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História da filosofia II - Nicola Abbagnano

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hist�ria da filosofia 2.rtf
História da Filosofia
Segundo volume
Nicola A bbagnano
DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO:
ÂNGELO MIGUEL ABRANTES
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
VOLUME II
TRADUÇÃO DE: ANTÓNIO BORGES COELHO
CAPA DE: J., C.
COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO TIPOGRAFIA NUNES ,@@0sé Falcão, 57 - Porto
EDITORIAL PRESENÇA . Lisboa 1969
TÍTULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA
Cop3right by NICOLA ABBAGNANO
Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA, LDA. - R. Augusto Gil, 2 c@E. - Lisboa
XIII
A ESCOLA PERIPATÉTICA
§ 86. TEOFRASTO
Assim como a velha Academia continua a última fase do ensinamento platónico, também A escola peripatética apresenta as características do último período da actividade de Aristóteles, dedicado principalmente à organização do trabalho científico e a investigações particulares.
à morte de Aristóteles, sucedeu ao mestre na direcção da escola Teofrasto de Eresso, em Lesbos que a dirigiu até à sua morte, ocorrida entre 288 e 286 a.C. A sua actividade científica orientou-se sobretudo para o campo da Botânica. Conservaram-se duas obras: História das Plantas e As Causas das Plantas, que fizeram dele o mestre daquela disciplina durante toda a Antiguidade e até ao final da Idade Média. Foi também autor das Opiniões Físicas, uma espécie de história das doutrinas físicas de Tales a Platão e a Xenócrates, da qual nos restam alguns fragmentos. Também se conservou um escrito moral, Os caracteres.
Teofrasto formulou numerosas críticas a pontos concretos da doutrina aristotélica, mas manteve-se fiel aos ensinamentos fundamentais do mestre. Contra a doutrina do intelecto activo objectou que são incompatíveis com a função daquele intelecto o esquecimento e o erro. Contra o universal finalismo das coisas, professado por Aristóteles, notou que, na natureza, muitas coisas não obedecem à tendência para o fim e, se esta tendência é própria dos animais, não se revela nos seres inanimados que são os mais numerosos na natureza. Em compensação defende a doutrina aristotélica da, eternidade do mundo contra as objecções que lhe vinham sendo feitas.
Na obra Os caracteres, que provavelmente não nos chegou na sua forma original mas numa redacção retocada, descreve com uma certa- argúcia trinta tipos de caracteres morais (o importuno, o vaidoso, o descontente, o fanfarrão, etc.) Pode dizer-se que Teofrasto aplicou à vida moral, nesta obra, o mesmo método descritivo empregado por ele no estudo da Botânica.
§ 87. OUTROS DISCíPULOS DE ARISTóTELES
Ao lado de Teofrasto, o mais importante dos discípulo imediatos de Aristóteles é Eudemo de Rodes, autor de numerosos escritos de história da ciência. Eudemo é designado como "o mais fiel"> dos discípulos de Aristóteles. Foi o editor da obra moral de Aristóteles que é designada precisamente pelo seu nome (Ética Eudemia) e que alguns consideram como obra sua.
Aristóxeno, de Tarento retomou a doutrina pitagórica da alma como harmonia, sustentada por Símias no Fédon platónico. As suas simpatias pelo pitagorismo manifestam-se também no interesse que
sentiu pela música, à qual dedicou uma obra intitulada Harmatúa, de que nos restam fragmentos. Foi também autor de biografias de filósofos, em particular de Pitágoras e de Platão.
Dicearco de Messina afirmou, em oposição a Aristóteles e a Teofrasto, ia superioridade da vida prática sobre a vida teórica. Na sua obra, Vida da Grécia, de que nos restam poucos fragmentos, delineou uma história da civilização grega. , No Tripolítico sustentou que a melhor constituição é uma mescla de monarquia, aristocracia e democracia como a que se havia desenvolvido em Esparta.
§ 88. ESTRATÃO
A Teofrasto sucedeu na direcção da escola Estratão de Lâmpsaco, que a exerceu durante dezoito anos. O sentido da sua investigação é indicado pelo apodo de "o físico".
De facto procurou conciliar Aristóteles e Demócrito. De Demócrito tomou a doutrina dos átomos e do espaço vazio; mas, diferentemente de Demócrito e conformemente a Aristóteles, considerou que o espaço vazio não se estende até ao infinito, pira lá dos confins do mundo, mas apenas no interior deste entire os átomos. Alé m disso, segundo Estratão, os corpúsculos são dotados de certas qualidades, especialmente de calor e de frio.
Na sua doutrina sobre a ordem e a constituição do mundo, Estratão aproximava-se muito mais de Demócrito do que de Aristóteles. Não se servia da divindade para explicar o nascimento do mundo e recorria à necessidade da natureza ou pelo menos identificava com ela a acção de Deus. Estratão afirmou energicamente a unidade da alma. Por causa desta unidade não é possível uma separação nítida entre sensação e pensamento. " Sem o pensa-
mento -dizia ele - não há sensação." Mas, por outro lado, tanto o pensamento como a sensação não são mais que movimento e deste modo voltam a entrar no mecanismo geral da natureza.
Depois de Estratão, a escola peripatética continuou o seu trabalho através de numerosos representantes dos quais nos restam escassas notícias e fragmentos. Mas estes dedicaram-se todos a investigações naturalistas particulares e assim não trouxeram contributos relevantes à ulterior elaboração da filosofia aristotélica.
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 86. Para os escritos da ~Ia aristotélica em geral cfr. a colectânea Die Schule des Aristoteles, Texte und Kommentar, editada por Wehrli em BasEcia-
Fontes para a vida, os escritos e a doutrina de Teofrasto: DióGENEs LAÉRCIO, V, 36 ss.; REGENBOGEN, Theophrastos von Eresos, Stuttgart, 1940.
Os escritos que nos ficaram, isto é, as duas obras de botânica, os Caracteres e os fragmentos foram editados por Schneid-er, Leipzig, 1918-21; outra edição, Wimmer, Leipzig, 1854. Sobre Teofrasto: ZELLER 11,
2, p. 806 ss.; GomPERz, III, cap. 39-42.
§ 87. Os fragmentos de Eudemo, in MULLACH, Fragmenta phil. graec., III, p. 222 ss.. Os fragm-entos da Harmonia de Aristóxeno foram editados por Marquard, Berlim, 1868 e por Macran, Oxford, 1903. Os fragmentos de Dicearco, por Fuhr, Darmstadt, 1841. Sobre estes três discípulos de Aristételes: ZELLER, U, p. 869 ss..
§ 88. Sobre a vida, os escritos e a doutrina de Estratão: DIóGENEs LAÉRCIO, V, 58 ss. Sobre Estratã<): ZELLER, 11, 2, p. 897; GomPERz, UT, cap. 43.
]o
XIIII
O ESTOICISMO
§ 89. CARACTERíSTICAS DA FILOSOFIA PóS-ARISTOTÉLICA
A conquista macEdónia e a consequente mudança da vida política e social do povo grego encontra expressão no carácter fundamental da filosofia pós-aristotélica. É costume exprimir tal característica dizendo que este período da filosofia é assinalado pela prevalência do problema moral.
A investigação filosófica no período que vai de Sócrates a Aristóteles dirigira-se para realização da vida teorética, entendida como unidade da ciência e da virtude, isto é, do pensamento e da vida. Mas destes dois termos, que já Sócrates unificava completamente, o primeiro prevalecia nitidamente sobre o segundo. 'Para Sócrates a virtude é e deve ser ciência e não há virtude fora da ciência. Platão conclui no Filebo os aprofundamentos sucessivos da sua investigação dizendo que a vida humana perfeita é uma vida mista de ciência e de prazer, na qual a ciência prevalece. Aristóteles considera
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a vida teorética como a mais alta manifestação da vida do homem e ele mesmo encara e defende com a sua obra os interesses desta actividade, levando a sua investigação a todos os ramos do cognoscível. Só a partir dos Cínicos o equilíbrio harmónico entre ciência e virtude se rompe pela primeira vez: eles puseram o acento no peso da virtude em detrimento da ciência e tornaram-se partidários de um ideal moral propagandístico e popularucho, chegando a ser gravemente infiéis aos ensinamentos do seu mestre.
Mas a rotura definitiva da harmonia da vida teorética a favor do segundo dos seus termos, a virtude, encontra-se na filosofia pós-aristotélica. A fórmula socrática-a virtude é ciência-é substituída pela fórmula a ciência é virtude. O objectivo imediato e urgente é
a busca de urna orientação moral, à qual deve estar subordinada, como ao seu fim, a orientação teorética. O pensamento deve servir a vida, não a vida o pensamento. Na nova fórmula, os termos que na antiga encontravam a
sua unidade são opostos um ao outro, de modo que se sente a necessidade de escolher entre eles o termo que mais importa e subordinar-lhe o outro. A filosofia é ainda e sempre procura; mas procura de uma orientação moral, de uma conduta de vida que não tem já o seu centro e a sua unidade na ciência, mas subordina a si a ciência como o meio ao fim.
§ 90. A ESCOLA ESTOICA
Das três grandes escolas pós-aristotélicas, a estoica foi de longe, do ponto de vista histórico, a mais importante. A influência do estoicismo tornou-se decisiva no último período da filosofia grega, quando as correntes neoplatónicas fizeram suas muitas das suas doutrinas fundamentais, e na Patns-
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tica, na Escolástica Árabe e Latina, no Renascimento. Esta influência só é comparável à de Aristóteles e exerceu-se muitas vezes sobre a doutrina aristotélica, sugerindo-lhe desenvolvimentos e modificações que foram nela incorporadas e se tornaram assim suas partes integrantes. No próprio seio da filosofia moderna e contemporânea, a acção do estoicismo continua, quer de maneira indirecta quer sob a forma de doutrinas que o senso comum, a sabedoria popular e a tradição filosófica aceitaram e aceitam sem se preocuparem com pô-las em discussão. Aqui podemos apenas indicar algumas destas doutrinas, às quais se terá ocasião de fazer referência mais vezes no decurso desta História. A primeira delas é a da necessidade da ordem cósmica, com as noções que lhe estão inclusas de destino e de providência. Esta doutrina serviu de fundamento a todas as elaborações teológicas que se efectuaram ia partir do neoplatonismo e é válida como critério interpretativo do próprio aristotelismo. A definição da lógica como dialéctica, a teoria do significado, da proposição e do raciocínio imediato dominaram o desenvolvimento da lógica nos últimos séculos da Idade Média, constituindo uma segunda parte acrescentada à lógica de derivação aristotélica. Os estoicos contribuíram mesmo, a partir dos aristotélicos antigos, para integrar ou interpretar as teorias lógicas aristotélicas. As doutrinas do ciclo cósmico ou do eterno retorno e de Deus como alma do mundo constituíram e constituem ainda um constante ponto de referência das concepções cosmológicas e teológicas. A análise das emoções e a sua condenação, o conceito da autosuficiência e da liberdade do sábio ficaram e permanecem entre as mais típicas formulações da ética tradicional. Pela noção de dever por eles elaborada se renova rigorosamente a ética kantiana. A noção de valor, também por eles encontrada, revelou-se
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fecundíssima nas discussões éticas. A identificação de liberdade o necessidade, o cosmopolitismo, a teoria do direito natural são doutrinas de que é quase inútil sublinhar a importância e a vitalidade.
O fundador da escola foi Zenão de Gtium, em Chipre, de quem se conhece com verosimilhança o ano do nascimento, 336-35 a.C., e o ano da morte, 264-63. Chegado a Atenas com os seus vinte e dois anos, entusiasmou-se, através da leitura dos escritos socráticos (os Memoráveis de Xenofonte e a Apologia de Platão), pela figura de Sócrates e julgou ter encontrado um Sócrates redivivo no cínico Cratete, de quem se fez discípulo. Seguidamente foi também discípulo de Estilpon e de Teodoro Crono. Por volta do ano 300 a.C., fundou a sua escola no Pórtico Pintado (Stoà poikíle), pelo que os seus discípulos se chamaram Estoicos. Morreu de morte voluntária como bastantes outros mestres que lhe sucederam. Dos seus numerosos escritos (República, Sobre a Vida segundo a Natureza, Sobre a Natureza do Homem, Sobre as Paixões, etc.) restam-nos apenas fragmentos. Os seus primeiros discípulos foram Ariston de Quios, Erilo de Cartago, Perseu de Citium e Cleanto de Assos, na Tróade, que lhe sucedeu na direcção da escola. Cleanto, nascido em 304-03, e morto em 223-22 de morte voluntária, foi um homem de poucas necessidades e de vontade férrea, mas pouco dotado para a especulação; parece que o seu contributo para a elaboração do pensamento estoico foi mínimo.
A Cleanto sucedeu Crisipo de Soli ou do Tarso na Cilícia, nascido em 281-78, falecido em 208-05, que é o segundo fundador do Estoicismo, tanto que se dizia: "Se não tivesse existido Crisipo não existiria a "Stoa". Foi de uma prodigiosa fecundidade literária. Escrevia todos os dias quinhentas linhas e compôs ao todo 705 livros. Foi também um dialéctico e um estilista de primeira ordem.
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Seguiram-se a Crisipo dois discípulos seus, primeiro Zenão de Tarso, depois Diógenes de SeMucia, dito o Babilónico. Diógenes foi a Roma, em 156-55, numa embaixada de que faziam parte o académico Carnéades e o peripatético Critolau. A embaixada suscitou muito interesse na juventude de Roma, mas teve a desaprovação de Catão, o qual temia que o interesse filosófico desviasse a juventude romana da vida militar. A Diógenes seguiu-se Antipatro de Tarso.
A produção literária de todos estes filósofos, que deve ter sido imensa, perdeu-se e dela só nos restam fragmentos. Estes nem sempre são referidos a um autor singular, mas amiúde aos Estoicos em geral, de modo que se torna muito difícil distinguir, na massa das notícias que nos chegaram, a parte que corresponde a cada um dos representantes do Estoicismo. Por isso se deve expor a doutrina estoica no seu conjunto, mencionando, quando possível, as diferenças ou as divergências entre os vários autores.
§ 91. CARACTERÍSTICAs DA FILOSOFIA ESTOICA
O fundador do Estoicismo, Zenão, teve como mestre e como modelo de vida o cínico Cratete. Isto explica a orientação geral do Estoicismo, o qual se apresenta como a continuação e o complemento da doutrina cínica. Como os Cínicos, os Estoicos procuram não já a ciência, mas a felicidade por meio da virtude. Mas, diferentemente dos Cínicos, consideram que, para alcançar a felicidade e a virtude, é necessária a ciência. Não faltou entre os Estoicos quem, corno Ariston, estivesse ligado estreitamente ao Cinismo e declarasse inútil a Lógica e superior às possibilidades humanas a FÍsica, aban-
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donando-se a um desprezo total pela ciência. Mas contra ele, Erilo colocava o sumo bem e o fim último da vida no conhecer, volvendo assim a Aristóteles. O próprio fundador da escola, Zenão, considerava indispensável a ciência para a conduta da vida, e embora não lho reconhecesse um valor autónomo, incluía-a entre as condições fundamentais da virtude. A própria ciência parecia-lhe virtude e as divisões da virtude eram para ele divisões da ciência. Tal foi indubitavelmente a doutrina que prevaleceu no Estoicismo. "A filosofia -diz Séneca- é exercício de virtude (studium virtutis), mas por meio da própria virtude, já que não pode haver virtude sem exercício, nem exercício de virtude sem virtude" (Ep., 89).
O conceito da filosofia vinha assim a coincidir com o da virtude. O seu fim é alcançar sageza que é a "ciência das coisas humanas e divinas"; mas a única arte para alcançar a sabedoria é precisamente o exercício da virtude. Ora as virtudes mais gerais são três: a natural, a moral e a racional; também a Filosofia se divide, pois, em três partes: a Física, a Ética e a Lógica. Diferente foi a importância atribuída sucessivamente a cada uma destas três partes; e distinta foi a ordem em que as ensinaram os vários mestres da Stoà. Zenão e Crisipo começavam pela lógica, passavam à Física e terminavam com a Ética.
§ 92. A LÓGICA estoica
Com o termo Lógica, adoptado pela primeira vez por Zenão, os Estoicos expressavam a doutrina que tem por objecto os logoi ou discursos. Como ciência dos discursos contínuos, a lógica é Retórica; como ciência dos discursos divididos por perguntas e respostas, a lógica é dialéctica. Mais precisamente, a
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Página da obra "Vida e doutrina dos filósofos,,5, de
Diógenes Laércio (Códice do século V)
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dialéctica
é definida como "a ciência daquilo que é verdadeiro e daquilo que é falso e daquilo que não. é nem verdadeiro nem falso." (Diog. L., VII,
42; Séneca, EP., 89). Com a expressão "aquilo que não é nem verdadeiro nem falso", os Estoicos entendiam provavelmente os sofismas ou os paradoxos, sobre cuja verdade ou falsidade não se pode decidir e cujo tratamento ocupa muito os Estoicos que, neste ponto, seguem as pisadas dos Megáricos. Por sua vez, a dialéctica divide-se em duas partes segundo trata das palavras ou das coisas que as palavras significam: a que trata das palavras é a Gramática, a que trata das coisas significadas é a Lógica em sentido próprio, a qual, portanto, tem por objecto as representações, as preposições, os raciocínios e os sofismas (Diog. L., VII, 43-44).
O primeiro problema da lógica estoica é o do critério da verdade. É este o problema mais urgente para toda a filosofia pós-aristotélica que considera o pensamento apenas como guia para a conduta: e ora, se o pensamento não possui por si mesmo um critério de verdade e procede com incerteza e às cegas, não pode servir de guia para a acção. Ora, para todos os Estoicos, o critério da verdade é a representação catalética ou conceptual (phantasia kataleptiké). São possíveis duas interpretações do significado desta expressão e ambas se encontram nas exposições antigas do Estoicismo. Em primeiro lugar, a phantasia kataleptiké pode consistir na acção do intelecto que prende e penetra o objecto. Em segundo lugar, pode ser a representação que é impressa no intelecto pelo objecto, isto é, a acção do objecto sobre o intelecto. Ambos os significados se encontram nas exposições antigas do Estoicismo. Sexto Empírico (Adv. math., VII, 248) diz-nos que, segundo os Estoicos, a representação catalética é aquela que vem de um objecto real e está impressa
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e marcada por isso em conformidade com ele próprio, de modo que não poderia nascer de um objecto diferente. Por outro lado, Zenão (segundo um testemunho de Cioero, Acad., 11, 144) colocava o significado da representação catalética na sua capacidade de prender ou compreender o objecto. Ele comparava a mão aberta e os dedos estendidos à representação pura e simples; a mão contraída no acto de agarrar, ao assentimento; o punho fechado à compreensão catalética. Finalmente, as duas mãos apertadas uma sobre a outra, com grande força, eram o símbolo da ciência, a qual dá a verdadeira e completa posse do objecto.
A representação catalética está, pois, relacionada com o assentimento da parte do sujeito cognoscente, assentimento que os Estoicos consideravam voluntário e livre. Se o receber uma representação determinada, por exemplo, ver uma cor branca, sentir o doce, não está em poder daquele que a recebe porque depende do objecto de que deriva a sensação, o assentir a tal representação é, pelo contrário, sempre um acto livre. O assentimento constitui o juízo, o qual se define precisamente ou como assentimento ou como dissentimento ou como suspensão (epoché), isto é, renúncia provisória para assentir à representação recebida ou a dissentir da mesma. Segundo testemunho de Sexto Empírico (Adv. math., VII, 253), os Estoicos posteriores puseram o critério da verdade, não na simples representação catalética, mas na -representação catalética "que não tenha nada contra si", porque pode dar-se o caso de haver representações cataléticas que não sejam dignas de fé pelas circunstâncias em que são recebidas. Só quando não tem nada contra si, a representação se impõe com força às representações divergentes e constrange o sujeito cognoscente ao assentimento. Disto resulta claramente que a representação catalética é aquela que é dotada de uma
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evidência não contraditada, tal que solicito com toda a força o assentimento, o qual, no entanto, permanece livre. Consequentemente, definiam a ciência como "uma representação catalética ou um hábito imutável para acolher tais representações, acompanhadas pelo raciocínio" (Diog. L., VII, 47); e consideravam que não há ciência sem dialéctica, cabendo à dialéctica dirigir o raciocínio.
Pelo que respeita ao problema da origem do conhecimento, o Estoicismo é empirismo. Todo o conhecimento humano deriva da experiência e a experiência é passividade porque depende da acção que as coisas externas exercem sobre a alma considerada como uma tabuinha (tabula rasa) e na qual se vêm registar as representações. As representações são marcas ou sinais impressos na alma, segundo Ocanto; segundo Crisipo, são modificações da alma. Em qualquer caso, são recebidas passivamente e produzidas ou pelos objectos externos ou pelos estados internos da alma (como a virtude e a perversidade). Por isso nenhuma diferença existe entre a experiência externa e a experiência interna. Toda a representação, depois do seu desaparecimento, determina a recordação, um conjunto de muitas recordações da mesma espécie constitui a experiência (Aezio, Plac., IV, II). Da experiência nasce, por um procedimento natural, a noção
comum ou antecipação; a antecipação é a noção natural do universal (D@og. L., VII, 54).
Todavia, segundo eles, os conceitos não têm nenhuma realidade objectiva: o real é sempre individual e o universal subsiste apenas nas antecipações ou nos conceitos. O Estoicismo é, pois, um nominalismo, segundo a expressão que foi usada na Escolástica para designar a doutrina que nega a realidade do universal. Os conceitos mais gerais, aqueles que Aristóteles designara com categorias, são reduzidos pelos Estoicos a quatro: 1.* o sujeito
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ou substância; 2.* a qualidade; 3.* o modo de ser,
4.O o modo relativo (Plotino, Enn., VI, 1. 202). Estas quatro categorias estão entre si numa relação tal que a seguinte encerra a precedente e a determina. Efectivamente, nada pode ter um carácter relativo se não tem um modo seu de ser; não .pode ter um modo de ser se não possui uma qualidade fundamental que o diferencie dos outros; e só pode possuir esta qualidade se subsiste por si, se é substância.
O conceito mais elevado e mais extenso ou, como diziam, o género supremo, é o conceito de ser, porquanto tudo, em certo modo, é, e não existe, portanto, um conceito mais extenso do que este.
O conceito mais determinado é, pelo contrário, o de espécie que não tem outra espécie abaixo de si, isto é, o do indivíduo, por exemplo de Sócrates (Diog. L., VII, 61). Outros Estoicos, pretendendo encontrar um conceito ainda mais extenso que o de ser, recorreram ao de alguma coisa (aliquid) que pode compreender também as coisas incorpóreas (Séneca, Ep., 58).
A parte da lógica estoica que teve a maior influência no desenvolvimento da lógica medieval e moderna é a que concerne à proposição e ao raciocínio. Como fundamento desta parte da sua doutrina, os Estoicos elaboraram a doutrina do ,significado (lektón) que se manteve de fundamental importância na lógica e na teoria da linguagem. "São três -diziam eles- os elementos que se ligam: o significado, aquilo que significa e aquilo que é. Aquilo que significa é a voz, por exemplo, "Dione". O significado é a coisa indicada pela voz e que nó s tomamos pensando na coisa correspondente. Aquilo que é é o sujeito externo, por exemplo, o próprio "Dione" (Sexto Emp:, Adv. math., VIII, 12). Destes três elementos conhecidos, dois ,são,,c,or,p<>reos, a voz e aquilo que é; um é incor-
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pórco, o significado. O significado é, noutros termos, qualquer informação ou representação ou conceito que nos vem à mente quando percebemos uma palavra e que nos permite referir a palavra a uma coisa determinada. Assim, por exemplo, se com a voz <@homem" entendemos um "animal racional", podemos indicar com esta voz todos os animais racionais, isto é, todos os homens. O conceito "animal racional" é o significado que consente a referência da palavra ao objecto existente. Ele é o caminho entre a palavra (ou, em geral, a expressão verbal) e a coisa real ou corpórea: e assim orienta, na -referência ao objecto, as expressões linguísticas que, de outro modo, permaneceriam
puros sons, incapazes de qualquer conexão com as coisas. A referência à coisa constitui, portanto, parte integrante do significado ou, pelo menos, é um aspecto que lhe está intimamente ligado, porque a informação em que consiste o significado não tem outra função senão a de tornar possível
* a de orientar tal referência. Na lógica medieval
* moderna, aquilo que os Estoicos chamavam significado foi frequentemente designado com outros nomes como conotação, intenção, compreensão, interpretante, sentido, enquanto a referência à coisa foi chamada suposição, denotação, extensão, significado. Mas esta diversidade de terminologia. não mudou o conceito de significado nos três elementos fundamentais em que os Estoicos o tinham analisado.
Segundo os Estoicos, um significado está completo se pode ser expresso numa frase, por exemplo, "Sócrates escreve". A palavra "escreve" não tem, em contrapartida, significado completo porque deixa sem resposta a pergunta "quem?". Um significado
completo é, portanto, só a proposição, a qual é definida também, com Aristóteles, como aquilo que pode ser verdadeiro ou falso.
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O raciocínio consiste numa conexão entro as proposições simples do tipo seguinte: "se é noite. há trevas; mas é noite, portanto existem trovas." Este tipo de raciocínio não tem, como se vê, nada a ver com o silogismo aristotélico porque lhe faltam as suas características fundamentais: é imediato <não tem termo médio) e não é necessário. A falta destas características permite aos Estoicos distinguir pela sua verdade, a concludência de um raciocínio. o raciocínio acima exposto só é verdadeiro se é noite mas é falso se é dia. Inversamente, é concludente em qualquer caso porque a relação das premissas com a conclusão é correcta. Os tipos fundamentais de raciocínios concludentes são chamados pelos Estoicos anapodíticos ou raciocínios não demonstrativos. Sã o evidentes por si próprios e são os seguintes: 1.* Se é dia há luz, mas é dia; portanto, há luz. 2.* Se é dia, há luz; mas não há luz; portanto não é dia. 3.* Se não é dia, é noite; mas é dia; portanto não é noite. 4.* Ou é dia ou é noite; mas é dia; portanto não é noite.
5.* Ou é dia ou é noite; mas não é noite; portanto. é dia (1p. Pirr, 11, 157-58; Diog. L., VII, 80). Estes esquemas de raciocínio são sempre válidos mas sempre verdadeiros. dado que só são verdadeiros quando a premissa é verdadeira, isto é, quando corresponde à situação de facto. Sobre eles se modelam os raciocínios demonstrativos que são não só concludentes mas manifestam também alguma coisa que antes era "obscura", isto é, qualquer coisa que não é imediatamente manifesta à representação catalética, a qual é sempre limitada ao aqui e agora. Eis um exemplo: "Se esta mulher tem leite no seio, pariu; mas esta mulher tem leite no seio; portanto pariu> Neste sentido o raciocínio demonstrativo é designado pelos Estoicos como um sinal indicativo porquanto consente trazer à luz qualquer coisa que antes estava, obscuro. Sinais remwwa-
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tivcw sã% pelo contrário, aqueles que, mal se apresentam, tornam evidente a recordação da coisa que foi primeiramente observada em ligação com ela o agora não é manifesta como é, por exemplo, o fumo a respeito do fogo (Sexto E., Adv. math., VIII,
148 ss.). Evidentemente, os Estoicos confiaram ao raciocínio demonstrativo a construção da sua doutrina; por exemplo, a demonstração da existência da alma ou da alma do mundo (que é Deus), feita a partir dos movimentos ou dos factos que são imediatamente dados pela representação catalética, constitui um sinal indicativo no sentido agora referido.
Como se vê, a dialéctica estoica tem em comum com a dialéctica platónica o carácter hipotético das suas Iiwemissas, mas distingue-se desta dialéctica porque a conjunção das premissas entre si e a sua conexão com a conclusão exprime situações de facto ou estados de coisas imediatamente presentes. Aliás, o carácter hipotético do processo dialéctico não é, para os Estoicos como não era para Aristóteles, um defeito da própria dialéctica pelo qual esta seria inferior à ciência. Para eles, a ciência não é, precisamente, outra coisa senão dialéctica (Diog. L., VII, 47). O conceito estoico da lógica como dialéctico difundiu-se, através das obras de Boécio, na Escolástica Latina e foi o fundamento da chamada lógica terninística, característica do último período da Escolástica.
§ 93. A FíSICA ESTOICA
O conceito fundamental da Física estoica é o de uma ordem imutável, racional, perfeita e necessária que governa e sustenta infalivelmente todas as coisas e as faz ser e conservar-se tais como são. Esta ordem é identificada pelos Estoicos com o
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próprio Deus: assim a sua doutrina é um rigoroso panteísmo.
Os Estoicos substituem as quatro causas aristotélicas (matéria, forma, causa eficiente e causa final) por dois princípios: o princípio activo (poioún) e o princípio passivo (páschon) que são ambos materiais e inseparáveis um do outro. O princípio passivo é a substância privada de qualidade, isto é, a matéria; o princípio activo é a razão, isto é, Deus que agindo sobre a matéria produz os seres singulares. A matéria é inerte, e se bem que pronta para tudo, ficaria ociosa se ninguém a movesse. A razão divina forma a matéria, dirige-a para onde quer e produz as suas determinações. A substância de que nascem todas as coisas é a matéria, o princípio passivo; a força pela qual todas as coisas são feitas é a causa ou Deus, o princípio activo (Diog. L., VII, 134). Contudo, a distinção entre princípio activo e princípio passivo não coincide, segundo os Estoicos, com a distinção entre o incorpóreo e o corpóreo. Ambos os princípios, seja a causa, seja a matéria são corpo o nada mais que corpo, dado que só o corpo existe. Um rígido materialismo é defendido pelos Estoicos na base da definição de ser dada por Platão no Sofista (§ 56): existe aquilo que age ou suporta uma acção. Dado que só o corpo pode agir ou sofrer uma acção, só o corpo existe (Diog. L., VII, 56; Plut., Comm. Not., 30, 2, 1073; Stob., Ecl., 1, 636). A alma é, pois, corpo como princípio de acção (Diog. L., VII, 156). É corpo a voz que também opera e age sobre a alma (Aezio, Plac., IV, 20,2). É corpo, enfim, o bem como são corpos as emoções e os vícios. Diz Séneca a este respeito: "0 bem opera porque é útil e aquilo que opera é um corpo.
O bem estimula a alma numa certa maneira: modela-a e tem-na sob o freio, acções estas que são próprias de um corpo. Os bens do corpo são corpos;
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portanto, também os da alma, pois também ela é corpo" (Ep., 106). Os Estoicos só admitiam quatro coisas incorpóreas: o significado, o vazio, o lugar e o tempo (Sexto E., Adv. math., X, 218).
Como se vê, nem Deus existe entre as coisas incorpóreas. O próprio Deus, como razão cósmica e causa de tudo, é corpo: mais precisamente é fogo. Mas não o fogo de que o homem se serve, que destrói todas as coisas: é antes um sopro cálido (pneuma) e vital que tudo conserva, alimenta, faz crescer e também sustém. Mas este sopro ou espírito vital, este fogo animador é também ele corpo. Chama-se razão seminal (logos spermatikós) do mundo porque contém em si as razões seminais segundo as quais todas as coisas se geram. Como todas as partes de um ser vivo nascem da semente, assim toda a parte do universo nasce de uma mesma semente racional, ou razão seminal. Estas razões seminais são frequentemente misturadas umas com as outras, mas, ao desenvolverem-se, separam-se e dão origem a seres diferentes, e assim todas as coisas nascem da unidade e se incluem na unidade. Contudo, a distinção entre as diferentes coisas é perfeita; não existem no mundo duas coisas semelhantes, nem mesmo duas folhas de erva.
O mundo foi gerado quando a matéria originária se diferenciou e se transformou nos vários elementos. Ao condensar-se e tornar-se pesada, converteu-se em terra; ao enrarecer, converteu-se em ar e logo em humidade e água; ao fazer-se mais subtil, deu origem ao fogo. Destes quatro elementos compõem-se todas as coisas:
duas delas, o ar e o fogo são activas; as outras duas, terra e água, são passivas. A esfera do fogo está acima da das estrelas fixas. O mundo é finito e tem a forma de esfera. Em torno dele há o vazio, mas dentro não há vazio porque é tudo unido e compacto (Diog. L., VII, 137 ss.).
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A vida do mundo tem um ciclo próprio. Quando, depois de um longo período de tempo (grande anno), os astros tornam ao mesmo signo e â mesma posição em que se encontravam no princípio, acontece uma conflagração (ekpúrasis) o a destruição de todos os seres; e de novo se forma a mesma ordem cósmica e de novo tomam a verificar-se os acontecimentos ocorridos no ciclo precedente sem nenhuma modificação. Existe de novo Sócrates, de novo Platão e de novo cada um dos homens com os mesmos amigos e concidadãos, as mesmas cirenças, as mesmas esperanças, as mesmas ilusões (Nemésio, De nat. hom., 38, 277).
Tal é de facto o destino (eimarmène), a lei necessária que rege as coisas. O destino é a ordem do mundo e a concatenação necessária que tal ordem põe entre todos os seres e, portanto, entre o passado e o porvir do mundo. Todo o facto se segue a um outro e está necessariamente determinado por ele como pela sua causa; e a todo o facto se segue um outro que ele determina como causa. Esta cadeia não se pode quebrar porque com ela seria quebrada a ordem racional do mundo. Se esta ordem, do ponto de vista das coisas que encadeia, é destino, do ponto de vista de Deus, que é o seu autor e garante infalível. é providência que rege e conduz todas as coisas ao seu fim perfeito. Portanto, destino, providência e razão identificam-se entre si, segundo os Estoicos, e identificam-se com Deus, considerado como a natureza intrínseca, presente e operante em todas as coisas (Alexandre Afr., De fato, 22, p. 191). Segundo este ponto de vista, os Estoicos justificavam a adivinhação, definida como a arte de prover o futuro mediante a interpretação da ordem necessária das coisas. Mas só o filósofo pode sei adivinho do futuro porque só elo conhece a ordem n~ia do mundo (Cícero, De divin., 11, 63, 130).
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Identificando Deus com o cosmos, isto é, com a ordem necessária do mundo, a doutrina estoica é um rigoroso panteísmo. É. ao mesmo tempo, uma justificação do politeísmo tradicional: os deuses da tradição seriam outros tantos aspectos da acção ordenadora divina. A divindade toma o nome de Júpiter fDià) enquanto tudo existe poT obra (diá) sua, de Zeus enquanto causa de viver (zên), de Atena enquanto governa sobre o éter, de Hera enquanto governa sobre o ar, de Efaístos enquanto fogo-artífice e assim por diante (Diog. L., VII, 147).
E se o mundo, na sua ordem necessária, se identifica com a própria razão divina, só pode ser perfeito. Os Estoicos não negavam a existência do mal no mundo, consideravam apenas que ele era necessário para a existência do bem. Os bens são contrários aos males, dizia Crisipo, no seu livro Sobre a Providência. É pois necessário que uns sejam sustentados pelos outros porque sem um contrário não existiria tão-pouco o outro contrário. Não haveria justiça se não houvesse a injustiça, pois que ela não é mais que a libertação da injustiça. Não haveria moderação -se não houvesse a intemperança, nem a prudência se não houvesse a imprudência e assim por diante. Não haveria verdade sem a mentira (Gellio, Noct. att., VII, 1). "Deus harmonizou no mundo todos os bens com todos os males de maneira que nasça dai a razão eterna de tudo", cantava Cleanto no Hino a Júpiter.
§ 94. A PSICOLOGIA ESTOICA
Disse-se já que, segundo os Estoicos, a alma entra no rol das coisas corpóreas com base no princípio de que é corpo aquilo que age e que a alma age, Crisipo servia-se da própria definição platónica da morte como "separação da alma do
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corpo" para tirar dela a confirmação da corporeidade da alma. "0 incorpóreo não poderia separar-se do corpo nem unir-se com ele; mas a alma une-se ao corpo e não se separa dele, portanto a alma é corpo" (Nemésio, De nat. nom., 2, 81). A Alma humana é uma parte da Alma do mundo, isto é, de Deus; como Deus é fogo ou sopro vivificante; e sobrevive à morte no seio da Alma do Mundo (Diog. L., VII, 156).
As partes da alma são quatro: 1.* o princípio directivo ou hegemónico que é a razão; 2.* os cinco sentidos; 3.O o sémen ou o princípio espermático;
4.<' a linguagem (Diog. L., VII, 157; Sexto E., Adv. math., IX, 102). O princípio hegemónico gera e controla as outras partes da alma que se prolonga nelas "como os tentáculos de um polvo". Assim, além de produzir as representações e o assentimento, ele determina também os sentidos e o instinto. Segundo alguns testemunhos, os Estoicos teriam posto o princípio hegemónico na cabeça, comparada àquilo que o sol é no cosmos (Aezio, Plac., IV, 21); mas, segundo outros, tê-la-iam colocado no coração ou no sopro em torno do coração (1b., IV, 5, 6).
Os Estoicos partilham o conceito, já defendido por Platão e Aristóteles, de que a liberdade consiste no ser "causa de si" ou dos próprios actos ou movimentos. Eles conheciam também o termo autopraghia, que se pode traduzir por autodeterminação, para indicar a liberdade e diziam que só o sage é livre porque só ele se determina por si (Diog. L., VII, 121). Todavia, a liberdade do sage não consiste noutra coisa senão no seu conformar-se com a ordem do mundo, isto é, com o destino (Diog. L., VII, 88; Stobeo, Flor., VI, 19; Cicer., De fato, 17). Assim, com os Estoicos, apresenta-se pela primeira vez a doutrina que identifica a liberdade com a necessidade, transferindo a própria liberdade da parte para o todo, isto é, do homem
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para o princípio que opera e age no homem. Não faltou, porém, entre os mestres do Stoa quem quisesse reconhecer a iniciativa do sage uma certa margem de liberdade no confronto com a própria ordem cósmica. Crisipo distinguia entre as causas perfeitas e fundamentais e as concomitantes ou próximas. As primeiras agem com necessidade absoluta; as segundas podem sofrer a nossa influência; e mesmo quando não a sofrem está no nosso poder secundá-las ou não. Assim como quem dá um impulso a um cilindro lhe imprime o começo do movimento mas não a capacidade de rodar, assim os objectos externos imprimem dentro de nós a representação mas não determinam o assentimento que permanece em nosso poder. Nestes limites, a vontade e a índole de cada um podem influir, em conformidade com a ordem do todo, na escolha e na execução das acções (Cícer., De fato,
41-43; Aulo G., Noet. att., VII, 2).
§ 95. A ÉTICA ESTOICA
Deus confiou a realização e a conservação da ordem perfeita do cosmos no mundo animal a duas forças igualmente infalíveis: o instinto e a razão.
O instinto (hormé) guia infalivelmente o animal na conservação, na alimentação, na reprodução e em geral a tomar cuidado consigo para os fins da sua sobrevivência (Diog. L., VII, 85). A razão é, por outro lado, a força infalível que garante o acordo do homem consigo próprio e com a natureza em geral.
A Ética dos Estoicos é, substancialmente, uma teoria do uso prático da razão, isto é, do uso da razão com o Em de estabelecer o acordo entre a natureza o o homem. Zenão afirmava que o fim do homem é o acordo consigo próprio, isto é, o
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viver "segundo uma razão única e harmónica". "Ao acordo consigo próprio, Cleanto acrescentou o acordo com a natureza e por isso define o fim do homem como "a vida conforme a natureza". E Crisipo exprimo a mesma coisa dizendo: "viver conforme com a experiência dos acontecimentos naturais" (Stobeo, Ecl., 11, 76, 3). Mas parece que já Zenão tinha adoptado a fórmula do "viver segundo a natureza" (Diog. L., VII, 87). E indubitavelmente esta é a máxima fundamental da doutrina estoica.
Por natureza, Cleanto entendia a natureza universal, Crisipo não só a natureza universal mas também a humana que é parte da natureza universal. Para todos os Estoicos, a natureza é a ordem racional, perfeita e necessária que é o destino ou o próprio Deus. Por isso Cleanto orava assim: "Conduz-me, 6 Zeus, e
tu, Destino, aonde por vós sou destinado e vos servirei sem hesitação: porque ainda que eu não quisesse, vos deveria seguir igualmente como estulto" (Stobeo, Flor., VI, 19). Ora a acção que se apresenta conforme com a ordem racional é o dever (kathêkon): a ética estoica é, pois, fundamentalmente uma ética do dever e a noção do dever, como conformidade ou conveniência da acção humana com a ordem racional, torna-se, pela primeira vez, nos Estoicos, a noção fundamental da Ética. Efectivamente, nem a Ética platónica nem a Ética aristotélica fazem referência à ordem racional do todo, assumindo como seu fundamento, para a primeira, a noção de justiça, para a segunda, a de felicidade. A noção de dever não surgia no seu âmbito e nelas dominava a noção de virtude como caminho para realizar a justiça ou felicidade. "Os Estoicos chamam dever -diz Diógenes Laércio- (VII, 107-09) àquilo cuja escolha pode ser racionalmente justificada... Das acções realizadas pelo instinto algumas são próprias do
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dever. outras nem próprias do dever nem contrárias ao dever. Próprias do dever são aquelas que a razão aconselha efectuar, como honrar os pais, os irmãos, a pátria e viver em harmonia com os amigos. Contra o dever são aquelas que a razão aconselha a não fazer... Nem próprias do dever nem contrárias ao dever são aquelas que a razão nem aconselha nem condena, como levantar uma palha, pegar numa pena, etc.". Como nos refere Cícero, (De offi, 111, 14), os Estoicos distinguiam o dever recto, que é perfeito e absoluto e não pode encontrar-se em mais ninguém a não ser no sage, e os deveres "intermédios" que são comuns a todos e muitas vezes só são realizados com a ajuda da boa índole e de uma certa instrução. Esta prevalência da noção do dever levou os Estoicos a uma doutrina típica da sua Ética: a justificação do suced-io. Efectivamente, quando as condições contrárias ao cumprimento do dever prevalecem sobre as favoráveis, o sage tem o dever de abandonar a vida mesmo se está no cume da felicidade (Cicer., De fin., 111, 60). Sabemos que muitos mestres do Stoa seguiram este preceito que é, na realidade, a consequência da sua noção do dever.
Todavia, o dever não é o bem. O bem começa a existir quando a escolha aconselhada pelo dever vem repetida e consolidada, mantendo sempre a sua conformidade com a natureza, até tornar-se no homem urna disposição uniforme e constante, isto é, uma virtude (Cicer., De fin., 111, 20, Tusc., IV, 34). A virtude é, efectivamente, o único bem. Mas só é própria do sage, isto é, daquele que é capaz do dever recto e se identifica com a própria sageza porque esta não é possível sem o conhecimento da ordem cósmica à qual o sage se adequa. A virtude pode ter nomes diferentes segundo os domínios a que é referida (a sageza incide sobre os objectivos do homem, a temperança sobre os impulsos, a for-
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taleza sobre os obstáculos, a justiça sobre a distribuição dos bens (Stobeo, Ecl., 11, 7, 60). Mas, na realidade, existe uma só virtude e só a possui integralmente aquele que sabe entender e compreender e cumprir o dever, isto é, só o sage (Diog. L., VII, 126).
Entre a virtude e o vício não há, portanto, meio termo. Como um pedaço de madeira ou é direito
ou curvo sem possibilidade intermédia, assim o homem é justo ou é injusto e não pode ser justo ou injusto só parcialmente. De facto, aquele que tem a recta razão, isto é, o sage, faz tudo bem e virtuosamente, enquanto quem é privado da recta razão, o estulto, faz tudo mal e de maneira viciosa. E pois que o contrário da razão é a loucura, o homem que não é sage é louco. Pode-se certamente progredir para a sabedoria. Mas como quem está submerso pela água, ainda que esteja pouco abaixo da superfície, não pode respirar como se estivesse nas águas profundas, assim aquele que avançou para a virtude, mas não é virtuoso, não está menos na miséria do que aquele que está mais longe dela (Cicer., De fin., 111, 48).
A virtude é o único bem em sentido absoluto porque ela constitui a realização no homem da ordem racional do mundo. Este princípio levou os Estoicos a formular uma outra doutrina típica da sua Ética: a das coisas indiferentes (adiaphorá). Se a virtude é o único bem, só devem considerar-se bens propriamente a sabedoria, a justiça, etc., e males os seus contrários; enquanto não são bens nem males as coisas que não constituem virtude, como a vida, a saúde, o prazer, a beleza, a riqueza, a glória, etc., e todos os seus contrários. Estas coisas são, portanto, indiferentes. Mas, no domínio destas mesmas coisas indiferentes, algumas são dignas de ser preferidas ou escolhidas como, precisamente, a vida, a saúde, a beleza, a riqueza. etc.;
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outras não, como os seus contrários. Existem, pois, além dos bens (a virtude), outras coisas que não são bens mas que, todavia, são também dignos de ser escolhidos. E para indicar o conjunto dos bens e de tais coisas os Estoicos utilizaram a palavra valor (axia). Valor é, portanto, "todo o contributo para uma vida conforme com a razão" (Diog. L., VII, 105) ou em geral "aquilo que é digno de escolha" (Cicer., De fin., 111, 6, 20). Com esta noção de valor fazia o seu ingresso na Ética um conceito que devia revelar-se de grande importância na história desta disciplina.
Faz parte integrante da Ética estoica a negação total do, valor da emoção (pathos). Efectivamente, ela não tem qualquer função na economia geral do cosmos que providenciou de modo perfeito na conservação e no bem dos seres vivos, dando aos animais o instinto e ao homem a razão. Pelo contrário, as emoções não são provocadas por forças ou situações naturais: são opiniões ou juízos ditados pela ligeireza, por isso fenómenos de estultícia e de ignorância que constituem em "julgar saber o que se não sabe" (Cicer., Tuse., IV, 26). Os Estoicos distinguiam quatro emoções fundamentais às quais reduziam todas as outras: duas originadas pelos bens presuntivos: o desejo dos bens futuros e a alegria dos bens presentes; duas originadas pelos males presuntivos: o temor dos males futuros e a aflição dos males presentes. A três destas emoções, e precisamente ao desejo, à alegria e ao temor faziam corresponder três estados normais próprios do sage, isto é, respectivamente a vontade, a alegria e a prudência que são estados de calma e de equilíbrio racional. Nenhum estado normal corresponde, pelo contrário, no sapiente àquilo que é aflição para o estulto: efectivamente, para ele não existem males de que deva doer-se, dado que conhece a perfeição do universo. As emoções são, portanto,
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verdadeiras e típicas doenças que afectam o estulto mas de que o sage está imune. A condição do sage, é, pois, a indiferença a toda a emoção, a apatia.
A ordem racional do mundo, do mesmo modo que dirige a vida de todo o homem singular, dirige o da comunidade humana. Aquilo que se chama justiça é a acção, nesta comunidade, da própria razão divina. A lei que se inspira na razão divina é a lei natural da comunidade humana: uma lei superior à reconhecida pelos diferentes povos da terra, perfeita, portanto não susceptível de correcções ou melhoramentos. Cícero, numa página famosa, exprimia assim o conceito desta lei: "Por certo, existe uma verdadeira lei, a da recta razão conforme com a natureza, difundida entre todos, constante, eterna, que com o seu mandado convida ao dever e com a sua proibição dissuade do engano... Não será diferente em Roma ou em Atenas ou hoje ou amanhã, mas como única, eterna, imutável lei governará todos os povos e em todos os tempos" "Lactâncio, Div. inst., VI, 8, 6-9; Cicer., De rep., 111, 33). Estes conceitos constituem e constituirão a base da teoria do direito natural que, por muitos séculos, foi um fundamento de toda a doutrina do direito.
Se a lei que governa a humanidade é única, una é ia comunidade humana. "0 homem que se conforma com a lei é cidadão do mundo (cosmopolita) e dirige as suas acções segundo o querer da natureza conforme o qual todo o mundo se governa" (Filon, De mundi opif., 3). Por isso,
o sage não pertence a esta ou àquela naçã o mas à cidade universal na qual todos os homens são concidadãos. Nesta cidade não existem livres e escravos mas todos são livres. Para os Estoicos a única escravidão natural é a do estulto enquanto não se determina em conformidade com aquela Icí que é
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a sua própria natureza e do mundo. A escravatura imposta pelo homem sobre o homem, para os Estoicos, nã o passa de malvadez (Diog. L., VII, 121),
NOTA BIBLIOGRáFICA
§ 89. Sobre a filosofia pôs-aristotélica: MELLI, La filosofia greca da Epicuro ai Neoplatonici, Flo~ rença, 1922; SCHMFKEL, For8chungen zur Philosophie des Heltení8mus, Berlim, 1938.
§ 90. Sobre a vida, os escritos e a doutrina dos antigos Estoicos as fontes principais são: 1.1 DIóGENES LAÉRciO, VII; 2., SEXTO EMPIRICO, Ipotiposi Pirronianas e Contra os -matemáticos (estas obras são em boa parte tecidas com a -exposição e a crítica das doutrinas estoicas); 3.' CICERO, cujas obras filosóficas são Inspiradas inteiramente pelo Estoicismo, que atingiu através dos escritos dos Eclécticos, principalmente de Possidónio, e Panézio; 4., diversos artigos de SUIDAS no Léxico; 5., FILODEMO, os restos do escrito Sobre os Estoicos.
Os fragmentos deduzidos destas fontes e de outras menores ou mais ocasionais foram recolhidos por VON ARNIM, Stoicorum Veterum Fragmenta: vol. 1, "Zenão e os discípulos de Zenão", Leipzig, 1905; vol. II, " Os fragmentos lógicos e físicos de Crisipo", Leipzig,
1903; vol. 111, "Os fragmentos morais de Crisipo e os fragmentos dos sucessores de Crisipo", Leipzig,
1903; vol. lV, "Indíce", compilado por AMER, Leipzig, 1924.
§ 91. Sobre a doutrina estoica em geral: BARTI1, Díe Stoa, Stutgard, 1908; 4.1 ed. 1922; BRÉMER, Chrí- &ippe, Paris, 1910; 2.1 ed. 1951; POFILENZ, Die Stoa, Gottingen, 1948; 2., ed. 1954; J. BRUN, Le stoicisme, Paris, 1958.
§ 92. Sobre a lógica estóioa: B. MATrS, StoiC Logic, BerkeIey (Cal.), 1953; W KNEALE. e M. KNEALE, The Development of Logic, Oxford, 1962, cap. 3.
§ 93. Sobre a física: J. MOREAu, LIâme du monde de Platon aux Stoiciens, Paris, 1939; S. SAMBURSKI, The Physies of lhe Stoics, Londres, 1959,
§ Sobre -a ética: RIETH, Grundbegriffe der stoischen Ethik, B@rlim, 1934; KIRK, The Moral Philosophy of lhe Stoics, New Brunswick, 1951.
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XIV
O EPICURISMO
§ 96. EPICURO
Epicuro, filho de Neocles, nasceu em Janeiro ou Fevereiro de 341 a.C. em Samos, onde passou a sua juventude. Começou a ocupar-se de filosofia aos 14 anos. Em Samos escutou as lições do platónico Panfilo e depois do democritiano Nausífone. Provàvelmente foi este último que o iniciou na doutrina de Demócrito, do qual, por algum tempo, se considerou discípulo. Só mais tarde afirmou a completa independência da sua doutrina da do seu inspirador, a quem julgou então poder designar com o arremedo de Lerocrito (tagarela) (Diog. L., X, 8).
Aos 18 anos, Epicuro dirigiu-se a Atenas. Não está demonstrado que tenha frequentado as lições de Aristóteles e de Xenócrates que era naquele tempo o chefe da Academia. Começou a sua actividade de mestre aos 32 anos, primeiro em Mitilene e em Lâmpsaco, e alguns anos depois em Atenas (307-06 a.C.), onde permaneceu até à sua morte (271-70).
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A escola tinha a sua sede no jardim (kepos) de Epicuro pelo que os seus sequazes foram chamados "filósofos do jardim". A autoridade de Epicuro sobre os seus discípulos era muito grande. Como as outras escolas, o Epicurismo constituía uma associação de carácter religioso, mas a divindade a que era dedicada esta associação era o próprio fundador da escola. "As grandes almas epicuristas -diz Séneca (Ep., 6) - não as formou a doutrina mas a assídua companhia de Epicuro". Tanto durante a sua vida como depois da sua morte, lhe tributaram os discípulos e os amigos honras quase divinas e procuraram modelar a sua conduta pelo seu exemplo. "Comporta-te sempre como se Epicuro te visse"-era o preceito fundamental da escola (Séneca, Ep., 25).
Epicuro foi autor de numerosos escritos, cerca de 300. Restam-nos apenas três cartas conservadas por Diógenes Laércio (livro X): a primeira, a Heródoto, é uma breve exposição de física; a segunda, a Meneceu, é de conteúdo ético; e a terceira, a Pitocles, de atribuição duvidosa, trata de questões metereológicas. Diógenes Laércio conservou-nos também as Máximas capitais e o Testamento. Num manuscrito vaticano foi encontrada uma colecção de Sentenças e nos papiros de Herculano fragmentos da obra Sobre a Natureza.
§ 97. A ESCOLA EPICURISTA
O mais notável dos discípulos imediatos de Epicuro foi Metrodoro de Lâmpsaco cujos escritos foram na sua maior parte de conteúdo polémico. Mas contaram-se numerosíssimos discípulos e amigos de Epicuro e entre eles não faltaram as mulheres como Temistia e a hetaira Leontina que escreveu contra Teofrasto. Com efeito, as mulheres
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podiam também participar na escola, já que ela se fundava na solidariedade e na amizade dos seus membros o as amizades epicuristas foram famosas em todo o mundo antigo pela sua nobreza.
Todavia, nenhum discípulo trouxe uma contribuição original para a doutrina do mestre. Epicuro exigia dos seus sequazes a rigorosa observância dos seus ensinamentos; e a esta observância se manteve fiel a escola durante todo o tempo da sua duração (que foi longuíssima, até ao século IV d.C.). Por isso, entre os seus numerosos discípulos, só recordaremos aqueles por cuja mediação nos chegaram ulteriores notícias acerca da doutrina epicurista. De Filodemo, que viveu no tempo de Cícero, revelaram-nos os papiros de Herculano alguns fragmentos que tratam de numerosos problemas sob o ponto de vista epicurista e nos apresentam as polémicas que se desenvolviam, naquele -tempo, no próprio interior da escola epicurista e entre ela e as outras escolas.
Tito Lucrécio Caro deixou-nos no seu De rerum natura não só uma obra de grande valor poético mas também uma exposição fiel do Epicurismo. Pouco se sabe da vida de Lucrécio. Nasceu provavelmente em 96 a.C. e morreu em 55 -a.C.. A notícia de que estava louco, transmitida pelos escritores cristãos, e que havia escrito o seu poema nos intervalos da loucura, ode ser uma invenção devida à
p exigência polémica de desacreditar o máximo representante latino do ateísmo epicurista; em todo o caso, é pouco verosímil pela causa aduzida da loucura do poeta: um filtro amoroso. Os seis livros da obra de Lucrécio (que está incompleta) dividem-se em três partes, dedicadas, respectivamente, à metafísica, à antropologia e à cosmologia, cada uma das quais compreende dois livros. No primeiro e segundo livro trata-se dos princípios de toda a realidade, da matéria, do espaço e da constituição dos
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corpos sensíveis. No terceiro e quarto livro, trata-se do homem. No quinto e sexto, do universo e dos fenómenos físicos mais -importantes. A obra foi editada por Cícero, que teve que reordená-la um pouco, depois da morte de Lucrécio. O poeta latino vê em Epicuro aquele que libertou os homens do temor do sobrenatural e da morte. Lucrécio considerava tão grande esta tarefa que não hesitou em exaltar Epicuro como uma divindade e em reconhecê-lo como o fundador da verdadeira ciência.
Ao século 11 d.C. pertence Diógenes de Enoanda (Ásia Menor) de quem se encontrou em 1884 um escrito esculpido em blocos de pedra. Estas inscrições revelam uma doutrina perfeitamente conforme com a original de Epicuro; a única novidade é a defesa do Epicurismo contra outras correntes filosóficas e, especialmente, contra os diálogos platónicos de Aristóteles.
§ 98. CARACTERÍSTICAS DO EPICURISMO
Epicuro vê na filosofia o caminho para alcançar a felicidade, entendida como libertação das paixões. O valor da filosofia é, pois, puramente instrumental: o seu fim é a felicidade. Mediante a filosofia o homem liberta-se de todo o desejo inquieto e molesto; liberta-se também das opiniões irracionais e vãs e das perturbações que delas procedem. A investigação científica destinada a investigar as causas do mundo natural não tem um fim diferente. "Se
não estivéssemos perturbados pelo pensamento das coisas celestes e da morte e por não conhecermos os limites das dores e dos desejos, não teríamos necessidade da ciência da natureza" (Máximas capitais, 11). O valor da filosofia está, pois, inteiramente em dar ao homem um "quádruplo remédio": 1.o Libertar os homens do temor
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EPICURO
dos deuses, demonstrando que pela sua natureza feliz, não se ocupam das obras humanas. 2.' Libertar os homens do temor da morte, demonstrando que ela não é nada para o homem: "quando nós existimos, não existe a morte; quando a morte existe, não existimos nós" (Ep. a Men., 125).
3.' Demonstrar a acessibilidade do limite do prazer, isto é, o alcançar fácil do próprio prazer; 4.' Demonstrar a distância do limite do mal, isto é, a brevidade e a provisoriedade da dor.
Deste modo a doutrina epicurista manifestava claramente a tendência de toda a filosofia pós-aristotélica para subordinar a investigação especulativa a um fim prático, reconhecido como válido independentemente da pró pria investigação, de modo que vinha a ser negado a tal investigação o valor supremo que lhe atribuem os filósofos do período clássico: o de ela própria determinar o fim do homem e de ser, já como investigação, parte integrante deste fim.
Epicuro distingue três partes da filosofia: a canónica, a física e a ética. Mas a canónica era concebida em relação tão estreita com a física que se pode dizer que, para o Epicurismo, as partes da filosofia são apenas duas: a física e a ética. Em todo o domínio do conhecimento o fim que é necessário ter presente é a evidência (enàrgheia): "a base fundamental de tudo é a evidência", dizia Epicuro.
§ 99. A CANóNICA DE EPICURO
Epicuro chamou canónica à lógica ou teoria do conhecimento enquanto a considerou essencialmente a oferecer o critério de verdade e, portanto, um canon, isto é, uma regra que oriente o homem para a felicidade. O critério da verdade é constituído pelas sensações, pelas antecipações e pelas emoções.
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A sensação é produzida no homem pelo fluxo dos átomos que se separam da superfície das coisas (segundo a teoria de Demócrito, § 22). Este fluxo produz imagens (éidola) que são em tudo semelhantes às coisas que as produzem. Destas imagens derivam as sensações; das sensações derivam as representações fantásticas que resultara da combinação de duas imagens diferentes (por exemplo, a representação do centauro deriva da união da imagem do homem e do cavalo). Das sensações repetidas e conservadas na memória derivam também as representações genéricas (ou conceitos) que Epicuro, (como os Estoicos) chamou antecipações. Com efeito, os conceitos servem para antecipar as sensações futuras. Por exemplo, se se diz "este é um homem" é necessário ter já o conceito de homem, adquirido por virtude das sensações precedentes.
Ora a sensação é sempre verdadeira. Efectivamente, não pode ser refutada por uma sensação homogénea, que a confirma, nem por uma sensação diferente que, proveniente de um outro objecto, não pode contradizê-la. A sensação é, pois, o critério fundamental da verdade. Finalmente, o terceiro critério de verdade é a emoção, isto é, o prazer ou a dor, que constitui a norma para a conduta prática da vida e está, portanto, fora do campo da lógica.
O erro, que não pode subsistir nas sensações e nos conceitos, pode subsistir, em contravertida, na opinião, a qual é verdadeira se é confirmada pelos testemunhos dos sentidos ou pelo menos não contraditada por tal testemunho; é falsa no caso contrário. Atendo-se aos fenómenos, tal como se nos manifestam mercê das sensações, pode-se, com o raciocínio, estender o conhecimento até às coisas que para a própria sensação são desconhecidas; mas a regra fundamental do raciocínio é, neste caso, o mais rigoroso acordo com os fenómenos percebidos.
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No escrito de Filodemo, Sobre os sinais, que expõe a doutrina do epicurista Zenão, mestre de Filodemo, é desenvolvida e defendida contra os ataques dos Estoicos a teoria do raciocínio indutivo. Os Estoicos afirmavam: não basta verificar que os homens que existem à nossa volta são mortais para afirmar que em todos os casos os homens são mortais; seria necessário estabelecer que os homens são mortais, precisamente enquanto homens, para dar àquela inferência a sua necessidade. Mas os Epicuristas respondiam que, dado que nada se opõe à sua conclusão, uma inferência do género na analogia, deve ser considerada válida. Dado que todos os homens que caem na alçada da nossa experiência são semelhantes também no que respeita à mortalidade, é necessário considerar que são semelhantes, também neste aspecto, aqueles que estão fora da nossa experiência (De signis, XVI, 16-29). Por outras palavras, os Epicuristas admitiam que a indução era um processo por analogia (entendendo-se por analogia a identidade de duas ou mais relações), no sentido de que uma vez verificado que, na nossa experiência, uma certa qualidade (no exemplo, "mortal") é acompanhada constantemente por outra qualidade (aquela que os homens constituem), pode inferir-se que, também onde não alcança a experiência, esta relação se mantém constante, isto é, que as outras qualidades dos homens são sempre acompanhadas pela de mortal (lb., XX, 32 e ss.). Deste modo, eles pressupunham não já a necessária semelhança dos homens, segundo a crítica dos Estoicos, mas a semelhança, isto é, a uniformidade, das relações entre qualidade ou factos, uniformidade que mais tarde será chamada (por Stuart Mill) "uniformidade das leis da natureza", enquanto distinta da "uniformidade por natureza". Os Epicuristas partiam também de um sentido amplo de experiência e afirmavam
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recolher "não só os sinais que nos aparecem ou que nós próprios experimentamos mas também as coisas que aparecem na experiência de outrem e que por ela podem ser tomadas" (1b., 32, 14). E também nisto se afastavam dos Estoicos que reduziam a experiência ao aqui e agora percebido e instituíam, como se viu, a força inteira do raciocínio sobre este aqui e agora.
Acerca da linguagem Epicuro formulava, pela primeira vez, uma doutrina que foi retomada nos tempos modernos: a linguagem é um produto natural porque é a expressão sonora das emoções que unem os homens em determinadas condições (Diog. L., X, 75-76). É a tese que foi defendida no século XVIII por Rousseau.
§ 100. A FíSICA DE EPICURO
A física de Epicuro tem COMO objectivo excluir da explicação do mundo toda a causa sobrenatural e libertar assim os homens do temor de estar à mercê de forças desconhecidas e de misteriosas intervenções. Para alcançar este objectivo a física deve ser: 1.o materialística, isto é, excluir a presença no mundo de qualquer " alma" ou princípio espiritual; 2.O mecanística, isto é, servir-se na sua explicação unicamente do movimento dos corpos excluindo qualquer finalismo. Dado que a física de Demócrito correspondia a estas duas condições, Epicuro adoptou-a e fê-la sua com escassas e insignificantes modificações.
Como os Estoicos, Epicuro afirma que tudo aquilo que existe é corpo porque só o corpo pode agir ou sofrer uma acção. De incorpóreo, admite apenas o vazio, mas o vazio não age nem sofre alguma coisa, apenas permite aos corpos moverem-se através de si próprio (Ep. ad Her., 67). Tudo aquilo
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que age ou sofre é corpo e todo o nascimento ou morte é mais que a agregação ou a desagregação dos corpos. Por isso Epicuro admite com Demócrito que nada vem do nada e que cada corpo é composto de corpúsculos indivisíveis (átomos) que se movem no vazio.
No vazio infinito, os átomos movem-se eternamente chocando-se, combinando-se entro s@i. As suas formas são diversas; mas o seu número, embora indeterminável, não é infinito. O seu movimento não obedece a nenhum desígnio providencial, a qualquer ordem finalística, Os Epicuristas excluem explicitamente a providência estoica e a crítica a tal providência constitui um dos temas preferidos da sua polémica. Contra a acção da divindade no mundo, argumentam tomando como ponto de
partida a existência do mal. "A divindade ou quer suprimir os males e não pode ou pode e não quer ou não quer nem pode ou quer e pode. Se quer e não pode é -impotente; e a divindade não o pode ser. Se pode e não quer, é invejosa, e a divindade não o pode ser. Se não quer e não pode, é invejosa e impotente, portanto não é divindade. Se quer e pode (que é a única coisa que lhe é conforme) donde vem a existência dos males e porque não os elimina? (fr. 374, Usener). Eliminada do mundo a acção da divindade, não ficam para explicar a ordem senão as leis que regulam o movimento dos átomos. A estas leis nada escapa, segundo os Epicuristas; elas constituem a necessidade que preside a todos os acontecimentos do mundo natural.
Um mundo é, segundo Epicuro, "um pedaço de céu que compreende astros, terras e todos os fenómenos, recortado no infinito". Os mundos são infinitos; eles estão sujeitos ao nascimento e à morte. Todos se formam devido ao movimento dos átomos no vazio infinito. Mas Epicuro, ao considerar que os átomos caem no vazio em linha recta e com
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a mesma velocidade, para explicar o choque, devido ao qual se agregam e se dispõem nos vários mundos, admite um desvio casual dos átomos da sua trajectória rectilínea. Este desvio dos átomos é o único acontecimento natural não sujeito à necessidade. Ele, como diz Lucrécio, "despedaça as leis do fado". Epicuro admite, contudo, a existência das divindades neste mundo, donde foi eliminado todo o sinal de potência divina. E admite-as devido ao seu próprio empirismo, porque os homens têm a -imagem da divindade e esta imagem, como outra qualquer, não pode ter sido produzida em si senão pelos fluxos dos átomos emanados da própria divindade. Os deuses têm a forma humana, que é a
mais perfeita e, portanto, a única digna de ser racional. Eles mantêm uns com os outros uma amizade análoga à humana; e habitam os espaços entre mundo e mundo (ilitermundi). Mas não se preocupam nem com o mundo nem com os homens. Todo o cuidado deste género seria contrário à sua perfeita beatitude, dado que lhes imporia uma obrigação e eles não têm obrigações, antes vivem livres e felizes. Por isso, o motivo pelo qual o sage os honra não é o temor, mas a admiração da sua excelência.
A alma é, segundo Epicuro, composta por partículas corpóreas que estão difundidas em todo o corpo como um sopro cálido. Tais partículas são mais subtis e Tedondas que as demais o por isso mais móvois. As faculdades da alma, como se viu, são fundamentalmente três: a sensação em sentido próprio; a imaginação (mens, segundo Lucrécio) que produz as representações fantásticas; a
razão (logos) que é a faculdade do juízo e da opinião. A estas faculdades teoréticas junta-se a
emoção, prazer ou dor, que é a norma da conduta prática. A parte irracional da alma, que é o princípio da vida, está difundida por todo o corpo.
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Com a morte, os átomos da alma separam-se e cessa qualquer possibilidade de sensação: a morte é "privação de sensações". Por isso é estulto temê-la: "0 mais terrível dos males, a morte, não é nada para nós porque quando existimos nós não existe a morte, quando existe a morte não existimos nós" (Ep. ad Men., 125).
§ 101. A ÉTICA DE EPICURO
A ética epicurista é, em geral, uma derivação da cirenaica (§ 39). A felicidade consiste no prazer: "o prazer é o princípio o o fim da vida feliz", diz Epicuro (Diog. L., X 149). Com efeito, o prazer é o critério da eleição e da aversão: tende-se para o prazer, foge-se da dor. Ele é também o critério com que avaliamos todos os bens. Mas há duas espécies de prazeres: o prazer estável que consiste na privação da dor e o prazer em movimento que consiste no gozo e na alegria. A felicidade consiste apenas no prazer estável ou negativo, "no não sofrer e no não agitar-se" e é, portanto, definida como ataraxia (ausência de perturbação) e aporia (ausência de dor). O significado destes dois termos oscila entre a libertação temporal da dor da necessidade e a ausência absoluta de dor. Em polémica com os Cirenaicos que afirmavam a positividade do prazer, Epicuro afirma explicitamente que "o cume do prazer é a simples e pura destruição da dor."
Este carácter negativo do prazer impõe a escolha e a limitação das necessidades. Epicuro distingue as necessidades naturais e as inúteis; das necessidades naturais, umas são necessárias, outras não. Daquelas que são naturais e necessárias, umas são necessárias à felicidade, outras à saúde do corpo, outras à própria vida. Só os desejos naturais e
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necessários devem satisfazer-se; os demais devem abandonar-se e rechaçar-se. O epicurismo que, portanto, não o abandono ao prazer, mas o cálculo e a medida dos prazeres. Tem de se renunciar aos prazeres de que deriva uma dor maior e suportar até largamente as dores de que deriva um prazer maior. "A cada desejo é conveniente perguntar: que sucederá se for satisfeito? Que acontecerá se não for satisfeito? Só o cálculo cuidadoso dos prazeres pode conseguir que o homem se baste a si próprio e não se converta em escravo das necessidades e da preocupação pelo amanhã. Mas este cálculo só se pode ficar a dever à sageza (frónesis). A sageza é mais preciosa do que a filosofia, porque por ela nascem todas as outras virtudes e sem ela a vida não tem doçura, nem beleza, nem justiça" (Ep. ad Men., 132). A virtude, e especialmente a sageza que é a primeira e a fundamental, aparecem assim a Epicuro como condição necessária da felicidade. À sageza se deve o cálculo, a escolha e a limitação das necessidades e, portanto, o alcançar da ataraxia e da aponia.
Num passo famoso do escrito Sobre o fim, Epicuro afirma explicitamente o carácter sensível de todos os prazeres. "Em minha opinião -diz elenão sei conceber que coisa é o bem se prescindo dos prazeres do gosto, dos prazeres do amor, dos prazeres do ouvido, dos que derivam das belas imagens percebidas pelos olhos e, em geral, todos os prazeres que os homens têm pelos sentidos. Não é verdade que só o gozo da mente é um bem; dado que também a mente se alegra com a esperança dos prazeres sensíveis em cujo disfrute a natureza humana pode livrar-se da dor". (Cícer., Tusc., fil,
18, fr. 69, Usener. Confrontar com 67, 68 e 70, Usener). É claro aqui que o bem se restringe ao âmbito do prazer sensível ao qual pertence também o prazer que a música dá ("os prazeres dos sons")
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e a contemplação da beleza ("prazeres das belas imagens"); e que o prazer espiritual se reduz à esperança do próprio prazer sensível. Pode ser que o carácter polémico do fragmento (dirigido provavelmente contra o protréptico de Aristóteles, o qual platonicamente exaltava a superioridade do prazer espiritual, § 69), tenha levado Epicuro a acentuar a sua tese da sensibilidade do prazer. Mas é claro que esta tese deriva necessariamente da sua doutrina fundamental que faz da sensação o cânon fundamental da vida do homem. Que o verdadeiro bem não seja o prazer violento, mas o estável da aponia e da ataraxia não é coisa que contradiga a tese da sensibilidade do prazer porque a aponia é "o não sofrer no corpo" e a ataraxia é "o não ser perturbado na alma" pela preocupação da necessidade corpórea.
Mas, por isto, a doutrina de Epicuro não se pode confundir com um vulgar hedonismo. Opor-se-ia a tal hedonismo o culto da amizade que foi característico da doutrina e da conduta prática dos Epicuristas. "De todas as coisas que a sageza nos oferece para a felicidade da vida, a maior é de longe a aquisição da amizade" (Max. cap., 27). A amizade nasceu do útil, mas ela é um bem por si mesma. O amigo não é aquele que procura sempre o útil, nem quem nunca o une à amizade, dado que o primeiro considera a amizade como um tráfico de vantagens, o segundo destrói a confiada esperança de ajuda que constitui grande parto da amizade (Sentenças Vaticanas, 39, 34, Bignone).
Opor-se-ia também ao referido hedonismo a exaltação da sageza. Seria certamente melhor, segundo Epicuro, que a fortuna tornasse próspera em todos os casos a sageza; mas é sempre preferível a sageza
desafortunada à insensatez afortunada (Ep. ad Men., 135). Ainda que a justiça seja somente uma convenção que os homens estabeleceram entre si
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para a utilidade comum, isto é, para que se evite
* fazer-se recIprocamente dano, é muito difícil que
* sage se deixe arrastar a cometer uma injustiça ainda que esteja seguro de que o seu acto permanecerá desconhecido e que, por isso, não lhe trará dano. "Quem alcançou o fim do homem, ainda que ninguém esteja presente, será igualmente honesto" (fr. 533, Usener).
A atitude do epicurista para com os homens em geral é definida pela máxima: "É não só mais belo, mas também mais agradável fazer o bem do que recebê-lo" (fr. 544). Nesta máxima o prazer surge de facto como fundamento e a justificação da solidariedade entre todos os homens. E, na verdade, Diógenes Laércio testemunha-nos o amor de Epicuro pelos seus pais, a sua fidelidade aos amigos, o seu sentido de solidariedade humana (X, 9).
Quanto à vida política, Epicuro reconhecia as vantagens que ela traz aos homens, obrigando-os a acatar as leis que os impedem de se prejudicarem mutuamente. Mas aconselhava ao sage que permanecesse alheio à vida política. O seu preceito é: "vive escondido" (fr. 551). A ambição política só pode ser fonte de perturbaçã o e, portanto, obstáculo para o alcançar da ataraxia.
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 96. As notícias antigas sobre a vida, os escritos e a doutrina de Epicuro e dos epicuristas foram recolhidas pela primeira vez por H. USENER, Epicurea, Leipzig, 1887. - BIGNONE, Epicuro, obras, fragmentos, testemunhos sobre a vida, traduzidos com introdução e comentários, Bari, 1920; DIANO, Epicuri Ethica, Florença, 1946; ARRIGITEM, Epicuro. Opere, Introdu- ção, texto critico, tradução e notas, Turim, 1960. Oo últimos volumes recolhem também oe fragmentos encontrados nos papiros de HercuLano. -Sobre a formaçAo da doutrina epicurista: BIGNONF,, LIAr~tele
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perduto e Ia form_azione filosofica di Epicuro, 2 vols., Florença, 1936; DIANO, Note epicuree, in ".4=ali Scuola normale superiore di Pisa", 1943; Questione epicuree, in. "Giornale critico filosofia italiana", 1949.
§ 97. Sobre os discípulos de Epicuro: ZELLER, M, 1, p. 378 ss.; LuCRÉCio, De rerum natura, ed. Giussani, Turim, 1896-98. Os Fragmentos de Filodemo encontram-se nas citadas compilaçóes: o De signis, ed. GOMPERZ, Le-,ipzig, 1865; ed. e tradução inglesa DE LAcy, Filadélfia, 1941; Diógenes de Enoanda, fragmentos editados por WILLIAM, Leipzig, 1907.
§ 99. Sobre Epicuro em geral: BAILEY, The Greek Atomists and Epicurus, Oxford, 1928; N. W. DE WITT, Epicurus and his Philosophy, Minneapolis, 1954.
§ 100. C. DIANO, La psicologia di Epicuro, in "Giornale critico filosofia Italiana", 1939; V. E. ALFIERI, Studi di filosofia greca, Bari, 1950.
§ 101. GuyAu, La morale d'Epicure, Paris, 1886; MONDOLFO, Problemi del pensiero antico, Bolonha, 1936.
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O CEPTICISMO
§ 102. CARACTERISTICAS DO CEPTICISMO
A palavra cepticismo deriva de sképsi*s, que significa indagação. Em conformidade com a orientação geral da filosofia pós-aristotélica, o Cepticismo tem como objecto o alcançar da felicidade como ataraxia. Mas enquanto o Epicurismo e o Estoicismo punham a condição da mesma numa doutrina determinada, o Cepticismo coloca tal condição na crítica e na negação de toda a doutrina determinada, numa indagação que ponha em evidência a inconsistência de qualquer posição teorético-prática, as considere a todas igualmente falazes e se abstenha de aceitar alguma. A tranquilidade do espírito em que consiste a felicidade, consegue-se, segundo os cépticos, não já aceitando uma doutrina, mas refutando qualquer doutrina. A indaga- ção (sképsis) é o meio de alcançar esta refutação e, por conseguinte, a ataraxia.
Daqui resulta a mudança radical e também a decadência profunda que o conceito de investiga-
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ção sofre por obra do cepticismo. Se se confronta o conceito céptico de indagação, como instrumento da ataraxia, com o conceito socrático e platónico da procura, a mudança é evidente. Para Sócrates e Platão, a primeira exigência da procura é a de encontrar o próprio fundamento e a própria justificação, a de organizar-se a articular-se internamente, a de aprofundar-se a si própria para reconhecer as condições e os princípios que a tornam possível. A indagação céptica não procura justificação em si própria. A ela basta-lhe levar o homem à refutação de toda a doutrina determinada e, portanto, à ataraxia. Por isso se nutre quase exclusivamente da polémica contra as outras escolas e se aplica a refutar os diferentes pontos de vista, sem nunca dirigir o olhar para si própria, para o fundamento e o valor do seu procedimento.
Indubitavelmente, ainda assim, a indagação céptica desempenhou uma tarefa histórica notável, afastando as escolas filosóficas contemporâneas da sua estagnação dogmática e estimulando-as incessantemente à indagação dos fundamentos dos seus postulados.
O cepticismo não é uma escola mas a orientação seguida na Grécia por três escolas diferentes: La a escola de Pirro de Elis, no tempo de Alexandre Magno; 2.a a média e nova Academia; Ia os Cépticos posteriores, a começar por Enesidemo, os quais defendem um retorno ao pirronismo.
§ 103. PIRRO
Pirro, natural de Elis, pôde ainda conhecer talvez na sua cidade, a dialéctica da escola eleo-megárica (§ 33) que, em muitos aspectos, é um antecedente do Cepticismo. Participou na campanha de Alexandre Magno no Oriente juntamente com o
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democritiano Anaxarco. Fundou na pátria uma escola que depois da sua morte teve pouca duração. Viveu na pobreza e morreu muito velho cerca de
270 a.C.. Não deixou escritos. Conhecemos as suas doutrinas através da exposição de Diógenes Laércio (IX, 61, 108) e pelos fragmentos de Sílloi (ou versos burlescos) com os quais o seu discípulo Tímon de Fliunte (329-230 a.C. aproximadamente) expôs e defendeu a sua doutrina.
Os Sofistas tinham oposto a natureza à convencionalidade das leis e tinham distinguido o que é bem por natureza daquilo que é bem por convenção. Pirro renova esta distinção, mas apenas para negar que existam coisas verdadeiras ou falsas, belas ou feias, boas ou más, per natura. Tudo aquilo que é julgado tal é julgado tal " por convenção ou por costume", não por verdade e por natureza. Já que para o conhecimento humano as coisas não são verdadeiramente apreensíveis e a única atitude legítima por parte do homem é a suspensão de qualquer juízo (epoché) sobre a sua natureza: o não afirmar de qualquer coisa que é verdadeira ou falsa, justa ou injusta e assim sucessivamente.
Esta suspensão leva a admitir que todas as coisas são indiferentes para o homem e evita que se conceda qualquer preferência a uma mais do que a outra. Assim a suspensão do juízo é já por si mesma ataraxia, ausência de qualquer perturbação ou paixão. Para ser coerente, Pirro, que não tinha fé nos sentidos, andava em redor sem olhar e sem se esquivar de nada, afrontando os carros se os encontrava, precipícios, cães, etc. (Diog. L., IX, 62).
Timón de Fliunte rebatia a doutrina do mestre, considerando que, para ser feliz, o homem devia conhecer três coisas: La qual é a natureza das coisas; 2 a que posição é necessário tomar frente a elas; Ia que consequências resultarão dessa atitude. Mas as coisas mostram-se todas igualmente indife-
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rentes, incertas e indiscerníveis. Por isso a única atitude possível é a de não se pronunciar a respeito de nenhuma delas (afasia) e a de permanecer completamente indiferente frente a elas (ataraxia).
§ 104. A MÉDIA ACADEMIA
A escola de Pirro esgotou-se muito depressa; mas a orientação céptica foi retomada pelos filósofos da Academia que encontravam o fundamento dela no próprio interior da doutrina platónica. Com efeito, Platão sustentara constantemente que não pode haver ciência do mundo sensível (§ 59). Esta concerne ao mundo do ser, não ao mundo dos sentidos, a respeito do qual só se podem alcançar opiniões prováveis. Mas a especulação em torno do mundo do ser já não

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