michelagelo figura Deus carregado por um grupo de anjos nus e de tenra idade, os quais parecem sustentar não uma só figura, mas todo o peso do mundo, tal a venerandíssima majestade sua e a maneira do movimento pelo qual cinge alguns anjinhos com um braço como para suster-se, enquanto com o outro, estende a mão direita a um Adão, figurado em beleza, em posturas e formas de tanta qualidade, que mais parece feito de novo por seu sumo e primeiro criador, que pelo pincel e desenho de tal homem319. Na sequência desta, em outra cena, fez nossa mãe Eva ao ser retirada da costela de Adão, nu e como que morto, porque prisioneiro do sono, enquanto a outra se torna viva e despertíssima pela benção de Deus. Reconhece-se plenamente, graças ao pincel deste engenhosíssimo artista, a diferença entre o sono e a vigília, e quanto estável e firme pode aparecer, em termos humanos, a majestade divina320. Vê-se em seguida como Adão, persuadido por uma figura meio mulher, meio serpente, recebe do pomo a morte sua e nossa, e vêem-se ele e Eva expulsos do Paraíso. Nas formas do anjo, aparecem com monumentalidade e nobreza a execução da ordem de um Deus em ira, na postura de Adão, o desgosto de seu pecado e o medo da morte, enquanto na mulher, percebem-se a vergonha, a vileza e a vontade de suplicar, em seu gesto de recolher-se entre os braços, com as mãos postas, no enfiar da cabeça no peito e no voltá-la para o anjo, que mais medo tem da justiça, que esperança da misericórdia divina321. 
	De beleza não menor é a cena do sacrifício de Caim e Abel, em que há o que traz a lenha, o que sopra agachado o fogo e o que degola a vítima, cena realizada decerto com não menos consideração e acume322. Mesma arte e juízo demonstrou Michelangelo na cena do Dilúvio, onde aparecem muitas mortes de homens que, em pânico pelo terror daqueles dias, tentam por todos meios salvar a vida. Assim, nas feições daquelas figuras, percebem-se a vida presa da morte, e o medo, o terror e o desprezo por tudo mais. Vê-se a piedade de muitos, ajudando-se mutuamente a galgar em busca de refúgio o cimo de um rochedo. Entre eles, há um homem que, abraçando um meio-morto, tenta o que pode para salvá-lo, e a natureza não o mostraria melhor323. Não se pode dizer o quanto foi bem expressa a cena de Noé, ébrio de vinho, adormecido e descoberto, em presença de um filho que se ri de sua nudez, enquanto outros dois o recobrem324. Tal história e tal energia artística, incomparáveis, não podiam ser superadas senão pelo próprio Michelangelo. E foi assim que, como tomado de ânimo pelas coisas já realizadas, Michelangelo ressurgiu e demonstrou-se muito maiornas cinco Sibilas325 e nos sete Profetas, cada um com suas mais de cinco braças de altura326. Pois em todos há posturas várias e beleza de drapeados e variedade de vestir-se, tudo, em suma, com invenção e juízo miraculoso, de modo que parecem divinos aos que lhes distinguem os afetos327.
Vê-se Jeremias, com as pernas cruzadas, uma das mãos enfiada na barba, o cotovelo sobre o joelho, a outra mão pousada sobre o colo, a cabeça inclinada de uma maneira que bem demonstra a melancolia, os pensamentos, a cogitação e a amargura que lhe suscita seu povo328. O mesmo observa-se nos dois meninos que lhe estão atrás e na primeira Sibila que o sucede em direção da porta, na qual Michelangelo, desejando exprimir a velhice, além de envolvê-la em panos, a quis já com os sangues enregelados pelo tempo, precisando ademais para ler, com a vista enfraquecida, aproximar o livro dos olhos, aguçadíssimos329. Posterior a esta figura é a do velho profeta Ezequiel, de graça e de movimento belíssimos, muito abrigado em panos. Com uma das mãos segura um rótulo de profecias e com a outra, levantada, voltando a cabeça, demonstra querer declarar coisas altas e grandes, tendo atrás dois meninos que lhe sustentam os livros330. Segue-o uma Sibila, que faz o contrário da Sibila Eritreia de que falamos acima, pois mantém longe o livro de que se apresta a virar uma página, quando, com as pernas cruzadas, estaca, pensando com gravidade sobre o que deve escrever, até que atrás dela um menino reaviva com um sopro um tição e acende-lhe a lâmpada. Esta figura é de extraordinária beleza, pela expressão do rosto, a cobertura do penteado, o vestir dos panos, e pelos braços nus, de qualidade similar ao resto331. Em seguida a esta Sibila, fez o profeta Joel, imóvel e absorto, a segurar um papel, que ele lê com toda atenção e afeto. E percebe-se que tanto se compraz no que aí encontra escrito, que parece pessoa viva que tenha aplicado com muita força seu pensamento em algo332. Da mesma forma, sobre a porta da capela pôs o velho Zacarias que procura no livro algo que não encontra e tem uma perna erguida e outra abaixada, e no furor da procura não se apercebe do desconforto em que sua posição o deixa. Esta figura é de belíssimo aspecto pela velhice, de forma um tanto compacta, com as poucas pregas do drapeado, que é belíssimo333. Para além dele, volta-se para o altar, do outro lado, outra Sibila, que, com mostrar também alguns escritos, juntamente com meninos, não é menos louvável que as demais334. Mais adiante o profeta Isaías, fixo em seus pensamentos, com as pernas superpostas, a mão dentro do livro a sinalizar a passagem que estava lendo, mantém apoiados o cotovelo do outro braço sobre o livro, e o rosto na mão, enquanto gira um pouco a cabeça para um dos meninos que o chama atrás, sem se descompor. Mas quem o considerar, verá traços retirados da própria natureza, verdadeira mãe da arte, e verá uma figura que pode, se bem estudada, ensinar longamente todos os preceitos do bom pintor335. Surge em seguida uma Sibila velha, belíssima, que se senta a estudar um livro com extrema graça, tendo ao seu redor dois meninos em belas posições336. Não se deve pensar como imaginável poder acrescer algo à excelência da figura de um jovem que representa Daniel a copiar com incrível avidez em um grande livro certos passos de alguns escritos. Enquanto escreve, o peso desse livro sobre suas pernas é sustentado por um menino, que jamais pincel manejado por outrem poderá criar337. Assim como a belíssima figura da Líbica que, tendo escrito um grande volume a partir de muitos livros, se apresta-se a pôr-se de pé com feminina atitude e demonstra querer ao mesmo tempo erguer-se e fechar o livro, algo dificílimo, para não dizer impossível, para qualquer artista outro que seu mestre338.
	Que dizer das quatro histórias nos ângulos de sustento daquela abóbada? Numa delas, Davi com força pueril deixa estupefatas as expressões de alguns soldados à volta do acampamento, ao vencer e decepar um gigante339. Assim como deixam todos maravilhados, as belíssimas posições por ele criadas na história de Judite, no outro ângulo. Surge aqui o torso, decapitado, mas não ainda inerte, de Holofernes, enquanto Judite coloca a morta cabeça em uma cesta suspendida sobre a de sua velha criada, que por ser muito alta deve inclinar-se para que ela possa alcançá-la. E enquanto ainda suporta o peso da cabeça e tenta cobri-la, Judite volta-se para aquele tronco estrebuchante que ainda provoca ruído na tenda ao erguer uma perna e um braço, e demonstra na vista o temor do acampamento e o medo do morto. Esta é uma pintura verdadeiramente digníssima de consideração340. Mas ainda mais bela e mais divina que esta e todas as demais é a história das Serpentes de Moisés, sobre o ângulo esquerdo do altar, pois nela se vêem o massacre e a mortandade que faz a chuva de serpentes que enlaçam e mordem, assim como a serpente de bronze que Moisés suspende em uma haste de madeira. Nesta cena, percebe-se vivamente a diversidade das mortes daqueles de cuja esperança a mordida das serpentes priva totalmente. Vê-se o veneno atrocíssimo levá-los em número incontável à morte de espasmo e medo, paralisados pelo rigor das pernas e dos braços convulsionados. Isto para não falar das belíssimas cabeças que gritam e, retorcidas, desesperam-se. Nem menos belos que todos estes são os que contemplam a serpente, sentindo ao contemplá-la aliviar-se-lhes a dor e voltar-lhes a vida, e assim a contemplam com afeto grandíssimo. Entre eles, vê-se uma mulher carregada por alguém de uma maneira pela qual transparecem o socorro prestado e sua miséria e paúra em tão súbita picada341. Da mesma maneira na outra cena, em que Assuerus lê seus anais em seu leito, há figuras muito belas, entre as quais se vêem três figuras à mesa a comer, que representam o conselho decidindo libertar o povo hebreu e enforcar Aman. Esta figura foi extraordinariamente executada por Michelangelo em escorço, de modo que o tronco e o braço que avança para frente não parecem pintados, mas vivos e projetados fora da parede, com a perna que se adianta e as partes que se retiram para dentro, figura decerto, entre as difíceis e belas, belíssima e dificílima342. 
Demasiado longo seria descrever as tantas e belas fantasias de posturas diferentes que abrangem toda a Genealogia dos Pais, desde os filhos de Noé, destinada a mostrar a geração de Jesus Cristo. Em tais figuras, não se pode dizer a diversidade das coisas, como os drapeados, as expressões e uma infinidade de caprichos extraordinários e novos e belissimamente considerados, onde nada há que não se tenha levado a efeito com engenho. E todas as figuras estão em escorços belíssimos e artificiosos, e cada coisa que aí se admira é louvadíssima e divina343. Mas quem não admirará e não ficará atônito ao ver a terribilidade de Jonas, última figura da capela? Com a força da arte, aquela figura que se arqueia para trás anula a curvatura da abóbada, que parece assim continuar em linha reta. Vencida pela arte do desenho, pelas sombras e luzes, a parede parece até mesmo encurvada em sentido contrário344.
	Ó, idade nossa verdadeiramente feliz! Ó, artistas beatos, que assim mesmo vos deveis chamar, pois pudestes em vosso tempo em fonte de tanta clareza dissipar as tenebrosas luzes dos olhos e ver tudo o que era difícil aplainado por tão maravilhoso e singular artista! Certamente a glória de suas obras ele vos faz conhecer e honrar desde que vos tolheu a venda que tínheis nos olhos da mente, tão plena de trevas, e vos distinguiu o verdadeiro do falso que vos obscurecia o intelecto. Agradecei por isto ao Céu e esforçai-vos por imitar Michelangelo em todas as coisas345. De todas as partes, viu-se acorrer o mundo para ver os afrescos descobertos, cuja simples visão o deixava estupefato e emudecido346. Engrandecido por essa acolhida e imbuído de entusiasmo por lançar-se em empresa maior347, o Papa com dinheiro e ricos presentes muito remunerou Michelangelo, que por vezes comentava estes favores vindos de tão grande Papa,o qual grandiosamente demonstrava reconhecer seus dons. E se, vez ou outra, por força de tão amorosa afeição, se lhe mostrava rude, remediava o incidente com presentes e assinalados favores. Tal como na ocasião em que Michelangelo lhe pediu licença e dinheiro para ir a Florença assistir à festa de São João, a que retrucou: “Bem, mas e esta capela, quando ficará pronta?”. “Quando eu puder, Santo Padre”. O Papa, que tinha um bastão em mão, golpeou-o, dizendo: “Quando eu puder, quando eu puder; mas te farei terminá-la eu”. Michelangelo estava ainda em casa aprontando-se para partir, quando, com a missão de apaziguá-lo, o camareiro do Papa, Cursio, trouxe-lhe quinhentos escudos, acompanhados das desculpas do Papa que, temendo mais uma daquelas reações de Michelangelo, assegurava-lhe não serem aquelas senão demonstrações de afeto e favorecimento. Como conhecia o temperamento do Papa e acabara por se lhe afeiçoar, Michelangelo ria-se de tais coisas, percebendo que tudo ao fim terminava melhor para si e que o Papa de tudo fazia para manter a amizade entre eles348.
[18. O retorno dos Medici e a Fachada de San Lorenzo]
	Terminada a capela e antecipando-se à morte, Sua Santidade ordenou ao cardeal Santiquattro349 e ao cardeal Aginense, seu sobrinho350, que, vindo a morrer, providenciassem o término do sepulcro segundo um projeto menor que o primeiro351. Michelangelo voltou então de boa vontade a nele trabalhar, decidido a conduzi-lo a bom termo sem outros impedimentos352. Mas dele advieram-lhe mais dissabores, contrariedades e afanos, que de qualquer outra experiência na vida, além de lhe acarretar por muito tempo certa pecha de ingrato com o Papa, que tanto o amara e favorecera353. E embora continuasse a trabalhar no sepulcro ao mesmo tempo em que criava desenhos para executar as fachadas da capela, quis a fortuna invejosa que deste memorial, com tanta perfeição iniciado, não viesse a se conhecer o fim354. Pois eis que sobreveio a morte do Papa Júlio, tendo a eleição do Papa Leão X ocasionado o abandono daqueles trabalhos355. De ânimo e valor não menos esplêndidos que os de Júlio, o Papa desejava deixar em sua pátria, por ser o primeiro Papa dela nativo, em memória própria e em memória de um artista divino e seu concidadão, aquelas maravilhas que somente um príncipe grandíssimo como ele podia fazer. Assim, da ordem de que a fachada de San Lorenzo em Florença fosse feita por Michelangelo, dos desenhos e pareceres que lhe requereu, ao lhe confiar a direção daquela fábrica, resultou que o trabalho do sepulcro de Júlio permanecesse inacabado356. Michelangelo opôs ao Papa toda a resistência possível, alegando estar vinculado, no que se referia ao sepulcro, aos cardeais Santiquattro e Aginense. Respondeu-lhe o Papa que não se preocupasse, pois havia já pensado nisto, providenciando que fosse desimpedido dos cardeais mediante promessa de que em Florença trabalharia, como já de fato começara, as figuras do sepulcro: tudo à revelia dos cardeais e de Michelangelo, que partiu de Roma chorando357.
	Nasceram daí vários e infindáveis questionamentos, pois muitas pessoas desejavam colaborar nas obras dessa fachada. Acorreram ao Papa em Roma muitos artistas no intuito de arrebatarem o projeto arquitetônico, para o qual criaram desenhos Baccio d’Agnolo, Antonio da Sangallo358, Andrea e Iacopo Sansovino, o gracioso Rafael de Urbino que, com a vinda do Papa, foi levado a Florença para isto359. Michelangelo resolveu então fazer um modelo e não admitir quem quer que fosse como superior ou guia na arquitetura360. Mas esta recusa a qualquer auxílio levou a que nem ele nem outros trabalhassem e que tais mestres, desesperançados, retornassem aos seus habituais afazeres361. Devendo empreender viagem a Carrara362, Michelangelo passou em Florença com a encomenda de receber mil escudos de Iacopo Salviati363, que, contudo, no momento de sua chegada, reunia-se a portas fechadas com alguns cidadãos. Michelangelo não quis aguardar audiência e sem dizer palavra seguiu imediatamente para Carrara. Iacopo soube da chegada de Michelangelo e, não o encontrando em Florença, enviou-lhe os mil escudos a Carrara. Ao pedir-lhe um recibo, o portador obteve por resposta que a soma era para despesas do Papa e não por seu interesse, que retornasse com o dinheiro, pois não costumava dar quitanças ou recibos a ninguém, de modo que o portador retornou a Iacopo sem ele364. 
Enquanto estava em Carrara a providenciar a extração de mármores, tanto para o sepulcro de Júlio, como para a fachada, que ele esperava terminar, foi-lhe escrito que o Papa Leão soubera da existência, nas montanhas de Pietrasanta em Seravezza, em domínio florentino, na altura do mais alto monte, chamado o Altíssimo, de mármores da mesma qualidade e beleza que os de Carrara365. Já o sabia Michelangelo, mas ao que parece não queria deles se servir por ser amigo do marquês Alberigo, senhor de Carrara366. Preferia extrair mármores da região de Carrara a extraí-los de Seravezza, quer para o beneficiar, quer por julgar longa e demorada tal extração, como de fato se verificou. Foi, contudo, forçado a ir a Seravezza, de nada adiantando alegar que tal alternativa resultaria mais difícil e dispendiosa367, coisa maximamente contrária a seus princípios, e que, ademais, tais mármores talvez não se verificassem à altura do que se esperava. O papa não lhe quis dar ouvidos e foi assim necessário abrir uma estrada de várias milhas pelas montanhas e, à força de marretas e picaretas, quebrar rochas para aplainar o terreno e usar palafitas nos lugares pantanosos, trabalhos nos quais Michelangelo passou vários anos, em cumprimento da vontade do Papa368. Finalmente, extraiu cinco colunas de justa grandeza, encontrando-se uma delas na praça de S. Lorenzo, em Florença, e as demais, no porto369. E por esta razão, o marquês Alberigo, que se viu prejudicado, tornou-se depois grande inimigo de Michelangelo, sem que tivesse ele culpa alguma370. Extraiu além destas colunas, muitos mármores que, passados trinta anos, estão ainda nas jazidas. Recentemente, entretanto, o duque Cosimo deu ordem para terminar as duas milhas que restam por construir na estrada, ainda impraticável para o transporte destes mármores e dos de outra excelente jazida de mármore, então descoberta por Michelangelo para finalizar outras belas empresas. Ainda em Seravezza, descobriu uma montanha de mármores compósitos, duríssimos, de grande beleza, aos pés de Stazema, vila situada naquelas montanhas371, onde o duque Cosimo fez construir uma estrada cascalhada de mais de quatro milhas, para conduzi-los ao porto372.
E voltando a Michelangelo, que retornara a Florença, onde perdia tempo em afazeres diversos373, fez ele para o palácio dos Medici um modelo de janelas inginocchiate374 para os cômodos que estão no canto375, em cuja sala Giovanni da Udine trabalhou em estuco e pintou coisas admiradíssimas376. E encomendou a Piloto, ourives, a partir de desenho seu, aquelas gelosias de cobre batido que são certamente admiráveis377. Muitos anos dispendeu na extração de mármores378. É bem verdade que, enquanto eram extraídos, fez modelos de cera e outras coisas para os trabalhos da fábrica379. Mas tanto se prolongou esta empresa, que os recursos do Papa reservados para estes trabalhos consumiram-se na guerra da Lombardia380 e a obra, com a morte de Leão381, permaneceu inacabada, porque nada se fez na fachada além das fundações para sustentá-la e do transporte de uma coluna grande de mármore, desde Carrara até a praça de S. Lorenzo382.
[19. A Sacristia e Biblioteca de San Lorenzo, a Leda e o Cristo da Minerva]
A morte de Leão afugentou de tal modo os artistas e as artes em Roma e em Florença que, durante o pontificado de Adriano VI383, Michelangelo permaneceu em Florença, restrito ao sepulcro de Júlio384. Com a morte de Adriano e a eleição de Clemente VII, que nas artes da arquitetura, da escultura e da pintura ambicionava fama não menor que as de Leão e de seus antecessores385, Giorgio Vasari ainda criança foi neste ano

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