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História da filosofia IX - Nicola Abbagnano

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HistÓria da Filosofia
Volume nove
Nicola A bbagnano
Digitalização e Arranjos:
Ângelo Miguel Abrantes
(quarta-feira, 1 de Janeiro de 2003)
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
VOLUME IX
TRADUÇÃO DE:
ARMANDO DA SILVA CARVALHO
CAPA DE: J. C.
COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO
TIPOGRAFIA NUNES
R. José Falcão, 57-Porto
EDITORIAL PRESENÇA . Lisboa t97o
TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILDSOFIA
Copyright by NICOLA ABBAGNANO
Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA, LDA. R. Augusto Gil, 2 cIE. Lisboa
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FICHTE
§ 546. FICHTE: A VIDA
Johann Gottlieb Fichte nasceu em Rammenau a 19 de Maio, de uma família paupérrima. Concluiu os estudos de teologia em Jena e em Leipzig, lutando com a miséria. Mais tarde, tornou-se perceptor em diversas casas particulares, tanto na Alemanha como em Zurich, onde conheceu Johanna Rahn que depois foi sua mulher (1793). Em 1790, Fichte regressou a Leipzig e nesta cidade tomou contacto pela primeira vez, com a filosofia de Kant que irá decidir da sua formação filosófica. "Vivo num mundo novo, escrevia entusiasmado numa carta, depois que li a Crítica da Razão Prática. Os princípios que julgava inconfundíveis foram desmentidos; as coisas em que não acreditava passaram a ser demonstradas; por exemplo, o conceito de liberdade
absoluta, de dever, etc., foram demonstrados e por isso me sinto muito mais contente. É inconcebível o respeito pela humanidade, a força, que existe neste sistema". Um ano depois, em 1791, Fichte dirige-se a Koenigsberg para dar a ler a Kant o manuscrito da sua primeira obra, Tentativa de uma crítica de toda a revelação. O trabalho foi escrito inteiramente dentro do espírito do kantismo, de, tal modo que, quando surgiu, anónimo, em 1792, passou por ser um trabalho de Kant. Então Kant intervém para revelar o verdadeiro nome do autor. Mas ainda em 1791, em Danzig, Fichte, que procurava defender as medidas do governo prussiano que limitavam a liberdade de imprensa e instituíam a censura, teve a surpresa de ver recusado o imprimatur à edição da sua obra: e meses mais tarde foi também proibida a publicação da segunda parte de A religião dentro dos limites da Razão de Kant. Indignado, Fichte passou imediatamente da defesa do regime paternalista à defesa da liberdade; e publicava, anónima, uma Reivindicação da liberdade de pensamento (1793).
Em 1794, Fichte é nomeado professor em Jena
e aí permanece até 1799. Pertencem a este período as obras a que se deve a importância histórica da especulação de Fichte (Doutrina da Ciência, Doutrina da moral, Doutrina do direito). Em 1799, desencadeou-se a chamada "polémica sobre o ateísmo" que iria provocar o afastamento de Fichte da cátedra. Na sequência de um artigo publicado, no "Jornal filosófico" de Jena, Sobre o fundamento da nossa
crença no governo divino do mundo (1798), que
identificava Deus com a ordem moral do mundo, Fichte foi acusado de ateísmo num libelo anónimo.
O governo prussiano proíbe o jornal e encarrega o governo de Weimar de punir Fichte e o director do Jornal Forberg, com a ameaça de que, se não o
g
fizesse, proibiria os seus súbditos de frequentar a Universidade de Jena. O governo de Weimar pretendia que o Senado académico formulasse uma enérgica censura, pelo menos formal, contra o director do Jornal. Mas Fichte, tendo conhecimento deste projecto, escrevia a 22 de Março uma carta inflamada
* um membro do governo, advertindo-o de que se
* censura fosse formulada ele se retiraria da Universidade acrescentando ainda que em tal caso também outros professores abandonariam com ele a Universidade. Depois desta carta o governo de Jena, com o parecer favorável de Goethe (que, segundo se
diz, teria afirmado: "quando um astro desaparece, um outro nasci convidou Fichte a pedir a sua
demissão, não obstante o filósofo ter lançado entretanto um Apelo ao público e não obstante uma petição dos estudantes a seu favor. Os outros professores continuaram a ocupar os seus lugares.
Saindo de Jena, Fichte dirigiu-se a Berlim onde estabeleceu relações com os românticos, Friedrich Schlegel, Schleiermacher, Tieck. Designado professor em Erlangen, em 1805, retirou-se para Koenigsberg no momento 
da invasão napoleónica e daí passou a Berlim onde pronunciou, apesar da cidade se encontrar ocupada pelas tropas francesas, os Discursos à nação alemã (1807-8) nos quais apresentava, como meio de a nação germânica sair da servidão política, uma nova forma de educação e afirmava o primado do povo alemão. Em seguida, Fichte foi professor em Berlim e reitor daquela Universidade. Morreu em 29 de Fevereiro de 1814 com uma febre infecciosa que a mulher lhe transmitiu e que esta tinha contraído quando tratava dos soldados feridos.
A característica da personalidade de Fichte é constituída pela força com que ele sente a exigência das acções morais: O próprio Fichte diz de si: "Tenho apenas uma única paixão, uma só necessidade, um só sentimento cheio de mira mesmo: agir para além de mim. Quanto mais ajo, mais me sinto feliz". O primado da razão prática transforma-se em Fichte no primado da acção moral; e a justificar a acção moral como superação incessante do limite criado ao mundo sensível, se dirige toda a
primeira fase do seu pensamento. Na segunda fase, toda a exigência da acção moral se substitui pela fé religiosa; e a doutrina da ciência acaba por servir de justificação da fé. Mas de uma ponta à outra da sua especulação e na própria fractura doutrinal que esta especulação apresenta nas suas fases principais, Fichte surge como uma personalidade ético-religiosa, não isenta de um certo fanatismo. "Fui designado, afirma em Werke, VI, p. 333, para dar testemunho da verdade... Sou um padre da verdade; estou ao seu serviço, obriguei-me a fazer tudo, a arriscar tudo, a sofrer tudo por ela". Mas nessa
aventura, Fichte não admite de forma alguma aquela humildade e aquela consciência dos limites humanos que, segundo Kant, são indispensáveis à vida moral. Daí o ter sido censurado (por exemplo, por Hegel,
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Carta a Schelling de 3 de Jan. de 1807) de camuflar com palavras de um ideal moral incorruptível, os
próprios impulsos egoístas e o desmesurado orgulho; e esta censura não deixa de ser merecida. O certo é que o apelo ao ideal moral dificilmente consegue dissimular nele a deficiência de uma verdadeira compreensão humana e moral: como acontece quando, por ocasião de uma grave doença da mulher que ele havia abandonado com o filho em Berlim durante a invasão francesa, lhe aponta o facto de ela não ter cumprido o dever moral de se precaver contra a doença (Cai-ta a Johanna de 18 de Dez. 1806 em Briefwechsel, p. 477).
§ 547. FICHTE: ESCRITOS
A vocação filosófica de Fichte surgiu, como já foi dito, do contacto com os textos de Kant. Mas Fichte pouco seguiu os ensinamentos do mestre. Kant pretendera construir uma filosofia do finito; Fichte quer construir uma filosofia, do infinito: do infinito que existe no homem, que é também o
próprio homem. A influência kantiana pode discernir-se apenas no primeiro período da sua actividade literária: período a que pertencem a Procura de uma crítica de todas as revelações (1793), a Reivindicação da liberdade de pensamento aos Príncipes da Europa que até agora têm oprimido (1792), o Contributo para a rectificação do juízo do público sobre a revolução francesa (1793), e poucos escritos menores. A Crítica de todas as revelações foi escrita inteiramente dentro do espírito kantiano. A 
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revelação é possível, mas não é demonstrável, e por conseguinte só pode ser objecto de uma fé, que no
entanto não deve faltar a ninguém.
Mas a separação do kantismo é já nítida na
Recensão ao Enesidemo, de Schulze, que Fichte publicou em 1794. Nela afirma que a coisa em si é "uma fantasia, um sonho, um não pensamento", e
estabelece os princípios da sua doutrina da ciência. A esta recensão segue-se um longo ensaio Sobre o conceito da doutrina da ciência ou da chamada
filosofia (1794) e a obra fundamental deste período Fundamentos de toda a doutrina da ciência, que Fichte publicou como "manuscrito para os seus auditores" no mesmo ano de 1794. Seguiram-se: Esboço sobre as propriedades da doutrina da ciência em relação às faculdades teoréticas (1795); Primeira introdução à doutrina da ciência (1797); Tentativa de uma nova
representação da doutrina da ciência (1797); que são exposições e reelaborações mais breves. Ao mesmo tempo Fichte estendia os seus princípios ao
domínio da ética, do direito e da política; e publicava, em 1796, os Fundamentos do direito natural segundo os princípios da doutrina da ciência; em 1798 o Sistema da doutrina moral segundo os princípios da doutrina da ciência; em 1800 o Estado comercial fechado; e alguns escritos morais menores: Sobre a
dignidade dos homens (1794), Lições sobre a missão do sábio (1794).
Entretanto Fichte ia alterando lentamente os pontos fundamentais da sua filosofia, o que se verificava através da exposição da doutrina da ciência que dava nos cursos universitários de 1801, 1804,
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1806, 1812, 1813; nos seus cursos sobre Os factos da consciência (1810-11, 1813) e nas suas reelaborações do Sistema da doutrina do direito (1812) e Sistema da doutrina moral (1812). Estes cursos e lições mantiveram-se inéditos e foram publicados pelo filho (1. G. Fichte) depois da sua morte. No entanto, a orientação que os mesmos apresentavam é semelhante à das exposições populares da sua filosofia, que Fichte publicou ao mesmo tempo que as escreveu: A missão dos homens (1800), Introdução à vida feliz (1806), Características fundamentais da época actual (1806).
§ 548. FICHTE: A INFINITUDE DO EU
Kant tinha Reconhecido no eu penso o princípio supremo de todo o conhecimento. Mas o eu penso é um acto de autodeterminação existencial, que supõe já dada a existência; é, por conseguinte, actividade ("espontaneidade" afirma Kant), mas actividade limitada e o seu limite é constituído pela intuição sensível. Na interpretação dada ao kantismo por Reinhold surge o problema da origem da matéria sensível. SchuIze, Maimon e Beck demonstraram ser impossível a sua derivação da coisa em si e afirmaram ser quimérica a própria coisa em si enquanto exterior à consciência e independente dela. Maimon e Beck tinham já tentado atribuir à actividade subjectiva a produção do material sensível e resolver no eu o mundo total do conhecimento.
Fichte desenvolve pela primeira vez as Consequências destas premissas. Se o eu é o único 
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princípio, não só formal como também material do conhecer, se à sua actividade se deve não só o pensamento da realidade objectiva, mas a própria realidade objectiva no seu conteúdo material, é evidente que o eu é não apenas finito mas também infinito. Se é finito enquanto a ele se opõe uma realidade exterior, é infinito enquanto é a única ordem dessa mesma realidade. A sua infinita actividade é o único princípio que pode explicar a realidade exterior, o eu finito, e a contraposição entre um e outra.
Tal é o ponto de partida de Fichte, o filósofo da infinitude do eu, da sua absoluta actividade e espontaneidade, e por conseguinte, da sua absoluta liberdade. A dedução de Kant é uma dedução transcendental, destinada a justificar a validade das condições subjectivas do conhecimento. A dedução de Fichte é uma dedução metafísica, uma vez que faz derivar do eu quer o sujeito quer o objecto do conhecer. A dedução de Kant dá origem a uma
possibilidade transcendental (assim se explica o eu penso) que implica sempre uma relação entre o eu e o objecto fenoménico. A dedução de Fichte parte de um princípio absoluto que situa ou cria o sujeito
e o objecto fenoménico por virtude de uma actividade criadora, de uma intuição intelectual. E assim a
intuição intelectual, excluída por Kant como incompatível com os limites constitutivos do intelecto humano, surge reconhecida por Fichte como princípio supremo do saber. A Doutrina da ciência tem como
objectivo deduzir deste princípio todo o mundo do saber e de o deduzir necessariamente, de forma a
criar o sistema único e completo do mesmo. No
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entanto não deduz o próprio princípio da dedução, que é o eu. E o problema com o qual choca é o que se refere à natureza do eu. As sucessivas elaborações da Doutrina da ciência diferenciam-se substancialmente na relação que estabelecem entre o infInito e o homem. Na primeira Doutrina da ciência (1794) e nas obras que com ela se relacionam, o infinito é o eu, a autoconsciência, o saber reflexo ou filosófico ou, numa palavra, o homem na pureza e no grau absoluto da sua essência. Nas obras sucessivas, o infinito é o Ser, o Absoluto é Deus e o eu, a autoconsciência, o saber tornado imagens, cópias ou
manifestações do mesmo.
Estas duas fases do pensamento de Fichte constituem as duas alternativas fundamentais que a filosofia romântica apresenta em todo o século XIX. Hegel sintetizou-as na sua doutrina; mas o mais frequente é contraporem-se polemicamente na obra de um único filósofo ou na obra de vários filósofos. Fora da filosofia alemã, é a segunda alternativa que prevalece no desenvolvimento sofrido pelo pensamento romântico em Oitocentos.
Mas quer uma quer a outra destas alternativas são dominadas pelo espírito da necessidade: tanto o Eu ou o Absoluto como as suas manifestações ou aparências, são necessários. Fichte exprimiu este principio numa passagem que vale a pena recordar: "O que quer que seja que existe, existe por absoluta necessidade; e existe necessariamente na precisa forma em que existe. É impossível não existir ou existir de modo diverso daquele que é" (Grundzuge des gegenwartigens Zeitalters, 9).
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§ 549. FICHTE: A DOUTRINA DA CIÊNCIA E OS SEUS TRÊS PRINCIPIOS
O conceito da Doutrina da ciência é o de uma ciência da ciência, de uma ciência que evidencie o princípio em que se baseia a validade de toda a ciência e que por sua vez se baseie, quanto à sua validade, sobre o mesmo princípio. E isso deve dar origem a um princípio que actua em toda a ciência e a condiciona, mas que na Doutrina da ciência surge como objecto de uma livre reflexão e encarado como único princípio de que deve ser deduzido todo o saber. "Nós não somos legisladores, somos historiadores do espírito humano", diz Fichte (Ueber den Begriff der Wiss., Werke, 1, p. 77).
O princípio da doutrina da ciência é o eu ou autoconsciência. Na Segunda introdução à doutrina da ciência (1797) Fichte introduz de forma mais clara este princípio. Daquilo que tem valor objectivo nós dizemos que é; o fundamento do ser é portanto a inteligência, desde que não se trate do ser em si, de que fala o dogmatismo, mas apenas do ser para nós, do ser que tem para nós valor objectivo. O que baseia e o que é baseado, são duas coisas distintas.
O fundamento do ser não é o próprio ser, mas a actividade pela qual o ser é baseado; e esta actividade não pode ter outra relação que não seja consigo própria e não pode ser senão uma actividade que regressa a si própria. Trata-se de uma actividade originária que é no seu conjunto o seu objecto imediato, e que se intui a si própria. É portanto uma auto-intuição ou autoconsciência. O ser para nós
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(o objecto) só é possível sob a condição da consciência (do sujeito) e esta apenas sob a condição {Li autoconsciência. A consciência é o fundamento d.) ser, a autoconsciência é o fundamento da consciênc@1@ (Werke, 1, 1, p. 463).
A primeira Doutrina da ciência é a tentativa sistemática de deduzir do princípio da autoconsciência a vida teorética e prática do homem.. Fichte começa por estabelecer os três princípios fundamentais desta dedução. O primeiro princípio '@ obtido da lei da identidade, própria da lógica tradicional. A proposição A é A é certíssima, apesar de nada nos dizer sobre a existência de qualquercoisa. Isso significa apenas que um conceito é idêntico a si próprio ("o triângulo é triângulo") e exprime uma relação absolutamente necessária entre o sujeito e o predicado. Ora esta relação é função
do eu, pois, é o eu que julga sobre tal. Mas o eu não pode estabelecer essa relação, se não se implicar a si próprio. ou seja, se não se colocar como existente. A existência do eu tem por conseguinte a mesma necessidade da relação puramente lógica A = A. Isto quer dizer que o eu não pode afirmar nada sem afirmar em primeiro lugar a própria existência; e que autoconsciência é o princípio de todo o conhecimento. Daqui extrai Fichte a explicação da palavra eu.
enquanto designa o sujeito absoluto: "Aquilo eu, ser (essência) consiste apenas em colocar-se como existente, é o eu como absoluto sujeito" (Wiss., 1,
1; Werke, 1, p. 97). O eu não é mais que pura actividade autoprodutora ou autocriadora; e isso é, identificado por Fichte com a Substância de Espinosa.
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a quem Fichte apenas censurava o ter colcado a consciência pura para lá da consciência empírica, apesar de aquela ser colocada e reconhecida própriamente nesta última (1b., p. 100-101). O eu de Fichte não é senão uma actividade criadora e infinita, reconhecida como intrínseca à própria consciência finita do homem.
O segundo princípio é o da oposição. O eu não só se coloca a si próprio como também opõe a si próprio algo que, enquanto lhe é oposto, é não-eu (objecto, mundo, natureza). O não-eu é colocado pelo próprio eu e existe por conseguinte no eu. Mas isso não absorve totalmente o eu, mas só em parte, isto é, limita-o. Uma parte do eu é destruída pelo não-eu; mas nunca o eu na sua totalidade. Assim surge o terceiro princípio: o eu opõe, no eu, ao eu divisível, um não-eu divisível.
Estes três princípios delineiam os pontos fundamentais da doutrina de Fichte, uma vez que estabelecem: U-A existência de um Eu infinito, actividade absolutamente livre e criadora. 2.'-A existência de um eu finito (porque limitado pelo não-eu), a existência de um sujeito empírico (o homem como inteligência ou razão). 3.o A realidade de um não-eu, de um objecto (mundo ou natureza) que se opõe ao eu finito, mas que é integrado no Eu infinito, pelo qual é colocado. Ora o Eu infinito não é uma coisa diferente do eu finito: é a sua substância, a sua actividade última, a sua natureza absoluta. "O eu de cada um é ele próprio a única substância suprema", diz Fiohte (lb., I, § 3; p. 122) referindo-se à doutrina de Espinosa. Reconhece-se e afirma-se 
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no sentimento de uma plena e absoluta liberdade e autonomia do sujeito humano.
Na Primeira introdução à doutrina da ciência (1797), Fichte estabelece a diferença entre o dogmatismo pelo qual a coisa precede e condiciona o eu, * o críticismo pelo qual o eu precede e condiciona * coisa, como uma diferença de inclinação e de
interesse que determina a diferença entre dois graus de humanidade. Existem homens que não se elevaram ainda ao sentimento da própria liberdade absoluta e por isso se descobrem apenas nas coisas, determinando a própria autoconsciência pelo reflexo dos objectos externos, como se se tratasse de um espelho; estes são dogmáticos. Mas aquele que, pelo contrário, toma conhecimento de si como sendo independente do que existe fora dele, não tem necessidade da fé nas coisas porque a fé em si próprio é imediata. Este é o idealista"A escolha de uma filosofia, observa a este propósito Fichte, depende do que se é como homem, pois um sistema filosófico não é uma coisa inerte que se pode pegar ou largar sempre que se quer, é algo animado com o espírito do homem que o possui. Um carácter fraco de natureza ou enfraquecido pelo que é superficial, pelo luxo refinado e pela escravidão espiritual, jamais poderá atingir o idealismo".
Por outro lado, no entanto, o não-eu não é uma mera suposição. O objecto é uma realidade, ainda que seja tal em virtude do eu. <A doutrina da ciência, afirma Fichte (Wisse., 111, § 5; p. 279-280) é realista. Mostra que não se pode, de forma alguma, explicar a consciência das naturezas finitas
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(dos homens, por ex.) se não se admitir uma força independente das mesmas, e a elas completamente oposta e da qual dependem no que se refere à sua existência empírica". Mas o homem não é apenas existência empírica, é também sujeito absoluto: como tal, reflecte-se sobre a realidade do não-eu e reconhece-a como dependente do eu (uma vez que ela não é senão sentida ou conhecida) e assim como o próprio produto. Em oposição ao eu empírico, O objecto (o não-eu) não está em oposição ao Eu absoluto que o integra em si próprio. O espirito finito deve necessariamente colocar fora de si algo de absoluto (uma coisa em si) e no entanto por outro lado deve reconhecer que este algo existe apenas por ele, que é um nómeno necessário. "O princípio último de toda a consciência é uma reciprocidade de acção do eu consigo próprio, através de um não-eu, que deve considerar sob diversos aspectos. Este é o círculo do qual o espírito finito não pode sair e não pode querer sair sem negar a razão e cair no próprio aniquilamento" Ub., p. 282). Sobre esta duplicidade de situações do eu, que enquanto infinito tudo integra e é "a origem de toda a realidade" e enquanto finito se acha perante o não-eu e em reciprocidade de acção com ele, se baseia todo o processo com que Fichte pretende explicar (deduzir, segundo ele) a totalidade dos aspectos do homem e do seu mundo.
Pela acção recíproca do eu e do não-eu nasce tanto o conhecimento (a representação) como a acção moral. O realismo dogmático sustenta que a representação se produz pela acção de uma coisa externa
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sobre o eu; e admite assim que a coisa seja independente do eu e anterior a ele. Fichte admite também que a representação é o produto de uma actividade do não-eu mas uma vez que o não-eu é por seu lado colocado ou produzido pelo eu, a actividade que exerce deriva, em última análise, do eu, e é uma actividade reflexa que do não-eu ressalta para o eu. A representação, e com ela o conhecimento, nasce de uma acção recíproca que é um transporte de actividade entre o eu e o não-eu (1b., 11, § 4; p.
171). Neste sentido a representação é, segundo Fichte, "a síntese dos opostos através de uma determinação recíproca": um conceito que se mantém fundamental na especulação romântica e que foi assumido por Hegel como determinação do carácter próprio da dialéctica.
Na representação, é o próprio eu que se coloca como determinado por um não-eu; esta posição é uma passividade ou limitação inerente à actividade do não-eu. Com efeito, o eu é determinado (por conseguinte finito e passivo perante o não-eu), precisamente enquanto finito: a sua infinitude consiste em determinar-se, em estabelecer um limite, e em
proceder incessantemente para lá desse limite. "Sem infinitude não existe limitação; sem limitação não existe infinitude; infinitude e limitação estão unificadas num único e mesmo termo sintético. Se a actividade do eu não procedesse para o infinito, o eu não poderia limitar esta sua actividade; não existiriam limites, como devem existir. A actividade do eu consiste num colocar-se ilimitadamente; e contra tal surge uma
resistência. Se cedesse a esta resistência, então aquela
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actividade que ultrapassa os limites da resistência seria aniquilada e destruída e o eu não poderia resistir. Mas isso deve certamente colocar-se para além desta linha" (Ib., 11, § 4; p. 214). Esta actividade através da qual o eu é ao mesmo tempo finito e infinito,
porque coloca um objecto e ao mesmo tempo procede paira lá do mesmo na ~o de um outro objecto, ou seja na direcção de uma limitação que de novo
irá superar, e assim por diante, é a imaginação produtiva pela qual nascem as coisas do mundo. "Toda a realidade - o que para nós significa o que significa num sistema de filosofia transcendental é produzida apenas pela imaginação" (Ib., p. 227).
O produto flutuante da imaginação surge fixado pelo intelecto e assim é verdadeiramente intuído como real: por isso surge ao intelecto como qualquer coisa de dado. "Daqui, anota Fichte, deriva a nossa
firme convicção da realidade das coisas fora de nós
e sem qualquer intervenção nossa: com
efeito, nós não somos conscientes de podermos produzi-las. Se na reflexão comum nós fôssemos conscientes, como certamente podemos sê-lo na reflexão filosófica, de que as coisas exteriores surgem no - intelecto apenas par intermédio da imaginação, então pretenderíamos explicar tudo como ilusão" (1b., p. 234).
Se a actividade do não-eu constitui a representação, isto é, o conhecimento em geral, a actividade do eu sobre o não-eu constitui a acção moral. A acção moral é, com efeito, a causalidade do eu, que é própria da sua infinitude. Enquanto o eu opõe a si um não-eu, está a limitar-se, e torna-se finito e
sujeito à acção do não-eu que nele produz a 
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representação. Como tal, o eu é inteligência. Mas enquanto considerado na sua infinitude, nada existe fora do eu e tudo é colocado por ele. Neste sentído a
sua actividade é infinita: não coloca nenhum objecto, e regressa a si próprio (Ib., 111, § 5; p. 256). Ora esta actividade livre e limitada do eu deve ela própria reclamar a actividade finita e limitada que coloca o
objecto. Pois se a não reclamasse, eliminá-la-ia do todo: com efeito eliminaria todo o limite e toda a passividade, e não existiria no eu qualquer oposição do não-eu. Mas isto só acontece com a consciência de Deus (que é impensável) não com a do homem (1b., p. 253). Por conseguinte, a própria infinitude do eu deve implicar a exigência, da posição do não-eu, de um objecto que o limite. O eu, para se realizar na suainfinitude, deve descobrir-se na resistência que o objecto lhe opõe e dar lugar assim a um esforço. Mas o esforço que tende a reconduzir o objecto (a natureza) à pura actividade do eu, ao triunfo deste e à afirmação do poder da razão, é a actividade moral, a razão prática de Kant.
Daí ser de natureza moral a última raiz da actividade absoluta do eu. O não-eu, o objecto, a natureza, são colocados pelo eu enquanto condição necessária da actividade absoluta do eu: ao passo que o eu não se pode colocar a si próprio na sua infinita actividade, senão vencendo-se e superando-se, colocando-se continuamente para lá do limite que lhe é imposto. O eu deve actuar assim em virtude da sua infinita actividade que é lei para si própria. Este dever é o que Kant chamou o imperativo categórico: é a exigência de que o eu se determine
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(, 3 forma absolutamente independente de qualquer (,bjecto, como actividade livre. O objecto do qual o
eu se deve tornar independente, antes de ser objecto exterior, é um elemento inconsciente do eu, impulso, inclinação, sentimento, pelo qual o eu é impelido para fora de si pelo reconhecimento do objecto que
condiciona.
§ 550. FICHTE: INFINITO E FINITO: O PANTEISMO
Fichte reconheceu na exigência moral o verdadeiro significado da infinitude do eu. O eu é infinito enquanto se torna tal, desvinculando-se dos próprios objectos que lhe são levantados; porque sem
eles a sua liberdade infinita não seria possível. Fichte sente-se profeta da vida moral e sustenta que conseguiu basear de modo mais sólido o imperativo categórico descoberto por Kant. Na realidade, essência da vida moral perdeu para ele um carácter específico: identifica-se com o pensamento. A actividade moral a actividade pura do eu; a acção de que Fichte @_da é, como ele explicitamente adverte (lb., 111, §
1, p. 238), uma acção ideal, que não se distingue da especulação. No entanto, Fichte nesta primeira fase do seu pensamento quis permanecer no terreno da finitude, do homem. As suas advertências a este respeito são repetidas e explícitas. A concepção kantiana de que a vida moral apenas vale para um ser racional i finito, está sempre presente na sua mente e inspira-lhe toda a prática (a 111 parte) da Doutrina da ciência.
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"Para a divindade, diz Fichte (1b., HI, § 5, p. 253), ou seja, para uma consciência na qual tudo fosse posto pela simples actividade do eu (mas o conceito de uma tal ciência é para nós impensável), a nossa
doutrina da ciência não teria qualquer conteúdo porque numa tal consciência não existiria outro poder além do eu; mas isso teria mesmo para Deus a sua legitimidade formal porque a sua própria forma é a
própria forma da razão pura". Por outras palavras, a Deus não poderia pertencer a oposição do eu e do não-eu que implica a finitude do eu. "Em relação a
um eu a que nada se opusesse, diz ainda Fichte, Ub., p. 254), que é a ideia impensável da divindade
uma tal contradição não teria lugar". E ainda: "Suponha-se, para esclarecimento, que se deva explicar a autoconsciência de Deus: isto só será possível com o pressuposto de que Deus reflecte o seu próprio ser. Mas porque em Deus aquilo sobre que se reflecte seria o todo no uno e o uno no todo, e aquilo que reflecte seria igualmente o todo no uno e o uno no todo, assim em Deus e por Deus não se poderá distinguir aquilo sobre que se reflecte e o que reflecte, a consciência e o objecto da mesma, e a autoconsciência de Deus não se explicaria como de resto permanecerá eternamente inexplicável e
inconcebível para qualquer razão finita, para qualquer razão que esteja ligada à lei da determinação daquilo sobre que se reflecte" (1b., p. 285). Por outro lado, o próprio esforço em que se resolve a actividade moral do eu não tem nada a ver com uma causalidade absoluta. "No próprio conceito do esforço está compreendida a finitude, porque aquilo
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que não sofre contraste não se pode chamar esforço. Se o eu fosse mais que um esforçar-se, se tivesse uma infinita causalidade, não seria um eu, não se poderia colocar a si próprio e seria por conseguinte o nada" Qb., p. 270). Mas não obstante estes reconhecimentos explícitos, Fichte pretendeu reconduzir a finitude à infinitude: no eu descobriu uma actividade infinita que se limita por uma exigência interna que coloca e cria o seu limite. De tal modo que a finitude autêntica, sobre a qual Kant tinha baseado todos os poderes do homem, é para Fichte algo que se
esquiva. Os ulteriores desenvolvimentos da Doutrina da ciência são disso uma demonstração.
É evidente que, apesar de se manter agarrado à posição expressa na Doutrina da ciência de 94, Fichte não podia ter da divindade senão um conceito panteísta-espinosiano. As referências a Espinosa são nesta obra frequentes e tinham sido já previsíveis no decorrer da exposição precedente. O Eu infinito é a substância do eu finito. Segundo este ponto de vista, a religião não podia ser entendida a não ser no sentido que Fichte esclarece no ensaio que deu origem à polémica sobre o ateísmo, Sobre o fundamento da nossa fé no governo divino do mundo (1798), e num outro escrito, quase contemporâneo, intitulado Reminiscências, respostas, perguntas (1799). Neste último (deixado incompleto) Fichte, depois de ter afirmado que, para explicar um
objecto qualquer, é necessário colocar-se fora desse objecto já que "viver significa não filosofar e filosofar não vivem, reconhece que a dedução da religião consiste em demonstrar que a mesma pertence neces
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sariamente ao eu, que a fé no governo dmno do mundo faz parte da natureza absoluta do eu. Esta demonstração é dada num outro escrito. A doutrina da ciência demonstrou como o eu faz da liberdade o seu objectivo absoluto. Mas a liberdade, que é o
objectivo final do eu, deve ser possível no mundo; o mundo deve possuir portanto qualquer ordenamento moral que a torne possível e esse mesmo ordemento moral é o objectivo final de toda a acção livre. A certeza da inseparabifidade entre o fim moral do eu e a ordem do mundo é a fé na ordem moral. Mas a ordem moral do mundo é o próprio Deus: a verdadeira religião, aquela que vive no sentimento moral, revela-se na acção moral. "O ordena,mento vivo e operante é o próprio Deus; não temos necessidade de um outro Deus e não podemos falar de outro Deus". Se Deus surge como distinto da ordem moral e considerado como sua causa, passa
* ser uma substância particular, um ser igual a nós,
* quem atribuímos personalidade e consciência e que se ~sforma, por conseguinte, em nós próprios. "O conceito de Deus como
de uma particular substância é impossível e contraditório; seja-me concedido dizer isto claramente e cortar pela raiz esta questiúncula escolástica, para encarar assim a verdadeira religião no sentido da jubilosa acção mGral".
§ 551. FICHTE: A DOUTRINA MORAL
No Sistema da doutrina moral de 1798 Fichte alarga os princípios da ciência ao mundo moral. A obra é verdadoiramente uma reelaboração de toda
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a Doutrina da ciência de 94 e revela com esta uma estreUa unidade de inspiração. O princípio supremo e o fim supremo da actividade moral é actividade infinita do eu puro. Quando a actividade não surge já considerada como finita (nesse caso contrapõe.se-lhe um objecto e é actividade cognoscitiva), mas como infinita, toma o nome de vontade. Diz Fichte: "Descobri-me a mim próprio enquanto eu, apenas como ser volitivo" (Sittenlehre, § 1; Werke, IV, p. 18). Mas decobrir-se como vontade significa também descobrir-se impelido para os objectos por tendências que, ao nível do eu empírico, são tendências sensíveis; e enquanto surgem independentes da livre vontade estas tendências são "natureza"; daí o princípio "Eu sou natureza e esta minha natureza é uma
tendência" (1b., § 8, p. 110). Como natureza, a tondência é um termo do mecanismo natural; e como tendência o próprio homem é um produto deste mecanismo e insere-se na sua totalidade como parte dela. "A natureza em geral é um todo orgânico e
surge colocada como tal" (1b., p. 115). Ora a tendência sensível dirige-se sempre a um objecto natural que, como tal, é sempre espacial: por conseguinte o próprio eu, que pela tendência atinge a natureza, deve assumir a forma de um corpo articulado, capaz de ser movido e utiliizado como instrumento da vontade.
Com isto, Fichte pretendeu ter deduzido a natureza sensível e corpórea do eu finito. Mas súbitamente, do plano do eu finito e corpóreo, regressa ao plano do Eu absoluto. O eu não só tem tendências pelas quais alcanç a necessariamente as coisas naturais,
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mas também é consciência de tais tendências: por isso, observa Fichte, se seguisse também sem excepções a tendência natural, mas a seguisse com consciência, seria livre igualmente porque "o fundamento
último do seu agir não seria a tendência natural mas a sua consciência da natureza" (1b., § 10, p. 135). Parece por conseguinte que a liberdade consiste para o eu, não no destruir da cadeia da causalidade natural (cadeia que em última análise é também um
produto do eu), mas apenas em tornar-se consciente, mediante a reflexão, da necessidade dessa cadeia.
O homem tende assim a tornar-se independente dela, mas uma vez que a sua dependência é infinita, esta independência só se pode realizar no infinito. "O eu não pode nunca tornar-se independente com risco de se deixar de ser eu; o objecto final do ser racional encontra-se necessariamente no infinito e é tal que nunca pode ser alcançado, ainda que pretendamos aproximarmo-nos dele segundo a nossa natureza espiritual" (1b., § 12, p. 149). O princípio da doutrina moral exprime-se do seguinte modo: "Cumpre de qualquer modo o teu destino (Bestimmung)"; e o destino, ou seja o objectivo ou a missão a que o homem se deve dedicar, é em qualquer caso determinado pelas circunstâncias em que cada indivíduo venha a encontrar-se e revela-se a cada indivíduo com uma certeza imediata, ou seja como "um
sentimento de certeza" que já não engana porque "está presente só quando existe pleno acordo entre
o nosso eu empírico e o Eu puro; e este último é o nosso único e verdadeiro ser e o único ser
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possível e a única verdade possível" (1b., § 14, p. 169).
Segundo este ponto de vista, o mal consiste em recusar este sentimento e a consciência reflexa que o faz nascer. O mal radical é por conseguinte a
inércia em que o homem subjaz como ser natural e pela qual se adapta permanecendo num grau embrionário de reflexão. Da inércia ou preguiça nasce a objecção, que é a preguiça em afirmar a própria liberdade; e por fim nasce a não-sinceridade (insinceridade) pela qual o homem se engana a si próprio. No entanto, Fichte não explica de que modo o eu
empírico, cuja essência, natureza orgânica e a própria situação no mundo são determinadas pelo Eu puro, pode não querer adequar-se ao Eu puro e recusar-se à reflexão libertadora. Mas Fichte insiste na coincidência da determinação e da liberdade. "Todas as acções livres, afirma, estão predestinadas pela eternidade, através da razão e independentemente de qualquer tempo; todo o indivíduo livre, relativamente à percepção, é colocado em harmonia com estas acções... Mas a sucessão e o conteúdo temporal não são predestinados, pela razão suficiente de que o tempo não é nada de eterno e de puro mas
é simplesmente uma forma de intuição dos seres
finitos; não são por conseguinte predestinados o
tempo no qual algo há-de acontecer, nem os actores.
Assim se resolve, por si, desde que se preste um pouco de atenção, a pergunta que parecia insolúvel: a predeterminação e a liberdade estão completamente unificadas" (1b., § 18, p. 228).
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É muito significativo verificar no final da caracterização da doutrina moral de Helite, como a mesma
foi estabelecida e construída sem qualquer referência às relações existentes entre os homens. A actividade moral para Fichte esgota-se na relação entre o eu empírico e o Eu absoluto, na relação que o Eu absoluto tem consigo próprio atrás do eu empírico e da natureza que lhe é própria. Apenas na última ,parte da Doutrina moral quando desce a determinar o sistema dos deveres particulares, Fichte se
preocupa em "deduzir a existência dos outros eus e em estabelecer o princípio das suas relações. E é preciso afirmar que nunca como neste caso a dedução de Fichte nos surge tão fraca e tão pouco convincente. O dever único e fundamental é para o eu o de realizar a própria e absoluta actividade ou autodeterminação. Mas uma vez que esta autodeterminação é apenas obra do eu, não existe nada antes do que tenha lançado mão a tal obra, a não ser como um conceito que contém uma exortação à autodeterminação. Só a necessidade de explicar esta exortação nos leva a admitir a existência dos outros. "Não posso conceber esta exortação à auto-actividade, afirma Fichte (1b., p. 220-21), sem a
atribuir a um ser real exterior a mim, que quer comunicar-me um conceito, e que é portanto o da
acção requerida; a um ser portanto que é capaz do conceito de um conceito; ora um tal ser é razoável, é um ser que se coloca a si próprio como eu, portanto é um eu. Esta a única razão suficiente para concluir sobre a existência de uma causa razoável exterior a nós". Por que é que este
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apelo deve ser atribuído a um real exterior, ainda que na própria interioridade do eu empírico, o eu
absoluto urge com toda a força da sua absoluta exigência de realização, isso não nos diz Fichte. De qualquer modo, segundo Fichte, bastaria para explicar essa exortação a existência de um só outro indivíduo apenas; que exista, pode ser, se bem que não se possa demonstrar que assim deva ser. Todavia, ainda que admitida a sua simples cumplicidade, deriva daí imediatamente um limite para a actividade do eu: a sua tendência para a independência não pode negar a liberdade dos outros eu. O reconhecimento destes limites originários da liberdade fazem do eu um indivíduo particular. É por conseguinte necessário que o eu seja em geral um indivíduo, porque esta é uma das condições da sua liberdade; mas que este indivíduo seja determinado no
espaço e no tempo, é coisa puramente casual, que tem apenas um significado empírico. É necessário pois que os diversos eu se limitem através do reconhecimento recíproco da sua liberdade; é portanto necessário que esta liberdade se realize na reciprocidade das suas acções e que por isso sejam predeterminadas todas as acções livres. A reciprocidade de acções através das quais se realiza a liberdade dos indivíduos e na qual cada indivíduo tem o dever de entrar, chama-se igreja, isto é: comunidade ética, e o conjunto de princípios
comuns nos quais os
indivíduos inspiram as suas convicções, é o símbolo da igreja (1b., p. 236). O acordo sobre o modo em que os homens devem poder agir entre si no mundo sensível, o acordo sobre os seus direitos comuns, é o
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contrato estadual e a comunidade que estabelece o
contrato chama-se estado. Ao lado da igreja e do estado Fichte admite a comunidade dos sábios, caracterizada pela liberdade que existe nela de cada um reivi"car de frente, a si próprio e à própria consciência a, de tudo pôr em dúvida e de investigar livremente. Nesta comunidade restrita, que nenhum estado pode excluir sem negar o próprio fim, deve ser admitida a absoluta liberdade de comunicação de pensamento que o estado e a igreja legitimamente limitam.
A ideia de uma missão social dos sábios, do seu dever de proteger e de solicitar o progresso da humanidade, foi sempre cara a Fichte. Em 1794, em Jena, pronunciou as suas Cinco Lições sobre a
missão do sábio. Em 1805, em Erlangen, pronunciou outras Lições sobre a essência do sábio e as suas manifestações no campo da liberdade. Em 1811, em Berlim, também pronunciou Cinco Lições sobre a missão do sábio. E a mesma ideia existe nos Discursos à nação alemã e em vários discursos académicos. O tom geral destes escritos que se torna cada vez mais religioso e teologizante, ressente-se do avanço que Fichte tinha alcançado na sua doutrina da ciência. A ideia central continua no entanto a ser a mesma: o único e verdadeiro fim da sociedade humana é a realização da perfeição moral, através de um progresso infinito. Sobre a via deste progresso, a sociedade pode ser guiada e iluminada pelos sábios. Nas lições de. 1794 (e precisamente na quinta), Fichte explica a condenação que Rousseau tinha pronunciado sobre as artes e as ciências
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com ilusão e ressentimento porque as mesmas
até então não tinham servido para o aperfeiçoamento moral a que estão intrinsecamente destinadas; e contrapõe ao pessimismo de Rousseau a fé na possibilidade progressiva do género humano e na eficácia da acção dos sábios.
§ 552. FICHTE: DIREITO E POLITICA
A dedução da existência do eu individual que surge apenas no fim da Doutrina moral, aparece no início dos Fundamentos de direito natural segundo os princípios da doutrina da ciência (1796). Nesta obra, que precede em dois anos a Doutrina moral, a existência dos outros eus surge justificada da mesma forma que nesta, ou seja, com a exigência de uma exortação voltada para o eu pela realização da sua absoluta liberdade. As coisas corpóreas, afirma Fichte, constituem os limites ou condições do esforço moral, mas não implicam qualquer solicitação ao próprio esforço. Das coisas eu posso e devo servir-me para a vida corpórea; mas daí não me pode vir a solicitação e o convite ao dever. Uma tal solicitação só me pode surgir por seres exteriores a mim, que sejam como eu naturezas inteligentes; por outros eus, nos quais eu deva reconhecer e respeitar a mesma lei de liberdade que é norma da minha. actividade (Rechtslehre, § 4; Werke, 111, p. 44-45). Este reconhecimento é recíproco e abre assim a via de acção recíproca dos eus entre si. A lei desta acção recíproca é a lei jurídica. Dife34
rentemente da moralidade, que é apenas baseada na boa vontade, o direito vale também sem a boa vontade: diz respeito exclusivamente às manifestações exteriores da liberdade no mundo sensível, às acções, e implica, por isso, uma constrição exterior, que a moralidade exclui. Isso estabelece os limites e a extensão do direito. As relações jurídicas intercedem apenas entre pessoas e o direito diz respeito às pessoas, e só através destas, às coisas; o direito considera por conseguinte, apenas, as acções que se verificam no mundo sensível, e não as intenções (1b., p. 55).
Em virtude das relações de direito, o eu determina a si próprio uma esfera de liberdade que é a esfera das suas possíveis acções exteriores e distingue-se de todos os outros eus que têm cada um a sua própria esfera. Neste acto de distinção coloca-se como pessoa ou indivíduo. O eu é indivíduo (ou pessoa) na medida em que exclui da esfera de liberdade, que reconhece como própria, qualquer outra vontade. A limitação de uma esfera de liberdade constitui portanto o carácter da individualidade como tal (1b., 11, § 5, p. 56-57). Mas toda a limitação do eu é, como se viu, uma oposição e toda a oposição é a posição de um não-eu; e assim a determinação do eu na sua esfera de liberdade produz imediatamente um não-eu, e é com aquela esfera que o eu
se coloca como mundo ou parte do mundo. Como tal se institui e se acha como corpo. Na limitação da esfera da liberdade o eu coloca-se ao mesmo tempo como liberdade e corpo. O corpo não é mais que o fenómeno da vontade, e como toda a acção
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da vontade é uma mudança, o corpo no qual a
Vontade Surge C se exprime é necessariamente mutável. Por outro lado, deve ser de tal modo que se
possa prestar a ser um instrumento ou um veículo do eu que nele se realiza; deve ser portanto um
corpo orgânico, visível e articulado, plasmáve@l segundo as exigências da liberdade. Assim é, com efeito, segundo Fichte, o corpo humano, diferente do de todos os outros animais (1b., § 6, p. 80 e
segs.). Mas não basta que o eu tenha um corpo para entrar em relação recíproca com os outros
eus; ocorre também que este corpo seja dotado de sentidos a fim de que a acção dos eus seja percebida pelo eu. Por outro lado, é necessário que a sensibilidade corpórea seja igual em todos os eus, que todos tenhamos a mesma intenção sensível ou, por outras palavras, percebamos o mesmo
mundo sensível (Ib., p. 68-72).
A existência das pessoas, o seu carácter corpóreo, orgânico e sensível e as suas acções recíprocas através da sensibilidade, são as condições exteriores do direito. A sua condição interna é o seu carácter coactivo pelo qual se garante a cada um a sua esfera de liberdade e se impede as violações. A realização do direito não pode ser confiada ao arbítrio das pessoas; deve ser garantida por uma força predominante, que deve estar estreitamente conexa com o próprio direito. Esta força é o Estado. O Estado é, assim, segundo Fichte, a condição fundamental do direito. Não existem portanto condições de direito sem uma força coactiva; e uma vez que uma força coactiva não pode ser exercida por pessoas singula36
res, mas apenas pelo seu. conjunto, isto é, pela comunidade que constitui o Estado, o direito identifica-se com o Estado. No entanto, o Estado não se traduz na eliminação do direito natural, é a sua realização, é o próprio direito natural realizado (1b., 15, p. 145 e segs.).
No âmbito do Estado, e em virtude dos seus poderes, são possíveis os direitos originários das pessoas. A pessoa individual não pode agir no mundo se o seu corpo não está livre de qualquer coacção, se não pode dispor de um certo número de coisas para os seus objectivos e se não está garantida a conservação da sua existência corpórea. OS direitos originários e naturais do indivíduo são três: a liberdade, a propriedade e a conservação. A condição fundamental do Estado é a formação de uma vontade geral na qual estejam unificadas as vontades das pessoas singulares. Isto acontece mediante o contrato político, que dá origem à vontade geral mediante a legislação. Esta tem dois objectivos fundamentais: a determinação do direito e a determinação das punições contra a violação, do mesmo; * primeiro constitui a legislação política, o segundo * legislação penal. Mas as leis, uma vez estabelecidas, devem ter validade e ser executadas. Para este objectivo, servem os poderes do Estado que são três: o poder de polícia que impede a violação do direito; o poder judiciário que determina se uma violação foi praticada; e o poder penal que pune a
violação. O conjunto destes três poderes constitui o poder executivo ou governo (1b., RI, § 16, p. 153 e segs.). O poder executivo deve ser considerado
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responsável pelas suas acções; deve por conseguinte estar submetido à vigilância de um eforado, e não
existe Estado de direito onde o executivo Q o eforado coincidem nas mesmas pessoas (lb., p. 158 e segs.).
Apesar de Fichte se ter afastado de Rousseau e das ideias do iluminismo francês, admitindo que os direitos originários do indivíduo não têm valor quando não integrados pelo Estado, permanece no
entanto fiel àquelas ideias quando reivindica a relativa independência do indivíduo frente ao Estado.
O indivíduo não é apenas um membro do Estado; ao Estado pertence apenas uma parte da sua esfera de liberdade, uma vez que só em relação aos serviços que o Estado concede este tem perante o indivíduo uma legitima pretensão. Fora destes limites, o indivíduo é livre e depende apenas de si próprio. Assim se estabelecem portanto os limites entre o
homem e o cidadão, entre a humanidade e a politicidade. O Estado tem o dever de ajudar cada uma
das pessoas em todos as domínios da sua liberdade, mas a extensão desta liberdade não cai inteiramente no âmbito do Estado.
Estabelecidos estes princípios fundamentais, Fichte lança-se na dedução dos objectivos do direito público e privado. Mas no que se refere às funções e à natureza do Estado, as ideias da Doutrina do direito são completadas pelas que foram expostas no escrito chamado O Estado comercial fechado (1800). Aqui, Fichte não limita os poderes do Estado à realização dos direitos originários; pretende também que o mesmo acabe com a pobreza e garanta a todos os cidadãos trabalho e bem-estar.
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Fichte prospecta, assim, um Estado socializado no qual a produção e a distribuição de mercadorias devem ser reguladas estadualmente, e que portanto constitua um sistema fechado, sem comércio com o
exterior. O isolamento comercial é possível quando o Estado tem dentro das suas fronteiras tudo o que é necessário para o fabrico dos produtos de que precisa; mas quando tal não é possível, o Estado pode chamar a si o comércio externo e fazer dele um monopólio. O isolamento, segundo Fichte, é necessário para se regular, segundo a justiça, a distribuição dos réditos e dos produtos.
§ 553. A CRISE DA ESPECULAÇÃO DE FICHTE
A primeira Doutrina da ciência (e as obras que com ela se relacionam e a alargam ao campo do direito e da moral) pretende manter-se fiel ao espírito do criticismo. Assim, põe em evidência um eu infinito, com autoconsciência absoluta; mas reconhece, todavia, que a infinitude do eu não se pode realizar senão através da colocação de um não-eu...
O eu infinito é sempre, por conseguinte, o homem: na sua verdadeira substância espiritual e pensante.
O conceito de uma "divindade na qual tudo fosse colocado pelo simples facto de o eu ser também colocado" é considerado "impensável". Como se viu (§ 550), Fichte repete mais vezes estas declarações na
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primeira Doutrina da Ciência; e as obras que se
lhe seguiram mantêm-se fiéis a princípio.
Mas gradualmente, a partir da polémica sobre o ateísmo (1798), Fichte volta-se para uma maior consideração da vida religiosa. O interesse moral que domina no seu primeiro período complica-se com motivos teosóficos que acabam por prevalecer. Podem reconhecer-se e aduzir@se diversas circunstâncias que explicam a crise que a especulação de Fichte sofreu a certa altura e que a encaminhou para uma via que devia levá-la muito além das suas primeiras conclusões. Entre esses motivos podemos enumerar: a hostilidade de grande parte do ambiente cultural alemão relativamente ao seu subjectivismo, hostilidade que será manifestada abertamente durante a polémica sobre o ateísmo e que muito o impressionou; a polémica com Schelling e
com os românticos, cuja influência receava e combatia; o desejo de transformar a sua especulação numa "doutrina de vida" que fosse capaz de reacender o entusiasmo que a Doutrina da Ciência tinha suscitado quando surgira pela primeira vez e que começava a extinguir-se. Estes motivos agiram indubitavelmente sobre Fichte e forneceram-lhe a ocasião para um ulterior desenvolvimento da sua especulação. Mas estes não são motivos filosóficos. A pergunta que, segundo o ponto de vista da história da filosofia, deve colocar-se sobre este assunto é
* seguinte: existem razões filosóficas que justifiquem
* crise de Fichte e a nova direcção da sua especulação? Fichte tinha em 1798 completado o seu sis40
tema em todos os aspectos: a Doutrina da ciência, a Doutrina do direito e a Doutrina moral constituem um bloco unitário que não exige ulteriores determinações. Por outro lado, o Ensaio sobre o fundamento da nossa crença no governo divino do mundo tinha esclarecido o seu pensamento nos confrontos da religião. Se, no entanto, subsistem motivos intrínsecos da crise de Fichte e da exigência de uma viragem na sua especulação, estes motivos surgem relacionados com a posição fundamental de que Fichte linha partido e com o carácter de instabilidade dessa mesma posição. Nesse sentido devemos orientar a nossa investigação.
Fichte volta a reelaborar incessantemente a doutrina da ciência a partir de 1801; e apesar de declarar explicitamente (por exemplo no prefácio à Introdução à vida feliz (Werke, IU, p. 399) que nada tinha a alterar nas suas primitivas afirmações, as suas conclusões doutrinais vão-se afastando cada vez mais desses mesmos princípios. Evidentemente que o sentido destas declarações é o de que o próprio princípio da doutrina da ciência (a que são dedicadas quase exclusivamente as sucessivas reeilaborações) apresentava, a seus olhos, um problema que ele sucessivamente procurou resolver. De que problema se trata? Poder-se-á reconhecê-lo facilmente na relação existente entre o infinito e o finito. A primeira Doutrina da ciência identificou os dois termos quando colocou e recolheu o infinito no homem. Desse modo exclui qualquer consideração teológica e declara impensável o próprio conceito de Deus. Mas essa mesma identidade faz surgir o
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problema da sua própria extensão. Se o finito se identifica com o infinito, isto não quer necessariamente dizer que o infinito se identifique com odivino. Se o homem é, em certa medida, participante da divindade e é (em certos limites) a própria divindade, isto não significa que a divindade se extinga no homem e viva apenas nele. Pode haver no infinito e no divino uma margem (por sua vez infinita) que está para além daquela parte que se realiza ou se revela no homem.
Fichte procura determinar e definir esta possibilidade de forma filosófica e através de diversas elaborações que dá à doutrina da ciência a partir de
1801. É evidente que se trata de uma possibilidade que pode ser determinada e definida apenas negativamente, porque se refere àquela margem de não-coincidência entre o infinito e o finito (entre o homem e Deus) que por definição está para além do homem e da qual o homem nada sabe. Fichte encontrava-se perante a difícil posição de se servir do saber (e da doutrina da ciência que o exprime) para procurar alcançar aquilo que está para lá de qualquer saber possível e que, por conseguinte, não pode encontrar na doutrina da ciência uma expressão positiva. Esta dificuldade é-lhe claramente levantada num colóquio por Jean Paul Richter que, depois de ter escrito uma sátira sobre a filosofia de Fichte (Clavis fichtiana, 1800), se ligou a ele de amizade. Eis como Jean. Paul Richter se referia, numa carta de Jacobi de Abril de 1801, a uma conversa que tivera com Fichte: "Fichte, com quem
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me encontro nas melhores relações, ainda que o nosso diálogo seja uma contradição perpétua, dizia-me que admite, na sua última exposição, um
Deus superior e exterior ao Eu absoluto (no qual até agora eu via o seu Deus). Mas então, disse-lhe eu: Vós filosofais, no fim de contas fora da filosofia". Não se poderá exprimir melhor a tarefa assumida por Fichte nas numerosas reelaborações da sua doutrina da ciência. Com efeito, o que ele faz é filosofar fora da filosofia. Porque a filosofia é a doutrina do saber e não pode superar os limites do saber possível. Mas Deus, como ser absoluto, está fora e para lá do saber; e para filosofar sobre
ele é necessário verdadeiramente filosofar fora da filosofia.
E tal não se pode fazer; a menos que se reconheça uma quebra na filosofia de Fichte entre a primeira e a segunda fase. Na primeira fase, esta filosofia é uma doutrina do infinito no homem. Na segunda fase, uma doutrina do infinito fora do homem. Na primeira fase, o infinito (ou Absoluto, que é o mesmo) surge identificado com o homem.
Na segunda fase o infinito ou absoluto surge identificado com Deus. A quebra doutrinal é portanto ,inegável. Mas esta quebra é indubitàvelmente devida ao próprio interesse ético-religioso que domina de uma ponta à outra, a obra de Fichte. Precisamente para realizar e garantir cada vez mais o valor da vida ético-religiosa do homem, Fichte cindiu, sem
ter plena consciência disso, a unidade doutrinal
do seu sistema.
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§ 554. FICHTE: O EU COMO IMAGEM DE DEUS
A tentativa de se servir do saber para alcançar um Absoluto que está para além do saber é levada a cabo pela primeira vez por Fichte na Doutrina da ciência de 1801. Aqui, Fichte parte do princípio de que o saber não é o Absoluto (Wiss., 1801, § 5; Werke, 11, p. 12-13). "O absoluto é absolutamente aquilo que é, repousa sobre e em si mesmo absolutamente, sem mutação nem oscilação, firme, completo, e fechado em si próprio". Ele é , por outro lado, "aquilo que é absolutamente porque é por si próprio, em razão de si próprio, sem qualquer influência exterior estranha; porque ao lado do Absoluto nada permanece de estranho, uma vez que tudo quanto não é absoluto desaparece" (1b., § 8, p. 16). A doutrina da ciência, como doutrina do saber, não pode no entanto actuar para além de qualquer saber possível; por isso deve partir não do Absoluto mas do saber absoluto. Mas o saber, enquanto absoluto, é também um saber da própria origem; e a origem do saber, (a origem absoluta) não é o saber mas o próprio Absoluto. Por conseguinte, enquanto o saber é saber da própria origem, é também um
saber da própria origem do Absoluto, ou seja. da criação que o Absoluto faz do saber. No acto de alcançar a própria origem o saber é por conseguinte, e ao mesmo tempo, saber e mais que saber, é conjuntamente saber e Absoluto. A unidade destes dois termos não é indiferença porque os dois termos permanecem opostos (o absoluto não é o saber e o
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saber não é absoluto). Fichte polemiza sobre este assunto com Schelling ainda que extraia dele, sem
dúvida, o princípio da identidade entre o saber e o Absoluto. "Se o subjectivo, (ou seja o saber), afirma, e o objectivo (o Absoluto) fossem originariamente indiferentes como poderiam ser diferentes no mundo?" Diferenciando-se, o Absoluto anular-se-ia a si próprio e daria lugar ao nada absoluto (lb., p. 66). E Fichte julga também aproximar-se, bastante melhor que Schelling, do espírito da doutrina de Espinosa. Esta era incapaz de explicar a passagem da substância aos acidentes. Esta passagem não pode ser explicada senão pela forma fundamental do saber, pela reflexão. Esta é acto de liberdade que divide o saber do ser absoluto e, no entanto, o faz derivar dele: "Se se pergunta, afirma Fichte (1b., p. 89), qual é o carácter da doutrina da ciência nos confrontos do unitarismo (En kai Pan) e do
dualismo, a resposta é esta: é o do unitarismo no sentido ideal porque sabe que, como fundamento de todo o saber, para além de todo o saber, existe o eterno Uno; é dualismo em sentido real, em relação ao saber na medida em que ele é realmente colocado. Com efeito, existem dois princípios fundamentais: a absoluta liberdade e o absoluto ser; e sabe-se que o absoluto Uno não se pode alcançar em nenhum saber real ou de, facto, mas apenas pensando".
Apesar do Absoluto e do saber surgirem assim contrapostos, o mundo, pelo contrário, surge ligado ao saber e reduzido por Fichte a uma manifestação
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ou cópia do mesmo. Como tal, para Fichte aparece privado de realidade própria. "Se se fala do melhor mundo e dos caracteres da divindade que se encontram neste mundo, a resposta é esta: o mundo é o pior de todos os possíveis porque ele, em si próprio, não tem qualquer sentido (Ib., p. 157)". Desta nulidade intrínseca do mundo resulta a possibilidade de libertar-se dele. Uma vez que o mundo é condicionado por um acto de liberdade que surge pela reflexão, pode também ser superado pela reflexão e encarado gradualmente como meio. Um ideal místico e religioso, surge, agora, como última conclusão de Fichte. "Elevar acima de todo o saber, afirma (Ib., p. 161), até ao puro pensamento do Ser absoluto e da acidentalidade do saber e enfrentar esse mesmo Ser, tal é o ponto mais alto da Doutrina da ciência".
A orientação mística, que pretende negar qualquer valor ao mundo e ao próprio saber humano, acentua-se mais na Doutrina da ciência exposta em
1804. Se no escrito de 1801 o Absoluto é o limite iniciai ou superior do saber, e por conseguinte este pode alcançá-lo intuindo a sua própria origem ou o não-ser de que emerge, no escrito de 1804 o Absoluto é justificação do princípio de destruição de todo o saber possível e como tal só pode ser alcançado com a negação do saber, da consciência e do eu, na luz divina. Esta é a tarefa que Fichte se propõe levar a cabo: reconduzir todo o múltiplo, sem excepção, à absoluta unidade (Wiss., 1804, § 1; Werke, X, p. 93), e esta tarda implica a destruição total do
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saber e, por conseguinte, o alcance da absoluta inconceptibilidade. A construção da doutrina da ciência surge, segundo este ponto de vista, como a anulação do conceito pela evidência que é a própria luz divina. E Fichte repete aqui o movimento dialéctico de que se tinha socorrido na primeira Doutrina da ciência a propósito do não-eu. Uma vez que o não-eu
deve ser colocado para que o eu possa servir-se dele como meio e triunfar sobre ele através da acção moral, também agora o saber conceptual deve ser colocado para que a evidência da luz divina possa destruí-lo e realizar-se por meio dessa destruição (1b., § 4, p. 117). Essa operação envolve o eu, que é o princípio do saber, mas não é obra do eu, é obra da própria luz divina. "O ser possuído e arrebatado à evidência, afirma Fichte (1b., § 8, p. 148), não é obra minha, mas da própria evWêneia e é a aparente imagem do meu ser anulado e dissolvido na pura luz". Fichte nega que o Absoluto seja a
consciência ou que a consciência possa valer como
fundamento do Absoluito. O fundamento da verdade não é a consciência, se bem que se revele através dela (lb., 14, p. 195).
Em 1806, Hohte voltava novamente, e desta vez em polémica aberta com Schelling, a delinear os pontos fundamentais da sua doutrina da ciência num escrito intitulado Relação sobre o conceito da doutrina da ciência e sobre o destino que teve até agora. Fichte afirma nele a sua pretensão de não haver alterado o sistema e de se manter fiel, nos seus últimos escritos, às suas primeiras especulações.
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E responde às acusações movidas contra a Doutrina da ciência. Falou-se de subjectivismo porque o
mesmo é a demonstração da nulidade de todos os produtos da reflexão. Mas esta é precisamente a
tarefa da Doutrina da ciência, que deve pôr em evidência a falsidade daquilo que vulgarmente se tem
como real e demonstrar que o Absoluto, como Kant havia ensinado, não pode ser determinado pelo pensamento e continua inconcebível, para além de qualquer pensamento. A teoria da ciência destrói a pretensa realidade do conhecimento comum mas substitui-a pela verdadeira realidade que é a vida do Absoluto ou de Deus (Bericht über die Wiss.; Werke, VIII, p. 361 e segs.). À afirmação de que a doutrina da ciência, ainda que tendo a pretensão de valer como uma doutrina da vida, não se apresenta senão um puro conceito do ser, um esquema morto e
abstracto do Absoluto, Fichte responde que o Absoluto não pode viver e realizar-se senão na consciência dos homens. Mas com este pacto deixa de ser
uma pura projecção do pensamento e passa a ser verdadeiramente uma actividade produtiva.
Das sucessivas elaborações da Doutrina da ciência,
a mais notável é a de 1810 intitulada: A Doutrina da ciência no seu esboço geral, da qual não se afastam substancialmente as reelaborações de
1812-13. Nela o ser é identificado com Deus, enquanto uno, imutável, indivisível. O saber, que substitui na
unidade divina a separação entre sujeito e objecto, não é Deus e existe fora de Deus. Mas uma vez que o ser divino é tudo em tudo, o saber é o ser de
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Deus fora de Deus, ou seja, a exteriorização de Deus. Tal não é um efeito de Deus, mas a imediata consequência do ser absoluto, ou seja a sua imagem ou esquema (Wiss., 1810, § 1; Werke, 11, p. 693). Por sua vez, a autoconsciência é a imagem ou sombra do saber, pelo que, em relação a Deus, passa a ser a sombra de uma sombra (1b., § 14). Estamos muito longe, como se vê, da tese da primeira Doutrina da ciência segundo a qual a autoconsciência é o princípio de toda a realidade.
Conceitos semelhantes a este surgem nos cursos que Fichte dá em Berlim no Inverno de 1810 e 1811 e no Verão de 1813 sobre Os factos da consciência. Os factos da consciência são os graus de desenvolvimento através dos quais a consciência se ergue das formas primitivas às mais elevadas. Mas a
forma mais elevada da consciência é, segundo Fichte, aquela em que a consciência reconhece a sua própria nulidade perante Deus e se considera simples imagem ou aparência de Deus. O objectivo da doutrina da ciência é portanto o de tornar inteligível esta aparência; e não se trata de uma doutrina do ser mas da aparência. "O compreender-se, diz Fichte, é a forma de ser da aparência". A doutrina da ciência é a aparência na sua totalidade. Assim afirma: "Eu sou o compreender-se da aparência, pertenço por isso à aparência" (Die Thatsachen, 1813; Werke, X, p. 563 e segs.). Por outro lado, tal aparência é sempre aparência do ser, ou seja, do próprio Deus. Deus é portanto o objecto do saber e ao mesmo
tempo está para além do saber. É o objecto do saber na medida em que o saber é a sua imagem,
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a sua aparição ou manifestação; está para além do saber porque está para além da mutação e da multiplicidade que são próprias da forma reflexiva do saber mas que não podem pertencer a Deus.
Este ponto de vista é repetido com energia no
curso, sobre o sistema da doutrina do direito e no curso sobre o Sistema da doutrina moral dados em
1812. Estas duas novas exposições diferendara-se das de 1796 o de 1798 porque reconduzem respectivamente o direito à moral e a moral à religião. Enquanto que na Doutrina do direito de 1796 a esfera do direito surgia caracterizada independentemente da vida moral, no Sistema de direito de 1812 é caracterizada como traço de união que liga a
natureza à moral. O direito é a condição preparatória da moral. Se esta fosse universalmente realizada, o direito seria supérfluo; mas uma vez que tal não acontece e para que possa acontecer, há necessidade de assegurar a cada pessoa as condições para a sua
realização através de uma disciplina obrigatória; esta disciplina é o direito (System der Rechtsl., Werke, X, p. 508 e segs.). Analogamente, o Sistema da moral de 1812 reconduz a moral à religião. A razão prática passa a ser nesta obra a própria expressão de Deus,
a sua imagem viva, o instrumento da sua realização no mundo; e a negação metafísica da realidade da natureza, a afirmação do regresso à vida espiritual como única vida verdadeira, surgem reconduzidas às exigências religiosas da renúncia ao mundo, da ressurreição e às excepções do evangelho de S. João (System der Sittenl., Werke, 11, p. 31 e sgs.).
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§ 555. FICHTE: AS Exposições POPULARES DA FILOSOFIA RELIGIOSA
Excepto o escrito de 1810 (A Doutrina da ciência nos seus caracteres gerais) todas as outras exposições e reelaborações que acabamos de examinar do sistema de Fichte permanecem inéditas. É preciso também dizer que são de leitura bastante ingrata e que nelas o processo de Fichte surge lento, tortuoso, e baseado frequentemente em puros artifícios verbais. Estes defeitos deverão parecer evidentes ao próprio Fichte que, apesar de descurar a publicação desses escritos, publicava outros destinados a expor, em forma popular, o novo rumo do seu pensamento. Estes escritos populares são: A missão dos homens (1800), A introdução à vida feliz ou doutrina da religião (1806), Sobre a essência do sábio e as suas manifestações no campo da liberdade (1805), Cinco lições sobre a missão do sábio (1811). Nestes escritos, a orientação religiosa e misticista das últimas especulações de Fichte encontra uma expressão livre e surge expressa em palavras apropriadas. O trabalho intitulado Missão do homem está dividido em três partes: a dúvida, a ciência e a fé, e Fichte descreve a libertação do homem do domínio do mundo natural através da ciência e da passagem da ciência à fé. A fé, afirma Fichte, (Werke, 11, p. 254) ao dar realidade às coisas, impede-as de serem ilusões vãs: nisso consiste a ratificação da ciência. Quase se podia dizer, ~o com propriedade, que não existe realmente ciência mas apenas certas determinações da
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vontade que se configuram como ciência porque a
fé as constitui como tal; e repete a palavra de Jacobi "Todos nascemos na fé" (1b., p. 255). A fé é entendida aqui no sentido religioso como fé em Deus, numa Vontade suprema na qual confluem as
vontades dos seres finitos quando conformes com
o dever.
Mais explicitamente religioso ainda é o tom do escrito (o mais importante entre os que nomeámos) Introdução à vida feliz. Fichte propõe a beatitude na união de Deus, mas adverte também que esta união não transforma Deus no nosso ser; Deus permanece fora de nós e nós apenas abraçamos a sua
imagem. Chega-se à religião através da negação do valor da realidade sensível, vendo no mundo a
simples imagem de Deus e sentindo agir e viver Deus em nós próprios. Na união com Deus, Fichte preocupa-se em aprender o significado contemplativo que a mesma parece implicar. A religião não é um sonho devoto; é o íntimo que purifica o pensamento e a acção e é por conseguinte moralidade operante (Anweisung, 5; Werke, V, p. 474). O pensamento alcança a existência de Deus, pela sua revelação ou pela sua imagem: o ser de Deus permanece sempre além. A existência de Deus identifica-se com o saber ou autoconsciência do homem; mas a forma como a mesma deriva do ser de Deus permanece inconcebível. "A existência deve compreender-se por si como pura existência, reconhecer-se e formar-se como tal, e, perante si própria, deve colocar e formar um Ser absoluto, de que seja simples existência: através
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do próprio ser deve anular-se perante uma outra existência absoluta: e tal atitude forma o carácter da pura imagem, da ideia ou da consciência do ser" (lb., 3, p. 441). Fichte vê no Evangelho de S. João a exposição de uma doutrina análoga e daí deduz o acordo do seu idealismo com o cristianismo. Com efeito, no Evangelho afirma-se que ao princípio era a Palavra ou Logos; e na Palavra ou Logos, Fichte reconhece aquilo a que chamou existência ou revelação de Deus: o saber, a imagem, de que a vida divina é fundamento (1b., 6, p. 475 e segs.).
Deste momo se completa o ciclo do desenvolvimento da doutrina de Fichte. Partindo do reconhecimento do infinito como princípio de dedução da natureza finita do homem, Fichte é levado, por último, a reconhecer o princípio infinito para além do eu, no Ser ou Deus, concebido como o Uno de Plotino. Nesta passagem entre duas teses doutrinais contraditórias, a única unidade é constituída pelo interesse ético-!religioso que sempre dominou na especulação de Fichte. Este interesse assinala verdadeiramente a sua personalidade. A ele se deve a ,introdução o sinal característico, do idealismo de Fichte e o distingue daquele (análogo em muitos aspectos) que contemporaneamente era defendido por Beck. Não há dúvida que esta característica determinou o sucesso da doutrina de Fichte. Mas foi também o mesmo que terminou a exigência de uma progressiva acentuação do carácter religioso e teosófico desta doutrina e, por conseguinte,
a transformação que veio a sofrer no final.
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§ 556. FICHTE: O INFINITO NA HISTÓRIA
A obra publicada por Fichte em 1806, Características principais da época presente, expõe uma
filosofia da história que reproduz a seu modo e não sem intuitos polémicos (como frequentemente aconteceu nas últimas obras do filósofo) as ideias expostas por Schelling no Sistema do idealismo transcendental (1800) e nas Lições sobre o ensino académico (1802). Fichte começa por declarar que "o objectivo da vida da humanidade neste mundo é o de conformar-se livremente à razão em todas as suas relações" (Grun£lzüge des gegenw. Zeital., l; Werke, VII, p. 7). RADIativamente a este fim, distingue-se na história da humanidade dois estádios fundamentais: um, em que a razão é ainda inconsciente, instintiva, e é a idade da inocência; o outro, aquele em que a razão se assume e domina inteira e livremente, é a idade da justificação e da santificação, o kantiano reino dos fins. O desenvolvimento integral da história verifica-se entre estas duas épocas e é o produto do esforço da razão em passar da determinação do instinto a uma liberdade plena. As épocas da história são determinadas, num modo puramente a priori o independentemente do acontecer dos factos históricos, por este esforço. A primeira época é a época do instinto, em que a razão governa a vida humana sem a participação da vontade. A segunda época é a época da autoridade, em que o instinto se exprime em personalidades poderosas, em homens superiores, que impõem, caoticamente, a razão a uma humanidade incapaz de segui-la por sua conta. A terceira época
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é a da revolta contra a autoridade e da libertação do instinto, de que é expressão a própria autoridade. Sob o domínio da reflexão desperta no homem o livre arbítrio, mas a sua primeira manifestação é uma crítica negativa de toda a verdade e de toda a regra, uma exaltação do indivíduo para lá de qualquer regra e de qualquer coacção. A quarta época é aquela em que a reflexão reconhece a própria lei e o livre arbítrio aceita uma disciplina universal; é a época da moral. A quinta época é aquela em que a lei da razão deixa de ser um simples ideal para se
tornar totalmente real num mundo justificado e santificado, no autêntico reino de Deus (1b., p. 11 e segs.). As duas primeiras épocas são as do domínio cego da razão, as duas últimas a do domínio vidente da razão. No meio, está a época da libertação em
que a razão deixa de ser cega mas não é ainda consciente. A esta época pertence a presente idade, segundo Fichte; nela existe o domínio cego da razão e ainda não se alcançou o domínio vidente da própria razão. Perdeu-se o paraíso, a autoridade foi violada, mas não domina ainda o conhecimento da razão. É esta a idade do iluminismo que Fichte chama a do vulgar intelecto humano; é a idade em que prevalecem os interesses individuais e pessoais e em que se faz continuamente apelo à experiência porque só a experiência pode manifestar quais os
interesses e quais os objectivos para que se tende (1b., 2, p. 21 e segs.).
Como realizar-se progressivo da razão na sua liberdade, a história consiste no desenvolvimento da consciência ou do saber. Mas o saber é a existência,
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a expressão, a imagem integral do poder divino. Considerado na totalidade e ria eternidade do seu desenvolvimento, o saber não tem outro objecto a
não ser Deus. Mas para os simples graus deste desenvolvimento Deus é inconcebível e o saber divide-se pela multiplicidade dos - objectos empíricos que constituem a natureza ou na multiplicidade de eventos temporais que constituem a história. A existência de facto no tempo surge como tal, podendo ser diferente e portanto acidental; mas esta aparência deriva apenas da inconceptibilidade do Ser que é o seu
fundamento; inconceptibilidade que condiciona o infinito progresso da história (lb., 9, 6. 131). Na realidade, nem na história nem em outro lugar, existe algo de acidental pois tudo é necessário e a liberdade do homem consiste em reconhecer esta necessidade. Afirma Fichte: "Nada é como é porque Deus queira arbitrariamente assim, mas porque Deus não pode manifestar-se de outro modo senão assim. Reconhecer isto, submeter-se humildemente e ser feliz na
consciência desta nossa identidade com a força divina, é desígnio de todos os homens" (1b., 9).
NOTA BIBLIOGRÃFICA
§ 546. Sobre a vida de Fichte a obra principal é a do filho, Immanuel Hermann Fichte, J. C., F.s Leben und literarischer Briefwechesel, 2 vols., Leipzig, 1862; todas as monografias abaixo indicadas têm partes ou
capítulos dedicados à biografia do filósofo. Um ensaio psicanalítico sobre F. é o de G. Kafka@ Erlebnis und Theorie in Fichtes Lehre vom Verhaltniss der Ges56
cILlechter, in "Zeitsehr. für angewanclte Psyeh", 16.'
11920, p. 1-24.
§ 547. "Sãmtliche Werke, a cargo do filho, I. H. Fichte, 8 vols., Berlim, 1845-46; Nachgelassen6 Werke, a. cargo do filho L H. F., 3 vols., Bonn, 1834-35 (cátados no texto como Werke, IX, X, XI); Werke, escolha em
6 v&.s., a -cargo de Fritz Medicus, Leipzig, 1908-12.
Traduções italianas: Doutrina da Ciência (1791), trad. Tilgher, Bari, 1910; Doutrina da Ciência (1801), trad. Tjlgher, Pádua, 1939: Doutrina moral, trad. Ambrosi, Milão, 1918; Introdução à vida feliz, trad. parcial Quilici, Lanclano, 1913; A missão do homem e do sábio, trad. Pertioone, Turim, 1928; Discurso à nação a'emã, trad. Burich, Palormo, 1927; Essência do sábio (1805), trad. A. Cantoni, Florença, 1935; O estado segundo a razdo, trad. anónima, Turim, 1909; Reivindicação da liberdade do pensamento, trad. Pareyson, Turim, 1945; Primeira introdução à doutrina da ciênciatrad. Pareyson, in "Riv. di Fil,", 1946, p. 175 e sgs.; Guia para a
vida feliz, trad. A. Cãntoni, Milão, 1956; O sistema da doutrina moral, trad. R. Cantoni, Miorença, 1957; Teoria da ciência de 1798, trad. A. Cantoni, Milão, 1959.
§ 548. Xavier IAon, Fichte et son temps, tomo II, parte II, p. 297 e sgs. A obra de Léon é a mais vasta monografia sobre Fichte. A amplitude das particularidad,es biográficas não corresponde, nesta obra, à amplitude da exposição das doutrinas filosóficas referidas quase exclusivamente aos limites da polémica Fichte-Schelling. K. Fischer, F.s Leben, Werke und Lehre, Heid&berg, 1868, 3.ed., 1900; X. Leson, La pholosophie de F., Paris, 1902; A. Ravà, Introdução ao estudo da filosofia de F., Modena, 1909; F. Medícus, F., Leipzig,
1911; A. M~cr, F., Leipzig, 1920; N. Hartui =,, Die Phil. des deutschen Idealismus, vol. 1, Berlim, 1923, p. 43-123; H. Heimsoe@th, F. Munique, 1923; M. Wundt, Fichte-Forschungen, Stuttgart, 1929; M. Gueiroult, L'évoluti-on et structure de la doctrine de la sciéwe, Paris,
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1930; W. Doering, F. der mann und sein Werke, Hani burgo, 1948; L. Pareyson, F., Turim, 1950.
§ 553. A carta de ~Paul, a que se alude existe em Ernest Reinhold, K. L. Reinhold Leben und literarisches Wirken, Jena, 1825, p. 265-66.
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IV
SCHELLING
§ 557. SCHELLING: VIDA
Friedrich Wilhehn Joseph Schelling nasce em Lomberg a 21 de Janeiro de 1775. Aos 16 anos entrou para o seminário teológico de Tubinga; e
nesta cidade liga-se de amizade com Holderlin e Hegel, mais velhos que ele cinco anos. Em seguida estudou matemática e ciências naturais em Leipzig e esteve durante certo tempo em Jena, onde assistiu às lições de Fichte. Em 1798 (com 23 anos), foi designado, com o apoio de Goethe, professor em
Jena, onde vive os anos mais fecundos da sua vida e mantém estreitas relações com os românticos A. W. SchIegel, Tieck e Novalis. Nesta cidade casou com Caroline Schlegel (1803) depois desta se divorciar do marido, A. W. Schlegol. Em seguida, Schelling passou
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a ensinar em Wilrzburg, (1803) onde permaneceu até
1806, ano em que, estando a cidade ocupada por um príncipe austríaco, a estadia de professores protestantes na Universidade se torna impossível. Dirige-se então a Mónaco onde se faz secretário da Academia das Belas Artes e em seguida secretário da classe de filosofia da Academia

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