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1) a negação do valor da razão; 2) a negação do valor do homem, 3) a actuação do homem reduz-se à ascese e à elevação mística. Sobre o primeiro ponto, Bernardo pronuncia-se sem reservas contra a razão e contra a ciência. O desejo de conhecer surge-lhe como uma <dorpe, curiosidade" (Se. in Cant., 36, 2). As discussões dos filósofos como "loquacidade cheia de vento" (Ib., 58, 7). " A minha filosofia mais sublime -proclama ele-é esta: conhecer Jesus e a sua crucificação" (lb., 43, 4). Quanto ao segundo ponto, S. Bernardo afirma sem reservas que a única atitude possível ao homem é a da humildade, da virtude "pelas quais o homem, conhecendo-se verdadeiramente, sente vergonha de si próprio" (De gradibus humilitatis, 1, 2). Reconhecer-se a si próprio como nada sendo é para o homem a condição indispensável para que possa libertar-se de todos os vínculos corpóreos e identificar inteiramente a sua vida com o amor por Deus. O amor de que S. Bernardo fala baseia-se no conceito do De amicitia de Cícero e a linguagem do Cântico dos Cânticos é entendida por ele substancialmente como o processo ascético de libertação do corpo e em geral de todos os vínculos naturais e como pura obediência ou abandono à vontade divina. Os graus mais altos do amor consistem em amar a Deus por si mesmo e no amar- se a si próprio por amor de Deus: neste grau, o homem abandona a sua 152 ALEGORIA DA CABALA vontade inteiramente ao querer divino (De diligendo Deo, XIII, 36). Com este ascetismo do amor teológico coincide o processo da ascese mística, cujos graus são significativamente identificados por S. Bernardo com os graus da humildade. O primeiro grau da ascese mística é a consideração (consideratio), que é um intenso pensamento de investigação e uma intenção da alma que investiga a Verdade criadora. O segundo grau é a contemplação (contemplatio) que é a intuição corta, uma apreensão indubitável da verdade (De contemplatione, 11, 2). A primeira contemplação é a admiração pela majestade divina que exige um coração purificado do vício e do pecado. O supremo grau da contemplação é o êxtase ou excessus mentis, pelo qual Deus desce sobre a alma humana e a alma se une a Deus. "Tal como uma gota de água que cai no vinho se dissolve e assume o sabor e a cor do vinho; tal como o ferro candente e incandescente se torna semelhante ao fogo e perde a sua forma própria; tal como o ar que percorrido pela luz do sol se transforma em claridade luminosa até parece mais que iluminado, transformado na própria luz; assim nos Santos todo o afecto humano necessariamente se dissolverá de modo inefável e quase se transformará na vontade de Deus. Com efeito, de que forma poderá Deus estar em todas as coisas, se algo de humano permanece no homem? É certo que permanecerá a substância, mas com outra forma, com outra glória, com outro poder... Isto significa deificar-se" (De dil. Deo, 11, 28). O processo de deificação do homem supõe que a alma olvide completamente o corpo. Conseguido este estádio, nada mais impede que o homem se afaste cada vez mais de si e se erga para Deus tornando-se semelhante a ele, na medida em que é possível tornar-se semelhante a Deus. Neste estádio, o homem faz uma só coisa com o Espírito de Deus (lb., 11, 32; 15, 39). 153 O único problema que S. Bernardo tratou filosoficamente é o da graça e do livre arbítrio. Distingue três aspectos de liberdade: a liberdade da necessidade, a liberdade do pecado, a liberdade da miséria. A liberdade da necessidade é o livre arbítrio, que é próprio da vontade humana; não se perde nem com o pecado nem com a miséria, e não é maior no justo que no pecador, nem no anjo que no homem (De grat., 1, 2). O livre arbítrio constitui a própria essência da liberdade humana. Tudo o que é voluntário é livre. A vida, os sentidos, o apetite, a memória, o engenho, e todas as outras actividades humanas estão sujeitas à necessidade, quando não estão inteiramente submetidas à vontade (1b., 2, 5). A vontade é a faculdade de escolha: mas esta escolha não se exerce necessariamente entre o bem e o mal; Deus é livre nas suas acções, mas não se determina no mal. Contra Escoto Erígena e com Sto. Anselmo, S. Bernardo nega que a liberdade consiste na escolha entre o bem e o mal. A possibilidade de escolher o mal não e essencial à liberdade, mas é antes uma imperfeição própria da liberdade finita, o essencial da liberdade é a ausência de toda a coacção. Ao lado do livre arbítrio está a liberdade do pecado e a liberdade da miséria. Mas, apesar do livre arbítrio fazer parte da nossa natureza, a liberdade do pecado é-nos dada pela graça e a liberdade da miséria ser-nos-á reservada in patria, isto é, no céu: por isso o livre arbítrio pode ser chamado liberdade de natureza, a liberdade do pecado liberdade da graça, a liberdade da miséria liberdade de vida ou de glória (lb., 3, 7.) Amigo de S. Bernardo foi Guilherme de S. Th,ierry, abade deste mosteiro de 1119 a 1135 e falecido em 1148 ou 1153. Participou na luta contra Abelardo com um escrito redigido no Inverno de 1138-1139, Disputatio adversus Abelardum e com 154 uma carta na qual pedia a atenção de S. Bernardo para os erros de Abelardo. É também autor de obras místicas e exegéticas, Meditativae orationes, De contemplando Deo, De natura et dignitate divini amoris. Nos dois livros De natura corporis et animi, trata, no primeiro, da física do corpo humano e no segundo da física da alma. O interesse desta compilação está no facto de Guilherme procurar a união da psicologia platónico-agustiniana com a da medicina greco-árabe, que conheceu através de Constantino Africano. § 223. ISAAC DE STELLA O inglês Isaac foi monge em Citeaux, depois, de 1147 a 1169, abade de Stella, na diocese de Poitiers. A sua obra mais significativa filosoficamente é uma Epistola ad quendam familiarem suum de anima, escrita à volta de 1162. lsaac parte de um pressuposto que tira de S. Agostinho e que voltaremos a encontrar em Descartes: para o homem, o conhecimento mais claro é o de Deus. Das três realidades, corpo, alma e Deus, o corpo é-nos menos conhecido que a alma e a alma menos conhecida que Deus. A alma é, de certo modo, a imagem da divindade como disse Aristóteles, ela é a similitude de todas as coisas; e assim se transforma em meio entre o corpo e Deus. Cinco são os graus da actividade cognoscitiva da alma: o sentido corpóreo, a imaginação, a razão, o intelecto e a inteligência. Os sentidos percebem os corpos, a imaginação conserva e reproduz as imagens sensíveis, mesmo na ausência dos corpos; a razão percebe as formas incorpóreas das coisas corpóreas. O processo da razão é abstracção; e Isaac formula uma teoria da abstracção que será seguida e desenvolvida por S. Tomás de Aquino. */*l 155 "A razão, afirma ele, abstrai dos corpos as formas ou naturezas que no corpo subsistem, mas abstrai-as não em acto, mas apenas ao considerá-las; o vendo que em acto subsistem apenas no corpo, percebe no entanto que elas não são o próprio corpo. Assim a razão percebe o que nem os sentidos nem a imaginação conseguem perceber, ou seja, na natureza das coisas corpóreas as formas, as diferenças, os atributos próprios e acidentais; todas as coisas ,incorpóreas que, não obstante, não existirem fora dos corpos, mas na própria razão" (P. L., 194.O, 1884). Acima da razão, o intelecto é a força que percebe as formas das coisas incorpóreas, isto é, dos seres espirituais; e a inteligência. vê, na medida em que é possível à sua natureza, o sumo ser, isto é, Deus na sua pureza e incorporeidade. Deste conhecimento supremo da inteligência, o homem recebe a luz para os conhecimentos inferiores. Aqui Isaac: reproduz a doutrina agustiniana da