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História da filosofia III - Nicola Abbagnano

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HISTÓRIA DA FILOSOFIA
Volume terceiro
Nicola ABAGNANO
DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO:
ÂNGELO MIGUEL ABRANTES.
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
VOLUME III
TRADUÇÃO DE: ARMANDO DA SILVA CARVALHO
CAPA DE: J. C.
COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO
TIPOGRAFIA NUNES R. José Falcão, 57-Porto
EDITORIAL PRESENÇA . Lishoa 1969
TíTULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA
Copyright by NICOLA ABBAGNANO
Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA,
LDA. - R. Augusto Bil, 2 cIE. - Lisboa
TERCEIRA PARTE
FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
i
AS ORIGENS DA ESCOLáSTICA
§ 173. CARÁCTER DA ESCOLáSTICA
A palavra escolástica designa a filosofia cristã da Idade Média. O termo
scholasticus indicava nos primeiros séculos da Idade Média aquele que
ensinava as artes liberais, isto é, as disciplinas que constituíam o trívio
(gramática, lógica ou dialéctica, e retórica) e o quadrívio (geometria,
aritmética, astronomia e música). Mais tarde passou a chaMar-se também
scholasticus ao professor de filosofia ou de teologia, cujo título oficial
era o de magister (magister artílim ou magister in theologia) e que a
princípio dava as suas lições na escola do claustro ou da catedral e mais
tarde na universidade (studium genei-ale). A origem e o desenvolvimento da
escolástica encontram-se estritamente ligados às funções docentes, funções
que determinaram também a forma e o método de actividade literária dos
escritores escolásticos. Como as formas fundamentais do ensino eram duas, a
lectio, que consistia no comentário de um texto, e a disputatio, que
consistia no exame de um problema tendo-se em consideração todos os
argumentos que se possam aduzir pro e contra, a actividade literária dos
Escolásticos assume sobretudo a forma de Commentari (à Bíblia, às obras de
Boécio, à lógica de Aristóteles e mais tarde às Sentenze de Pedro Lombardo e
às outras obras de Aristóteles) ou de recolha de questioni. Recolhas deste
género são os Quodlibeta que compreendem as questões que os -aspirantes ao
grau de teologia deviam discutir duas vezes por ano (pelo Natal e pela
Páscoa) sobre qualquer tema, de quodlibet. As questiones disputatae são
muitas vezes o resultado das disputationes ordinariae que os professores de
teologÍa mantinham durante os seus cursos sobre os mais importantes problemas
filosóficos e teológicos.
A conexão da escolástica com a função docente não é um facto puramente
acidental e extrínseco; faz parte da própria natureza da escolástica. Todas
as filosofias são determinadas na sua natureza pelos problemas que constituem
o centro da sua investigação; e o problema da escolástica consistia em levar
o homem à compreensão da verdade revelada. Tratava-se portanto de um problema
de escola, ou seja, de educação: o problema da formação dos clérigos. A
coincidência típica e total do problema especulativo com o problema educativo
justifica plenamente o nome da filosofia medieval e não explica os caracteres
fundamentais. Em primeiro lugar, a escolástica não é, como a filosofia grega,
uma investigação autónoma que afirme a sua independência crítica frente a
qualquer tradição. A tradição religiosa é, para a escolástica, o fundamento e
a norma da sua investigação. A verdade foi revelada ao homem através das
Sagradas Escrituras, através das definições dogmáticas de que a comunidade
cristã se serviu para fundamentar a sua vida histórica, através dos padres e
doutores inspirados ou iluminados por Deus. Para o homem, trata-se apenas de
aproximar-se dessa verdade, compreendê-la na
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medida do possível, mediante os poderes naturais e com a ajuda da graça
divina, e fazê-la sua para assumi-Ia como fundamento da própria vida
religiosa. Mas mesmo nesta perspectiva, que é a da própria investigação
filosófica, o homem não pode nem deve basear-se apenas nas suas faculdades; a
tradição religiosa ajuda-o e deve ajudá-lo fornecendo-lhe, através dos órgãos
da Igreja, um guia esclarecedor e uma garantia contra o erro. Trata-se mais
de uma obra comum que individual: de uma obra na qual o simples indivíduo não
pode nem deve basear-se apenas nas suas forças, mas pode e deve recorrer à
ajuda dos outros e especialmente daqueles que a própria Igreja reconhece como
particularmente inspirados e apoiados na graça divina. Daí o uso constante
das auctoritates na especulação. Auctoritas é a decisão de um concílio, uma
expressão bíblica, uma sententia de um Padre da Igreja.
O recurso à autoridade é a manifestação típica do carácter comum e
superindividual da investigação escolástica, na qual o indivíduo quer sentir-
se continuamente apoiado e sustentado pela autoridade e
tradição eclesiástica.
Daqui deriva o outro aspecto fundamental da investigação escolástica. Esta
não se propõe formular ex novo nem doutrinas nem conceitos. O seu principal
objectivo é o de compreender a verdade já dada na revelação, e não o de
encontrar a verdade. Deste modo, como a norma da investigação resulta da
tradição religiosa, os instrumentos e os materiais dessa investigação são
provenientes da tradição filosófica. Esta vive substancialmente à custa da
filosofia grega; primeiro a doutrina platónico-agostiniana, depois a
aristotélica, fornecem-lhe os instrumentos e os materiais de especulação. A
filosofia, como tal, é para ela simplesmente um meio: ancilla theologiae.
Claro que as doutrinas o os conceitos que são adoptadas de acordo com aquele
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objectivo acabam por sofrer uma transformação mais ou menos radical quanto ao
seu significado original. Mas a escolástica não se propõe realizar esta
transformação de modo intencional o a maior parto das vezes não tem disso
consciência. O sentido da historicidade é-lhe estranho. Doutrinas e conceitos
surgem livres dos complexos históricos de que fazem parte e considerados
independentes dos problemas a que se referem e da personalidade autêntica do
filósofo que os elaborou. A Idade Média coloca tudo num mesmo plano e fez dos
filósofos mais afastados da sua mentalidade, seus contemporâneos, dos quais é
lícito colher os frutos mais característicos para adaptá-los às suas próprias
exigências.
Nesta estrutura formal que a filosofia medieva apresenta, reflecte-se a
própria estrutura social e política do mundo medievaL Este é um mundo
constituído como uma hierarquia rigorosa apoiada numa única força que do alto
dirige e determina todos os aspectos. Tem-se afirmado em regra que a
concepção medieval do mundo se inspira no aristotelismo: com efeito, essa é
substancialmente a concepção estoico-platónica à qual acabam por se reduzir e
adaptar as próprias doutrinas aristotélicas. O mundo é uma ordem necessária o
perfeita na qual todas as coisas têm um lugar e uma função determinados,
permanecendo nesse lugar e nessa função pela força infalível que determina e
orienta o mundo vindo do alto. Tudo o que o homem pode e deve fazer é
conformar-se com esta ordem: o próprio livre arbítrio pode ser utilizado com
utilidade desde que integrado nessa conformidade. As instituições
fundamentais do mundo medieval, O Império, a Igreja, o Feudalismo,
apresentam-se como os defensores da ordem cósmica e como os instrumentos da
força que o rege. Essas são dirigidas substancialmente no sentido de fazer
surgir todos os bens materiais e espirituais a que o homem pode aspirar,
desde o
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pão quotidiano à verdade, como derivantes da ordem a que pertencem, assim
como da hierarquia de que são intérpretes e os guardiães dessa mesma ordem.
Num mundo assim constituído, a investigação filosófica não pode desenvolver
os seus princípios e a sua disciplina senão a partir da hierarquia em que
se concretiza a ordem universal ou da força que se
mantém causa dessa estrutura.
Como ideia directiva da vida individual e social, a noção desta
ordem começa
a afirmar-se a partir do século VIII, com o desaparecimento quase total das
trocas económicas e culturais e o desaparecimento ou decadência das cidades,
deixando de pé apenas uma economia rural paupérrima e fechada. O despertar do
tráfego comercial e das artes que se verifica a partir do século XI, as
viagens e as trocas provocam a primeira crise da concepção medieval da ordem
cósmica. Essas transformações vêm demonstrar, com a própria força dos factos,
que o indivíduo pode adquirir para si os bens que se lhe oferecem,
incrementá-los o defendê-los com a sua actividade e com a colaboração dos
outros. O poder hierárquico começa a surgir, agora, como um limite ou uma
ameaça, mais do que uma ajuda ou garantia, à capacidade humana de adquirir ou
conservar os bens que são indispensáveis ao homem. A luta pela autonomia
comunal, pela libertação das limitações impostas pelo feudalismo, é
substancialmente baseada na crença do homem em si próprio, na sua capacidade
de providenciar sobre as suas necessidades e de organizar-se em comunidades
autónomas que, melhor que as hierarquias impostas de cima, podem providenciar
pela sua própria defesa. Nestas condições, a investigação filosófica adquire
um respirar novo e uma
nova dimensão de liberdade. Os seus pressupostos hierárquicos não são por
enquanto postos em dúvida, os seus limites e as suas condições sobrenaturais
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continuam ainda a ser reconhecidos; mas a parte devida à iniciativa racional
do homem começa a aumentar e a reforçar-se, e em certos domínios e em certos
Emites tal iniciativa acaba por ser reconhecida como legítima e eficaz.
Tenta-se em seguida estabelecer claramente os domínios e os limites de tal
iniciativa e julga-se haver realizado um perfeito acordo entre a razão e a
fé, ou seja, entre a verdade que o homem pode conseguir com os seus poderes
naturais o a que lhe foi revelada pelo alto e imposta pela hierarquia. Mas
até este equilíbrio começa a romper-se a partir dos últimos decénios do
século XIII; e agora não se renuncia à fé nem se denuncia, na sua totalidade,
a concepção h-ierárquica da ordem cósmica, mas alarga-se e reforça-se o
âmbito da iniciativa racional e a investigação filosófica debruça-se sobre
domínios que já nada têm a ver com os objectos da fé e nos quais pode avançar
com a sua força autónoma.
Sobre este desenvolvimento, que compreende os aspectos sociais e políticos
como os filosóficos do inundo ocidental nos séculos da Idade Média, se funda
a caracterização da filosofia escolástica como o problema da relação entre
razão e fé e a sua periodização fundada nas diversas formas de resolver
tal problema. É evidente que deste ponto de vista o problema da relação
entre razão e fé não é um problema puramente especulativo. É também um
problema especulativo considerável se nos basearmos no confronto entre os
textos filosóficos e os textos religiosos e as suas interpretações e
implicações; mas não é apenas isto. É sobretudo o problema do papel que pode
e deve ter a -iniciativa racional do homem na busca da verdade e da direcção
da vinda individual e colectiva, perante a posição que deve ocupar a ordem
cósmica e a hierarquia que a representa. Por isso é também o Problema da
liberdade que o homem pode reivin-
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dicar por si e das limitações que tal liberdade deve encontrar as hierarquias
que governam o mundo. É, em suma, o problema dos novos domínios da indagação
(a natureza, a sociedade) que se apresentam ao homem à medida que ele
reivindica, pela sua razão, uma maior autonomia. Se designarmos, nos
termos que assim ficam expostos, o "problema escolástico" pode ser facilmente
abordado para se poder dar conta da continuidade e da variedade, das
concordâncias e das polémicas do pensamento medieval. Isso pode permitir que
nos apercebamos de que a ortodoxia e a heterodoxia religiosas fazem parte
igualmente deste pensamento como fazem parte as especulações políticas e os
interesses, que se mantiveram ou ressurgiram, pela natureza e pela ciência; e
que as tendências heréticas, as rebeliões filosóficas, teológicas ou
políticas que, em certa medida, sempre o caracterizaram, não constituem os
aspectos históricos fundamentais a mesmo título que as grandes sínteses
doutrinais nas quais a iniciativa racional do homem e as exigências da fé e
da hierarquia eclesiástica parecem ter encontrado um compromisso efectivo. O
que este conceito do problema escolástico pretende excluir é a tentativa de
considerar a própria escolástica no seu conjunto como uma síntese doutrinal
homogénea ria qual se hajam unificado e fundido os contributos individuais.
Esta noção da escolástica parece sugerida pela vontade de privilegiar o
aspecto da existência (real ou presumida) de uma concordância plena e
definitiva entre a razão e a fé: aspecto que é característico da síntese
tomista. Mas este privilégio não tem nenhuma base histórica e não terá outro
efeito que o de excluir da escolástica, considerada como a única filosofia
existente na Idade Média, uma parte importante dos pensadores medievais. Uma
preferência ideológica, historiograficamente insustentável, está na base
deste privilégio. A filosofia medieval, tal
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como a filosofia de qualquer outro período, pode ser descrita o caracterizada
apenas com base no seu Problema dominante, e não nas soluções que foram dadas
a esse mesmo -problema. A continuidade desta filosofia pode ser reconhecida
apenas com o fundamento da unidade do seu problema e das diferenças nas
soluções apresentadas. E a periodização da mesma pode ser efectuada apenas
com base na prevalência de uma ou de outra das soluções fundamentais.
A esta exigência responde a periodização tradicional que distingue quatro
fases na escolástica. A primeira, chamada pré-escolástica, é a do
renascimento carolíngio, durante a qual é pressuposta e admitida pura e
simplesmente a identidade da razão e da fé. Na segunda, chamada alta-
escolástica, que vai da metade do século XI até ao fim do século XII, o
problema da relação entre a razão e a fé começa a esboçar-se e a ser posto
claramente na base da antítese potencial entre os dois termos. Na terceira,
que vai de 1200 aos primeiros anos de 1300, organizam-se os grandes sistemas
escolásticos que constituem o que se costuma chamar o "florescimento da
escolástica". Na quarta, que compreende o século XIV, verifica-se a
dissolução da escolástica pela reconhecida insolubilidade do problema que foi
seu fundamento.
Todavia, ainda que acabada como período histórico, a escolástica permanece
actual para exprimir a exigência, para o homem que vive numa tradição
religiosa, de compreender e justificar racionalmente essa mesma tradição.
Esta exigência surge com frequência ao longo da história da filosofia. Outras
formas de escolástica, recorrendo às formas filosóficas na altura dominantes,
apresentar-se-ão no ulterior decurso do pensamento filosófico.
16
§ 174. O RENASCIMENTO CAROLINGIO
Os séculos VIII e IX -assinalam a concentração das forças sobreviventes da
cultura nos grandes impérios do Ocidente: o império árabe e o império
carolíngio. Tanto um como o outro tomaram possível um -renascimento cultural.
Carlos Magno, pela própria necessidade de garantir a unidade do seu império e
de administrá-lo, necessidade que exigia o emprego de numerosos funcionários
dotados de uma corta cultura, promoveu e encorajou os estudos. No período
precedente, estes eram cultivados apenas nas regiões periféricas: por um
lado, nas cidades da Itália meridional, como Nápoles, Amalfi e Salerno; por
outro, nos mosteiros ingleses e irlandeses. Na época carolíngia converteram-
se no património das grandes Abadias, que exerceram a função que
primeiramente havia pertencido às cidades.
Nos fins do século VIII, a obra
de Alcuíno foi o início da -reconstrução
intelectual da Europa. Tendo nascido em 730 na Inglaterra, Alcuíno formou-se
na escola episcopal de York; em 781 foi chamado pelo imperador Carlos Magno
para dirigir a Escola Palatina e transformou-se no organizador dos estudos no
império franco. Morreu no ano de 804. As obras de Alcuíno são quase
exclusivamente constituídas por extractos tirados de outros autores. A sua
Gramática foi obtida em Prisciano, Donato, Isidoro, Beda; a sua Retórica num
texto de Cícero De inventione, a sua, Dialéctica num texto pseudo-agostiniano
sobre as categorias. Mesmo o texto De animae ratione ad Eulaliam Virginem,
que é o primeiro tratado de psicologia da Idade Média, não passa de uma série
de extractos de Agostinho e Cassiano.
Alcuíno é o grande organizador do ensino no reino franco. Foi ele quem
ordenou os estudos segundo as sete disciplinas do trívio e do quadrívio, o a
que chama as sete colunas da sabedor-ia (Patri.
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Lat., 101, 853 c). No seu escrito teológico sobre a Trindade (De fide Sanctae
et individuae Trinítatis, três livros), Alcuíno trata da essência divina, das
propriedades de Deus, da trindade das pessoas, da encarnação e da redenção,
mantendo-se em tudo fiel à especulação de Santo Agostinho. Tal como este,
insiste na impossibilidade de se conceber e exprimir a essência divina, em
relação à qual as categorias, que servem para compreender as coisas finitas,
adquirem um novo significado. Em Deus tudo se identifica: o ser, a vida, o
pensamento, o querer e o agir, e no entanto Ele é a simplicidade absoluta.
Num escrito seu sobre a alma, dedicado à Jovem Eulália, Alcuíno define a alma
como "o espírito intelectual ou racional, sempre em movimento, sempre vivo e
capaz de boa ou má vontade>. A alma assume vários nomes consoante as suas
funções: chama-se alma enquanto vivifica; espírito quando contempla; sentido
enquanto sente; ânimo enquanto sabe; mente enquanto compreende; razão
enquanto julga; vontade enquanto consente; memória enquanto lembra. Mas estas
funções diversas não são próprias de várias substâncias, apesar de serem
indicadas com nomes diferentes: constituem todas uma alma única (De animae
ratione, 11). AIcuíno distingue nela três partes, de acordo com a doutrina
platónica: a racional, a irascível e a apetitiva. As três partes da alma
racional, memória, inteligência e vontade reproduzem a Trindade divina
(segundo a doutrina de Agostinho). A alma é o fundamento da personalidade
humana, mas o eu na sua totalidade pertence não só à alma como também ao
corpo. A alma é incorpórea o como tal imortal. O seu bem mais @levado é Deus
e o seu destino é o de amar a Deus. Para tal destino a alma prepara-se
através das virtudes; e entre estas Alcuíno coloca não apenas as cristãs: fé,
esperança e caridade, como também as pagãs: pradêwia,
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justiça, força e temperança, das quais dá definições platónicas de De
officiis de Cicero.
A obra de Alcuíno foi continuada pelos seus sucessores. Fredegiso, que lhe
sucedeu como abade de S. Martinho de Tours e foi, a partir de 819, até 834,
ano da sua morte, chanceler de Ludovico o Pio, compôs uma obra na qual se
levantava a questão de se saber se o nada é alguma coisa ou não (De nihilo et
tenebris). Fredegiso conclui que o nada de certo modo é; e de facto, se se
nega ,isso, essa mesma negação é já alguma coisa e por isso o nada de certa
maneira é (Patr. Lat., 105. .,
751). O próprio facto de o nada ter um nome demonstra a sua realidade, uma
vez que um nome que não se refira a qualquer coisa real não pode ser pensado.
A expressão bíblica de que o mundo foi criado do nada demonstra também a sua
realidade; porque do nada procedem todos os elementos e ainda a luz, os anjos
e as almas dos homens.
Discípulo de Alcuíno foi Rabano Mauro. Nascido na Mogúncia no ano de 776 ou
784, foi primeiro professor e depois abade no mosteiro de Fulda; em 847 foi
nomeado arcebispo de Mogúncia, onde morreu no ano de 856. Rabano é
considerado como o escritor da Escola da Alemanha. Da escola de Fulda saíram
um grande número de doutores que foram ensinar pelas províncias vizinhas o
que haviam aprendido com o seu mestre. Um caso anedótico ;revela-nos a
hostilidade de alguns eclesiásticos do tempo contra a cultura e a fama que
Rabano tinha conquistado. O abade de Fulda apoderou-se um dia dos cadernos de
Rabano e dos seus alunos e declarou que proibia para o futuro a introdução de
qualquer novidade no mosteiro; além disso empregou os monges mais aplicados
em trabalhos pesados e contínuos. Os monges apelaram para o rei que se
pronunciou contra o abade. Rabano foi reintegrado na sua cátedra continuando
a leccio-
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nar. Os seus contemporâneos chamaram-lhe Rabano o Sofista.
Rabano preocupou-se sobretudo com a educação filosófica e teológica do clero.
Com este fim, compÔs três livros Sobre a instrução dos Clérigos (De
institutione clericorum) que é uma compilação cujo material foi extraído dos
Padres da Igreja, de Isidoro e de Beda. Rabano insiste na necessidade e
importância do estudo das artes liberais e também dos filósofos pa gãos e em
particular dos platónicos. Justifica a utilização da cultura profana com a
teoria da injusta posse: "Se os filósofos disseram nos seus escritos coisas
verdadeiras e que estão de acordo com a fé, não se deve recear e retomá-los
como injustos possuidores" (111, 26). Na verdade, os filósofos descobriram-
nas enquanto guiados pela verdade, isto é, por Deus: por isso elas não lhes
pertencem, mas a Deus.
Num tratado De Universo, tirado em grande parte das Etimologias de Isidoro e
da De natura reruni de Beda, recolheu um rico material profano de ciências
naturais. Numa glosa às Categorias de Aristóteles, Rabano nega, referindo-se
à doutrina deste filósofo, a univocidade do ser, isto é, nega que o termo
"ser" conserve o mesmo significado referindo-se a tudo o que existe, e
afirma, em contrapartida, a sua equivocidade, a diversidade dos seus
significados. A univocidade ou a equivocidade do ser devia converter-se, no
século XIII, num dos ternas fundamentais da polémica filosófica.
Um discípulo de Rabano, Servato Lupo, que foi abade de Ferrières desde 842
até falecer, em 862, tem em grande conta a cultura humanística e nas suas
Cartas oferece o exemplo de um vivo interesse literário e filosófico. O seu
tratado Sobre três questões trata do livre arbítrio, da predestinação e da
Eucaristia, seguindo as pisadas dos padres e especialmente de Agostinho.
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Da escola de Alcuíno saiu também Pascásio Radoberto, abade de Corbie desde
842 e falecido em
860. Pascásio compôs em 831 a obra De corpore et sanguine Domini. A sua obra
maJor é um Comentário ao Evangelho de São Mateus. Na obra intitulada De fide,
spe et charitate, distingue três espécies de coisas críveis. A primeira é a
das que se podem crer imediatamente, como as coisas visíveis; a segunda, a
das coisas que se podem crer e compreender ao mesmo tempo, como os axiomas e
as verdades racionais. A terceira é a das coisas que a revelação ensina
acerca de Deus; e estas não são simultaneamente críveis e compreensíveis,
devem ser primeiramente cridas com todo o coração o com ,toda a alma, para
depois serem compreendidas. Pascásio exprime assim aquela precedência da fé
sobre a razão que devia ser a especulação de Anselmo.
Um outro monge de Corbie, Godescalco, falecido entre 866 e 869, sustentou com
particular energia, apesar das condenações de dois sínodos, a doutrina da
dupla predestinação. Sustentava que Deus predestina tanto o bem como o mal e
que alguns homens, pela predestinação divina que os constrange à morte
espiritual, não podem corrigir-se do erro e do pecado, porque Deus os criou
desde o princípio incorrigíveis e destinados ao castigo.
Esta doutrina
da dupla predestinação que era ensinada também pelo mestre de
Godescalco, o monge Ratramno (falecido à volta de 868), foi combatida pelo
arcebispo de Reims Hinchmar e que chegou ao nosso conhecimento precisamente
através da refutação deste último.
§ 175. HENRIQUE E REMIGIO DE AUXERRE
Henrique de Auxerre (841-876) foi discípulo de Servato Lupo e continuou a
tradição humanística
21
do mestre. Com efeito, foi autor de uma Vita S. Germatú, em verso, que
enriqueceu com glosas extraídas dos clássicos e também da Divisio Naiurae de
João Escoto. A ele foram atribuídas algumas glosas marginais a um texto
pseudo-agustiniano sobre as Categorias. Estas glosas apresentam uma tese que
será a do conceptualismo posterior, isto é, que os conceitos universais não
são realidades em si, e designam apenas as coisas particulares conhecidas
pela experiência. A formação dos conceitos de género e espécie é feita por
uma exigência de economia mental. Uma vez que os nomes dos seres individuais
são inumeráveis e o intelecto e a memória não bastam para conhecê-los e fixá-
los, formam-se os conceitos de espécie (por exemplo, homem, cavalo, leão),
com os quais se podem reconhecer e recordar facilmente inumeráveis
indivíduos. Mas como os conceitos de espécie são, por sua vez, inumeráveis e,
por isso, em grande parte incognoscíveis, agrupam-se em conceitos mais amplos
e menos numerosos, formando os conceitos de género, como animal ou pedra. Em
seguida recorre-se a um grau mais elevado, a um conceito extensíssimo que
permite designar com um só nome todos os seres: é o conceito de substância.
Um discípulo de Henrique, Remígio de Auxerre (841-908) ensinou na escola de
Auxerre todas as artes liberais e especialmente a gramática, a dialéctica e a
música. Escreveu comentários às obras de gramáticos e poetas latinos; ao
Génesis e aos S -
mos. O seu comentário a Marciano Capella possui significado filosófico. Ao
contrário do seu mestre Henrique, Remígio inclina-se para o -realismo, ou
seja, para a afirmação da realidade substancial dos conceitos. Remí gio
sustenta que o conceito mais geral que a inteligência pode alcançar é o da
essência, que compreende todas as naturezas; e que tudo o que existe, existe
pela participação na essência.
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A essência divide-se nos géneros e nas espécies até à última espécie, que é o
indivíduo, o qual, como a própria palavra -indica, é indivisível. Segundo
esta doutrina, que se relaciona com a de João Escoto, o indivíduo seria o
resultado da repartição sucessiva de uma realidade universal. Igualmente se
relaciona com o platonismo a doutrina de Remígio sobre o conhecimento humano.
A natureza humana possui em si todas as artes; mas estas foram ocultas pelo
pecado original e apenas podem ser reconquistadas mediante esforços
fatigantes, que pouco a pouco as libertam das trevas que as encobrem à
inteligência. Assim se explica que nem todos possam ser oradores, dialécticos
ou músicos, apesar de todos possuírem em si as noções correspondentes. Com
efeito, nem todos se empenham no esforço exigido para -trazerem de novo para
a luz o saber originário obscurecido pelas trevas do pecado.
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 173. A tentativa de compreender a escolástica do ponto de vista do
conteúdo, como uma síntese doutrinal, foi levada a efeito por De Walf,
Histoire de Ia phil. méd., (V. ediç. 1924 e ediç. post.) que colocou os
fundamentos desta síntese na geração da comunidade entre o ser divino e o ser
das criaturas, na afirmação do valor da personalidade humana, na existência
de uma essência supra-material e na objectividade do saber humano. De Walf
considerou anti-escolásticos os sistemas que se afastam destes fundamentos,
por exemplo, o de Escoto Erigena, o panteísmo do sé culo XII, a averroísmo.
Mas aqueles fundamentos são tão genéricos que não chegam para caracterizar a
escolástica e explicar as suas mais importantes afirmações.
Para o estudo da escolástica são fundamentais, além da Patrologia Grega e
Latina de MIGNE, aS seguintes colecções de textos e estudos: BARACH e WORBEL,
Bibliotheca philosophiae mediae aetatis BAEUMKER, Reitrage zur Geschichte der
Philosophie des Mittelal-
23
ters, textos e investigações, Mónaco, a partir de 1891; ElAuRÉAu, Notices et
extraits de quelques manuscrits de Ia Bibliothêque Nationale, Paris, 1890-
1893, 6. vols. Não se faz aqui referência às numerosas colecções nas quais
existem e foram publicados textos e estudos de filosofia medieval (e que
possivelmente poderão estar indicados nos instrumentos bibliográficos
re@ferid4Ds) uma vez que tais textos e estudos serão indicados na nota
bibliográfica referente a cada um dos filósofos.
Obras de carácter geral sobre a escolástica: SOCKL, Geschichte der
Philosophie des Mittelalters,
3 vols., Mogúncia, 1864-1866; HAuRÉAu, Histoire de Ia Philosophie
scolastique, 2 vol., Paris, 1872-1880; PimVET, Essai d'une histoire générale
et comparée des philosophies médiéval,es, Paris, 1905, 2.1 ed., 1913;
BAEUMKER, Die ehristliche Philosophie des Mittelalters, in Allgem-eine
Geshichte der Philosophie, Leipsig,
1913; GRABMANN, Geschichte der scholastischen Me@ thode, 2 vols., Freiburgo,
1909-1911; 1956 (ed. fotoestática); DUHEm, Le systême du monde, de Platon à
Copernic, 10 vols., Paris, 1913-1959; GILSON, La Philosophi,e au Moyen Age,
1922, 1952; Wesprit de Ia philosophie médiévale, Paris, 1932, 1944; BRÉHIER,
La philosophie du moyen áge, Paris, 1937; COPLESTON, A HistGry of Philosophy,
H: Medieval Philosophy, Londres, 1958; VIGNAUX, La philosophie du moyen âge,
Paris, 1958; VASOLI, La fiJ-osofia mediovale, Milão,
1961.
Para bibliografia especial: UEBERWEG-GEYER, Die Patristische und
scholastische Philosophie, Berlim, 1928; DE BRIE, Bibliographia Philosophica,
1934-1945; 2 vols., Bruxelas, 1950-1954; MOSCIIETTi, Bibliografia critica
general per Ia storia del pensiero cristiano, in Grande Antologia Filosofica,
III, Milão, 1954; VASOLI, Op. Cit. Para ulteriores actualizações
bibliográficas: Repertoire Bibliographique de Ia Revue Philosophique de
Louvain.
§ 174. Sobre o renascimento carolíngio: BRUNHES, La foi chrétienne et Ia
philosophie au temps de Ia renaissance carolingienne, Paris, 1903; PiRENNE,
Mahomet et Charlemagne, Paris, 1937.
As obras de AIcuino em Pat. Lat., 100.,_101.o_ E. M. WILMONT-13UXTON, Alcuin,
Londres, 1922.
O texto de Fredegiso em Pat. Lat., 105.1, 751-756. -GEYMONAT, 1 problemi del
nulila e delle- tenebre in Fredegiso di Tours, in Saggi di filosofia
neorazionalistica, Turim, 1953, p. 101-111.
24
ALCUINO
As obras de Servato Lupo in Pat. Lat., 119.1,
431-700.
As obras de Pascásio Radúberto in. Pat. Lat., 120.o. As obras de Ratramno in
Pat. Lat., 121.o, 13-346. As obras de I-linkmar in Pat. Lat., 125.---126.o.
Sobre este autor: J. A. ENDRES, em "Beitrage", XVII, 2-3.
§ 175. De Henrique de Auxerre, La vita de San Germano, editada em "Mon. 
 Germ. Hist.". Poeti Latini dell'evo carolingio, M, 428-517. Excertos das
glosas ao texto pseudo-agustiniano em Cousin, inédits d'Abélard, p. 621, e
HAUREAu, De Ia phil. schal., I, p. 131-143. De Remígio os Comentários in Pat.
Lat., 131.1,
51-134.-J. BURNAM, Commentaire anonyme sur Prudence d'après de ms. 413 de
Valenciennes, Paris, 1910.
25
11
JOÃO ESCOTO ERÍGENA
§ 176. JOÃO ESCOTO: A PERSONALIDADE HISTÓRICA
Inesperadamente aparece, na primeira metade do século IX, a grande figura de
João Escoto. Na pobreza cultural e especulativa do seu tempo, este homem
dotado de um espírito extremamente livre, de excepcional capacidade
especulativa e vasta erudição greco-latina, surge como um milagre. Através de
Santo Agostinho, João Escoto relaciona-se como o mais genuíno espírito da
investigação filosófica, tal como havia surgido na idade clássica
da Grécia.
Erígena tem consciência das exigências soberanas da investigação e afirma-as
decididamente. Quando tropeça com a realidade incompreensível de Deus ou da
essência das coisas, não afasta as armas dialécticas nem prescreve o
abandono, à fé, mas volta a assumir a mesma incompreensibilidade no âmbito da
investigação, dialectiza-a e faz dela um elemento de clareza. A razão
preguiçosa, que neste período da história da filosofia descobre tantas formas
de entrincheirar-se por detrás das exigências da fé, não consegue
assenhorear-se dele.
27
A obra de João Escoto teve uma importância decisiva para a ulterior evolução
da escolástica. As suas fontes principais são as obras de Santo Agostinho, do
Pseudo-Dionísio (que o próprio Escoto traduziu do grego) e dos Padres da
Igreja, especialmente de S. Gregório e S. Máximo. Em toda a especulação
posterior, não há filósofo da escolástica que não se relacione com ele
directa ou poa. O papa Honório 111, -numa Bula de 23 de Janeiro de 1225,
condenou a sua obra-prima: De divisione naturae. Muitos doutores
escolásticos, antes e depois da condenação, entram em polémica contra as suas
afirmações; mas a sua especulação assinala em todos os pontos um marco
fundamental na filosofia escolástica.
§ 177. JOÃO ESCOTO: VIDA E OBRA
João Escoto é chamado Erígena devido ao facto de ter nascido na Irlanda
(Eriu-Erin, Irlanda). A data do seu nascimento deve andar à volta de 810. Não
se sabe com precisão o ano em que se dirigiu a França, para a corte de Carlos
o Calvo; mas deve ter sido nos primeiros anos do reinado deste rei. Com
efeito, Escoto Erígena participou na controvérsia teológica suscitada pela
tese do monge Godescalco sobre a predestinação, ora a condenação de
Godescalco verificou-se em 853, depois de largos e solenes debates. Muito
provavelmente, a vinda de João Escoto para França foi anterior ao ano de 847.
Carlos o Calvo nomeou-o director da Academia do Palácio, a Schola Palatina,
em Paris; a convite do mesmo rei, Erígena traduz as obras de Dionísio o
Areopagita, cujos textos o imperador bizantino, Miguel Balbo, tinha oferecido
a Ludovico Pio no ano de 827. O papa Nicolau 1 queixou-se ao rei do facto de
Erígena não haver submetido essa tradução à censura eclesiástica antes de a
publi-
28
car e quis instaurar um processo contra as heresias que a mesma continha.
Depois da morte de Carlos o Calvo, no ano de 877, não há notícias seguras
sobre João Escoto. Segundo alguns, teria morrido em França nesse mesmo ano;
segundo outros, teria sido chamado pelo rei Alfredo o Grande, para a escola
de Oxford e, mais tarde, como abade de Malmesbury ou de Athelney, teria sido
assassinado pelos monges.
A actividade filosófica de João Escoto pode ser dividida em dois períodos. No
primeiro período, Escoto Erígena inspirou-se sobretudo nos Padres latinos,
isto é, em Gregório Magno, Isidoro e especialmente em Santo Agostinho. A este
período pertence o texto contra o monge Godescalco: De divina
praedestinatione. Num segundo período, Erígena sofre a influência dos
teólogos e filósofos gregos. Em 858, traduz os textos do Pseudo-Dionísio o
Areopagita; em 864, os Ambígua de Máximo o Confessor e o texto De hominis
opificio de Gregório de Nisa. Estes trabalhos guiaram-no na criação da sua
obra-prima, a De divisione naturae, em cinco livros. Escrita em forma de
diálogo entre mestre e aluno, é o primeiro grande texto especulativo da Idade
Média.
Esta obra denuncia já o carácter da investigação escolástica: o método
apriorístico ou dedutivo que o autor maneja com grande mestria. As glosas de
Erígena aos Opuscula theologica de Boécio, são o comentário mais antigo aos
escritos teológicos de Boécio. Muito conhecidas na Idade Média, mas nunca
impressas, deviam ter sido escritas nos últimos anos da sua vida, à volta de
870, e apresentam com a Divisio naturae a mesma relação que existe entre as
Retractationes e as outras obras de Santo Agostinho.
A cultura e capacidade especulativa de João Escoto colocam-no acima do nível
dos seus con-
29
temporâneos. Não só conhece o grego e o traduz, como adquire dos escritores e
do espírito grego, grande liberdade tanto no campo da investigação como da
orientação especulativa.
§ 178. JOÃO ESCOTO: FÉ E RAZÃO
O pressuposto da investigação de João Escoto é o acordo intrínseco entre
razão e fé; entre a verdade a que chega a lIvre investigação e a que é
revelada ao homem pela autoridade dos Livros Sagrados e dos escritores
iluminados. "Não há salvação para as almas dos fiéis se não em crer no que se
diz com verdade sobre o único princípio das coisas, e em entender o que com
verdade se crê" (De div. nat., 11, 20). A autoridade das Sagradas Escrituras
é indubitavelmente indispensável ao homem, porque só elas podem conduzi-lo
aos lugares secretos em que reside a verdade (1, 64). Mas o peso da
autoridade não deve, de forma alguma, afastá -lo daquilo que a recta razão o
persuada. "A verdadeira autoridade não cria obstáculos à recta razão, nem a
recta razão cria obstáculos à autoridade. Não há dúvida de que ambas dimanam
de uma fonte única, isto é, da sabedoria divina" (1, 66). Mas a dignidade
maior e a prioridade da natureza correspondem à razão, e não à autoridade. A
razão nasceu no princípio dos tempos, juntamente com a natureza: a autoridade
nasceu depois. A autoridade deve ser aprovada pela razão, de contrário poderá
não parecer sólida: a razão não precisa de ser apoiada ou corroborada por
qualquer autoridade. Em suma, a própria autoridade nasce da razão, porque a
verdadeira autoridade não é mais que a verdade descoberta pela razão dos
Santos Padres e por eles transmitidas por escrito em benefício da posteridade
(1, 69). E João Escoto coloca na boca
30
do mestre, que é o principal interlocutor do diálogo, um enérgico convite à
livre investigação: "Devemos, seguir a razão que procura a verdade e não está
oprimida por qualquer autoridade e que de nenhuma maneira pode impedir que
seja publicamente exposto e difundido aquilo que os filósofos procuram
assiduamente e com dificuldade conseguem encontrar" (11, 63).
Esta enérgica afirmação da liberdade de investigação, que faz de Escoto
Erígena um sobrevivente exaltado do espírito filosófico dos gregos, não
implica neste autor qualquer limitação ou negação da religião. E isto porque
a religião não se identifica com a autoridade, mas com a investigação.
Religião e filosofia são uma e a mesma coisa: "Que significa -lidar com a
filosofia senão expor as regras da verdadeira religião, por meio das quais a
suma o principal causa de todas as coisas, isto é Deus, é humildemente
adorada e racionalmente investigada? (De praedest., 1). João Escoto, neste
ponto, está muito próximo do espírito de investigação agustiniana, para a
qual a fé é mais um ponto de chegada que de partida, e no término da longa e
laboriosa via da investigação, e muito mais um princípio, uma direcção, um
guia da investigação, do que um limito ou um obstáculo. E de facto, o
pressuposto agustiniano da Verdade suprema, que se revela e afirma na
investigação humana, volta a repetir-se- em Escoto Erígena. A natureza humana
considerada por si, é uma substância em trevas que, não obstante, é capaz de
participar da luz da sabedoria. Quando o ar participa do raio solar não
significa que o mesmo seja luminoso por si, mas pelo esplendor do sol que
nele aparece. Assim acontece com a parte racional na nossa natureza quando
participa do Verbo, ou seja, da Verdade divina, que por si só não compreende
as coisas inteligíveis e Deus e apenas as conhece por inter-
31
médio da luz divina que nela existe (De div. nat.,
11, 23).
Na investigação humana quem encontra, não é o homem que procura, mas a luz
divina que no homem procura. A palavra de Jesus,
segundo S. João: "Não sois
vós que falais é Deus que fala em vós" é entendida por Escoto da seguinte
forma: "Não sois vós que me compreendeis, sou Eu que mo compreendo a Mim
próprio em vós, através do meti espírito" (Hom. in Joh., p. 291-A).
§ 179. JOÃO ESCOTO: AS QUATRO NATUREZAS
O título da obra principal de João Escoto: * divisão da natureza é de pura
origem platónica. * "divisão" a que se refere significa a operação
fundamental da dialéctica platónica, operação que Erígena defende como
constitutiva da própria estrutura da natureza; e a "natureza", segundo os
ensinamentos do Parménides e do Sofista, é o conjunto do ser e do não ser.
Retomando um modelo de Santo Agostinho (De civ. Dei, V, 9). Erígena divide
* natureza em quatro partes.
A primeira natureza cria e não é criada: é ela
* causa de tudo o que é e que não é. A segunda é criada e cria, constitui o
conjunto das causas primordiais. A terceira é criada e não cria e corresponde
ao conjunto de tudo o que é gerado no espaço e no tempo. A quarta não cria
nem é criada, é o próprio Deus, como fim último da criação (De div. nat., 1,
1).
Faz parte destas quatro naturezas não só tudo o que é, como também tudo
aquilo que não é. Pelo não-ser, não se entende o nada, mas a negação das
várias determinações possíveis do ser. Deste modo poderá afirmar-se que não
são as coisas que escapam aos sentidos e ao intelecto; ou as coisas infe-
32
riores em relação às coisas superiores e celestes, ou as coisas futuras que
ainda não são; ou as que nascem e morrem; ou, em suma, as que transcendem o
entendimento e a razão. To-das as coisas deste género, de certa forma, não
são: todavia não se identificam com o nada e, constituem parte da realidade
universal a que Escoto chama natureza (1, 3 e segs.).
As quatro naturezas constituem o círculo vital do ser divino: "Em primeiro
lugar, Deus descende da super-essencialidade da sua natureza, na qual deve
dizer-se que Ele não é; criado por si próprio nas causas primeiras, converte-
se em princípio de toda a essência, de toda a vida, de toda a inteligência, o
que a teoria gnóstica considera como causas primordiais. Em segundo lugar,
ele desce às causas primordiais que estão entre Deus e a criatura, entre a
inefável super-essencialmente de Deus, que transcende toda a inteligência e a
natureza que se manifesta aos que têm um espírito puro; encontra-se no efeito
das causas primordiais e manifesta-se abertamente nas suas teofanias. Em
terceiro lugar, procede através das formas múltiplas de ta-is efeitos até à
última ordem da natureza inteira que contém os corpos. Deste modo, procedendo
ordenadamente em todas as coisas, cria todas as coisas e acaba por ser tudo
em tudo; e volta a si próprio, chamando a si todas as coisas, e apesar de se
encontrar em todas as coisas, não deixa de estar acima de tudo" (111, 20).
Este círculo, pelo qual a vida divina procede a constituir-se constituindo
todas as coisas e com elas torna a si própria, é o pensamento fundamental de
João Escoto. Nele se encontra contida e determinada a relação entre Deus e o
mundo. O mundo
é o próprio Deus, enquanto teofania ou manifestação de Deus; mas Deus não é o
mundo, porque
33
ao criar-se e converter-se em mundo, se mantém acima dele.
§ 180. JOÃO ESCOTO: A PRIMEIRA NATUREZA: DEUS
A primeira natureza é Deus, na medida em que não tem princípio, e é a causa
principal de tudo o que procede d'Ele. Com efeito, Deus é o princípio, o meio
e o fim: é princípio na medida que d'Ele derivam todas as coisas que
participam da essência; é o meio, na medida em que n'Ele e por Ele subsistem
e se movem todas as coisas; é o fim, na medida em que todas as coisas se
movem para Ele, em busca do repouso do seu movimento e da estabilidade da sua
perfeição (1, 11). Como princípio, meio e fim, a natureza divina não se
limita a criar, é também criada. É criada por si própria nas coisas que ela
própria cria, tal como o nosso intelecto se cria a si próprio através dos
pensamentos que formula e das imagens que recebe dos sentidos (1, 12). Deus é
incriado, no sentido em que não é criado por outro; como tal está acima de
todos os seres e não pode ser compreendido nem definido adequadamente. É
unidade, mas unidade inefável que não se encerra esterilmente na sua
singularidade; articula-se em três substâncias: a substância ingénita, o Pai;
a substância génita, o Filho; a substância procedente da ingénita e da
génita, o Espírito Santo. João Escoto vai buscar ao Pseudo-Dionísio, a
distinção das duas teologias: a positiva e a negativa. A primeira afirma de
Deus todos os atributos que lhe correspondem. A outra nega que a substância
divina possa ser determinada mediante os caracteres das coisas que são; isto
é: que possa ser de algum modo compreendida ou exprimida.
Mas os mesmos caracteres que a teologia positiva atribui a Deus assumem nesta
referência um valor diferente daquele que possuem quando se
34
referem às coisas criadas. Deus não é propriamente essência, mas super-
essência; não é verdade, mas supra-verdade, e o mesmo se deve dizer de todos
os caracteres positivos que possam ser atribuídos a Deus. De modo que a
própria teologia positiva é na realidade negativa; a menos que não se lhe
queira chamar positiva e negativa ao mesmo tempo; uma vez que, dizer que Deus
é a super-essência, equivale a afirmar e negar ao mesmo tempo que ele seja
essência (1, 14). É certo que a Deus não se pode atribuir nenhuma das
categorias aristotélicas que, referidas a ele, assumem um significado
diferente. Se Deus caísse no âmbito de algumas categorias seria um género
(como, por exemplo, animal). Ora Deus não é nem género nem espécie nem
acidente e, deste modo, nenhuma categoria pode propriamente qualificá-lo (1-
15). A conclusão é de que tudo o que a razão humana pode conseguir em relação
a Deus é demonstrar que nada se pode propriamente afirmar d'Ele. "Ele supera
todo o entendimento e todo o significado sensível e inteligível, de modo que
o conhecemos ignorando-o, e a ignorância acerca dele é a verdadeira
sapiência" (1, 66).
Mas se Deus é inacessível como natureza supra-essencial revela-se por si
próprio na criação, que é uma contínua manifestação d'Ele ou teofania. A
essência divina, que é em si incompreensível, manifesta-se nas criaturas
intelectuais e é possível conhecê-la nelas. Teofania é o processo que desce
de Deus ao homem através da graça, para regressar do homem a Deus, com o
amor. Teofania significa, também, toda a obra de criação, enquanto manifeste
a essência divina, que deste modo se torna visível nela e através dela (1,
10; V, 23). Cada uma das pessoas divinas tem a sua própria função no processo
da teofania. O Pai é o criador de tudo, o Filho cria as causas primordiais
das coisas que
35
subsistem nele de forma universal e simples; o Espírito Santo multiplica
estas causas primordiais nos seus efeitos; isto é, distribui-as por géneros e
espécies, por números e diferenças, quer se trate das coisas celestiais, quer
das sensíveis (11, 22).
§ 181. JOÃO ESCOTO: A SEGUNDA NATUREZA: O VERBO
A segunda natureza, a que é criada e cria, corresponde à segunda pessoa da
Trindade. Contém as ideias e as formas das coisas; é portanto o Verbo divino,
através do qual todas as coisas foram criadas. Escoto interroga-se sobre o
valor causal que podem ter as formas subsistentes no Verbo divino; se os
corpos do mundo são formados por elementos que foram criados do nada. Se o
nada fosse efectivamente a origem de tais corpos, teria sido também a sua
causa. Sendo assim, o nada seria melhor que as próprias coisas de que foi
causa, uma vez que a causa é sempre superior ao efeito. Escoto resolve a
dificuldade afirmando que os elementos que compõem o mundo não foram criados
pelo nada, mas pelas
causas primordiais. E volta a levantar o problema a
propósito destas últimas. Teriam sido estas criadas do nada? Escoto responde
que também estas não foram criadas do nada; sempre estiveram com o Verbo
porque são coessências. A criação do nada não se refere às causas
primordiais, nem tão-pouco às coisas que dependem delas.
O nada não encontra lugar nem dentro nem fora de Deus. O facto de as coisas
terem sido criadas do nada significa apenas que existe um sentido no qual não
são: com efeito, as coisas tiveram um princípio no tempo através da geração e
antes desta não apareciam nas formas nem nas espécies do mundo sensível. Mas,
noutro sentido, são sempre, já que subsistem como causas primordiais no Verbo
36
divino, na qual nunca começam ou deixam de existir (111, 15). A teofania
divina começa nas causas primeiras que subsistem no Verbo. Para elas, o
próprio Criador é criado por si mesmo e por si se cria, isto é, começa por
surgir nas. suas teofanias, a emergir dos recessos da sua natureza o a descer
aos princípios e às coisas, começando assim a existir juntamente com elas
(111, 23). João Escoto, ao longo de toda a sua obra, insiste na identidade
essencial das criaturas com o Criador, na permanência da criatura na própria
essência do Criador, ria presença substancial deste naquelas. O mundo é o
próprio Deus na sua auto-revelação. Tal é o princípio que domina toda a
especulação de Erígena. Deus não pode, certamente, subsistir antes do mundo.
Deus precede o mundo, não no tempo, mas apenas racionalmente enquanto causa
dele. Mas não começa a ser causa num momento dado, uma vez que é
essencialmente causa e, embora não fosse causa se não criasse o mundo, a sua
criação deve ser eterna, co-eterna com Ele (111, 8). "Deus não existia antes
de criar todas as coisas" Q, 72) afirma Escoto.
§ 182. JOÃO ESCOTO: A TERCEIRA NATUREZA: O MUNDO
A terceira natureza, criada e não criadora, é o próprio mundo-o conjunto
universal das coisas sensíveis e não sensíveis que procedem das causas
primeiras pela acção distributiva e multiplicadora do Espírito Santo.
Escoto -sustenta que todos os corpos do mundo são constituídos de forma e
matéria. A matéria, quando privada de forma e de cor, é invisível e
incorpórea e é por isso, objecto não dos sentidos mas da razão. É resultado
do conjunto das diversas qualidades, por si mesmas incorpóreas, que a cons-
37
tituem reunindo-se conjuntamente: e transforma-se nos distintos corpos à
medida que se lhe juntam as formas e as cores (111, 14).
Também a terceira natureza, isto é, o mundo, não se distingue na realidade do
Verbo divino. A razão, afirma energicamente Escoto, obriga-nos a reconhecer
que no Verão não só subsistem as causas primeiras, como ainda os seus
efeitos, e do mesmo modo, nele se encontram os lugares e os tempos, as
substâncias, os géneros e as espécies, até as espécies especialíssimas
representadas pelos indivíduos com todas as suas qualidades naturais. Numa
palavra, subsiste no Verbo tudo o que está reunido no universo das coisas
criadas, tanto o que é compreendido pelos sentidos, ou pela inteligência
humana ou angélica, como o que transcende os sentidos e a própria mente (111,
16). O mundo foi certamente criado: afirma-o a Sagrada Escritura.
O mundo é certamente eterno, porque subsiste no Verbo; afirma-o a razão. De
que maneira se conciliam criação e eternidade, é problema que a mente humana
não pode resolver. Mas, na realidade, tal-
vez o problema seja mais aparente do que real. As coisas que subsistem no
espaço e no tempo e estão distribuídas nos géneros e nas formas do mundo
sensível não são, em verdade, distintas das causas primeiras que subsistem em
Deus, e são o próprio Deus. Não se trata de duas substâncias diversas, mas de
dois modos diversos de entender as mesmas substâncias; na eternidade do Verbo
divino, ou na vida do tempo. Assim, não há duas substâncias "homem", uma como
causa primordial, o outra individuada no mundo; mas uma só substância, que
pode ser entendida de dois modos, ou na sua causa intelectual, ou nos seus
efeitos criados. Entendida da primeira forma, está livre de toda a
mutabilidade; entendida da segunda, surge formada por qualidades
38
e quantidades diversas e é susceptível de ser conhecida pela inteligência
(IV, 7).
Vê-se assim, que Deus não é apenas o princípio, mas também o fim das coisas.
A Ele, portanto, retornarão as coisas que dele saíram e nele se movem e
estão. A Sagrada Escritura ensina claramente o fim do mundo e é por outro
lado evidente, que tudo o que começa a ser o que antes não era, deixará
também de ser o que é. Pois bem, se os princípios do mundo são as causas de
que saiu, estas mesmas causas serão o último termo do seu retorno. O mundo
não será reduzido ao nada, mas às suas causas primeiras; e, uma vez terminado
o seu movimento, será conservado perpetuamente em repouso. Pois bem, as
causas primeiras do mundo são o próprio Verbo divino: ao Verbo divino
voltará, portanto, o mundo quando chegar o seu termo. Uma vez reunido a Deus,
para o qual tende no seu movimento, o mundo não terá um fim ulterior a
atingir o necessariamente repousará. Por isso o princípio e o fim do mundo
subsistem no Verbo de Deus e são o próprio Verbo (V, 3, 20).
Se a tese típica do panteísmo é de que Deus é a substância ou a essência do
mundo, não há dúvida de que a doutrina de Escoto é um rigoroso panteísmo.
"Deus está acima de todas as coisas e em tudo, disse Escoto, só Ele é a
essência de todas as coisas porque só ele é; e, sendo tudo em tudo, não deixa
de ser tudo fora de todas as coisas. Ele é tudo no mundo, tudo ao redor do
mundo, tudo ria criatura sensível, tudo na criatura inteligível, é tudo ao
criar o universo, torna-se tudo no universo, está todo em todo o universo,
está todo nas várias partes deste, porque ele é o todo e a parte e não é nem
o todo nem a parte" (IV, 5).
Constantemente, o panteísmo, quer na filosofia medieval quer na moderna,
assumiu como princípio seu a tese-deste modo expressa,-de que Deus é
39
a substância do mundo. Por outro lado, poderá compreender-se que uma outra
enérgica afirmação de Escoto Erígena, a de que Deus está fora de todo o
universo e que não é nem o todo nem a parte, possa ser assumida como prova do
carácter não panteísta da sua doutrina.
§ 183. JOÃO ESCOTO: O CONHECIMENTO HUMANO
O homem interior é uma imagem da Trindade divina. Escoto retoma e desenvolve,
à sua maneira, este pensamento de Santo Agostinho. As três pessoas divinas
relacionam-se entre si como a essência (Ousia,) a potência (Dytzaniis) e o
acto (Energheia). Na alma humana, a essência é a inteligência ou nous, que é
a parte mais elevada da nossa natureza e pode perceber Deus e as coisas nas
suas causas primordiais. A razão ou logos corresponde à virtus ou dynamis e
refere-se aos princípios das coisas que vêm imediatamente a seguir a Deus. O
sentido interior ou dianoia corresponde ao acto ou energheia e diz respeito
aos efeitos, visíveis ou invisíveis, das causas primordiais. Este sentido
interior é essencial à razão e ao entendimento, apesar de o sentido interior,
que se serve dos cinco órgãos e reside no coração, pertencer mais ao corpo do
que à alma e perecer com a dissolução do corpo (11, 23).
A estas três partes da alma correspondem três movimentos diversos: segundo a
alma, segundo a razão, segundo os sentidos. O primeiro movimento é aquele
mediante o qual, a alma se move até ao Deus desconhecido, para além de si
própria e de toda a criatura. Através deste primeiro movimento, Deus aparece
à alma como transcendente a tudo o que é e como absolutamente indefinível. O
segundo movimento é aquele pela qual a alma define o Deus desconhecido como
causa de todas as coisas, por-
40
ANSELMO DE AOSTA
que nele estão as
causas primordiais. O terceiro movimento é o que diz
respeito às razões das coisas singulares. Parte das imagens recolhidas pelos
sentidos externos e, a partir dessas imagens, ergue-se até às razões ú ltimas
das coisas das quais são imagens. Através deste movimento, a própria imagem
sensível transfigura-se. De imagem impressa nos órgãos dos sentidos,
transforma-se em imagem que a alma sente em si como própria; é precisamente
desta imagem espiritualizada que a alma parte para ascender até às razões
eternas das coisas (11, 23).
A correspondência entre a alma e Deus estende-se também àquilo que diz
respeito ao conhecimento que a alma tem de si própria. Como Deus é
cognoscível. através das suas criaturas, mas incompreensível em si próprio,
já que nem ele próprio nem outro pode entender que coisa seja, uma vez
que não possui um quid, uma essência determinada que se possa entender, assim
a alma humana sabe que é, mas de nenhuma maneira pode conhecer aquilo que é.
E isto não é um limite ou uma imperfeição da própria mente. Assim como a
melhor maneira de aproximarmo-nos de Deus não é a afirmação mas a negação,
não é o conhecimento mas a ignorância, porque Deus, não tendo limites, não
pode ser definido nem restringido a uma essência determinada; também se à
alma fosse possível conhecer a sua própria essência, isso significaria a
possibilidade de circunscrevê-la e implicaria a sua dissemelhança com o
Criador (IV, 7).
§ 184. JOÃO ESCOTO: DIVINDADE DO HOMEM
Circula em toda a obra de João Escoto o sentido do valor superior e divino do
homem. O pessimismo próprio dos pensadores cristãos, e até de
41
Santo Agostinho, sobre a natureza e o destino do homem, parece atenuar-se
neste filósofo até se transformar em exaltação do homem, das suas capacidades
e do seu êxito final. "0 homem, afirma, não foi chamado imerecidamente
fábrica de todas as criaturas; com efeito, todas as criaturas se contêm nele.
Compreende como o anjo. raciocina como homem, sente como animal irracional,
vive como o verme, compõe-se de corpo e alma e não carece de nenhuma coisa
criada". Em certo sentido, o homem é superior ao próprio anjo que, por
carecer de corpo, não tem sensibilidade, nem movimento vital (111, 37).
Muito significativas são as considerações que Escoto tece, com visível
complacência, em torno do tema "se o homem não pecasse ... ". Se o homem não
pecasse seria de certo omnipotente como Deus. Com efeito, nada o separaria de
Deus, e ele, que é a imagem de Deus, participaria totalmente na perfeição do
seu modelo. Pelo mesmo motivo, seria omnisciente, porque, tal como Deus,
conheceria
nas suas causas primordiais todas as coisas criadas. Se o primeiro homem não
tivesse pecado, a semelhança entre a natureza angélica e a humana ter-se-ia
transformado numa identidade, e o homem e o anjo ter-se-iam convertido numa
mesma coisa. E isto explica-se porque a mesma identidade se estabelece entre
homem e homem, quando reciprocamente se compreendem. "Se, afirma Escoto, eu
compreendo 9 que tu compreendes, converto-me no teu próprio entendimento e de
certa maneira inefável, converto-me em ti próprio. E quando tu compreendes o
que, eu compreendo, convertes-te no meu entendimento, e dos dois
entendimentos resulta um só, constituído por aquilo que ambos sincera e
correctamente compreendemos. Porque o homem é verdadeiramente o seu
entendimento, o qual se especifica e individualiza pela contemplação da
verdade (IV, 9).
42
A perfeição do homem é tão grande que nem
mesmo o pecado original chega para destruí-Ia. Com elo o homem não perdeu a
sua natureza que, enquanto imagem de Deus, é necessariamente incorruptível;
perdeu apenas a felicidade, à qual estava destinado se não houvesse
desprezado o mandamento divino. "É preciso afirmar, diz Escoto, que a
natureza humana, feita à imagem de Deus, nunca perdeu a força da sua beleza e
a integridade da sua essência e nunca poderá perdê-las. Uma forma, divina
como é a alma, permanece sempre incorruptível, além do mais, torna-se capaz
de suportar a pena do pecado" (V, 6).
Com o mesmo optimismo Escoto considera o destino último do homem. A morte é
para o homem o princípio de uma ascensão que o leva a identificar-se com
Deus. Não há morte para o homem, mas o retorno a um estado antigo que perdeu
ao pecar. A primeira fase deste retorno a Deus dá-se quando o corpo se
dissolve nos quatro elementos de que é formado. A segunda fase é a
ressurreição, na qual cada um receberá de novo o seu corpo, através da
reunião dos quatro elementos. Na terceira fase, o corpo transformar-se-á em
espírito. Na quarta fase, toda a natureza humana voltará às suas causas
primordiais, que subsistem em Deus de forma imutável. Na quinta fase, a
natureza humana, juntamente com as suas causas, mover-se-á em Deus "como o
ar se move na luz" (V, 8). Este triunfo final da natureza humana não será, no
entanto, uma anulação em Deus. O dissolver-se místico do homem
em Deus está excluído por João Escoto. O destino da natureza humana não é o
de perder-se no ser divino, mas o de permanecer na sua verdadeira substância,
de reintegrá-la nas suas causas primordiais e de subsistir na sua total perfeição o âmbito do ser
divino, como o ar na luz. O misticismo neoplatónico é aqui corrigido
43
pelo sentido do carácter irredutível da natureza humana, carácter pelo qual
conserva, mesmo perante Deus, e em virtude de Deus, a sua autonomia
substancial.
§ 185. JOÃO ESCOTO: O MAL E A LIBERDADE HUMANA
Esta mesma posição leva João Escoto a modificar a doutrina agustiniana da
liberdade humana. De Santo Agostinho, retoma o ponto de partida para a sua
doutrina do mal. Que o mal não é uma realidade, mas uma negação da realidade,
é para Escoto Erígena um pressuposto evidente. Deste pressuposto tira a
conclusão de que Deus não conhece o mal. Com efeito, o conhecimento divino é
imediatamente criador: Deus não conhece as coisas que são, porque são: mas as
coisas são porque Deus as conhece. A causa da sua essência é a ciência
divina. Tudo o que é, é pensamento divino. O homem é definido por Escoto como
"uma noção intelectual eternamente criada na mente divina"; e esta mesma
definição aplica-se a tudo o que existe (IV, 7). Daqui se conclui que se Deus
conhecesse o mal, se o mal fosse um pensamento divino, o mal seria real no
mundo (11, 28). Mas o mal não é real. Não é algo substancial e as próprias
aparências sedutoras de que se reveste perante os homens maus, não são por
si, más. Um objecto belo e precioso que inspira ambição no avarento pode
inspirar, pelo contrário, admiração desinteressada no homem sábio. Não é,
portanto, a aparência bela que leva ao pecado e é por si o mal, mas a
disposição maléfica daquele que a contempla (IV, 16). Do mal, que não é
realidade, não há portanto em Deus presciência; nem tão-pouco predestinação.
A pena que recai sobre o que peca não foi predestinada por Deus; pois também
ela é dor e privação, e não uma realidade
44
positiva. A pena é consequência do pecado e segue-se como se estivesse ligada
a ele por uma corrente; mas nem a pena, nem o pecado subsistem na mente
divina, na qual apenas encontra lugar o ser e o bem (De praedest., 15, 8).
Quando as Sagradas Escrituras falam de predestinação ou de presciência divina
do mal, há que entender estas expressões no sentido com que nós costumamos
saber que, depois do sol se pôr vêm as trevas, que o silêncio vem depois das
aclamações e a tristeza depois da alegria. Mas as trevas, o silêncio, a
tristeza, não são mais que noções negativas e indicam. apenas a ausência das
realidades -positivas correspondentes (ibid., 15, 9).
Para Escoto, tal como para Santo Agostinho, o mal reduz-se ao pecado, à
deficiência ou ausência de vontade. Mas enquanto para Santo Agostinho
a
vontade livre é unicamente a vontade do bem, para Escoto Erígena a vontade
livre é o livre arbítrio, capaz de decidir-se quer pelo bem, quer pelo mal. É
certo que a causa do pecado está na mutabilidade da vontade. Esta
mutabilidade, que é causa do mal, é certamente ela própria um mal (Do div.,
nat., IV,
14). Mas sem ela o homem não seria verdadeira e plenamente livre. Se Deus
tivesse dado ao homem apenas a capacidade de querer o bem e de viver de
acordo com a justiça, de forma a que o homem só se pudesse mover numa
direcção, o homem não sena absolutamente livre, mas apenas livre em parte e
em parte não livre. Ora uma liberdade parcial não é possível. Se mesmo numa
parte mínima o homem não é livre, ele é absolutamente não-livre. Um livre
arbítrio que oscila não pode permanecer de pé (De praedest., 5, 8). Se se
afirma que não viria dano ao homem pelo facto de possuir um livre arbítrio
claudicante, poderá objectar-se que sem um verdadeiro e total livre arbítrio
a justiça divina não poderia exercer-se. Uma vez que a jus-
45
tiça consiste em dar a cada um o que é seu, e da parte de Deus em reconhecer
a cada homem o mérito de haver obedecido aos seus preceitos. Mas que
significado poderiam ter esses preceitos para um homem que apenas pudesse
fazer o bem? Deus teve portanto, que dar ao homem um livre arbítrio pelo qual
ele pudesse pecar ou não pecar. Só um livre arbítrio assim criado torna o
homem capaz de usufruir livremente a ajuda que lhe oferece a graça divina
(Ibid., 5, 9).
A liberdade do homem consiste portanto na possibilidade de pecar ou não
pecar, uma vez que só essa possibilidade torna o homem susceptível de ser
premiado ou castigado segundo um juízo. E como só a vontade dotada de livre
arbítrio é responsável pelo pecado, só a vontade pode ser castigada por
Deus. Também os juízes humanos, se não são impelidos pela sede de
vingança, têm em vista a correcção dos réus e castigam não a sua natureza,
mas apenas os seus delitos. Do mesmo modo, a punição divina do pecado dirige-
se apenas à vontade que cometeu o pecado, mas deixa íntegra e salva a
natureza do pecador, que permanece capaz de regressar a Deus, no triunfo
final (V, 31). Para este triunfo o homem é ajudado tanto pela sua natureza
como pela graça divina. O homem deve à própria natureza o haver sido retirado
do nada e existir; à graça deve a sua deificatio pela qual regressa à
substância divina. A natureza é dada, a graça é um dom gratuito, concebido
pela divina bondade sem que tenha havido mérito por parte do homem.
§ 186. JOÃO ESCOTO: A LóGICA
De acordo com a orientação platonizante do sistema, a lógica de Escoto
Erígena é realista: pressupõe a realidade objectiva de todas as deter-
46
minações lógicas universais, de todos os conceitos de género e espécie. Está
no espírito de uma lógica que quanto mais um conceito é universal, tanto
maior é a sua realidade objectiva; assim os conceitos dos géneros supremos
são mais reais que os dos géneros menos extensos; e os conceitos de género
são mais reais que os conceitos de espécie, nos quais todo o género se
subdivide; enfim, as espécies especialíssimas, isto é, os indivíduos, têm uma
-realidade menor que as espécies superiores ou mais extensas. Comentando uma
passagem bíblica, Escoto afirma que Deus criou primeiro o género, porque nele
se contêm e estão reunidas todas as espécies; o género divide-se em seguida e
multiplica-se nas formas gerais e nas espécies especialíssimas. Daqui pode
tirar-se uma conclusão fundamental sobre o valor objectivo da dialéctica: "A
arte que divide os géneros em espécies e resolve as espécies e os géneros, a
chamada dialéctica, não foi criada através das investigações humanas, mas
baseia-se na própria natureza e foi criada pelo Autor de todas as artes que
são verdadeiramente artes, descoberta pelos sábios e empregada para proveito
de toda a classe de investigações sobre as coisas." (IV, 4". E assim a tábua
lógica dos conceitos dispostos segundo a ordem da sua universalidade,
identifica-se, segundo Escoto, com a ordem metafísica das determinações do
ser.
A mais universal determinação lógica, e por conseguinte, a mais real
determinação objectiva, é a essência (ousia), que é incorpórea, simples e
indivisível. A essência existe nos géneros e nas espécies, mas não se divide
neles, permanecendo não-multiplicada, mesmo que se multiplique nos géneros,
nas espécies e nos indivíduos (1, 34). "A essência subsiste toda reunida,
está eterna e imutavelmente nas suas subdivisões, e todas as suas subdivisões
constituem simultaneamente e sempre, nela, uma
47
unidade inseparável" (1, 49). Por isso, a essência de todas as coisas é na
realidade uma só, é o próprio Deus (1, 1). É incognoscível, e incompreensível
como o próprio Deus; o que se percebe com os sentidos ou se compreende com o
intelecto em toda a criatura, é apenas algum acidente da essência
incompreensível (1, 3).
A lógica de Escoto, que nasceu dois séculos antes de a discussão sobre os
universais se transformar no problema fundamental da dialéctica, apresenta
antecipadamente a solução tipicamente realista do problema e é a fonte de
todas as soluções do mesmo tipo que foram adoptadas depois. Representa também
o papel de um termo de comparação polémico para as escolas anti-,realistas.
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 177. As obras de João Escoto e as suas traduções do Pseudo-Dionísio e dos
Ambígua de Mássimo o Confesor, in P. L. 122.1; De divisione naturae, ed.
Schlüter, Munique, 1938; Commentarius ad Opuscula Boethii, ed. Rand, Mónaco,
1906;Autographa, ed. Rand, Mónaco, 1912.
§ 178. J. Huber, Johannes Scotus Erigena, 1861, ed. fot., 1960; Bett, J. S.
E., Cambridge, 1925; Cappuyns, J. S. E., Paris-Louvaina, 1933, com bibl.; Dal
Pra, S. E., Milão, 1951 com bibliografia.
§ 181. Gregory, Sulla metafisica di G. S. E., in "Giorh. Crit. della Fil.
Ital.", 1957; Mediazione e incarnazione, n~ filosofia dell'E.> Ib., 1960.
48
III
DIALÉCTICOS E ANTIDIALÉCTICOS
§ 187. GERBERTO
As condições políticas do século X, sobretudo a dissolução do império
carolíngio, detiveram quase por completo a recuperação intelectual do
Ocidente. Restabelecida a unidade do império com Otão o Grande, o movimento
da cultura tornou a prosseguir.
Neste período aparece uma grande figura de erudito e de mestre, Gerberto, que
se formou na escola de Aurillac. A partir de 972 foi professor na escola de
Reims; em 982 foi designado abade de Bobbio, em 991, arcebispo de Reims; em
998, arcebispo de Ravena; em 999, papa, com o nome de Silvestre 11. Morreu no
ano de 1003. Gerberto ocupou-se de todas as ciências mas sobretudo destacou-
se no estudo da mecânica e das matemáticas. Atribui-se-lhe a invenção de um
relógio e de uma espécie de sirene a vapor de água. Para explicar a sua vasta
erudição, um antigo cronista, Vicente de Beauvais (Speculum historiale, XXIV,
98) conta que Gerberto tinha feito uma larga estadia em Espanha,
49
país de nigromantes. Aí, conseguiu seduzir a filha de um desses doutores
diabólicos e roubar-lhe, em seguida, os livros. O mago, advertido pelas
constelações celestes, dispôs-se a perseguir o ladrão; este, no entanto,
aproveitando-se das indicações dos mesmos astros, conseguiu furtar-se à
perseguição que aquele lhe movera, escondendo-se durante uma noite debaixo do
arco de uma ponte destruída. O diabo em pessoa foi buscá-lo depois e levou-o
sobre o mar para que um dia algum dos seus adeptos pudesse ocupar a cátedra
do príncipe dos apóstolos. Provavelmente, esta lenda fabulosa oculta a
realidade de uma viagem de Gerberto a Espanha e da procedência árabe de boa
parte da sua cultura.
Gerberto escreveu comentários à Isagoge de Porfírio, às Categorias e ao livro
De interpretatione, de Aristóteles, e aos Comentários
lógicos de Boécio.
O seu escrito, De rationali et ratione uti, uma questão que disputou em
Ravena com Otrício, na presença de Otão II, propõe-se investigar o
significado da expressão "empregar a razão". A questão apresenta-se, à
primeira vista, com carácter lógico-gramatical; mas a solução de Gerberto
eleva-a. a um plano metafísico. É regra fundamental da lógica aristotélica
que o predicado seja mais universal que o sujeito: por exemplo, na proposição
"Sócrates é mortal", o predicado mortal é mais universal que o sujeito,
porque pode referir-se a muitos outros seres além de Sócrates. Mas na
expressão que se encontra em Santo Agostinho (De ord., 11, 12, 35):
Rationale, id est quod ratione utitur, o predicado "ratione utitur" é mais
restrito que o sujeito "rationale", porque nem sempre quem é racional se
serve efectivamente da razão. Esta é a dificuldade que dá origem à discussão.
Para resolvê-la, Gerberto distingue as substâncias necessárias e eternas das
mutáveis e caducas. As primeiras são suprasensíveis, cognoscíveis apenas pela
razão e sempre em acto.
50
As outras são sensíveis e naturais, sujeitas a mudança e, por conseguinte, à
geração e à corrupção. Ora, uma vez que todas as substâncias da primeira
classe estão sempre em acto, o ser -racional e o servir-se da razão são nelas
completamente coincidentes; porque são racionais precisamente no sentido de
que a sua razão está sempre em acto, ou seja, que sempre se servem dela. A
situação é diversa quando se trata de substância da segunda classe. Na alma,
que está unida ao corpo, a racionalidade não está em acto, mas em potência, e
passa da potência ao acto precisamente quando se diz que a alma "se serve da
razão". Daqui se conclui que, para a alma, o servir-se da razão não é um
predicado necessário, como para as substâncias supra-sensíveis, que são razão
em acto, mas um atributo acidental que pode acontecer ou não à racionalidade
potencial da pró pria alma. Deste modo, Cerberto, empregava os conceitos
aristotélicos de potência e acto, para chegar a uma distinção entre
substâncias racionais puras e substâncias racionais sensíveis, que é de
grande interesse para o posterior desenvolvimento da metafísica escolástica.
§ 188. DIALÉCTICOS E ANTIDIALÉCTICOS
A segunda metade do século XI e o século XII são, no Ocidente, um período de
florescimento intelectual. A cultura deixa de ser património das abadias e o
ensino tende a organizar-se na forma que há-de possuir no século XIII com as
universidades. Este período representa a primeira verdadeira idade da
escolástica que alcança a consciência do seu problema fundamental: o de
compreender e justificar as crenças da fé. Alguns julgam encontrar a solução
do problema entregando-o à razão e à ciência que parece ser mais própria
dele, a dia-
51
Jéctica; outros desconfiam da dialéctica. e apelam para a autoridade dos
santos e dos profetas, limitando a sua tarefa de investigação filosófica à
defesa das doutrinas reveladas. Daqui nasce a polémica entre dialécticos e
teólogos e que ocupa o século XI. Na realidade, mesmo os mais hostis à
dialéctica, mesmo os mais acérrimos defensores da superioridade da fé, não
abandonam a investigação, propriamente escolástica, do melhor caminho para
levar o homem à inteligência das verdades reveladas.
Entre os dialécticos sobressai a figura de Berengário de Tours. Formou-se no
convento de Saint-Martin, em seguida frequentou a escola de Chartres,
dirigida por Fulberto, de quem foi discípulo. Desdenhando as outras artes
liberais, dedicou-se à dialéctica e em breve se divertia ao recolher nos
escritos dos filósofos argumentos contra a fé dos simples. Conta-se que
Fulberto, no leito de morte, disse que Berengário era um diabo enviado pelos
abismos para corromper e seduzir os povos. O seu êxito como professor foi,
todavia, enorme. No ano de 1040 chegou a arquidiácono de Angers. Morreu em
1088. Berengário põe a razão acima da autoridade e exalta a dialéctica,
sobrepondo-a a todas as ciências. Baseando-se em Santo Agostinho, considera a
dialéctica como a arte das artes, a ciência das ciências. Recorrer à
dialéctica significa recorrer à razão. E quem não recorre à razão pela qual o
homem é a imagem de Deus, abandona a sua dignidade e não renova em si, no dia
a dia, a imagem divina (De sacra coena, edic. Vischer, p. 100). A mais famosa
das polémicas de Berengário é a que se refere à Eucaristia, que sustentou
contra Lanfranco, e à qual está dedicado o seu escrito De sacra coena
adversus Lanfrancum. Berengário sustenta o
princípio aristotélico de que os acidentes ou qualidades de uma coisa não
podem subsistir sem a substância dessa mesma coisa. Deste modo, no sacra-
52
mento da Eucaristia os acidentes do pão e do vinho mantêm-se: a substância
não pode, por conseguinte, ter sido destruída, e o pão e o vinho devem
permanecer como tais, mesmo depois da consagração. Esta vem acrescentar à
substância do pão e do vinho um corpo inteligível que é o corpo de Cristo.
Tal doutrina impugnava a definição dogmática. da Eucaristia, que afirma a
transformação da substância do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo;
e suscitou violentas polémicas. A doutrina de Berengário foi condenada pela
Igreja.
O mais notável adversário de Berengário foi Lanfranco de Pavia, nascido no
ano de 1010, aluno da escola de Bolonha, já então florescente. Lanfranco,
dotado de um espírito aventureiro e entusiasta, percorreu a Borgonha e a
França e fixou-se na Normandia. Aqui fez-se monge na abadia de Bec, que
através dele se tornou famosa. Em 1070 foi nomeado arcebispo de Cantuária;
morreu em 1089. Lanfranco é um adversário da dialéctica que é, segundo pensa,
completamente incapaz de levar o homem a compreender os mistérios divinos.
Declara energicamente que prefere ouvir discutir sobre os mistérios da fé com
autoridades sagradas de que com razões dialécticas. (De corp. et sang.
Domitú, 7). "Quem vive da fé, afirma, não procura analizá-la com a
argumentação nem concebê-la com a razão; prefere prestar fé aos mistérios
celestes em vez de se cansar em vão, pondo de lado a fé, para compreender o
que não pode ser compreendido" (ibid.
17). Mas, não obstante estas afirmações, Lanfranco não deixou de ser um
dialéctico. Se a dialéctica, abandonada a si própria, falha no campo dos
mistérios da fé, guiada e sustentada pela fé, pode prestar úteis serviços
àquela. Com este espírito comentou as cartas de São Paulo, como nos dá
testemunhos Sigiberto de Gemblou (De sctipt. eccles., c. 155; em Patr. Lat.,
160, 582 c): "Lanfranco, dia-
53
léctico e arcebispo de Cantuária, expôs as cartas do apóstolo São Paulo: e
sempre que teve oportunidade, apresentou as suas teses, os seus argumentos e
as suas conclusões segundo as regras da dialéctica". Pode dizer-se que na
relação entre a razão e a fé, Lanfranco escolheu a mesma posição que depois
foi assumida pelo seu grande discípulo, Anselmo de Aosta.
Contra os dialécticos polemizou Pedro Damiano, nascido em 1007 em Ravena. Em
1035 retirou-se para viver como ermitão em Fonte Avellana, e dali foi
chamado, no ano de 1057, para ser consagrado cardeal-bispo de Aosta. Morreu
em Faenza em 1072. A maior parte da obra de Pedro Damiano é dedicada à ascese
monástica e a questões eclesiásticas. A sua posição perante a dialéctica e as
ciências mundanas está expressa na obra que compôs em 1067, De divina
omnipotentia. "Muitas vezes, afirmou, a virtude divina destrói os silogismos
armados pelos dialécticos e as suas subtilezas e confunde os argumentos que
foram considerados Inevitáveis e necessários pelos filósofos" (De div.
omnip., 10). A dialéctica e, em geral, toda a arte ou perícia humana não deve
chamar a si arrogantemente o trabalho principal e pelo contrário deve servir
velut

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