Buscar

História da filosofia IV - Nicola Abbagnano

Esta é uma pré-visualização de arquivo. Entre para ver o arquivo original

hist�ria da filosofia 4.rtf
História da Filosofia
Quarto volume
Nicola Abbagnano
DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO:
ÂNGELO MIGUEL ABRANTES.
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
VOLUME IV
TRADUÇÃO DE:
JOSÉ GARCIA ABREU
CAPA DE: J. C.
COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO
TIPOGRAFIA NUNES R. José Falcão, 57-Porto
EDITORIAL PRESENÇA . Lisboa 1970
TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA
Copyright by NICOLA ABBAGNANO
Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA,
LDA. - R. Augusto Gil, 2 cIE. - Lisboa
XIV
ALBERTO MAGNO
§ 267. A OBRA DE ALBERTO MAGNO
Chegada ao ocidente latino através das especulações árabe e judaica, a obra
de Aristóteles pareceu, à primeira vista, estranha à tradição originária da
escolástica. O primeiro resultado do seu aparecimento foi, como vimos, o
entrincheiramento da tradição escolástica na sua posição fundamental, o
,regresso à doutrina autêntica daquele que fora até então o inspirador e o
guia da investigação escolástica, Santo Agostinho. Este regresso provoca um
trabalho de revisão crítica e de sistematização das doutrinas escolásticas
fundamentais, o qual alcança a sua máxima expressão na obra de S. Boaventura.
São utilizadas neste trabalho doutrinas particulares e sugestões
especulativas do aristotelismo, sem que se faça a mínima concessão aos pontos
básicos do próprio aristotelismo e ao espírito que os anima. Paralelamente,
as autoridades eclesiásticas advertem o perigo contido na nova corrente e
procuram interromper-lhe o caminho com proibições e limitações frequentemente
repetidas 1.
Mas esta situação modifica-se quando o aristotelismo encontra o homem que lhe
saberá dar o direito de cidadania na escolástica latina. Este homem é Alberto
Magno. Aquilo que Boécio fizera para o mundo latino do século VI, dando-lhe a
possibilidade de se acercar de Platão e Aristóteles; aquilo que Avicena
fizera para os muçulmanos do século XI oferecendo-lhes o pensamento de
Aristóteles e dos Gregos, fê-lo Alberto Magno para a escolástica latina do
século XIII, oferecendo-lhe a completa enciclopédia científica de
Aristóteles, numa exposição que faz com que o pensamento do Estagirita perca
aquele carácter de estranheza que o revestia aos olhos dos escolásticos
latinos. Através da imensa e paciente obra de Alberto Magno, abre-se a
possibilidade para que o aristotelismo se insira como um ramo vital do tronco
da escolástica latina, tal como havia vivido e prosperado nas escolásticas
muçulmana e judaica. Alberto Magno descobre e explora pela primeira vez o
caminho mediante o qual os pontos básicos do pensamento aristotélico
:L Esta proibição foi estabelecida por quatro vezes durante a primeira metade
do século XIII. Em 121.O aparece no Concílio provincial de Paris a primeira
proibição das obras de Aristóteles e seus comentários. Em 1215, Roberto de
Courçon legado pontifício, renova as proibições. Em 1231, Gregório XI proíbe
a Física e a Metafísica de Aristóteles e nomeia uma comissão -composta por
Guilherme de Auxerre, Simão d'Authie e Estêvão de Provins para revisão dos
textos. Em 1245 esta proibição passou a vigorar também na Universidade de
Toulouse. Porém já em 1252 se tornou obrigatório para os candidatos de
nacionalidade inglesa o conhecimento de De anima, e em 1255 tal obrigação foi
imposta a todos os candidatos e para todas as obras de Aristóteles. DENIFLE-
CI-1ATELAIN, Chartularium Universitatis Parisiensis, 1, 70, 78-79, 138, 227.
poderão servir para uma sistematização da doutrina escolástica, sem atraiçoar
nem abandonar os resultados fundamentais da tradição. Torna-se claro, com
Alberto Magno, que o aristotelismo não só não torna impossível a investigação
escolástica, isto é, a compreensão filosófica da verdade revelada, mas
constitui o fundamento seguro de tal investigação e oferece o fio condutor
que permitirá ligar entre si as doutrinas fundamentais da tradição
escolástica.
Com a sua obra, Alberto Magno anunciou esta possibilidade; mas só a realizou
parcialmente. Ã sua sistematização, falta a clareza e a profundidade de um
resultado definitivo. Um dos mais perspicazes dos seus críticos
contemporâneos, Roger Bacon (Opus minus, ed. Brewer, p. 325), acertadamente
assinalava já, falando do enorme sucesso de Alberto Magno, a deficiência
filosófica da sua obra. "Os escritos deste autor estão cheios de erros e
contém uma iinfinidade de coisas inúteis. Entrou muito jovem na ordem dos
pregadores; nunca ensinou filosofia, nunca pretendeu ensiná-la em nenhuma
escola; nunca frequentou nenhuma Universidade antes de se tornar teólogo;
nem teve possibilidade de ser instruído no seio da sua ordem, já que ele é,
de entre os seus irmãos, o primeiro mestre de filosofia". Na realidade, o
aristotelismo apresenta-se-lhe como um todo confuso, no qual não sabe
distinguir o pensamento original do mestre daquilo que lhe foi acrescentado
pelos intérpretes muçulmanos. Os erros históricos de Alberto Magno são
frequentes: considera Pitágoras como um Estóico, crê que Sócrates era
Macedónio, que Anaxágoras e EmpédocIeseram oriundos da Itália, chama a Platão
"prínceps stoicorum", e assim sucessivamente. Por outro lado, não chegou a
separar-se completamente do neoplatonismo agustiniano, do qual admite uma
doutrina típica: a concepção da matéria, não como simples potencialidade ou
privação de forma,
mas como dotada duma certa actualidade consistente na inchoatio formae: a
qual, como ele diz, "não é a coisa nem parte da coisa, mas é semelhante ao
ponto, que não é a linha nem parte da linha mas sim o seu princípio
incoativo" (De natura et origine aninwe, 1, 2). Finalmente, e isto é ainda
mais grave, Alberto Magno não fixou claramente o centro especulativo da sua
investigação, não sublinhou com vigor suficiente o princípio segundo o qual o
aristotelismo deve ser reformado para servir de fundamento à sistematização
filosófica da revelação cristã. Por todas estas razões, a sua obra teria
ficado como uma simples tentativa, não fora ter sido retomada e completada
por S. Tomás de Aquino.
§ 268. ALBERTO MAGNO: VIDA E OBRA
Alberto, denominado Magno, pertencia à família dos condes de BolIstãdt e
nasceu em Lavingen, na Suábia em 1193, ou, segundo outros, em 1206 ou 1207.
Estudou em Pádua, onde conheceu o geral dos dominicanos, Giordano o Saxão,
por influência do qual ingressou naquela ordem. As palavras de Roger Bacon
acima mencionadas, excluem a hipótese de ele ter seguido estudos regulares.
Entre 1228 e 1245 ensinou em vários conventos dominicanos. Em 1245 torna-se
mestre de teologia, em Paris; e foi neste período que teve como aluno S.
Tomás de Aquino. Em 1248 foi chamado a Colónia, para ensinar na Universidade
que acabava de ser fundada, e para aí o seguiu S. Tomás. Entre 1254 e
1257 ocupou o cargo de provincial dos dominicanos. Em 1256, numa viagem à
corte papal de Alexandre IV em Anagni, na Itália, conheceu o livro de
Guilherme de Santo Amor contra as ordens mendicantes e a doutrina de Averróis
sobre a unidade do intelecto. De 1258 a 1260 voltou a ensinar em Colónia,
após o que, durante algum tempo, foi bispo de Ratisbona e desempenhou
numerosas missões da sua ordem e da Igreja. Em
1269 ou 1270 voltou para Colónia, onde morreu em 15 de Novembro de 1280.
A obra de Alberto Magno é vastíssima: abrange
21 volumes in folio na edição Jammy e 38 volumes in-4. na edição Borgnet.
Dizia expressamente, em todas as ocasiões, que só queria expor a opinião de
Aristóteles; de facto, a sua obra segue fielmente os títulos e as divisões
da obra aristotélica, da qual, embora não citando o texto, faz uma exposição
intercalada de comentários e digressões. Alberto Magno divide a
filosofia em três partes: filosofia racional ou lógica, filosofia real, que
tem por objecto aquilo que não
for obra humana, e filosofia moral, que tem
por objecto as acções humanas. Os seus escritos de lógica consistem na
exposição dos escritos de Aristóteles, dos quás também utilizam os títulos.
Divide a filosofia real em física (e também aqui utiliza os títulos e a ordem
das obras aristotélicas); matemática (a cujo grupo pertence uma só obra,
Speculum astronomiae, de autenticidade duvidosa); e metafísica, à qual
pertencem a Metafísica e uma ampla paráfrase do Liber de causis. Ã filosofia
moral pertencem os dois Comentários à Ética e à Política.
Além destas obras que repetem o traçado da obra aristotélica, Alberto Magno
foi ainda autor de escritos teológicos: um comentário às Sentenças de Pedro
Lombardo, uma Sumina de creaturis, uma Summa theologiae, um comentário ao
Pseudo-Dionísio, um Comentário ao Antigo e Novo Testamento. Contra a doutrina
averroística, compôs ainda a obra De unitate intellectus. Este último e a
Metafísica pertencem provàvelmente aos anos 1270-1275. Todo o comentário
aristotélico foi composto por
11
Alberto Magno entre o seu quinquagésimo e septuagésimo ano de idade.
Dissemos já que Alberto Magno não distingue, ou distingue mal, entre o
pensamento de Aristóteles e o dos seus intérpretes muçulmanos. Destes
intérpretes, é Avicena aquele que mais o influencia; serve-se também
amplamente da obra de Maimónides para a crítica e a correcção das teses
muçulmanas.
§ 269. ALBERTO MAGNO: FILOSOFIA E TEOLOGIA
O trabalho a que Alberto Magno se dedica é o de expor o pensamento de
Aristóteles. "Tudo aquilo que eu disse, disse-o como conclusão da Metafísica,
e de acordo com as opiniões dos peripatéticos: quem quiser discutir o que eu
disse leia atentamente os seus livros e dirija-lhes, não a mim, os louvores
ou as críticas que mereçam". E no final do livro Acerca dos animais: Eis o
fim do livro sobre os animais; com ele termina toda a nossa obra de ciência
natural. Limitei-me nesta obra a expor, o melhor que mo foi possível, aquilo
que os peripatéticos disseram; e ninguém poderá nela encontrar o que eu
próprio penso em matéria de filosofia natural" . Que esconderá
verdadeiramente esta fidelidade de Alberto Magno ao aristotelismo, tão
energicamente proclamada e frequentemente repetida? Evidentemente, que a
convicção de que o aristotelismo não é somente uma filosofia, mas a
filosofia, a obra perfeita da razão, o termo último do saber humano. Esta
admiração por Aristóteles, que Averróis (§ 241) explicitamente proclamava na
sua obra, é o pressuposto subentendido na posição de Alberto Magno. Este
pressuposto leva-o precisamente a separar com nitidez o domínio da filosofia
do da teologia. "Há quem pense, diz ele
12
((Met., XI, 3, 7), seguir o caminho da filosofia e, na realidade, confunde a
filosofia com a teologia. Mas as doutrinas teológicas não coincidem, nos seus
princípios, com as da filosofia: a teologia fundamenta-se, não na razão,
mas na revelação e na inspiração. Não podemos pois discutir sobre questões
teológicas na filosofia" . E ainda, no De unitate (cap. l. ): "É necessário
verificar com razões e silogismos qual a opinião que devemos aceitar e
defender. Não falaremos portanto daquilo que ensina a nossa religião, nem
admitiremos nada que não possa ser demonstrado por intermédio dum silogismo".
Deste modo, o reconhecimento do aristotelismo como a autêntica filosofia,
leva Alberto Magno a separar nitidamente a filosofia, que procede por razões
e silogismos, da teologia, que se fundamenta na fé. Servindo-se, por um
momento, da linguagem de Santo Agostinho, afirma serem dois os modos da
revelação de Deus ao homem. O primeiro é o de uma iluminação geral, isto é,
comum a todos os homens, e é deste modo que Ele se revela aos filósofos. O
segundo é o de uma iluminação superior destinada a fazer intuir as coisas
sobrenaturais; e é nesta iluminação que se baseia a teologia. A primeira luz
transparece nas verdades conhecidas por si mesmas, a segunda, nos artigos de
fé (Sum. theol., 1, 1, q. 4, 12). A teologia é a fé que, segundo as palavras
de Santo Anselmo, vai em busca do intelecto e da razão (lb., 1, 1, q. 5). O
seu impulso reside na piedade religiosa, e tem, com efeito, por objecto tudo
aquilo que se relaciona com a salvação da alma (lb., 1, 1. q. 2). Mas a fé,
que no domínio religioso implica adesão e anuência e é a via que conduz à
ciência das verdades divinas, é, no domínio filosófico, pura credulidade 
alheia a qualquer ciência. E isto porque a ciência se baseia na demonstração
causal e não em razões prováveis, e a fé só
13
pode ter o valor de uma opinião provável (Ib., 1,
3, q. 15, 3).
Era a primeira vez, na escolástica latina, que se estabelecia tão nitidamente
a separação entre filosofia, e teologia. O domínio da filosofia fica reduzido
ao da demonstração necessária. Para além dele existirá também uma ciência,
mas uma ciência baseada nos princípios admitidos pela fé, e que por isso
obtém a sua validade da adesão e da anuência do homem à verdade revelada. O
aparecimento da autonomia da investigação filosófica coincide em Alberto
Magno com a exigência duma investigação naturalista baseada na experiência.
"Das coisas que aqui expomos, diz ele numa obra sobre botânica (De
vegetalibus, ed. Jessen, 339), algumas delas foram por nós comprovadas com a
experiência (experimento), enquanto que outras são mencionadas nas obras
daqueles que, não tendo delas falado com ligeireza, antes as comprovaram
também com a experiência. E de facto, só a experiência concede a certeza em
tais assuntos, pois que, acerca de fenómenos tão particulares o silogismo
nada vale".
§ 270. ALBERTO MAGNO: METAFíSICA
Aceitando o princípio de Aristóteles segundo o qual aquilo que é primeiro em
si não é primeiro para nós, Alberto Magno considera que a existência de Deus
pode e deve ser demonstrada, mas que tal demonstração terá de ser feita a
partir da experiência em vez de ser a priori. Reproduz, pois, as provas
cosmológicas e causais que a tradução escolástica. havia elaborado (S.
theol., 1, 3, q. 18). Deus é o intelecto agente universal que está perante as
coisas na mesma relação em que o intelecto do artífice está para a coisa
produzida, desde que este último produza as coisas por si próprio e não por
14
uma disposição proporcionada pela arte (De causis,
1, 2, 1). Como intelecto, Deus tem em si mesmo as ideias, isto é, as espécies
ou razões de todas as coisas criadas, mas essas ideias não são distintas
dele, ainda que se diferenciem em relação às próprias coisas; já que ele só
se conhece a si próprio e duma forma imediata, sem nenhuma ideia ou espécie
intermediária (Summa theol., 1, 13, q. 55,
2, a. 1-2). Daqui resulta que sejam três os géneros das formas: o primeiro é
o das formas que existem antes das coisas existirem, isto é, no intelecto
divino como causa formativa delas; o segundo é o das formas que flutuam na
matéria; o terceiro é o das formas que o intelecto, através da sua acção,
separa das coisas (De nat. et or. animae, 1, 2). Estes três géneros de formas
constituem os três tipos de universais anie rem, in re e post rem,
solidamente admitidos pelo realismo escolástico. Mas Alberto Magno acrescenta
uma limitação importante: o universal, enquanto universal, só existe no
intelecto. Na realidade, está sempre unido às coisas individuais que são as
únicas que existem. Na realidade, o universal só existe enquanto forma que
constitui com a matéria as coisas individuais. É a essência da coisa,
essência individual ou comunicável a outras coisas. É ainda o fim da geração
ou composição da substância que a matéria deseja realizar, e é quem dá o ser
e a perfeição (o acto) aquilo em que se encontra. O universal é pois, também,
a quididade, isto é, a essência substancial da coisa, que é sempre
determinada, particularizada e própria. Neste último sentido de quididade, o
universal é a forma, que o intelecto separa da matéria e considera na sua
pura universalidade, abstraindo-a das condições individualizadoras (De
intellectu et intellegibili, 1, 2, 2).
Estas condições individualizadoras residem no quod est, que é a existência, o
substrato ou sujeito
15
do ser. Com efeito, Alberto Magno aceita a doutrina da distinção real entre a
essência e a existência. Todas as criaturas são compostas por uma quídidade
ou essência (quod est) e por um sujeito ou sustentáculo de tal quid~ "0 quod
est é a forma total; o quod est é o próprio todo a que pertence a forma"
(Sum. de creat., 1, 1, q. 2, a. 5). Esta composição é também própria das
criaturas espirituais, às quais Alberto Magno nega por vezes a composição de
matéria e forma, opondo-se a Avicebrão e aos escolásticos agustinianos. Ora o
princípio da individuação é precisamente o quod est, o sujeito da essência; a
qual, pelo contrário, é participável e comum a outras coisas. E, dado que nas
coisas corpóreas o quod est é a matéria, pode dizer-se que nelas o princípio
individualizante é a matéria, ainda que não enquanto matéria, mas enquanto
que, precisamente, sustentáculo da essência, substracto real da coisa (S.
th., 11, 1, q. 4, a.
1-2).
Mas o ponto no qual o aristotelismo parecia inconciliável com a revelação
cristã era a eternidade do mundo. Os peripatéticos muçulmanos haviam
elaborado rigorosamente o conceito da necessidade absoluta do ser enquanto
ser; e deste princípio tinham deduzido, em primeiro lugar, a necessidade da
própria criação pela parte de Deus, enquanto inerente à sua essência
autocognoscente, e em segundo lugar e por consequência, a eternidade do ser
criado. O único que, de certa maneira, havia conseguido justificar a
contingência do acto criador e do ser criado, e portanto o início temporal do
mundo, embora mantendo intactos os pontos básicos do aristotelismo, tinha
sido Moisés Maimónides. É precisamente a ele (a quem chama Rabi Moisés ou
Moisés Egípcio) que se refere explicitamente Alberto Magno, seguindo-lhe
cuidadosamente as pegadas. Maimónides tinha justificado o início do mundo no
16
ALBERTO MAGNO
tempo mostrando a contingência do acto criador e, portanto, a não necessidade
do ser criado. A mesma via é seguida por Alberto Magno. A prova fundamental
por ele aduzida é a da diversidade dos efeitos que derivam de uma única
causa criadora: é impossível explicar esta diversidade a não ser recorrendo à
livre vontade divina. "Se se admite que a totalidade dos corpos foi trazida
ao ser mediante escolha e vontade, torna-se, possível a grande diversidade
que ela apresenta. Demonstrámos já que o ser que actua por liberdade é livre
para produzir diversas acções. A diversidade que notamos nas órbitas dos céus
não terá, portanto, outra causa que não seja a Sabedoria que ordenou e pré-
constituiu esta diversidade segundo uma razão ideal" (Phys., VIII, 1, 13). A
este argumento tirado de Maimónides, acrescenta Alberto Magno o que deriva da
consideração da diversidade do ser criado em relação ao ser de Deus, Não
podemos aqui utilizar a mesma escala de medida. Se a eternidade é a medida de
Deus, o tempo deve ser a medida do mundo. Se Deus precede o mundo enquanto é
a sua causa, o mundo não pode ter a mesma duração de Deus. Esta -razão
parece-lhe ser suficientemente forte para justificar a opinião de que o mundo
tenha sido criado, mais forte do que as razões aduzidas por Aristóteles para
defender as teses opostas; embora não suficientemente fortes para valerem
como demonstração. A conclusão é que "o início do mundo pela criação não é
uma proposição física e não pode ser demonstrada fisicamente" (Phys., VIII,
1, 14). É todavia certa a não necessidade do ser criado. A criação de Deus é
absolutamente livre, e é um acto de vontade cuja única causa é ele próprio
(S. th., 1, 20, q- 79, 2, a. 1, 1-2). O acto criador não implica uma relação
necessária de Deus com a coisa criada, mas somente uma dependência da coisa
criada para
17
com Deus, a qual coisa criada começa a ser a partir do nada (1b., a. 4).
§ 271. ALBERTO MAGNO: A ANTROPOLOGIA
Alberto Magno negou a composição hilomórfica das substâncias espirituais: não
considera que a alma seja composta de matéria e forma. Reconhece, porém, a
composição, própria de todas as criaturas, de existência e de essência, de
quod est e quo est.
O homem, que tal como todos os outros seres sublunares, participa na natureza
corpórea, distingue-se dos outros seres pela forma que anima o seu corpo,
isto é, pela alma. Pela sua função de determinar e individuar no homem a
matéria corpórea, a alma é a forma substancial do corpo (S. th., 11, 12, q.
68). Como acto primeiro do corpo, a alma conduz o corpo ao ser; como acto
segundo, condu-lo a agir (S. de creat., 11, 1, q. 2, a. 3). As três potências
da alma, vegetativa, sensitiva e racional, constituem uma única forma e uma
única actividade (lb., H,
1, q. 7, a. 1). Alberto Magno recusa a doutrina da pluralidade das formas, a
qual, pelo contrário, era admitida pelos agustinianos da sua época.
Mas o problema fundamental da antropologia de Alberto Magno continua a ser o
mesmo do aristotelismo, isto é, o problema do intelecto. Alberto Magno, tem
de combater a teoria típica do aristotelismo muçulmano, a da unidade do
intelecto humano, teoria que exclui a multiplicidade das almas depois da
morte e, por consequência, a imortalidade individual. O principal argumento a
favor desta tese era, como vimos (§ 242), que as almas eram individuadas
pelos corpos aos quais se uniam e que, portanto, toda a individuação cessa
com a dissolução do corpo. Admitindo com Avicebrão uma matéria espiritual
individuadora da alma, en-
18
quanto tal, os contemporâneos de Alberto Magno (Alexandre de Hales, Roberto
Grosseteste) conseguem evitar o argumento averroístico. Mas Alberto Magno
nega a existência de uma matéria espiritual; não pode, portanto, recorrer à
matéria para justificar a individualidade da alma separada. Tem de recorrer
ao quod est, ao substrato da essência: o quod est desempenha nos seres
espirituais a mesma função Índividualizante que a matéria desempenha nos
seres corpóreos. "0 princípio, que faz subsistir a natureza comum e a
determina ao indivíduo (ad hoc aliquid), tem a propriedade de um princípio
material (principium hyleale); pelo que muitos filósofos lhe dão o nome de
hyliathis, derivado da palavra hyle-" (De causis, 11, 2, 118. A palavra
hyliathis encontra-se adoptada no Liber de causis, cap. 9). Alberto Magno
afirma o princípio segundo o qual "à excepção do ser primeiro, tudo o que
existe é composto por quo est e quod est". Pode assim admitir a
individualidade da alma como tal, uma individualidade conexa com a própria
essência da alma, inseparável, portanto, dela mesmo para além da morte. Os
intelectos que Alberto Magno distingue, seguindo sobretudo Avicena, são
partes da alma humana. O intelecto agente deriva do quo est, isto é, da
essência da alma, que é acto; a inteligência possível deriva do quod est,
isto é, da existência da alma, que é potência (Sum. de creat.,
11, 1, q. 52, a. 4, 1). O princípio de individuação do intelecto é portanto o
intelecto em potência, o qual individualiza o intelecto agente. Este último é
como que uma luz, imagem e semelhança da Causa primeira. Em virtude do que, a
alma abstrai as formas inteligíveis das condições materiais e redu-las ao seu
ser simples (S. Th., 11, 15, q. 93, 2).
O intelecto agente e o intelecto potencial estão unidos através delas.
Constituem o intelecto formal que, por sua vez, é simples ou composto. O
inte-
.19
lecto composto ou tem por objecto os primeiros princípios, e é então dito
inato,
ou é intelecto adquirido, intellectus adeptus, enquanto se adquire
através da investigação, da doutrina e do estudo (S. th.,
11, 15, q. 93, 2). Chama também especulativo ao intelecto adquirido (De unit.
intel. contra Aver., 6).
O mesmo intelecto formal, quando dedica a sua luz à acção, em vez de ser à
especulação, e ao bem, em vez de ser à verdade, é o intelecto prático (Suni.
de creat., 11, 1, q. 61, a. 4). É pelo intelecto adquirido ou especulativo
que o homem se torna, de certa maneira, semelhante a Deus, porque realiza a
conjunção mais estricta com o intelecto agente: no qual já não existe a
diferença entre o acto de comprender e a coisa compreendida, e onde a ciência
se identifica com a coisa conhecida (De an., 111, 2,
18). Dado o carácter espiritual e divino da sua função intelectual, a alma
não depende do corpo; pelo que não perece com ele. Na sua actividade
intelectual, ela é a causa de si mesma'e os seus próprios objectos são
incorruptíveis: portanto, a morte do corpo não a afecta (De nat. et orig.
animae, 11, 8). Deste modo, Alberto Magno, embora aceitando alguns pontos
básicos do aristotelismo, crê haver conseguido garantir, contra as doutrinas
erradas do próprio aristotelismo, a verdade fundamental do cristianismo.
Os outros aspectos da sua antropologia carecem de originalidade. Atribui ao
homem o livre arbítrio como uma potência especial que lhe pertence por
natureza; e coloca a essência do livre arbítrio na capacidade de escolher
entre as alternativas que a razão apresenta ao homem (Sum. de creat., 11, 1,
q. 68, a, 2). Aproveita de Alexandre de Hales a teoria da consciência e da
sindérese. A consciência é a lei racional que obriga o homem a actuar ou a
não
20
actuar. A sindérese é a disposição moral determinada por essa lei, o habitus
que conduz o homem ao bem e lhe dá o remorso do mal. Ás quatro virtudes
cardeais que, com Pedro Lombardo, chama adquiridas, Alberto Magno junta as
três virtudes infusas, fé, esperança e caridade (Summ. theol., 11, 16, q.
103, 2).
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 268. A data de nascimento de Alberto Magno é situad-i em 1193 por MICHAEL,
Geschichte der dentschen Volkes vom 13 Jahrh. bis zum Ausgang des
Mittelalters, 111, 1903, p. 69 e ss.; e por PELSTER, Kritische Studien zu
Leben und zu den Shriften, AIberts der Grosse, 1920. 2 situada em 1206 ou
1207 por MANDONET, Siger de Brabante et Paverroisme latin au XIII.c siècle,
I, Lovaina, 1911, p. 36-39; e por ENDRES, in "Historisches Jahrbuch",
1910, p. 293-304. Existem duas edições completas da obra de Alberto
Magno: a de P. Jammy, Lyon, 1651 e a de Borgnet, Paris, 1890-1899, em
38 vol. in-4.1.
Saíram já alguns volumes duma edição crítica organizada pelos Padres
DGminicanos, Münster, 1951 e - .; outras ediç5es: De vegetalibus, ed. Jessen,
Berlin, 1867; Commentari in Librum Boethii De divisione, ed. De Loê, Bonn,
1913; De animalibus, ed. StadIer, Münster, 1916-1920; Suma de creaturis, ed.
Grabmann, Leipzig, 1919; Liber sex principiorum, ed. SuIzbacher, Viena, 1955.
DuHEM, Système du monde, V, p. 418-468; WILMS, Albert der Grosse, Mónaco,
1930; SCHEEBEN, Albertus Magnus, Colónia, 1955; NARDI, Studi di filosofia
medioevale, Roma, 1960, p. 69-150.
§ 269. Sobre as relações entre filosofia e teologia: HEITZ, in "Revue des
Seiences phil. et théol.",
1908, 661-673.
§ 270. Sobre a metafísica: DANIELS, in "Beitrãge", VIIII, 1, 2, 1909, 36-37,
onde se examina a atitude vacilante de Alberto, Magno perante a prova
ontológica; ROHNER, in "Beitrãge", XI, 5, 1913, 45-92;
21
PELSTER, Kritische Studien zu Leben und zuden Schriften A. s. d. Gr, 1920.
Sobre as relações com Platão: GAUL, in "Beitrãge", XII, 1, 1913. Sobre as
relações com Maimónides: JO2L, Das Verhãltnis A.& d. Gr. zu Moses Maimonides,
1863.
§ 271 . Sobre a psicologia: SCI1NEIDER, in "Beitrãge", IV, 5-66, 1903, 1906.
22
XV
S. TOMÁS DE AQUINO
§ 272. A FIGURA DE S. TOMáS DE AQUINO
A obra de S. Tomás marca uma etapa decisiva da Escolástica. É ele que
continua e leva ao seu termo o trabalho iniciado por Alberto Magno. Através
da explicação tomista, o aristotelismo torna-se flexível e dócil a todas as
exigências da explicação dogmática; e não por meio de expedientes ocasionais
ou de adaptações artificiosas (segundo o método daquele), mas em virtude de
uma reforma radical, devida a um princípio único e simples situado no próprio
coração do sistema, e desenvolvido com lógica rigorosa em todas as suas
partes. Se Alberto Magno necessitava ainda de corrigir o aristotelismo
partindo de doutrinas que lhe eram estranhas, aproveitando motivos e
sugestões da própria corrente agustiniana contra a qual polemizava, S. Tomás
encontra na própria lógica do seu aristotelismo a maneira de situar os
resultados fundamentais da tradição escolástica num sistema harmonioso e
completo no seu conjunto, preciso e
23
claro nos seus detalhes. Neste trabalho especulativo, S. Tomás é ajudado por
um talento filológico nada comum: para ele, o aristotelismo já não é, como
era para Alberto Magno, um todo confuso formado pelas doutrinas originais e
pelas diversas interpretações dos filósofos muçulmanos. Ele procura
estabelecer o significado autêntico do aristotelismo, deduzindo-o dos textos
de Aristóteles, vale-se dos textos árabes como fontes independentes, cuja
fidelidade ao Estagirita analisa criticamente. Aristóteles aparece a S. Tomás
como o termo final da investigação filosófica. Ele foi até onde a razão
humana pode ir. Para além desse ponto só existe a verdade sobrenatural da fé.
Integrar a filosofia e a fé, a obra de Aristóteles e a verdade revelada por
Deus ao homem e de que a Igreja é depositária, -é a tarefa que S. Tomás se
propõe.
A realização desta tarefa supõe duas condições fundamentais. A primeira é a
separação nítida entre a filosofia e a teologia, entre a investigação
racional, unicamente guiada e sustentada por princípios evidentes, e a
ciência que tem por pressuposto a revelação divina. Com efeito, só em virtude
desta separação nítida pode a teologia valer como completamento da
filosofia, e a filosofia pode valer como preparação e auxiliar da teologia. 
 A segunda condição é que, no próprio seio da investigação filosófica, se
faça valer como critério directivo e normativo, um princípio que exprima a 
 disparidade e a separação entre o objecto da filosofia e o objecto da
teologia, entre o ser das criaturas e o ser de Deus. Estas duas condições
estão liga-das entre si: dado que filosofia e teologia não podem ser
separadas uma da outra, se não se separarem e distinguirem os seus objectos
respectivos; nem a filosofia pode servir de preparação e auxiliar da
teologia, que é o seu verdadeiro coroamento, se não inclui e faz valer em si
mesma o princípio que
24
justifica precisamente esta sua função preparatória e subordinada: a
diversidade entre o ser criado e o ser de Deus.
Este princípio é pois, a chave da abóbada do sistema tomista. É ele que guia
S. Tomás na determinação das relações entre razão e fé e no estabelecimento
pela razão da regula fidei; no centrar a função cognoscitiva do homem à volta
da função da abstracção; na formulação das provas da existência de Deus; no
aclarar os dogmas fundamentais da fé. S. Tomás formulou este princípio na sua
primeira obra, De ente et essentia, como distinção real entre essência e
existência; mas é também expresso na fórmula da analogicidade do ser, da qual
também se utiliza muitas vezes.
Esta forma é talvez a mais adequada para exprimir o princípio da reforma
radical trazida ao aristotelismo por S. Tomás. Um é o ser de Deus, outro é o
ser das criaturas. Os dois significados da palavra ser não são nem idênticos
nem totalmente distintos; antes se correspondem proporcionalmente,
de tal
modo que o ser divino implica tudo aquilo que a causa implica em relação ao
efeito. S. Tomás exprime-o dizendo que o ser não é unívoco nem equívoco, mas
análogo, isto é, que implica proporções diversas. A proporção é neste caso
uma relação de causa e efeito: o ser divino é causa do ser finito (S. th.,
1, q. 13, a. 5). S. Tomás relaciona este princípio com a analogicidade do ser
afirmado por Aristóteles acerca das várias categorias. Mas em Aristóteles, é
inconcebível uma distinção entre o ser divino e o ser das outras coisas; o
ser aristotélico é verdadeiramente uno, o seu significado primário reside na
substância (§ 73). Para S. Tomás, o ser não é uno. O criador está separado da
criatura; as determinações finitas da criatura nada têm a ver com as
determinações infinitas de Deus, unicamente as reproduzem de modo imperfeito
e
25
demonstram a sua acção criadora. S. Tomás orientou verdadeiramente o
aristotelismo numa via oposta àquela para a qual a filosofia muçulmana o
tinha orientado. Esta conclui na necessidade e eternidade do ser, de todo o
ser, inclusivé do mundo. S. Tomás conclui na contingência do ser do mundo e
na sua dependência da criação divina.
§ 273. S. TOMáS: VIDA E OBRA
Tomás, pertencente à família dos condes de Aquino, nasceu em Roccasecca
(próximo de Cassino) em 1225 ou 1226. Iniciou a sua educação na abadia de
Montecassino. Em 1243, em Nápoles, ingressou na ordem dos dominicanos, foi
depois enviado para Paris, onde foi aluno de Alberto Magno. Em 1248, quando
Alberto Magno passou a ensinar em Colónia, S. Tomás seguiu-o e só voltou a
Paris em 1252; comentou então a Bíblia e as Sentenças. O sucesso do seu
ensino rapidamente se delineou. Mas entretanto, os mestres seculares da
Universidade de Paris tinham iniciado a luta contra os frades mendicantes,
"falsos apóstolos precursores do anticristo", e pretendiam que lhes fosse
negada a faculdade de ensinar. Contra o seu libelo, Sobre os perigos dos
últimos tempos, e contra o seu organizador, Guilherme de Santo Amor, S. Tomás
escreveu o opúsculo Contra impugnantes Dei cultum et religionem. A princípio,
pareceu que o Papa dava razão aos mestres seculares; porém, no ano seguinte,
decidiu a disputa a favor das ordens mendicantes. S. Tomás foi então nomeado,
assim como o seu amigo S. Boaventura, mestre da Universidade de Paris (1257).
O livro de Guilherme de Santo Amor foi condenado e queimado em Roma, e o seu
autor foi expulso de França pelo rei S. Luís.
26
Em 1259, S. Tomás deixou Paris e regressou a Itália, onde foi hóspede de
Urbano IV em Orvieto e Viterbo de 1261 a 1264. Em 1265 foi-lhe dado o encargo
de organizar os estudos da sua ordem em Roma. A este período de permanência
em Itália pertencem as obras principais: a Summa contra Gentiles, o segundo
Comentário às Sentenças, a 1 e a 11 partes da Summa theologiae. Em 1269
voltou para Paris, ocupando durante três anos a sua cátedra de mestre de
teologia. Novas lutas o ocuparam nesta época. Os professores seculares, com
Gerardo de Abeville e Nicolau de Lisieux, haviam retomado a luta contra as
ordens mendicantes, e ele escreve então o De perfectione vitae spiritualis
contra o tratado de Gerardo Contra adversarium perfectionis christianae; e o
Contra retrahentes a religionis ingressu, contra o De perfectione et
excellentia status clericorum de Nicolau. de Lisicux. Escreveu ainda, contra
a difusão do aristotelismo averroísta, principalmente por obra de Siger de
Brabante (§ 283), o De unitate intellectus contra averroístas. As quaestiones
quodlibetales pertencem igualmente a este período, demonstrando a actividade
polémica de S. Tomás também contra a outra corrente da Escolástica, o
agustinianismo. Em 1272, perante a insistência de Carlos da Sicília, irmão de
Luís IX de França, voltou a Itália para ensinar na Universidade de Nápoles.
Mas em Janeiro de 1274, designado por Gregório X, partia para o Concílio de
Lião. Adoeceu durante a viagem, em casa da sobrinha Francisca de Aquino. Fez-
se conduzir à abadia cistercience de Fossanova (próximo de Terracina) onde
morreu em 7 de Março de 1274.
Conservam-se três antigas biografias de S. Tomás: as de Guilherme de Tocco,
Bernardo Guidone e Pedro Calo. Da sua vida se ocupa amplamente o seu aluno
Bartolomeu de Lucca na sua Historia ecclesiastica nova (22. , 20-24, 39;
23. , 8-15); e
27
conservamos também as actas do processo de canonização de 18 de Julho de 1323
que contêm testemunhos sobre o carácter e a vida do santo. S. Tomás era alto,
moreno, gordo, um tanto calvo, e tinha o ar pacífico e doce do estudioso
sedentário. Devido ao seu carácter fechado e silencioso os condiscípulos de
Paris chamavam-lhe o boi mudo. Vir miro modo conte,-mplativus, chama-lhe
Guilherme de Tocco, e efectivamente dedicou toda a sua vida à actividade
intelectual. A própria vida mística, testemunhada nas actas do processo de
santificação, reflecte a sua investigação e as suas meditações. Os apóstolos
Pedro e Paulo vêm iluminá-lo a propósito do seu comentário sobre Isaías;
vozes sobrenaturais incitam-no e louvam-no pela sua obra especulativa; a sua
prece tende a obter de Deus a solução dos problemas que lhe agitam a mente. A
prerrogativa de S. Tomás foi ter levado toda a vida religiosa do homem para o
plano da inteligência esclarecedora.
Na data da sua morte, S. Tomás tinha somente
48 ou 49 anos; mas a sua obra era já vastíssima. As actas do processo de
canonização (contidas nos manuscritos 3112 e 3113 da Biblioteca Nacional de
Paris) dão-nos um catálogo dos seus escritos que enumera 36 obras e 25
opúsculos; mas é muito provável que este catálogo seja incompleto. Ao período
da sua primeira permanência em Paris pertencem: De ente et essentia (1252-
53), provavelmente a sua primeira obra, o Comentário à s Sentenças (1254-56),
as Quaestiones disputatae de veritate e outros escritos menores.
Mas a actividade principal é a que ele desenvolve nos anos do seu regresso a
Itália e da segunda permanência em Paris (1259-72). A este período pertencem:
o Comentário a Aristóteles, o Commentario al Liber de causis (no qual S.
Tomás pode reconhecer a tradução dos Elementos de teologia de Proclo, de que
Guilherme de Moerbecke lhe tinha
28
comunicado a tradução); o Comentário a Boécio e ao De divinis nonzinibus do
Pseudo-Dionísio; e, finalmente, as suas obras principais: a Sunima de
veritate fidei catholicae contra Gentiles (1259-64), o segundo Comentário às
Sentenças e a Summa theologiae, a sua obra-prima, cujas duas primeiras partes
foram escritas em 1265-71, enquanto a terceira, até à questão 90, foi
composta entre 1271 e 1273. A morte impediu-o de completar esta obra, cujo
Suplemento foi acrescentado por Reginaldo de Piperno.
Acrescentem-se ainda as Quaestiones disputatae e quodIffietales, que
reflectem especialmente a activIdade polémica de S. Tomás contra os
averroistas e os teólogos agustinianos. Dos numerosos opúsculos, os mais
famosos são o De unitate intellectus contra Averroístas e o De regimine
principum. O primeiro, escrito durante a sua segunda estada em Paris (por
volta de 1270) é dirigido contra os averroístas latinos (§ 283). Do segundo,
só podem ser-lhe atribuídos o livro 1 e os 4 primeiros capítulos do livro 11:
o restante é obra de Bartolomeu de Lucca.
§ 274. S. TOMÁS: RAZÃO E FÉ
O sistema tomista baseia-se na determinação rigorosa das relações entre a
razão e a revelação. Ao homem, cujo fim último é Deus, o qual excede a
compreensão da razão, não basta a investigação filosófica baseada na razão.
Mesmo aquelas verdades que a razão pode alcançar sozinha, não é dado a todos
alcançá-las, e não está liberto de erros o caminho que a elas conduz. Foi
portanto necessário que o homem fosse instruído convenientemente o com mais
certeza pela revelação
divina. Mas a revelação nem anula nem torna inútil a
razão: "a graça não elimina a natureza, antes a aperfeiçoa". A razão
29
natural subordina-se à fé, tal como no campo prático as inclinações naturais
se subordinam à caridade. É evidente que a razão não pode demonstrar o que
pertence ao âmbito da fé, porque então a fé perderia todo o mérito. Mas pode
servir a fé de três modos diferentes. Em primeiro lugar, demonstrando os
preâmbulos da fé, ou seja aquelas verdades cuja demonstração é necessária à
própria fé. Não se pode crer naquilo que Deus revelou, se não se sabe que
Deus existe. A razão natural demonstra que Deus existe, que é uno, que tem as
características e os atributos que podem inferir-se da consideração das
coisas por ele criadas. Em segundo lugar, a filosofia pode ser utilizada para
aclarar as verdades da fé mediante comparações. Em terceiro lugar, pode
rebater as objecções contra a fé, demonstrando que são falsas ou, pelo menos,
que não têm força demonstrativa (In Boet. De trinit., a. 3).
Por outro lado, porém, a razão tem a sua própria verdade. Os princípios que
lhe são intrínsecos e que são certíssimos sendo impossível pensar que são
falsos, foram infundidos pelo próprio Deus, que é o autor da natureza humana.
Estes princípios derivam portanto da Sapiência divina e fazem parte dela. A
verdade de razão nunca pode ser contrária à verdade revelada: a verdade não
pode contradizer a verdade. Quando surge uma contradição, é sinal de que não
se trata de uma verdade racional, mas de conclusões falsas ou, pelo menos,
não necessárias: a fé é a regra do recto proceder da razão (Contra Gent., 1,
7).
O princípio aristotélico segundo o qual "todo o conhecimento começa pelos
sentidos" é utilizado por S. Tomá s para limitar a capacidade e as pretensões
da razão. A razão humana pode, é certo, elevar-se até Deus, mas somente,
partindo das coisas sensíveis. "Mediante a razão natural, o homem não pode
alcançar o conhecimento de Deus senão através
30
das criaturas. As criaturas conduzem ao conhecimento de Deus, como o efeito
conduz à sua causa. Portanto, com a razão natural só se pode conhecer de Deus
aquilo que necessariamente lhe compete enquanto é o princípio de todas as
coisas existentes" (S. th., 1, q. 32, a. 1). Das duas demonstrações possíveis
à razão, a a priori ou propter quid, que parte da essência de uma causa para
descer aos seus efeitos, e a powteriori ou quia, que parte do efeito para
remontar à causa, só a segunda pode ser utilizada para o conhecimento de Deus
(Ib., 1, q. 2, a. 2). Mas essa, se leva a reconhecer com necessidade a
existência de Deus como causa primeira, nada diz acerca da essência de Deus.
Portanto, a força da razão não consegue demonstrar a Trindade e a Encarnação,
nem todos os mistérios que com esses se relacionam. Tais mistérios constituem
os verdadeiros " artigos de fé" que a razão pode dilucidar e defender, mas
não demonstrar; enquanto que a existência de Deus, e tudo o que acerca de
Deus a força da razão consegue alcançar e demonstrar, constitui os preâmbulos
da fé.
Esclarecidos assim os respectivos domínios da fé e da razão, S. Tomás passa a
esclarecer os correspondentes actos. Aceitando uma definição de Santo
Agostinho (De praedest. Sanctorum, 2), S. Tomás define o acto da fé, o crer,
como um "pensar com anuência" (cogitare cum assensu) entendendo por "pensar"
a "consideração indagadora do intelecto e o consentimento da vontade". O
pensar que é próprio da fé é um acto intelectual que continua a indagar
porque não chegou ainda à perfeição da visão certa. Ora, a anuência não
acompanha todos os actos intelectuais desta espécie: o duvidar consiste no
não nos inclinarmos nem para o sim nem para o não; o suspeitar consiste em
nos inclinarmos para um lado, mas sendo tentados ou movidos por todos os
pequenos sinais da outra parte; o opinar na
31
aderência a uma coisa, com receio que a contrária seja verdadeira. "Mas este
acto que é o crer, diz S. Tomás (S. th., 11, 2, q. 2, a. 1), inclui a adesão
firme a uma das partes; no que o crente se assemelha ao que tem ciência ou
inteligência; o seu conhecimento, todavia, não é perfeito como o do que tem
uma visão evidente; no que ele se assemelha ao que duvida, suspeita ou opina.
E assim, é próprio do crente pensar com anuência". O assentimento implícito
na fé, se é semelhante pela sua firmeza ao que é implícito na inteligência e
na ciência, é diferente pelo seu móbil: dado que não é produzido pelo
objecto, mas por uma escolha voluntária que inclina o homem para um lado e
não para o outro. Com efeito, o objecto da fé não é "visto" nem pelos
sentidos nem pela inteligência, dado que a fé, como disse S. Paulo
(Ebrei, XI, 1), é "a prova das coisas que se não vêem" (S. th., 11, 2,
q. 7, a. 4). Deste modo S. Tomás, embora -reconhecendo à fé uma certeza
superior à do saber científico, funda essa certeza na vontade, reservando
somente à ciência a
certeza objectiva.
§ 275. S. TOMÁS: TEORIA DO CONHECIMENTO
A teoria tomista do conhecimento é decalcada sobre a aristotélica. A sua
característica mais original é o relevo que nela toma o carácter abstractivo
do processo do conhecimento e, consequentemente, a
teoria da abstracção. Comentando a passagem do De anima (111, 8, 431b) onde
se afirma que "a alma é, de certo modo, todas as coisas" (porque as conhece
todas), diz S. Tomás: "Se a alma é todas as coisas, é necessário que ela ou
seja as próprias coisas, sensíveis ou inteligíveis-no sentido em que
Empédocles afirmou que nó s conhecemos a terra com a terra, a água com a
água, etc. -ou então
32
S. TOMAS DE AQUINO
seja as espécies das próprias coisas. Porém a alma não é as coisas, porque,
por exemplo, na alma não está a pedra mas a espécie da pedra". Ora a espécie
(eidos) é a forma da coisa. Por conseguinte, "o intelecto é uma potência
receptora de todas as formas inteligíveis e o sentido é uma potência
receptora de todas as formas sensíveis". Deste modo, o princípio geral do
conhecimento é "cognitum est in cognoscente per modum cognoscentis" (o
objecto conhecido está no sujeito cognoscente em conformidade com a natureza
do sujeito cognoscente).
O processo através do qual o sujeito cognoscente recebe o objecto é a
abstracção.
O intelecto humano ocupa uma posição intermediária entre os sentidos
corpóreos, que conhecem a forma unida à matéria das coisas particulares, e os
intelectos angélicos, que conhecem a forma separada da matéria. Isto é uma
virtude da alma que é forma do corpo: portanto, pode conhecer as formas das
coisas só enquanto estão unidas aos corpos e não (como queria Platão)
enquanto estão separadas deles. Mas no acto de conhecer, abstrai-as dos
corpos; o conhecer é portanto um abstrair a forma da matéria individual, e,
assim, extrair o universal do particular, a espécie inteligível das imagens
singulares (fan-
pTIUNIMIRO = C414 Mas podemos considerar
a cor dum fruto, prescindindo do fruto, sem que por tal afirmemos que exista
separada do fruto; também podemos conhecer as formas ou espécies universais
do homem, do cavalo, da pedra, prescindindo dos princípios individuais a que
estão unidas; mas sem pretender que elas existam separadas destes. Portanto,
a abstracção não falsifica a realidade. Ela não afirma a separação real da
forma em relação à matéria individual: permite unicamente a consideração
separada da forma; e tal consideração é o conhecimento intelectual humano. É
de notar que esta consideração separa a forma não da matéria
33
em geral mas da matéria individual; pois, de contrário, não poderíamos
entender que o homem, a pedra ou o cavalo também são constituídos por
matéria. "A matéria é dúplice, diz S. Tomás (S. th., [ q. 85, a. 1), isto é,
comum e signata ou individual;
comum, como a carne e os ossos, signata como
esta carne e estes ossos. O intelecto abstrai a espécie da coisa natural da
matéria sensível individual, mas não da matéria sensível comum. Por exemplo,
abstrai a espécie do homem desta carne e destes ossos que não pertencem à
natureza da espécie mas fazem parte do indivíduo, e das quais, portanto,
podemos prescindir. Mas a espécie do homem não pode ser abstraída pelo
intelecto, da carne e dos ossos em geral".
Donde resulta que, para S. Tomás, o principium individuationis, o que
determina a natureza própria de cada indivíduo e portanto o que o diferencia
dos outros, não é a matéria comum (e de facto todos os homens têm carne e
ossos, não se diferenciando portanto nesta medida); mas sim a matéria signata
ou, como ele também diz (De ente et essentia, 2), a "matéria considerada
sobre determinadas dimensões". Assim, um homem é distinto de outro não porque
está unido a um determinado corpo, distinto do dos outros homens por
dimensões, isto é, pela sua situação no espaço e no tempo. Resulta ainda
desta doutrina que o universal não subsiste fora das coisas individuais, mas
somente nelas é real (Contra Gent.,
1, 65). De modo que ele é in re (como forma das coisas) e post rem (no
intelecto); ante rem, só na mente divina, como princípio ou modelo (ideia)
das coisas criadas Un Sent., 11, dist. 111, q. 2, a. 2).
O universal é objecto próprio e directo do intelecto. Pelo seu próprio
funcionamento, o intelecto humano não pode conhecer directamente as coisas
individuais. Com efeito, ele procede abstraindo da matéria individual a
espécie inteligível; e a espécie,
34
que é o produto de tal abstracção, é o próprio universal. A coisa individual
não pode portanto ser conhecida pelo intelecto senão indirectamente, por uma
espécie de reflexão. Dado que o intelecto abstrai o universal das imagens
particulares e nada pode entender senão voltando-se para as próprias imagens
(convertendo se ad phantasmata), ele também só indirectamente conhece as
coisas particulares, às quais as imagens pertencem (S. th., 1, q. 86, a. 1).
O intelecto que abstrai as formas da matéria individual é o intelecto agente.
O intelecto humano é um intelecto finito, que, ao contrário do intelecto
angélico, não conhece em acto todos os inteligíveis, mas tem somente a
potência (ou possibilidade) de os conhecer; é, portanto, um intelecto
possível. Mas como "nada passa da potência ao acto senão por obra do que já
está em acto", a possibilidade de conhecer, próprio do nosso intelecto,
torna-se conhecimento efectivo por acção dum intelecto agente, o qual faz com
que os inteligíveis passem a acto, abstraindo-os das condições materiais, e
actuando (segundo a comparação aristotélica) como a luz sobre as cores Ub.,
1, q. 79, especialmente a. 3). Contra Averróis e seus seguidores, S. Tomás
afirma explicitamente a unidade deste intelecto com a alma humana. Se o
intelecto agente estivesse separado do homem, não seria o homem a entender,
mas sim o pretenso intelecto separado a entender o homem e as imagens que
estão nele: o intelecto deve, portanto, fazer parte essencial da alma humana
(Ib., 1, q. 76, a. 1; Contra Gerd., 11, 76). Por isso também o intelecto
activo não é um só, mas há tantos intelectos activos quantas as almas
humanas: contra a tese da unicidade do intelecto, a qual era sustentada pelos
averroístas, é dirigido o opúsculo famoso de S. Tomás, De unitate intellectus
contra Averroístas (§ 284).
O procedimento abstractivo do intelecto garante a verdade do conhecimento
intelectual, porque
35
garante que a espécie existente no intelecto é a própria forma da coisa.
Retomando a definição dada por Isaac (§ 245) no seu Liber de definitionibus,
S. Tomás define a verdade como "a adequação do intelecto e da coisa" (S. th.,
1, q. 16, a. 2; Contra Gent. 1, 59; De ver., q. 1, a 1). As coisas
naturais, das quais o nosso intelecto recebe o saber, são a sua medida: já
que ele possui a verdade só enquanto se conforma às coisas. Estas são, por
sua vez, medidas pelo intelecto divino, no qual subsistem as suas formas do
mesmo modo que as formas das coisas artificiais subsistem no intelecto do
artífice. "0 intelecto divino é medidor, mas não medido; * coisa natural é
medidora (em relação ao homem) * medida (em relação a Deus); o nosso
intelecto é medido, e não mede as coisas naturais mas somente as artificiais"
(De ver., q. 1, a. 1). Portanto, Deus é a verdade suprema, enquanto o -seu
entender é a medida do todo que existe e de qualquer outro entender (S.
th., 1, q. 16, a. 5). Por isso, a ciência que ele tem das coisas é a causa
delas, do mesmo modo que a ciência que o artífice tem a coisa artificial é
causa dessa coisa. Em Deus, o ser e o entender coincidem: entender as coisas
significa, em Deus, comunicar-lhes o ser, desde que ao entender se una a
vontade criadora (Ib., I, q. 14, a. 9).
Isto estabelece uma diferença radical entre o intelecto divino e o
humano, entre a ciência divina e a humana. Deus entende todas as coisas
mediante a simples inteligência da própria coisa: com um só acto Deus
capta (e, querendo, cria) a essência total e completa da coisa, ou
antes, de todas as coisas na sua totalidade e plenitude. Pelo contrário, o
nosso intelecto não consegue com um só acto o conhecimento perfeito de uma
coisa; mas primeiro apreende-lhe um qualquer, dos seus elementos, por
exemplo, a essência, que é o objecto primeiro e próprio do intelecto, e
depois passa a entender a
36
propriedade, os acidentes e todas as disposições ou comportamentos que são
próprios da coisa. Daqui deriva que o conhecimento intelectual humano se
desdobra em actos sucessivos, segundo uma sequência temporal; actos de
composição ou de divisão, isto é, afirmações ou negações, que exprimem
mediante proposições aquilo que o intelecto vai sucessivamente conhecendo da
própria coisa. O proceder do intelecto, de uma composição ou
divisão a outras sucessivas composições ou dlivisões, isto é, de uma
proposição a outra, é o raciocínio; e a ciência que assim se vai constituindo
por sucessivos e conexos actos de afirmação ou de negação é a ciência
discursiva. O conhecimento humano é, portanto, conhecimento racional, e a
ciência humana, ciência discursiva: características que não se podem atribuir
ao conhecimento e à ciência de Deus, o qual entende tudo e simultaneamente
em si próprio, mediante um acto simples e
perfeito de inteligência (lb., 1, q. 14, a. 7, 8, 14; q. 85, a. 5; Contra
Gent., 1, 57-58). Isto estabelece também uma diferença radical entro a
autoconsciência divina e a humana. Deus não só se conhece a si próprio, mas
também a todas as coisas, através da sua essência que é acto puro e perfeito,
e portanto, perfeitamente inteligível por si mesmo. O anjo, cuja essência é
acto, mas não acto puro porque é essência criada, conhece-se a si mesmo por
essência, mas não conhece as outras coisas senão através das suas
semelhanças. O intelecto humano, pelo contrário, não é acto mas sim potência;
só passa a acto através das espécies abstraídas das coisas sensíveis em
virtude do intelecto agente: não pode, portanto, conhecer-se senão no acto de
fazer esta abstracção. Este conhecimento pode verificar-se de dois modos:
singularmente, como quando
37
Sócrates ou Platão têm consciência (percipit) de ter uma alma íntelectiva
pelo facto de terem consciência de entender; geralmente, como quando
consideramos a natureza da mente humana com base na actividade do intelecto.
Este segundo conhecimento depende da luz que o nosso intelecto recebe da
verdade divina, na qual residem as razões de todas as coisas, e exige uma
investigação diligente o subtil, enquanto que o primeiro é imediato (S. th.,
1, q. 87, a. 1).
A
possibilidade do erro está no carácter raciocinador do conhecimento humano.
O sentido não se engana acerca do objecto que lhe é próprio (por exemplo, a
vista acerca das cores), a menos que haja uma perturbação acidental do órgão.
O intelecto também não pode enganar-se acerca do objecto que lhe é próprio.
Ora o objecto próprio do intelecto é a essência ou quididade da coisa; não se
engana, portanto, acerca da essência, mas pode enganar-se acerca das
particularidades que acompanham a essência e que ele consegue conhecer
compondo e dividindo (ou seja) mediante o juízo) ou através do raciocínio. O
intelecto pode também incorrer em erro acerca da essência das coisas
compostas, ao formular a definição que deve resultar de diferentes elementos:
isto ocorre quando refere a uma coisa a definição (em si mesma verdadeira) de
uma outra coisa, por exemplo, a do círculo ao triângulo; ou quando reúne
elementos opostos, numa definição que por isso resulta ser falsa, por
exemplo, se define o homem como "animal racional alado". No que se refere às
coisas simples, em cuja definição não intervém nenhuma composição, o
intelecto não pode enganar-se; só pode ser imperfeito, permanecendo na
ignorância da sua definição Ub., 1, q, 85, a. 6).
38
§ 276. S. TOMÁS: METAFíSICA
No De ente et asseiaia, que é a sua primeira obra e como que o seu Discurso do
método, S. Tomás estabelece o princípio fundamental que, reformando a
metafísica aristotélica, a adapta às exigências do dogma cristão: a distinção
real entre essência e existência. Este princípio, de que mostrámos a
progressiva afirmação na filosofia medieval, é aceite por S. Tomás na forma
que recebera de Avicena 1. Mas este princípio servira a Avicena para fixar na
forma más rigorosa a necessidade do ser, de todo o ser, inclusivé do ser
finito. Com efeito, a diferença entre o ser cuja essência implica a
existência (Deus) e o ser cuja essência não implica a existência (o ser
finito) consiste, segundo Avicena, em que o primeiro é necessário por si, o
segundo é necessário por outro, e, portanto, deriva desse outro (do ser
necessário) quanto à sua existência actual. Na interpretação de Avicena, o
princípio exclui a criação, implicando somente a derivação causal e
necessária das coisas finitas em relação a Deus. Na doutrina tomista, pelo
contrário, tem a função de levar a exigência da criação à pró pria
constituição das coisas finitas, e é por isso o princípio reformador que S.
Tomás utiliza para adaptar plenamente o aristotelismo à tarefa da
interpretação dogmática.
O primeiro resultado deste principio na doutrina tomista é de separar a
distinção entre potência e acto da distinção entre matéria e forma, conver-
1 Met., 11, tract. V, 1. De Avicena o principio passou a Maimónides, que o
modificou, reduzindo a existência a um simples eMente da essência (Guide des
égarés, tradução Munk, p. 230-233). S Tomás nega que a existência seja um
acidente (Quodl., q. 12, a. 5) e retoma o princípio tal como o havia
enunciado Avicena.
39
tendo-a numa distinção à parte. Para Aristóteles, potência e acto
identificam-se, respectivamente, com matéria e forma: não há potência que
não seja matéria, nem acto que não seja forma, e reciprocamente. S. Tomás
considera que não só a matéria e a forma, mas também a essência e a
existência estão entre sina relação de potência e acto. A essência, que ele
também denomina quididade ou natureza, compreende não só a forma mas também a
matéria das coisas compostas; dado que compreende tudo o que é expresso na
definição da coisa. Por exemplo, a essência do homem, que é definido como
"animal racional", compreende não só a "racionalidade." (forma) mas também a
"animalidade" (matéria). A essência, assim entendida, distingue-se do ser ou
existência das próprias coisas; podemos entender, por exemplo, o que (quid) é
o homem ou a fénix (essência), sem saber se o homem ou a fénix existem (esse)
(De e. et ess., 3). Portanto, substâncias como o homem e a fénix estão
compostas por essência (matéria e forma) e existência, separáveis entre si:
nelas, a essência e a existência estão entre si como a potência e o acto; a
essência está em potência em relação à existência, a existência é o acto da
essência; e a união da essência com a existência, isto é, a passagem de
potência a acto, requer a intervenção criadora de Deus. Ora, nas substâncias
que são forma pura sem matéria (os anjos, como inteligências puras) falta
evidentemente a composição de matéria e forma, mas não falta a de essência e
existência: também neles, com efeito, a essência é somente potência em
relação à existência e também a sua existência requer, por isso, o acto
criador de Deus. Só em Deus a essência é a própria existência, porque Deus é
por essência e, portanto, por definição; portanto, em Deus não há uma
essência que seja potência; ele é acto puro (S. th., 1, q. 50, a. 2). Por
conse-
40
,guinte, a essência pode, estar na substância, de três modos diferentes. 1.o
Na última substância divina a essência é idêntica à existência: por isso Deus
é necessário e eterno. 2.o Nas substâncias angélicas, privadas de matéria, a
existência é diferente da essência: o seu ser não é, portanto, absoluto, mas
sim criado e, finito. 3. Nas substâncias compostas de matéria e forma o ser
é-lhes acrescentado do exterior e é, portanto, criado e finito. Estas últimas
substâncias, dado que incluem matéria que é o princípio de individuação,
multiplicam-se, em vários indivíduos: o que não acontece nas substâncias
angélicas, as quais carecem de matéria.
Com esta reforma radical da metafísica aristotélica, S. Tomás faz com que a
própria constituição das substâncias finitas exija a criação divina.
Aristóteles, identificando com a forma a existência em acto, estabelece que
onde há forma há realidade em acto, e que por isso a forma é por si mesma
indestrutível e incriável, portanto, necessária e eterna como Deus. Garante
assim a eternidade da estrutura formal do universo (géneros, espécies,
formas e, duma maneira geral, substâncias). Do seu universo é excluída a
criação, assim como toda a intervenção activa de Deus na constituição, das
coisas. E precisamente por isto, o seu sistema parecia (e era)
irredutivelmente contrário ao cristianismo, e pouco adequado para lhe
exprimir as verdades fundamentais. A reforma tomista altera radicalmente a
metafísica aristotélica, transformando-a de estudo do ser necessário em
estudo do ser criado.
Por consequência, o termo "ser" aplicado à criatura tem um significado não
idêntico, mas só semelhante ou correspondente ao ser de Deus. É este o
princípio da analogicidade do ser que S. Tomás extrai de Aristóteles, mas ao
qual dá um valor completamente diferente. Evidentemente que Aristóteles havia
distinguido vários significados do ser,
41
mas só em relação às várias categorias, e os tinha referido todos ao único
significado fundamental que é o de substância (ousia), o ser enquanto ser, o
objecto da metafísica (§ 72), Por isso, não distinguia, nem podia distinguir,
entre o ser de Deus e o ser das outras coisas; por exemplo, Deus e a mente
são substâncias precisamente no mesmo sentido (Et. Nic., 1, 4, 1096 a). Por
sua vez, S. Tomás, em virtude da distinção real entre essência e existência,
distinguiria o ser das criaturas, separável da essência e, portanto criado,
do ser de Deus, idêntico à essência e, portanto, necessário, Estes dois
significados do ser não são unívocos, isto é, idênticos, mas também não são
equívocos, isto é, simplesmente diferentes; -são análogos, isto é,
semelhantes, porém de proporções diferentes. Só Deus é ser por essência, as
criaturas têm o ser por participação; as criaturas enquanto são, são
semelhantes a Deus, que é o primeiro princípio universal de todo o
ser, mas
Deus não é semelhante a elas: esta relação é a analogia (S. th., 1, q. 4, a.
3). A relação analógica estende-se, a todos os predicados que se atribuem ao
mesmo tempo a Deus e às criaturas; porque é evidente que na Causa agente
devem subsistir de modo indivisível e simples aqueles caracteres que nos
efeitos são divididos e múltiplos; do mesmo modo que o sol na unidade da sua
força produz no mundo terreno formas múltiplas e diferentes. Por exemplo, o
termo "sapiente" referido ao homem significa uma perfeição distinta da
essência e da existência, do homem, enquanto que referido a Deus
significa uma perfeição que é idêntica à sua essência e ao seu ser. Por
isso, referido ao homem, faz compreender aquilo que quer significar;
referido a Deus, deixa fora de si a coisa simplificada, a qual transcende os
limites do entendimento humano (S, th., 1, q 13, a. 5). A analogicidade do
ser torna evidente-
42
mente impossível uma única ciência do ser, como o era a filosofia primeira
de Aristóteles, A ciência que trata das substâncias criadas e serve de
princípios evidentes à razão humana é a metafísica. Mas a ciência que, trata
do Ser necessário, a teologia, tem uma certeza superior e utiliza princípios
que procedem directamente da revelação divina; é por isso superior em
dignidade a todas as outras ciências (inclusivé a metafísica) que lhe são
subordinadas e servas (1b., 1, q. 1, a. 5).
Dado que o ser de todas as coisas (excepto Deus) é sempre um ser criado, a
criação, se é verdade de fé como início das coisas no tempo, é além disso
verdade demonstrada como produção das coisas do nada e como derivação, de
Deus, de todo o ser. De facto, e tal como vimos, Deus é o único ser que é tal
pela sua própria essência, isto é, que existe necessariamente e por si mesmo:
as outras coisas obtêm dele o seu ser, por participação; tal como o ferro se
torna ardente pelo fogo. Também a matéria-prima é criada. E todas as coisas
do mundo formam uma hierarquia ordenada segundo a sua maior ou menor
participação no ser de Deus. Deus é o termo e o fim supremo desta hierarquia.
Nele residem as ideias, ou seja, as formas exemplares das coisas criadas,
formas que, porém, não estão separadas da própria sapiência divina: logo,
deve dizer-se que Deus é o único exemplar de tudo (lb., 1, q. 44, aa. 1, 2,
4, 3).
A separação entre o ser criado e o ser eterno de Deus, própria de uma tal
metafísica, permite que S. Tomás salve a absoluta transcendência de Deus em
relação ao mundo e torne impossível qualquer forma de panteísmo que queira
identificar de algum modo o ser de Deus com o ser do mundo. S. Tomás alude
explicitamente, para as refutar, as duas formas de panteísmo aparecidas nos
finais do século XII, A prímeira é a de AmaIríco de Bene
43
(§ 219) o qual considera Deus como "o princípio formal de todas as coisas",
ou seja, a essência ou natureza de todos os seres criados. A segunda é a de
David de Dinant (§ 219) que identificou Deus com a matéria-prima. Contra esta
forma de panteísmo, assim como contra a de origem estóica (mas que S. Tomás
conhecia por meio duma tese de Terêncio Varrão citada por Santo Agostinho, De
civ. Dei, VII, 6) segundo a qual Deus é a alma do mundo, S. Tomás opõe o
princípio de que Deus não pode ser de nenhum modo um elemento componente das
coisas do mundo. Como causa eficiente, Deus não se identifica nem com a forma
nem com a matéria das coisas de que é causa, o seu ser e a sua acção são
absolutamente primeiros, isto é, transcendentes, em relação a tais coisas (S.
th., 1, q. 3, a. 8).
§ 277. S. TOMÁS: AS PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS
A distinção metodológica feita por Aristóteles (An. post., 1, 2) entre o que
é primeiro "por si" ou "por natureza" e o que é primeiro "para nós", foi
seguida e sempre respeitada por S. Tomás. Ora se Deus é primeiro na ordem do
ser, não o é na ordem dos conhecimentos humanos, os quais começam pelos
sentidos. É portanto necessário uma demonstração da existência de Deus; e
deve partir daquilo que é primeiro para nós, isto é, dos efeitos sensíveis, e
ser a posteriori (demonstra-lio quia). Recusa, portanto, explicitamente a
prova ontológica de Santo Anselmo: ainda que se entenda Deus como "aquilo
sobre o qual não se pode pensar nada de maior", não se segue que ele exista
na realidade (in rerum natura) e não só no intelecto.
44
S. Tomás enumera cinco vias para passar dos efeitos sensíveis até à
existência de Deus, Estas vias já expostas na Summa contra Gentiles (1, 12,
13) encontram a sua formulação clássica na Summa theologiae (1, q. 2, a. 3.
A primeira via é a prova cosmológica, extraída da Física (VIII, 1) e da
Metafísica (XII, 7) de Aristóteles. Parte do princípio de que "tudo o que se
move é movido por outro". Ora se o que o move também por sua vez se
move, é preciso que seja movido por outra coisa; e esta por outra. Mas é
impossível continuar até ao infinito; porque então não haveria um primeiro
motor nem os outros se moveriam, como, por exemplo, o pau não se move se não
é movido pela mão. Por conseguinte, é necessário chegar a um primeiro motor
que não seja movido por nenhum outro; e todos consideram esse motor como
sendo Deus. Este argumento tinha sido -retomado pela primeira vez na
escolástica latina por Abelardo de Bath (§ 215); depois, insistiram nele
Maimónides e Alberto Magno.
A segunda via é a prova causal. Na série das causas eficientes não podemos
remontar até ao infinito, porque então não haveria uma causa primeira e,
portanto, nem uma causa última nem causas intermediárias: deve, por
conseguinte, haver uma causa eficiente primeira, que é Deus. Esta prova,
extraída de Aristóteles (Met., 11, 2) tinha recebido de Avicena uma nova
exposição.
A terceira via é extraída da relação entre possível e necessário. As coisas
possíveis existem somente em virtude das coisas necessárias: mas estas têm a
causa da sua necessidade ou em si ou em outro. As que têm a causa noutro,
remetem a esse outro, e dado que não é possível continuar até ao infinito, é
preciso chegar a algo que seja necessário por si e seja causa da necessidade
daquilo que é necessá-
45
rio por outro; e isso é Deus. Esta prova é extraída de Avicena.
A quarta via é a dos graus. Encontra-se nas coisas mais ou menos de verdade,
de bem e de todas as outras perfeições: por conseguinte, também haverá o
máximo grau de tais perfeições e será ele a causa dos graus menores, como o
fogo, que é maximamente quente, é a causa de todas as coisas quentes. Ora a
causa do ser, da bondade e de todas as perfeições é Deus. Esta prova, de
origem platónica, é extraída de Aristóteles (Met., li, 1).
A quinta via é a que se infere do governo das coisas. As coisas naturais,
privadas de inteligência, estão todavia dirigidas para um fim; e isto não
seria possível se não fossem governadas por um Ser dotado de Inteligência,
como a flecha não pode dirigir-se ao alvo senão por obra do arqueiro. Por
conseguinte, há um Ser inteligente que ordena todas as coisas naturais para
um fim; e este Ser é Deus. Nesta prova que é a mais antiga e venerável de
todas, a exposição tomista segue, provavelmente, S. João Damasceno e
Averróis.
O primeiro destes argumentos, o cosmológico, tinha sido utilizado por
Aristóteles para demonstrar não só a existência de Deus como primeiro motor,
mas a existência de tantos intelectos motores quantas são as órbitas dos céus
(§ 78). Para S. Tomás, pelo contrário, o primeiro motor é um só e é Deus; e
só para Deus é válida a prova. Quanto ao movimento dos céus, parece, com
efeito, supor uma substância inteligente que o produza, porque, ao contrário
dos outros movimentos naturais, não tende para um só ponto, no qual deva
cessar; mas é muito possível que se -ia produzido directamente por
Deus. De
qualquer modo, se quisermos admitir, como fizeram vários filósofos e santos,
inteligências angélicas como motores dos céus, temos de 
46
notar que não estão unidas aos céus como as almas dos animais e das plantas
estão unidas aos corpos (que são formas dos próprios corpos): mas estão
unidas aos céus só com o fim de os mover, para lhes transmitir o impulso (per
contactum virtutis [S. th., I, q. 70, a. 3]). S. Tomás chega por isso à
existência das inteligências angélicas, separadas dos corpos, não através da
consideração do movimento dos céus (dado que pode ser directamente produzido
por Deus), mas através da consideração da perfeição do mundo, a qual requer a
existência de algumas criaturas incorpóreas. Efectivamente, estas criaturas
são, no mundo, as mais semelhantes a Deus, que é puro espírito, e através
delas o mundo, que é efeito de Deus, se assimila maximamente à sua Causa
(lb., 1, q. 50, a. 1).
§ 278. S. TOMÁS: TEOLOGIA
Os dogmas fundamentais do cristianismo, a trindade, a encarnação, a criação
são, segundo S. Tomás, artigos de fé, não susceptíveis de tratamento
demonstrativo; perante eles, a tarefa da razão limita-se, primeiro, a
esclarecê-los e depois a resolver as objecções. Os esclarecimentos de S.
Tomás têm uma tal lucidez e elegincia dialéctica, que constituem uma das
partes mais importantes de todo o seu sistema.
Acerca do dogma da Trindade, a dificuldade consiste em entender de que modo
a unidade da substância divina se concilia com a trindade das pessoas. Para
mostrar como se conciliam, S. Tomás serve-se do conceito de relação. A
relação, por um lado, constitui as pessoas divinas na sua distinção; por
outro lado, identifica-se com a única essência divina. Com efeito, as pessoas
divinas são constituídas pelas suas relações de origem: o Pai
47
pela paternidade, isto é, pela relação com o Filho; o Filho pela filiação ou
geração, isto é, pela relação com o Pai; o Espírito Santo pelo amor, isto é,
pela relação recíproca de Pai e Filho. Ora estas relações em Deus não sã o
acidentais (nada pode haver de acidental em Deus) mas reais; subsistem
realmente na essência divina. Por conseguinte, a própria essência divina na
sua unidade, implicando a relação, implica a diversidade das pessoas (S. th.,
1, q. 27-32, e em especial q. 29, a. 4 c). Segundo S. Tomás, basta este
esclarecimento para mostrar que "o que a fé revela não é impossível". Isto é
tudo quanto deve fazer-se nestes assuntos; nos quais toda a tentativa de
demonstração é mais nociva que meritória, porque induz os incrédulos a
suporem que os cristãos se baseiam, para crer, em razões carentes de valor
necessário (1b., 1, q.
32, a. 1).
Quanto à encarnação a dificuldade consiste em poder entender a presença, na
única pessoa de Cristo, de duas naturezas, a divina e a humana. A Igreja
condenara já, no século V, duas interpretações opostas deste dogma,
interpretação às quais S. Tomás reduz todas as outras para as refutar. A
heresia de Êutiques (§ 154), insistindo sobre a unidade da pessoa de Cristo,
reduzia as duas naturezas a uma só: a divina. A heresia de Nestórío (§ 154),
pelo contrário, insistindo sobre a dualidade de naturezas, admitia em Cristo
duas pessoas simultaneamente coexistentes, sendo a pessoa humana como que
instrumento ou revestimento da divina. A distinção real entre essência e
existência nas criaturas, e a sua unidade em Deus, fornecem a S. Tomás a
chave da interpretação. A essência ou natureza divina identifica-se com o ser
de Deus; Portanto, Cristo, que tem uma natureza divina, é Deus, subsiste como
Deus, isto é, como pessoa divina; é, portanto, uma só pessoa, a divina. Por
43
outro lado, dado que a natureza humana é separável da existência, ele pode
perfeitamente assumir a natureza humana (que é alma racional e corpo) sem ser
uma pessoa humana (Contra Gent., IV, 49). Assim se compreende como a natureza
humana pôde ser assumida por Cristo, que, revestindo-se dela, a enobreceu,
elevou e tomou novamente digna da graça divina (S. th., 111, q. 2, a. 5-,6).
Quanto à criação, para S. Tomás, ela só é artigo de fé no sentido de início
no tempo, não o sendo no sentido de produção a partir do nada. Pode admitir-
se, diz ele, que o mundo tenha sido produzido do nada e, por conseguinte,
falar de criação sem admitir que ela venha depois do nada; assim fez Avicena
na sua Metafísica (IX, 4). Pode dizer-se que se houvesse um pé impresso no pó
da eternidade, ninguém duvidaria que a pegada fora produzida pelo pé; mas com
isso não se admitiria um início no tempo da própria pegada (Santo Agostinho,
De civ. Dei, XI, 4). Do mesmo modo, os argumentos que se podem aduzir em
favor de um início do mundo no tempo não levam a conclusões necessárias. Por
outro lado, também não concluem necessariamente os que pretendem demonstrar
a eternidade do mundo. Dentre estes últimos, o mais famoso dos
aristotélicos, era o que baseava na eternidade da matéria-prima, Se o mundo
começou a existir com a criação, quer dizer que antes da criação podia
existir, isto é, que era uma possibilidade. Mas toda a possibilidade é
matéria, que depois passa a acto ao receber a forma. Antes da criação,
existia portanto a matéria do mundo. Porém, não pode haver matéria sem forma;
e matéria e forma, em conjunto, constituem o mundo; por conseguinte,
admitindo a criação no tempo, o mundo existiria antes de começar a existir, o
que é impossível. A este argumento responde S. Tomás que antes da criação o
mundo era possível só
49
porque Deus podia criá-lo e porque a sua criação não era impossível; não se
pode daqui deduzir a existência de uma matéria. Aos outros argumentos também
tirados de Aristóteles, segundo os quais os céus são formados por uma
substância incriável e incorruptível e que, portanto, são eternos, responde
S. Tomás que a incriabilidade e a incorruptibilidade dos céus e, portanto, do
mundo, se entende per modum naturalem, isto é, em relação aos processos
naturais de formação das coisas, e não em relação à criação. De modo que os
argumentos que tendem a demonstrar a eternidade do mundo também não têm valor
necessário. A conclusão é que se não pode demonstrar nem o início no tempo
nem a eternidade do mundo; e isto deixa livre o caminho para crer na criação
no tempo: id credere maxíme expedit (S. th., 1, q. 46, a.
§ 279. S. TOMÁS: PSICOLOGIA
Segundo S. Tomás, a natureza do homem é constituída por alma e corpo. O homem
não é só alma; o corpo faz também parte da sua essência, visto que ele além
de entender, sente, e o sentir não é uma operação da alma sozinha. A alma é
(segundo a doutrina de Aristóteles) o acto do corpo: é a forma, o princípio
vital que faz com que o homem conheça e se mova: como tal é substância, isto
é, subsiste por sua conta. S Tomás rejeita a doutrina do neoplatonismo
judaico-muçulmano aceite pelos franciscanos, segundo a qual a alma é composta
por matéria e forma. Não há uma matéria da alma: se houvesse, estaria fora
da alma que é pura forma. Nem o intelecto poderia conhecer a forma pura das
coisas, se tivesse em si matéria: nesse caso, conheceria as coisas na sua
materiali-
50
dade, isto é, na sua individualidade, e, o universal escapar-se-lhe-ia (S.
th., 1, q. 45, a. 4).
No homem só subsiste a forma intelectiva da alma, a qual desempenha também as
funções sensitiva e vegetativa. Duma maneira: geral, a forma superior pode
sempre desempenhar as funções das formas inferiores; e assim, nos animais, a
alma sensitiva desempenha também a função vegetativa, enquanto que nas
plantas só subsiste a alma vegetativa. S. Tomás rejeita deste modo o
princípio estabelecido por Avicena, e seguido pelo agustinianismo, segundo o
qual num composto permanecem as formas dos vários elementos que o compõem; e
que,

Teste o Premium para desbloquear

Aproveite todos os benefícios por 3 dias sem pagar! 😉
Já tem cadastro?

Outros materiais

Materiais relacionados

Perguntas relacionadas

Perguntas Recentes