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História da filosofia V - Nicola Abbagnano

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hist�ria da filosofia 5.rtf
História da Filosofia
Quinto volume
Nicola A bbagnano
DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO:
ÂNGELO MIGUEL ABRANTES.
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
VOLUME V
TRADUÇÃO DE:
NUNO VALADAS
ANTÓNIO RAMOS ROSA
CAPA DE: J. C.
COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO
TIPOGRAFIA NUNES R. José Falcão, 57-Porto
EDITORIAL PRESENÇA - Lisboa 1970
TÍTULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA
Copyright by NICOLA ABBAGNANO
Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA,
LDA. - R. Augusto Gil, 2 cIE. - Lisboa
QUARTA PARTE
A FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
RENASCIMENTO E HUMANISMO
§ 332. RENASCIMENTO E HUMANISMO: O PROBLEMA HISTORIOGRáFICO
Escritores, historiadores, moralistas e políticos, todos estão de acordo em
que se teria verificado na Itália, a partir da segunda metade do século XIV,
uma mudança radical na atitude dos homens perante o mundo e a vida.
Convencidos como estão do início de uma época nova, constituindo uma
ruptura radical com o mundo medieval, procuram explicar a si mesmos o
significado dessa mudança. Esse significado, atribuem-no então à renascença
de um espírito que já fora próprio do homem na época clássica e se perdera durante a Idade Média: um espírito de liberdade,
pelo qual o homem reivindica a sua autonomia de ser racional e se reconhece
como intimamente ligado à natureza e à história, apresentando-se resolvido a
fazer de
ambas o seu reino. Uma tal renascença é, no ponto de vista desses escritores, um regresso à antiguidade, uma reaquisição de capacidades e poderes que os antigos (isto é, os Gregos e os Latinos) tinham possuído e exercitado. Este regresso porém, não consiste numa mera repetição do antigo mas numa retomada e consequente continuação daquilo que pelo mundo antigo fora realizado. Tais princípios são expressos, de uma forma ou de outra, por inúmeras figuras do Renascimento italiano; pode mesmo dizer-se que a cada nova descoberta de matéria documental nos apercebemos melhor até que ponto eles foram partilhados pelos escritores e vultos notáveis da época.
Estes testemunhos aparecem-nos confirmados por imponentes fenómenos
culturais: o nascimento de uma nova arte, magnífica pela variedade e pelo
valor das suas manifestações, de uma nova concepção do mundo, de uma ciência
que nos séculos seguintes e mesmo até ao momento presente deveria dar
notáveis frutos e de uma nova maneira de compreender a história, a política
e, em geral, as relações dos homens uns com os outros. Assim, tais testemunhos foram durante muito tempo tomados à letra, servindo de base ao estabelecimento dos períodos históricos da civilização ocidental.
A historiografia filosófica não se limitou porém, nem poderia fazê-lo a
aceitar o contraste que os próprios humanistas quiseram estabelecer entre a
sua época e a Idade Média. Se é verdade que uma parte dos historiógrafos
aceitou esse contraste como fio condutor para a interpreta-
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ção das doutrinas e figuras que se apresentam em primeiro plano no século XV,
não é menos certo que uma outra parte se deu pelo contrário ao trabalho de
salientar a continuidade que, apesar de tudo, subsiste entre aquele século e
os que o precederam. Tem-se já hoje como certo que não é possível, do ponto
de vista da exactidão histórica, basear a interpretação do humanismo e do
Renascimento na existência de uma antítese entre o "homem medieval" e o
"Homem do Renascimento". Não é possível considerar o Renascimento meramente
como a afirmação da imanência em contraste com a transcendência. medieval ou da irreligiosidade, do paganismo, do individualismo, do sensualismo e do cepticismo em contraposição à
religiosidade, ao universalismo, ao espiritualismo e ao dogmatismo da Idade
Média. Não faltam e até abundam no Renascimento motivos francamente
religiosos, afirmações enérgicas de transcendência e
certas retomadas de elementos cristãos e dogmáticos; muitas vezes esses
motivos e elementos aparecem entrelaçados com elementos e motivos opostos,
formando sistemas complexos cujo centro de gravidade e sentido completo são
difíceis de determinar. Difícil é pois a compreensão das polémicas que agitam
a vida cultural do Renascimento: a que, em nome da eloquência e da antiga
sabedoria clássica, os humanistas travaram contra a ciência e a cultura,
oposta, que os partidários da ciência travaram contra a eloquência; a que
lançou platónicos contra aristotélico e a que se desenrolou no próprio seio
do aristotelismo entre alexandristas e
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averroístas. É evidente que nenhuma destas posições polémicas representa por
si só o Renascimento, e por conseguinte não se pode ver neste apenas a
revolta da sabedoria e da eloquência, nem a da ciência contra a
eloquência, nem as reivindicações do platonismo contra o aristotelismo
medieval, nem a desforra do aristotelismo científico sobre a transcendência
platonizante. A primeira exigência a fazer é a de que o Renascimento seja
entendido na sua totalidade pois só assim se poderá conhecer o
terreno comum no qual nascem e se radicam as várias e opostas teses
polémicas.
§ 333. O HUMANISMO
A primeira destas polémicas, travada entre a sabedoria clássica e a ciência,
é às vezes apresentada como a antítese entre humanismo e renascimento. Uma
vez que a irrupção do Renascimento é marcada pelo aparecimento das novas
ciências naturais, a polémica contra a ciência, iniciada por Petrarca, tem
sido interpretada como constituindo a defesa da transcendência religiosa e da
sabedoria revelada contra a liberdade de investigação científica. Acontece
porém que a defesa da sabedoria clássica, inspirada na convicção (que é uma
herança deixada pela Patrística) da existência de um perfeito acordo da mesma
com a verdade revelada do cristianismo é muito mais antiga do que o
Renascimento e nunca chegou a ser totalmente abandonada pela Escolástica; o
humanismo seria assim a
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força que combate e retarda o advento do verdadeiro espírito renascentista,
o qual, como reivindicação da liberdade de investigação, seria par sua
vez a continuação do aristotelismo e do averroísmo medievais. Humanismo e
Renascimento constituiriam assim, na sua antítese, claras atitudes do
espírito medieval, o que, se nos permite a compreensão da continuidade
histórica que deve existir entre a
Idade Média e a Moderna, afasta toda e qualquer possibilidade de entendermos
a originalidade e o
valor do Renascimento, ao estabelecer os pressupostos do pensamento moderno.
A interpretação histórica do Renascimento, se, por um lado, vem esbater a contraposição polémica do mesmo à Idade Média, vem por outro, fazer luz sobre aqueles aspectos que caracterizam suficientemente a sua configuração doutrinal. E do entre os aspectos mais importantes, sob este ponto de vista, podemos enunciar os seguintes: 1) - a descoberta da historicidade do mundo humano; 2) - a descoberta do valor do homem e da sua natureza mundana (natural e histórica); 3) - a tolerância religiosa.
1) - O humanismo renascentista não consiste apenas no amor e no estudo da
sabedoria clássica e na demonstração da sua concordância fundamental com a
verdade cristã mas sim e antes de mais na vontade de reconstruir uma tal
sabedoria na sua forma autêntica, procurando compreendê-la na sua
realidade histórica efectiva. É com o humanismo que surge pela primeira vez a
exigência do reconhecimento da dimensão histórica dos acontecimen-
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tos. A Idade Média tinha ignorado por completo tal dimensão. É certo que já
então se conhecia o se utilizava a cultura clássica; esta era porém
assimilada à época e tornada contemporânea. Factos, figuras e doutrinas não
possuíam para os escritores da Idade Média uma fisionomia bem definida,
individualizada e irrepetível: o seu mérito residia apenas na validade que
lhes pudesse ser
reconhecida relativamente ao universo de raciocínios
no qual se moviam os
ditos escritores. Sob este ponto de vista eram inúteis a geografia e a
cronologia como instrumentos de averiguação histórica. Todas essas figuras e doutrinas se moviam numa esfera intemporal que não era outra senão a delineada pelos interesses fundamentais da época, apresentando-se por isso como contemporâneas dessa mesma esfera.
Com o seu interesse pelo antigo, pelo antigo autêntico e não por aquele que
vinha sendo transmitido através de uma tradição deformante -
o humanismo renascentista concebe pela primeira vez a realidade da
perspectiva histórica, isto é, da separação e da contraposição do objecto
histórico, relativamente ao presentehistoriográfico. Andam em polémica no
Renascimento, platónicos e aristotélicos; porém, o seu interesse comum reside
na descoberta do verdadeiro Platão ou do verdadeiro Aristóteles, quer dizer,
da doutrina autêntica dos troncos do seu pensamento, não deformada nem
disfarçada pelos "bárbaros" medievais. A exigência filosófica não é um mero
aspecto formal ou acidental do humanismo, mas sim um seu elemento
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essencial. A necessidade de descobrir os depoimentos e de os reconstituir na
sua forma autêntica, estudando e cotejando os manuscritos, é acompanhada pela
necessidade de neles buscar o seu conteúdo autêntico em matéria de poesia e
de verdade filosófica ou religiosa. Sem investigação filológica não há
propriamente humanismo pois apenas existe uma
posição genérica de defesa da cultura clássica, a
qual pode ser encontrada em toda e qualquer época e por conseguinte não é característica de nenhuma em particular.
A defesa da eloquência clássica é a defesa da linguagem autêntica do
classicismo contra a deformação sofrida durante a Idade Média e
simultaneamente uma tentativa de reconstituição da sua
forma original. A descoberta de falsificações documentais e de falsas
autores, e a tentativa de integração de escritores e filósofos no seu próprio
mundo, na sua própria distância cronológica, são os aspectos fundamentais do
carácter historicista do humanismo. Não restam dúvidas de que o humanismo, no
tocante a resultados, só parcial e imperfeitamente levou a cabo esta sua
tarefa de restauração histórica; trata-se aliás de tarefa que nunca
se esgota e se apresenta sempre em primeiro lugar aos historiógrafos. Todavia
foi o humanismo quem se apercebeu do valor desta tarefa, iniciando-a e
deixando-a em herança à cultura moderna. O iluminismo de setecentos constitui
seguidamente um
passo decisivo nesse caminho, do qual nasceu por sua vez a investigação
historiográfica moderna.
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Nunca será demasiada a importância que se der a este aspecto do Renascimento.
A perspectiva historiográfica torna possível distinguir o passado do presente
e por conseguinte torna também possíveis o reconhecimento da natureza
diferente e própria do passado e a pesquisa das características e condições
determinantes de uma tal individualidade e irrepetibilidade. Por último, dá-nos ainda a consciência da originalidade do passado em confronto connosco e a da nossa originalidade ao passado.
A descoberta da perspectiva histórica está para o tempo, como a descoberta da
perspectiva visual, conseguida pela pintura do Renascimento, está para o
espaço: consiste na possibilidade de nos apercebermos da distância que vai de
um objecto a outro
e de qualquer deles ao observador. É por conseguinte a possibilidade de os entendermos na sua real localização, na sua diferença relativamente aos demais e na sua individualidade autêntica.
O significado da personalidade humana, com centro original e autónomo de
organização dos vários aspectos da vida, é condicionado pela perspectiva,
nesta acepção. A importância que o mundo moderno atribui à personalidade
humana é o resultado de um propósito atingido pela primeira vez
pelo humanismo renascentista.
2 -Quando se diz que o humanismo renascentista descobriu ou redescobriu "o
valor do homem", quer com isso dizer-se que reconheceu o valor do homem como
ser terrestre ou mundano, inserido no mundo da natureza e da história, capaz
de nele forjar o próprio destino. O homem a quem se
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reconhece um tal valor é um ser racional e finito, cuja integração na
natureza e na sociedade não constitui condenação nem exílio mas antes um
instrumento de liberdade o que por essa razão pode obter no meio da natureza,
e entre os homens a sua formação e a sua felicidade. Este reconhecimento não
é, indubitavelmente, mais do que a
expressão filosófica ou conceitual (alcançada com
atraso, como frequentemente acontece) de capacidades e poderes que o homem se
arrogava havia já alguns séculos e que já exercera e continuava exercendo nas
cidades que constituíram o berço do humanismo. A experiência humana em que
este se apoia dera já frutos no campo da economia, da política o da arte, o
que explica a conexão geográfica do humanismo com as grandes cidades e
particularmente com aquelas em que (como Florença) o exercício das novas actividades político-económicas fora e continuava a ser mais livre e amadurecido. Vimos no volume anterior desta História, como já no domínio da própria Escolástica, a partir do século XI, o homem reivindica uma autonomia cada vez maior da razão, isto é, da sua iniciativa inteligente, face às instituições típicas do mundo medieval (a igreja, o império o feudalismo) que tinham tendência para apresentar como dimanados do Céu todos os bens de que ele podia dispor. No humanismo renascentista, porém, esta autonomia aparece-nos afirmada e reconhecida de modo mais radical, como capacidade do homem para planear a sua própria existência individual ligada à história e à natureza.
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É claro que, se entender como naturalismo a tese segundo a qual para além
da história e da natureza nada existe, não se poderá na verdade dizer que o
humanismo e o Renascimento tenham conhecido o naturalismo; porém, se se
entender como naturalismo a tese segundo a qual o homem está radicado na
natureza e na sociedade e só desses dois elementos poderá obter os meios
necessários à sua própria, realização, um tal naturalismo foi característico
de todos os escritores da época, os quais, se bem que exaltem a "alma" do
homem como sujeito relativamente aos próprios poderes da liberdade, não
esquecem por isso o corpo nem aquilo que ao corpo pertence. A aversão ao
ascetismo medieval, o reconhecimento do valor do prazer e a apreciação do
epicurismo sob um novo prisma são as manifestações mais evidentes deste
naturalismo humanista. Ligado a ele aparece-nos também o reconhecimento da
existência de um vínculo que liga o homem à comunidade humana; este é um tema
especialmente escolhido pelos humanistas florentinos os quais participaram
activamente na, vida política da sua cidade. Segundo este ponto de vista,
exalta-se a vida activa em contraposição à especulativa e a filosofia moral
em contraposição à física e à metafísica. A Política de Aristóteles é
estudada com renovado interesse e o seu autor elogiado por ter reconhecido o
valor do dinheiro como coisa indispensável à vida e à conservação do
indivíduo e da sociedade. Reconhecia-se assim à poesia, à história, à
eloquência e à filosofia um valor essencial; atendendo ao que o homem é e
 verdadeira
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mente deve ser; retomava o seu inteiro valor aquele conceito de paideia ou
humanitas que já no tempo de Cícero e de Varrão exprimia o ideal da formação
humana como tal, ideal este que só se
poderá identificar por intermédio daquelas artes próprias do homem e que o distinguem de todos os outros animais (Aulo Gellio, Noct. att., XIII, 17).
3)-Finalmente, fazem também parte do humanismo renascentista a concepção
civil da religião e o conceito da tolerância religiosa. A função civil da
religião encontra-se na fundamentação da correlação entre cidade celeste e
cidade terrena:
a cidade terrena deverá, na medida do possível, realizar a
harmonia e a felicidade que são características da cidade celeste. A harmonia
e a felicidade pressupõem, por sua vez, a paz religiosa. O ideal da paz
religiosa é a for-ma tomada pela exigência da tolerância religiosa, no
humanismo e no Renascimento. Os humanistas estão convencidos da identidade
essencial entre filosofia e religião e da unidade de todas as religiões, não
obstante a diversidade dos respectivos cultos. Como é óbvio, este ideal tem
de ser entendido como privando a intolerância de toda e qualquer base pois na
verdade a crença na possibilidade de uma "paz" no sentido em que, por
exemplo, Pico della Mirandola emprega este termo, significa a renúncia aos
contrastes insuperáveis e
à luta entre religião e filosofia por um lado e entre as várias religiões e
as várias filosofias por outro, bem como o fim do ódio teológico.
Cada época vive de uma tradição e de uma herança cultural das quais fazem
parte os valores
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fundamentais que inspiram as suas atitudes. Esta tradição, porém,
especialmente nas épocas de transição e renovação, nunca consiste em herança
passiva ou automaticamente transmitida mas sim na escolha de uma herança. Os
humanistas rejeitaram a herança medieval e escolheram a do mundo clássico
como sendo aquela que achavam constituída pelos valores fundamentais que lhes
eram mais caros. O que lhes interessava era fazer reviver a mencionada
herança como instrumento de educação, ou seja, de formação humana e social. A
primazia que concederam às chamadas letras humanas, isto é, à poesia, à
retórica, à história, à moral e à política, fundava-se na convicção,
igualmente herdada dos antigos, de que estas disciplinas são as únicas que
educam o homem como tal, levando-o a tomar consciência das suas reais
aptidões. Esta convicção poderá talvez, nos nossos dias, considerar-se
demasiado estreita mas o que não pode é ser
encarada como preconceito de literatos. As letras humanas não constituíam para os humanistas campo próprio para exercícios brilhantes mas inúteis, nem ornamento fabuloso destinado à ostentação nos círculos da alta sociedade.
Constituíam sim o único instrumento que conheciam, apto a formar homens
,livres, dignos e empenhados em construir um mundo justo e feliz. Não há
dúvida que o humanismo (como todos os outros períodos da história do
Ocidente) conheceu também o prazer do exercício literário, a elegância da
investigação meramente erudita e
a tentação de esconder, sob os méritos formais da linguagem, das artes ou da
literatura, a carência
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de um sério e profícuo interesse humano. É igualmente indubitável que estes
sintomas de deterioração prevaleceram ou se tomaram mais evidentes no século
XVII, quando a decadência política e
civil da Itália tomou quase impossível o exercício daquelas actividades que
os humanistas dos séculos anteriores tinham exaltado no mundo antigo.
Entretanto, porém, o humanismo renascentista italiano dera já os seus frutos da Itália e mesmo nesta, o novo espírito de iniciativa e liberdade que o Renascimento tinha suscitado dava igualmente seus frutos no campo da ciência.
§ 334. O RENASCIMENTO
Os estudos filológicos mais recentes (Hüdebrand, Walser, Burdach)
estabeleceram para além de toda e qualquer dúvida a origem religiosa do termo
e do conceito de renascimento. Renascença é uma
segunda nascença, a nascença do homem novo ou espiritual de que falam o
Evangelho segundo S. João e as Epístolas de S. Paulo (§§ 130-31). Termo e
conceito mantêm-se durante toda a Idade Média com o significado de regresso
do homem a
Deus e à vida que lhe fugiu após a queda de Adão.
O Renascimento é uma renascença do homem neste mesmo sentido de renovação;
esta renovação porém não consiste já numa transcendência dos limites da
natureza humana, numa existência de pura e exclusiva ligação com Deus, mas
sim numa verdadeira renovação do homem na sua capacidade e nas suas
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relações com os outros homens, com o mundo e com Deus. Uma renascença em
Deus, entendida como
uma nova e mais genuína acepção das relações do homem com Deus, longo de ser
excluída desta renovação, é até considerada como a sua condição primordial,
embora não fique assim esgotado o sentido da renascença, pois esta reporta-se
ao mundo do homem na sua totalidade: à sua actividade prática, à sua arte, à
sua poesia e à sua vida em sociedade. A renascença do homem não é o
nascimento para uma vida diferente e super-humana, mas sim o nascimento para
uma vida verdadeiramente humana porque baseada naquilo que o homem tem de
mais seu: as artes, a instrução e a investigação, que fazem dele um ser
diferente de todos os outros que existem na natureza e o tomam na verdade
semelhante a Deus, restituindo-o assim à condição de que decaíra. O
significado religioso de renascença identifica-se com o mundano: o fim último
da renascença é o próprio homem. O seu instrumento essencial é o retorno aos
antigos que é também entendido como um regresso ao princípio, ou
seja, como um retorno ao que dá vida e força a
todas as coisas e de que depende a conservação e o aperfeiçoamento de todos
os seres. O regresso ao princípio ora um conceito neoplatónico e por isso não
admira que tenha sido sobretudo teorizado pelos Platónicos do Renascimento
(Ficino, Pico). Foi todavia expressamente defendido também por certos
filósofos naturalistas (Bruno, Campanella) e
por Maquiavel; este último afirma que o regresso às origens constitui o único
modo possível de reno-
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vação das comunidades que só assim fugirão à decadência e à ruína pois,
segundo ele, todas as origens têm em si uma corta bondade pela qual as coisas retomarão a sua vitalidade e a sua primitiva força.
No neoplatonismo antigo o regresso ao princípio ora um conceito
declaradamente religioso. O princípio é Deus e o regresso a Deus é o
cumprimento do verdadeiro destino do homem e consiste na reprodução em
sentido inverso do processo da criação pelo qual os seres se desprenderam de
Deus, num voltar a subir a ladeira, numa tendência para a identificação com
Deus. Este significado religioso não é estranho aos escritores do
Renascimento; os Neoplatónicos, sobretudo, repetem-no e fazem-no seu. Porém o
regresso às origens assume também no Renascimento um significado histórico e
humano, segundo o qual o "princípio" a que se deve regressar não é Deus e sim
a origem terrena do homem e do mundo humano. É sem dúvida neste sentido que
Maquiavel falava do "regresso às origens" como modo de renovação das
comunidades humanas. Aliás o próprio Pico, della Mirandola admite (em De ente
et uno), ao lado do regresso ao princípio absoluto, isto é, a si mesmo,
consistindo nisto a sua felicidade terrena. Ora este regresso do homem ao seu
princípio é, substancialmente, regresso àquilo que o homem foi, ou seja ao
seu longínquo, mas mais autêntico, passado, às origens da sua história. Como
é óbvio, as origens da história humana estão para além do mundo clássico,
para o qual olham sobretudo os escritores do Renascimento os quais, porém,
sustentam que foi no mundo clássico que o exercício
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daquelas faculdades que desde a origem asseguraram ao homem um lugar
privilegiado no mundo, encontrou a sua expressão amadurecida e perfeita. Por
esta razão o Renascimento pôde acrescentar ao conceito da verdade como filia
temporis o da continuidade da história através da qual o homem melhora e
amplia as suas faculdades e que por isso permite aos modernos verem mais
longe que os
antigos, tal como acontece ao anão empoleirado nos ombros do gigante.
Por meio do regresso à antiguidade clássica, que é ao mesmo tempo regresso do homem a si próprio, vai tendo lentamente lugar a conquista da personalidade humana. Esta conquista é condicionada pela consciência
da própria originalidade relativamente aos outros, ao mundo e a Deus. A descoberta da historicidade e a investigação filológica, fornecem ao homem o sentido da sua própria originalidade quanto aos outros, quanto àqueles mesmos exemplares da humanidade que tinham vivido no passado. O regresso da arte à natureza e a redução desta à objectividade (de onde nasceu a ciência), realçam a originalidade do homem face à própria natureza de que faz parte e contribuem deste modo para a formação do sentido e do conceito da personalidade humana.
Finalmente, a confirmação da transcendência divina pela qual o Renascimento
se liga nova e directamente à especulação cristã da Idade Média, acentuando a
separação entre o homem e Deus, vem acentuar ainda mais o carácter original
do homem e a irredutibilidade da sua situação à de qualquer outro ser, quer
seja supe-
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rior, quer inferior. Resulta daqui a função mediadora. e central que é
atribuída ao homem como "cópula do mundo> (Ficino, Pico, Bovilo, Pomponazzi),
como nó da criação, no qual encontram a
sua unidade e o seu equilíbrio os vários aspectos da mesma. Daqui resultam
também a afirmação da liberdade humana e as discussões em torno das relações
desta com a ordem providencial do mundo. Resultam ainda as análises da
fortuna ou do acaso, aos quais se não pretende sacrificar o poder decisivo da
vontade que se afirma dominadora de ambos. Resulta finalmente o,
reconhecimento da origem humana dos estados, fruto da habilidade e da
perspicácia dos políticos.
§ 335. RENASCIMENTO: AS ORIGENS DA CIÊNCIA EXPERIMENTAL
Com o reconhecimento do carácter essencial e determinante das relações entre
o homem e a natureza, o humanismo estabeleceu a premissa fundamental da
investigação experimental moderna. Tem-se insistido muito, nestes últimos
tempos, na
importância da contribuição dada pelos Escolásticos de Trezentos à formação
da ciência moderna, através da crítica de teorias aristotélicas fundamentais,
como a do movimento dos astros e projécteis (§325). Confrontando esta
contribuição com a hostilidade que os humanistas manifestam contra o físico
Aristóteles e, em geral, contra as especulações físicas e metafísicas dos
Escolásticos, somos
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levados a concluir, que o desenvolvimento da ciência moderna está mais ligado ao aristotelismo tradicional do que ao humanismo renascentista.
Vimos já, porém, como a aversão ao físico Aristóteles e a preferência dada ao
Aristóteles moralista constituía para os humanistas um motivo polémico que
tinha por objectivo acentuar a importância que pretendiam atribuir àqueles
ramos da ciência do espírito, considerados indispensáveis à direcção da vida
activa do homem. Este motivo polémico não implicava a aversão à natureza ou à
sua investigação e observação directas que já a arte do Renascimento tão
estreitamente ligada ao movimento humanístico considerava como seu
fundamento, guia e ideal. Acontece que a investigação científica, tal como se
revelou nas invenções de Leonardo e
na obra de Galileu ora uma investigação baseada na observação e na
experiência. E a observação
e a experiência não são coisas que possam limitar-se a ser anunciadas e
programadas têm que se empreender e levar efectivamente a cabo. Não podem
porém empreender-se nem levar-se a cabo se não se apoiarem num interesse
vital, interesse este que só pode ser constituído pela convicção de que o
homem se encontra firmemente implantado no
mundo da natureza e de que as suas faculdades cognoscitivas mais eficazes e
adequadas, são precisamente aquelas que derivam das suas relações com a
natureza. Quando Galileu punha, ao lado dos raciocínios matemáticos, a
"experiência, sensata" como a única fonte restante do conhecimento, estava
claramente a indicar a mudança de direcção que
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existe na base do empenhamento experimental da ciência moderna. Já antes
dele, Bernardino Telésio, embora sem se empenhar em trabalhos de
investigação, afirmara em De rerum natura juxta propria principia que os
princípios próprios do mundo natural e os únicos capazes de o explicar, são
os princípios sensíveis, enunciando a equação entre "o que a própria natureza
revela" e "o que os sentidos dão a perceber". O recurso à experiência
sensível, interrogando-a e obrigando-a a falar é o único caminho que, segundo
esta opinião, conduz à explicação da natureza pela natureza, ou seja, aquele
que não lança mão de princípios estranhos à própria natureza. Esta autonomia
do mundo natural, que é pressuposto de toda e qualquer investigação
experimental, é um aspecto da atitude humanística, ao
procurar entender cada coisa nos seus elementos constitutivos e no seu valor intrínseco. Assirn, e de uma forma geral pode dizer-se que o Renascimento criou as condições necessárias ao desenvolvimento de uma investigação experimental da natureza, estabelecendo designadamente:
1) - Que o homem não é um hóspede provisório da natureza mas sim ele próprio um ser natural, cuja pátria é a natureza;
2) -- Que, o homem como ser natural, possui tanto o -interesse como a
capacidade de conhecer a natureza;
3) - Que a natureza só pode ser interrogada e
compreendida por meio dos instrumentos que ela própria fornece ao homem.
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Trata-se aqui, obviamente, de condições gerais mas não determinantes e
que portanto não poJem considerar-se a origem de todos os caracteres de
que a ciência moderna se apresenta composta nos seus primórdios. Estes 
caracteres determinam por sua vez outros factores, estes porém, ainda e
sobretudo pertencentes ao humanismo renascentista.
O primeiro consiste precisamente no já citado "regresso ao antigo" que é a tendência peculiar do humanismo. O regresso ao antigo produziu a revivescência de doutrinas e textos desprezados durante séculos, como por exemplo as doutrinas heliocêntricas dos Pitagóricos, as obras de Arquimedes, dos geógrafos, dos astrónomos e dos médicos da antiguidade. Os velhos textos forneceram com frequência a inspiração ou o motivo para novas descobertas, como aconteceu sobretudo com Arquimedes, no qual amiúde se inspirou Galileu.
Por outro lado, o aristotelismo renascentista, ao mesmo tempo que dava origem
a uma nova e mais livre leitura de Aristóteles, ia elaborando eficazmente, em
polémica com as concepções teológico-r-liracu-listas, o conceito de uma
ordem natural imutável e necessária, baseada na série causal dos eventos.
Este conceito passou a constituir o esquema geral da investigação
científica. A magia, posta em evidência pelo Renascimento, uma vez aceite e
difundida, contribui para determinar o carácter activo e operativo da ciência
moderna, o qual consiste no domínio e na sujeição das forças naturais com o
fim de as colocar ao serviço do homem. Por último, a ciência derivava ainda
do platonismo e
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do pitagorismo antigos o seu outro pressuposto fundamental, sobre o qual insistem igualmente Leonardo, Copérnico e Galileu: a natureza apresenta-se escrita em caracteres matemáticos e a sua linguagem própria é a da matemática.
A todos estes factores que, com importância diversa e de modos diferentes,
condicionam os primórdios da ciência experimental na Europa, o Renascimento
está, directa ou indirectamente, ligado neste ou naquele dos seus aspectos
essenciais. Entre estes factores podem e devem certamente incluir-se as
críticas que os Escolásticos de Trezentos (Occam, Buridan, Alberto da
Saxónia, Nicolau Oresmo) tinham formulado contra alguns dos pontos
fundamentais da física aristotélica. Essas críticas provêm (é preciso não o
esquecer) da orientação empírica que Occam fizera prevalecer na última
Escolástica, quando, pela reconhecida impossibilidade de interpretar e
defender as verdades teológicas, a filosofia ficara disponível para outros
fins e interesses. O valor de tais críticas deriva portanto, não do
facto de
se situarem adentro do aristotelismo tradicional mas antes do de serem anti-
aristotélicas e de constituírem a primeira manifestação daquela revolta do
aristotelismo que, na segunda metade do mesmo século e no século seguinte deu
origem ao humanismo. Constituem portanto, não a união do aristotelismo com a
ciência, mas, antes pelo contrário, a primeira ruptura da frente aristotélica
tradicional. Ao aristotelismo de Trezentos (como a boa parte do
renascentismo) faltava todavia aquele reco-
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nhecimento da naturalidade do homem e dos seus meios de conhecimento, o qual é condição indispensável de todo e qualquer estudo experimental da natureza.
Sob este aspecto o aristotelismo não podia fornecer à ciência qualquer
impulso ou razão de vida. Só a revolução humanística pôde realizar a
mudança radical de perspectiva da qual nasceu a investigação científica e a nova concepção do mundo.
Esta concepção, para a qual contribuíram igualmente platónicos como Cusano e
Ficino, filósofos naturalistas como Telésio e Bruno e cientistas como
Copérnico e Galileu, é (,não o esqueçamos) precisamente a antítese da cone-opção aristotélica.
O mundo não é um conjunto finito e concluído, mas antes um todo infinito e aberto em todas as direcções. A sua ordem não é final mas sim causal; não consiste na perfeição do todo e das partes e sim na concatenação necessária dos eventos.
O homem não é o principal ser visado pela teleologia do universo e cujo destino estaria pois confiado a essa teleologia, mas sim um ser natural entre os outros, que tem a mais a faculdade de planear e realizar o próprio destino. O conhecimento humano do mundo não é um sistema fixo e concluído mas sim o resultado de tentativas sempre renovadas e que devem ser continuamente submetidas a verificação.
O instrumento desse conhecimento não é uma razão supermundana e infalível mas um conjunto de poderes naturais falíveis e corrigíveis. São estes os traços gerais da concepção que ainda permanece na base da nossa ciência e da nossa civilização.
30
§ 336. RENASCIMENTO: DANTE
O primeiro anúncio da renascença aparece com
Dante Alighieri. Toda a sua cultura é medieval e escolástica. O seu
pensamento filosófico oscila entre S. Tomá s e Sigieri de Brabante-ao qual,
apesar da condenação eclesiástica, exaltou no Paraíso-e o seu espírito
alimenta-se dos textos e das discussões que imperavam nas escolas. A sua obra
poética, porém, vive um clima novo e anuncia os aspectos fundamentais do
Renascimento. Já a poesia autobiográfica da Vida Nova não é mais do que a
análise e expressão poética da renovação sofrida pelo poeta, sob o impulso
espiritualizante do amor. Precisamente por causa desta renovação nasce o
poeta para a sua arte e torna-se capaz de escrever poesia segundo o "doce
estilo novo", por conseguinte não através duma fria elaboração doutrinal, mas
por inspiração do amor que o leva a falar como lhe dita o seu íntimo. (Purg.,
24, 49 e segs.). Na Comédia, porém, a ideia de renovação alarga-se e
aprofunda-se, abrangendo a própria pessoa do poeta e
o seu destino individual, a renovação de tudo que o rodeia, bem como da
religião e da arte, da igreja e do estado. Aparentemente, a Comédia é a visão
profética da viagem de Dante através dos três reinos transmundanos, viagem
pela qual o poeta, após ter conhecido os abismos da culpa e do pecado se
afasta penosamente do mal, subindo a montanha do Purgatório até atingir no
cume desta o Paraíso ,terrestre e consequentemente o esquecimento do pecado e
a renovação total da sua alma, simboli-
31
zados pela acção purificadora das águas do Lete e
do Eunoé. Toma-se assim digno de iniciar a última parte da viagem pelas
esferas celestes, até ao limiar do mistério divino. Mas o fim da ~ dantesca
não é o de descrever a preparação da alma de Dante para a vida extra-terrena
mas sim o de promover a
renovação do mundo ao qual pertence o homem, Dante. O próprio Dante afirma
na carta em que dedicou o Paraíso a Cangrande della Scala, que a finalidade
do poema é a de "apartar os que vivem nesta vida do estado de miséria,
conduzindo-os a
um estado de felicidade" (Ep., XHI, 15). A viagem transmundana de Dante é a de um homem vivo que deve regressar para junto dos vivos e aí revelar a sua visão. É precisamente da revelação da sua visão e por conseguinte da participação na mesma de todos os homens de boa vontade, os quais poderão, servindo-se do magistério artístico do poeta, refazer com ele a viagem e com ele se renovar, que Dante espera a renascença do mundo seu contemporâneo.
Esta renascença por ele esperada, é um regresso às origens. "0 supremo desejo
de todas as coisas", escreve em Convívio (IV, 12, 14), "e o primeiro que da
natureza resulta, é o de regressar à sua origem". A igreja deverá renovar-se,
regressando à sua primitiva austeridade, segundo a admoestação
e o exemplo dos seus dois grandes reformadores, S. Domingos e S. Francisco. O
estado deverá regressar à paz, à liberdade e à justiça que eram o
seu apanágio na ora de Augusto, renovando-se assim no regresso à concepção imperial de Roma.
32
Mas precisamente porque a intenção de Dante visa o outro mundo para depois
regressar a este e promover a sua renascença, a obra do poeta é rica de uma
realidade humana, na qual os símbolos e as alegorias acham a carne, e o
sangue que lhes dão vida. A natureza da arte de Dante é determinada pelo
propósito de renovação, da qual o poeta a
considera instrumento. Precisamente porque essa
renovação deve tirar os homens da sua miséria e conduzi-los à renascença num
mundo renovado, é que os homens figuram no poema dantesco não como símbolos
ou esquemas conceituais (ainda que às vezes ali apareçam com esta função) mas
antes com a sua realidade humana, os seus ~os, as suas paixões e a sua
aspiração ao divino. É impossível separar no poema de Dante o conteúdo
doutrinal as alegorias e os símbolos, da forma poética, na qual aqueles
encontram a própria realidade artística. A distinção entre forma e conteúdo impossibilita o entendimento da arte de Dante a qual possui a mesma unidade da personalidade histórica do seu autor. As doutrinas, alegorias e símbolos fazem parte integrante da concepção dantesca de renascença, como dela fazem igualmente parte integrante os homens que deverão vivê-la e fazê-la sua.
Dante não se teria preocupado em revestir de carne e ossos os seus símbolos
se não o tivesse MOVido uni interesse fundamental, como é o de fazer
participar os homens e o seu mundo, da renascença por ele próprio sofrida, na
sua viagem transmundana. Quanto maior for a corpulência humana e passional
das sombras que pululam nos fossos
33
;infernais, padecem os tormentos purificadores ou
sorriem envoltas na luz do paraíso, tanto mais evidente )resultará o apelo à renovação e à exigência de renascença para as quais propende o espírito de Dante. No ocaso da Idade Média, Dante vem afirmar, com todo o poder da sua arte, a exigência daquela renovação que deveria ser a palavra de ordem da renascença.
§ 337. RENASCIMENTO: PETRARCA
Se Dante se encontra ainda doutrinalmente ligado à Idade Média, Francisco
Petrarca (20 de Julho de
1304-18 de Julho de 1374) já se liberta mesmo doutrinalmente daquele mundo e
dá início pleno ao
humanismo. A polémica que conduziu contra o
averroísmo em De sui ipsius et nzultorum ignorantia (1337-38), assinala
precisamente essa libertação. Tal polémica é conduzida em nome da velha
sabedoria romano-cristão, representada por Cícero e Santo Agostinho, que
Petrarca considera fundamentalmente de acordo entre si. A difusão do
averroísmo, com o crescente interesse que suscitava pela investigação
naturalista, parece a Petrarca desviar perigosamente os homens daquelas artes
liberais que são as únicas a poder dar a sabedoria necessária para se
alcançar a paz espiritual
nesta vida e a
eterna beatitude na outra. Quase todos o& conhecimentos que os ditos
investigadores naturalistas acabam por atingir, vêm a revelar-se falsos à luz
da experiência; "mas ainda que fossem verdadeiros", acrescenta Petrarca, "de
nada serviriam para
34
a vida beata". A sabedoria clássica e cristã, contraposta por Petrarca à
ciência averroísta, é a baseada na meditação interior pela qual se esclarece
a si própria e se forma a personalidade do homem como indivíduo. O processo
autobiográfico de Santo Agostinho, continuamente debruçado sobre si próprio e
para quem não existe problema que não seja o
seu próprio e não existe doutrina que não responda a uma sua própria
exigência pessoal (§ 156), é o que se apresenta mais próximo do seu espírito
e a ele pensa recorrer continuamente. Este processo é o adoptado por si na
obra (composta entro
1347 e 1353) De contemptu mundi à qual chamou também Secretum e que em alguns
manuscritos se apresenta com o título "0 conflito secreto das suas
preocupações" (De secreto conflictu curarum sua-
rum). É um diálogo entre Petrarca e Agostinho, durante o qual o primeiro
reporta continuamente ao exemplo e aos ensinamentos do segundo tolas
as suas exigências de ordem espiritual. Esta obra porém, contém além disso a
confissão do conflito interior do poeta, da sua íntima debilidade. Confessa-
se ele vítima daquela acédia (ou acídia) que era a moléstia medieval dos
conventos e consistia rum doloroso tédio da w;da. A clareza que traz às suas
contradições íntimas é sintoma que atingiu o sentido da pers-onalidade o qual
emerge precisamente dessa clareza. Numa carta famosa (Ep. famil., IV, 1), ao
descrever a sua ascensão ao Monte Ventoso, Petrarca narra como, ao chegar ao
cume, em vez de se deter na contemplação da majestade do espectáculo que se
lhe oferecia, abriu as Confissões
35
de Santo Agostinho que frequentemente o acompanhavam nas suas peregrinações e
leu "Os homens contemplam as altas montanhas, as enormes ondas do mar, o
largo curso dos rios, o vasto círculo do oceano e os caminhos das estrelas-
mas esquecem-se de si próprios e a si próprios se encaram sem admiração". Põe
então a advertência de Santo Agostinho Noli foras ire em relação com o Scito
te ipsum de Sócrates e reconhece que toda a sabedoria antiga tende à
concentração do homem em
si próprio, distraindo-o do mundo exterior. A sua
vontade, todavia, continua dividida entre a admiração perante, a natureza e a
advertência da sabedoria, no seu espírito lutam o chamamento do mundo e o
apelo à concentração interior, luta esta que é característica da sua
personalidade. É esta mesma
luta que o leva, por um lado, a afastar-se do mundo, buscando a solidão em
Valchiusa, e por outro a
procurar honras e glória, juntamente com a coroa-
ção em Campidoglio. No seu espírito combatem o
homem medieval, acorrentado pelo desejo exacerbado da eterna salvação, o qual
exige a maior concentração interior, e o homem moderno, enamorado de Laura,
amando a natureza e desejando a glória
e a opulência. Está porém consciente da contradiÇão existente entre as duas exigências e é precisamente nessa consciência que reside a novidade da sua personalidade.
Procurou ele libertar-se dessa contradição através da meditação moral em De
reniediis utriusque fortunae. Mas mesmo aí, a contradição aparece reconhecida
como a lei da vida. "Tudo acontece", diz-
36
* nos, ",por força da contradição. Aquilo a que se (lá o nome de mudança é na verdade luta". E a maior e mais áspera luta, é a que se trava no próprio homem. "Que cada um se interrogue e responda a si próprio para assim se dar conta até que ponto a sua vontade é intimamente contrariada por diversas e contrárias paixões e impelida, ora para cá, ora para lá, por estímulos vários e opostos. Jamais se consume ou se apresenta homogénea, mas sim interiormente discorde e dilacerada". Donde o pessimismo que domina as meditações de Petrarca e o leva a afirmar acerca da vida: "A cegueira e o olvido marcam o seu início, o cansaço a sua continuação, a dor o seu termo e o erro todas as coisas".
Este pessimismo, porém, não impediu Petrarca de esperar e anunciar a
renascença de uma era de paz. Na canção ao Espírito gentil (quer tenha ou
não sido dedicada a Cola di Rienzo), manifesta a
esperança de que Roma seja novamente chamada "à sua antiga viagem" e
reencontre o seu antigo esplendor "<.A minha Roma voltará a ser bela"). E
noutro passo, não falta a espectativa de uni
retorno à época áurea do mundo, ou seja à era
da paz e da justiça:
De almas belas e amigas da virtude Se vai enchendo o mundo; nele veremos depois Tudo áureo e cheio de obras antigas.
A época áurea consiste pois num regresso das "obras antigas", quer dizer, do
costume e das artes
37
antigas. E Petrarca contribui para a renascença do antigo com a sua obra de
poeta e de historiador: África, o poema latino do qual esperava a máxima
glória, é uma exaltação da virtude romana que jamais se considerou separada
da justiça e da benevolência; De viris illustribus é uma tentativa de
reconstrução das grandes figuras históricas da antiguidade, para nelas
patentear a sua profunda e
essencià humanitas e idêntico fim têm os Reruin memorandarum cujo significado o próprio Petrarca esclarece, ao dizer: "Estudarei os exércitos romanos, perlustrarei o fórum e, quer nas legiões armadas, quer no tumulto do fórum encontrarei espíritos pensativos e dados à contemplação".
§ 338. HUMANISTAS ITALIANOS: SALUTATI, BRUNI, RAIMONDI, FILELFO
Na esteira de Petrarca seguem os humanistas italianos. Coluccio Salutati
(1331-1406) que foi durante 30 anos escrivão da senhoria de Florença,
apresenta certos traços de semelhança com Petrarca. Coluccio considera
estéreis, perante a morte, as consolações aduzidas pelos filósofos. A morte é
um mal, diz nas Epistolae, embora não seja um mal moral e sim natural, não
uma culpa e sim uma pena. É um mal para quem morro e um má para os parentes e
amigos; e é o pior dos males pois consiste na perda do ser. Mesmo que a alma
sobreviva, o homem, sendo unidade de corpo e alma é
38
anulado pela morte que é assim para ele o mal pior. Por conseguinte, o facto
de o homem nada poder fazer perante a morte, aumenta e agrava a
sua dor em vez de a diminuir. Em face da morte não há pois outra consolação
além da fé: só Deus pode conceder ao homem a graça de o fazer suportar a
ideia- Aqui, portanto, se por um lado a
morte é despojada de todos os aspectos consoladores e benéficos de que era
revestida pela sabedoria antiga e cristã, por outro recorre-se à pura graça
de Deus para obter a designação no inevitável. É uma atitude de intima
contradição, já muito remota da medieval. Igualmente remota da concepção
medieval é a exaltação que Coluccio faz da vida activa relativamente à
contemplativa. Quem se perdesse na contemplação de Deus a ponto de já não se
comover com a infelicidade do próximo, de não se afligir com a morte dos
parentes e de não vibrar com a ruína da pátria, não seria um
homem mas antes um tronco ou uma pedra. Por isso, a verdadeira sabedoria não
consiste no puro entendimento mas, é antes e sobretudo prudência, ou seja
razão mentora da vida. E num seu tratado, intitulado De nobilitate legum et
medicinae, Coluccio afirma que de boa vontade, contanto que lhe deixem a 
ciência das coisas humanas, abandonará todas as outras verdades aos, que
exaltam a
especulação pura. Põe também as leis, que dizem precisamente respeito aos
homens e às suas relações mútuas, acima da medicina e das ciências naturais
em geral, as quais só se ocupam de coisas materiais. Finalmente, é também
característica de
39
Coluccio a afirmação da liberdade humana que julga conciliável. com a ordem infalível do mundo criado por Deus (De fato, fortinta et castí.
Discípulo
de Salutati foi Leonardo Bruni, nascido por volta de 1374 e
falecido em 1444. Estudou grego com Emanuel Crisolora, o qual, tendo chegado
a Florença em 1397, deu aos estudos humanísticos, a possibilidade de se porem
em contacto directo com o mundo grego na sua língua original. Bruni traduziu
do gre.-
p para o latim numerosos
diálogos platónicos e ainda a Ética Nicoinachea, a Económica e a Política, de
Aristóteles. Escreveu uma Vita Ciceronis e uma Vida de Dante, considerando
xealizado nestas duas figuras o ideal do homem douto e sábio que, longe de
permanecer alheio à vida política, nela participa activamente. Na Vita
Arístotelis, e em Dialogi ad Petrum Histrum onde se discute o valor
comparativo de antigos e
modernos bem como em Isagogicon moralis disciplinae, a sua preocupação
constante é a de demonstrar como as doutrinas morais das mais importantes
escolas filosóficas da antiguidade (platonismo, aristotelismo, epicurismo,
estoicismo) concordam fundamentalmente entre si. E é justamente às doutrinas
morais que Bruni dá o máximo relevo, uma vez que as disciplinas meramente
especulativas lhe parecem menos úteis para a vida. " A filosofia moral", diz
no Isagogicon "é, por assim dizer, inteiramente nossa. Por isso aqueles que a
descuram, dedicando-se antes à física, parecem de certo modo ocupar-se de
assuntos estranhos, desprezando os pró-
40
prios". Estas palavras de um admirador entusiástico e conhecedor directo dos
Gregos que tão frequentemente afirmavam a superioridade da vida especulativa,
são significativas quanto à tendência dos humanistas para a exaltação da vida
activa o da participação do homem nos negócios públicos com vista ao bem
comum. Também é característica a convicção de Bruni, segundo a qual os
filósofos antigos nada ensinaram que fosse diferente da verdade cristã. "Mas
se quisesse referir tudo quanto h nos filósofos de concordante com as nossas
verdades, creio que suscitaria a admiração de muitos... Ensina Paulo algo
mais do que Platão?" A sabedoria antiga, quer cristã, quer pagã, aparecia aos
olhos de Leonardo Bruni como um todo harmónico; por conseguinte o regresso à sabedoria clássica justificava-se como uma renascença daquela vida moral que os filósofos antigos haviam conhecido e o cristianismo fizera sua, espalhando-a depois pelo inundo.
Os humanistas empenham-se cada vez mais decididamente em considerar e
apreciar os aspectos propriamente humanos da vida, ou seja, o que diz
respeito ao homem na sua essência terrestre e activa, ao homem que, antes de
atingir a felicidade transmundana, procura conseguir na terra a que for
humanamente possível. Esta compreensão humana do homem, este reconhecimento
sem condenação da sua tendência para a felicidade terrena, antes lhe
admitindo a legitimidade e o valor, determina
uma nova valorização do prazer e por conseguinte
41
uma nova apreciação do epicurismo, doutrina para a qual o prazer ora o
objectivo da vida. Tom-se agora uma concepção correcta do epicurismo e
sabe-se que para Epicuro o prazer não andava separado da virtude mas era,
pelo contrário, por ela condicionado. Por esse motivo Epicuro é exaltado como
aquele que enunciou uma verdade fundamental da sabedoria prática do homem. A
exaltação de Epicuro encontra-se numa carta de Cosmo Raimondi (cremonês,
falecido em 1435) para Ambrósio Tignosi. "Epicuro", diz Raimondi, "considerou
o prazer como o supremo bem porque perscrutou profundamente as forças da
natureza e
compreendeu que nascemos e somos formados a partir da natureza, de tal modo
que não há nada mais congruente do que possuir íntegros e sãos todos os
membros do corpo, conservando-os nesse estado, isentos de todo e qualquer mal
espiritual ou corporal". A própria virtude se apresenta subordinada ao
prazer, na medida em que não é procurada senão porque permite viver
prazenteiramente, evitando os
prazeres que não convém buscar e buscando os que convêm. Idêntica defesa do
prazer é frequentemente encontrada nas cartas de Francisco Filelfo (1398-
1481), o qual insiste na identidade entre a virtude e o prazer e declara que
lhe parece "não apenas tolo, mas completamente louco e fátuo aquele que
pretende negar o gozo do prazer mais alto, da felicidade e da beatitude, ao
homem virtuoso". Este aspecto do humanismo atinge porém a sua expressão máxima com Lourenço Valla.
42
§ 339. LOURENÇO VALLA
Nascido em Roma em 1407, Lourenço Valla vagueou por várias cidades italianas
e viveu durante
muito tempo na corto de Nápoles-, veio a falecer em Roma em 1457. A sua obra
mais famosa é o
De voluptate, um diálogo em três partes, no qual se defende a tese de que o
prazer é o único bem
para o homem e se apresenta uma concepção optimista da natureza, que
contrasta não só com o
estoicismo ao qual aparece polemicamente oposta, mas até mesmo com o
ascetismo cristão. O prazer é, segundo Valla, o único fim de toda a
actividade humana. As leis que governam as cidades foram elaboradas com um
propósito de utilidade, a qual gera o prazer, e todos os governos visam o
mesmo
fim. As artes liberais, como por exemplo, as que têm por objectivo
satisfazer as exigências necessárias à vida, a medicina, a jurisprudência, a
poesia e a oratória, têm todas como fim o prazer, ou pelo menos a utilidade,
que é o que conduz ao prazer (11, 39). A virtude não é senão a escolha dos
prazeres: procederá bem aquele que preferir a maior à menor vantagem e a
menor à maior desvantageM (11, 40). Até mesmo o cristão só age pelo prazer
que todavia para ele é, não o terreno e sim o coles- -. Porém e diversamente
dos restantes glorificadores do prazer, Lourenço Valla não considera este
como idêntico à virtude. Não é verdade que só o
justo seja feL-z, pois, pelo contrário, a vida nos
43
mostra frequentemente que assim não é. Na realidade ao cristão apresenta-se a
seguinte alternativa: ou se inchna para o prazer terreno e renuncia ao
eterno ou se inclina para este e renuncia àquele (111, 9). Mas quem espera os
bens eternos não deve gemer, nem sofrer ou acusar Deus porque lhe faltam os
terrenos. A renúncia do cristão deve ser confiante e jovial, para ser
verdadeiramente sincera e total
(111, 11).
Para Lourenço Valla é a aceitação desta condição que é própria do homem no mundo, consistindo na consciência da alternativa que esta condição apresenta.
"Compreendo", diz-nos, "de que te lamentas: de não teres nascido imortal,
como se a natureza estivesse em dívida para contigo. Se ela não pode dar-te
mais, e é certo que nem mesmo os
pais podem dar tudo a seus filhos, não lhe estás reconhecido pelo que
recebeste? Preferirias, certamente, não estar exposto ao risco quotidiano de
feridas, mordeduras, venenos e contágios. Mas quem assim fosse, seria imortal
e igual à natureza e a
Deus, ora isto não devemos pedi-lo nem é possível à natureza concedê-lo".
Glorificador da língua latina, na qual via o sinal da persistente soberania
espiritual da Roma antiga após a ruína da sua soberania política
(Elegantiarum linguae latinae libri, 1444), Valla provou com
argumentos filológicos num opúsculo famoso, intitulado De falso credita et
emenlita ConstantÚri donatione declamatio (1440), ser falsa a doação de
Constantino, ficando deste modo demonstrada a nuli-
44
dade jurídica da pretensão do papado à supremacia política universal.
Paralelamente, combateu em De
professione religiosorum (1442) a pretensão da Igreja à exclusividade da
garantia das autênticas relações do homem com Deus nas suas ordens
religiosas. ValI, a não reconhece qualquer privilégio à vida monacal. A vida
de Cristo não é custodiada apenas por aqueles que pertencem às ordens
religiosas mas
sim por todos quantos, dentro ou fora da sociedade dos clérigos, dedicam a
Deus as suas vidas. A verdadeira religiosidade
depende unicamente da atitude
do indivíduo, que livremente entra em ligação com Deus e não da adesão a uma
obrigação formal de carácter colectivo. Afirma-se aqui a liberdade da vida
religiosa contra a sua regulamentação medieval. E na verdade a exigência de
liberdade, da liberdade do indivíduo como tal, está na base de toda a posição
de Valla, que a faz valer em nome da própria religião e contra as ordens
religiosas e também em nome da investigação filosófica, contra o espírito de
reverência pela tradição escolástica. As suas obras De libero arbítrio e
Dialecticae disputationes (1439) são dirigidas precisamente contra o
predomínio de aristotelismo, que considera como a negação ou limitação da
liberdade de investigação. No prefácio desta última obra e após ter afirmado
que depois de Pitágoras, mais ninguém teve o nome de sábio mas apenas o de
filósofo e que sempre os filósofos tiveram a liberdade de dizer ousadamente o
que pensavam, acrescenta: "Tanto menos suportáveis são os peripatéticos
modernos que negam aos
45
sequazes de toda e qualquer ~Ia a liberdade de discordarem de Aristóteles,
como se este fosse sophos e não filósofo e como se ninguém o houvesse
discutido antes". E depois de haver aludido à variedade de opiniões das
escolas filosóficas que se seguiram a Aristóteles e à linguagem bárbara de
Avicena e Averróis, apoda de "homens supersticiosos, insensatos e indignos de
si mesmos, porque se privam culposamente da faculdade de procurar a
verdade", aqueles aristotélicos que induzem os próprios discípulos a jurar
que não mais discuidarão Aristóteles. A mesma afirmação de liberdade se
encontra em De libero arbítrio. Aqui porém, trata-se antes de uma lição pela
qual Deus condena ou salva os homens, ultrapassando assim os limites
consentidos à investigação humana. Nem os homens, nem os anjos conhecem o
motivo pelo qual a vontade divina torna certos homens empedernidos no mal e
tem piedade de alguns outros. Valla nega todavia que se trate de uma
contradição entre a liberdade humana e a presciência divina: assim como o
conhecimento de um acontecimento presente não determina esse evento, assim
também o conhecimento futuro não determina necessariamente que o mesmo
sobrevenha. A presciência divina não é causa dos acontecimentos futuros, os quais permanecem por isso contingentes. A solução de Valla para este problema é a escolástica mas o problema em si é livremente colocado e expresso mediante um mito: Apolo representa a presciência e Júpiter a omnipotência.
46
§ 340. HUMANISTAS ITALIANOS: FAZIO, MANETTI, ALBERTI, PALMIERI, SACCHI,
NIZOLIO
Entre os temas preferidos pelos humanistas italianos, dois há que sobressaem
relativamente a todos os outros: a dignidade do homem e o elogio da vida
activa. O primeiro aparece-nos tratado num
escrito de Bartolomeu Fazio (nascido em Espézia e falecido em 1457)
intitulado De excellentia et prestantia hominis, insignificante do ponto de
vista especulativo, e também num escrito análogo de Giannozzo Manetti (1396-
1459) intitulado De dignitate et excellentia hominis. Nesta obra, parte-se da
afirmação do carácter divino do homem para se atingir a formulação da sua
tarefa, expressa na
fórmula agere et intelligere. Agir e compreender significam para Giannozzo
Manetti "saber e poder governar e dirigir o mundo, o qual foi feito para o
homem". O reconhecimento da dignidade humana é ao mesmo tempo reconhecimento da missão de domínio que o homem deve desempenhar no mundo, consistindo num regnum hominis no sentido baconiano.
Contrastando com o optimismo ingénuo destas exaltações, apresenta-se-nos o tom realista e pessimista que domina as obras de Leão Battista Alberti (1404-1472), nas quais a exigência de afirmar no mundo o poderio do homem anda ligada ao reconhecimento das dificuldades e perigos da sua efectivação.
Opondo-se à atribuição de culpas à sorte, por parte dos homens, Alberti diz-
nos na introdução
47
do seu tratado Da família que não se pode atribuir à sorte a função de
conservar a virtude, os costumes ou as leis dos homens nem a culpa das
vicissitudes humanas. "A sorte não pode, nem, ao contrário do que julgam
alguns idiotas, é assim tão fácil, vencer quem não quer ser vencido. A sorte
só subjuga quem a ela se submetem. Desta conclusão, porém, apenas surge para
o homem a obrigação de agir de modo mais enérgico. "Por conseguinte, parece-
me poder-se acreditar que o homem nasceu, certamente não para apodrecer
jazendo, mas para viver agindo". Advertência semelhante se
encontra na obra Da vida civil de Mateus Palmieri (1406-75), onde se afirma a
superioridade da vida consumida ao serviço do bem público sobre a vida
solitária e devotada somente à meditação. Este tema é igualmente tratado em
De óptimo cive de Bartolomeu Sacchi (chamado o Platina, nascido em 1421 e
falecido em Roma em 1481), para quem o homem que se refugia na solidão é um
egoísta que se esquiva ao cumprimento da obrigação de trabalhar pelo bem dos
seus semelhantes,
A polémica contra a Escolástica, que já fora defendida energicamente por
Lourenço Valla, é retomada por Mário Nizolio, nascido em Bersello, perto de
Módena em 1498 (ou 88) e falecido em
1576. A sua obra principal intitula-se Antibarbarus philosophicus sive de
veris principiis et vera ratione philosophandi contra pseudophilosophos
(1553), a
qual é dirigida contra os aristotélicos que falsearam ou entenderam mal
Aristóteles e contra o próprio Aristóteles, que juntamente com algumas
verdades,
48
ensinou enorme quantidade de erros. As verdades contêm-se nos livros de ética
e política, na retórica e nos tratados sobre os animais; os erros, sobretudo
na lógica e na metafísica. É portanto necessário ler Aristóteles com espírito
crítico e saber distinguir nele o verdadeiro do falso. E Nizolio enumera
então as condições essenciais a todo e qualquer progresso rios estudos
filosóficos: um bom conhecimento das línguas latina e grega, o conhecimento
das regras gramaticais e da retórica, a leitura assídua dos autores gregos e
latinos, a liberdade de apreciação e a
clareza de expressão (Antibarb., 1, 1). Para combater Aristóteles, Nizolio,
adopta o ponto de vista de Ockham. A realidade é sempre individual. O
universal não é mais do que o acto de compreensão (comprehensio) do intelecto
pelo qual se abarcam todas as coisas particulares que pertencem ao mesmo
,género (111, 7). A realidade universal de que falam D
os Escolásticos é destituída de sentido. O universal não passa de um nome
puro que designa um conjunto de coisas particulares. As ciências mais
elevadas são a filosofia e a retórica. Constituem ambas um todo ú nico, tal
como a alma e o corpo, correspondendo a filosofia à alma e a retórica ao
corpo; ,nenhuma delas pode passar sem a outra e apenas se distinguem pelas respectivas tarefas pois-. enquanto a filosofia tem como objectivos o conhecimento da verdade e a rectidão das acções, a retórica tem como fins a rectidão do pensamento e da fala, no tocante às coisas naturais e civis (111, 3). A filosofia divide-se por sua vez em física e política; da primeira faz parte a t"ogia e da segunda, a ética.
49
A doutrina de Nizolio constitui o último ataque à Escolástica levado a cabo
com as próprias armas
da Escolástica. O ockhamismo é por ela utilizado para defender a sabedoria
humanística e a liberdade de investigação, da persistente reverência pela
tradição aristotélica
§ 341. BOVELO
Em França, o iniciador dos estudos humanísticos mediante o regresso ao
aristotelismo original foi Jaime Faber (Jacques Lefèvre, 1455-1537). O
discípulo de Faber, Carlos Bovi,.Uus (Charles Bouillé,
1470 ou 75-1553, aproximadamente) é uma das personalidades mais notáveis da
filosofia humanista, cujos temas apreende e expõe com grande liberdade
especulativa. A sua
obra mais significativa é De sapiente, no qual reconhece
ao homem aquela posição central de árbitro e síntese de todo o mundo natural
que igualmente lhe reconheciam Cusano (§§349 e segs.), Ficino (§§354 e
scgs.), Pico (§§357 e segs.) e Pomponazzi "§§362 e segs.). "Ao homem",
escreve, "nada é próprio nem peculiar mas são-lhe comuns todas as coisas
próprias dos outros seres. Tudo o que é próprio deste ou daquele ser ou é
mesmo próprio dos seres individualmente considerados, pertence também ao homem.
O homem transfere para si a natureza de todas as coisas, reflecte tudo e
imita a natureza inteira. Ao atingir e absorver tudo quanto está na natureza,
torna-se ele próprio tudo isso. Por conseguinte ele não é este ou aquele ser
particular nem lhe pertence
50
esta ou aquela essência, mas é simultaneamente todas as coisas". Por causa
desta sua posição singular o homem encontra-se no cume de toda a realidade.
Tom esta quatro graus, segundo Bovilo: o ser, a vida, o sentir e o entender. O mais baixo destes graus, o ser, pertence a todas as coisas: às pedras, às plantas, aos animais e ao homem. Porém, só pelo entender é que o ser atinge a consciência de si próprio e assim conclui o termina o ciclo do seu desenvolvimento. "Definimos a razão como a força pela qual a mão natureza volta a si própria e pela qual se completa o ciclo de toda a natureza, sendo esta restituída a si própria" (De sap., 5).
Até aqui parece que nos encontramos em presença do habitual ideário
neoplatónico, segundo o
qual a obra do homem é o acabamento racional e místico do mundo. Na verdade,
porém, as afirmações de Borvilo têm outro valor e tendem a definir a tarefa
do homem e a alternativa do seu destino. O homem pode com efeito escolher
livremente entre passar por todos aqueles graus, alcançando na inteligência o
completamento do ser, ou parar num deles. Se sucumbir ao vício da inércia e à
moleza medieval, degradar-se-á até ao ponto de não ser mais que existência
nua, sem forma e por conseguinte sem consciência, se, pelo contrário, se
elevar até ao grau mais alto, elevará consigo o próprio mundo no seu total
acabamento (De sap., 1-2). Só por esta segunda via o homem se tomará num
microcosmo, num minor mundus, levando consigo, na sua verdade o no seu valor
autêntico, o macrocosmo, o maior mundus. Da decisão do homem,
51
dependerão, ao mesmo tempo, a realização completa e final do próprio homem e
do mundo. o homem deve formar-se como tal, com virtude(, e arte, e, ao
formar-se homem, dará ao mesmo tempo ao mundo a sua forma final porque lhe
confere a perfeição última: a inteligência de si mesmo. "Esta", diz Bovilo
(De sap., 24) "é a
realização consumada (consumatio) do homem e
consiste na passagem de homem substancial a
homem racional, de homem natural a homem adquirido, de homem simples a homem
composto, perfeito e sábio". A natureza humana multiplica-se com esta
passagem e de mónada transforma-se em
díade, de homo em homohomo. O verdadeiro homem é aquele que se desdobrou no
sábio, ou seja, na consciência que adquiriu de si próprio e
do mundo. Mas a díade traz consigo a tríade. Entre o homem como puro ser natural e o homem que se forma por si com arte, devem existir um nexo e uma concordância que são paz e amor, a ligar os dois termos. A mónada e a díade combinam-se entre si, formando o tríade homohomoh~ que é a última perfeição do homem (De sap., 22).
Mas o homem como tal, nada tem de comum com os outros seres da natureza;
coloca-se numa esfera à parte para onde tudo converge por obra sua, esfera
essa situada no polo oposto àquele em
que se encontram as outras coisas do mundo.
O homem é o centro de todas as coisas, o espelho no qual estas se reflectem, não na sua realidade material e sim na sua realidade verdadeira e ideal.
"Seja qual for o lugar em que colocares todos os
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seres do mundo, no lugar oposto deverás colocar o homem para que possa ser o
espelho de tudo". Alude-se aqui claramente pela primeira vez à
subjectividade que é a função do homem como tal e por conseguinte à
polarização pela qual o mundo acaba por se estruturar entre objectividade e
subjectividade, entre natureza e homem. Reconhece-se ainda à subjectividade
humana um poder de iniciativa, que é essencial ao próprio mundo, uma
vez que o transfigura e o conduz a uma ordem e a unia unidade que ele por si
só não poderia atingir. "Todas as coisas eram plenamente actuais e cada Lima
delas permanecia constante no seu grau, no seu lugar e na sua ordem. Jamais o
homem poderia ter nascido das diversas actualidades, das diferentes espécies,
da diversidade entre as coisas e luzes do mundo, que por si sós não poderiam
nem dever:'am misturar-se, confundir-se nem harmonizar-sc. Portanto, foi
precisamente no exterior das diferenças e propriedades de todas as coisas, no
polo oposto àquele em que todas se encontram, no nó vital do mundo, no centro
de tudo, que o homem se formou, como uma criatura. pública, preenchendo tudo
quanto ficara vazio na natureza com forças, sombras, espécies e razões". (De
sap., 26). Não poderia ter-se exprimido melhor, na linguagem neoplatonizante
e escolástica, a originalidade do homem como sujeito, faca à objectividade da
natureza. Há um mito que exprime, segundo Bovilo, esta autoformação do homem
que se duplica no tocante à sua naturalidade e se torna sábio: é o mito de
Prometeu. Assim como Prometeu penetrou na morada divina para
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ali roubar o fogo e dá-lo aos homens, também o sábio que abandona o mundo sensível e penetra no espaço celestial, leva ao homem o lume da sabedoria, deste modo o fortalecendo e reanimando. Com efeito, o homem, por virtude deste lume "conquista-se a si próprio, possui-se e permanece seu, ao passo que o ignorante se conserva devedor à natureza, oprimido pelo homem essencial e sem pertencer jamais a si próprio". (De sap., 8). Prometeu simboliza portanto o homem que por si se forma e se possui. Bovilo exprimiu com grande energia e profundidade o resultado para o qual tende toda a especulação humanista.
§ 342. humANISTAS FRANCESES, ESPANHóIS E ALEMÃES
A Jaime Lefèvre junta-se em França Podro Ramus (de Ia Ramée, 1515-1572),
autor de numerosas obras nas quais aparecem novamente expostas a física, a
metafísica e a lógica aristotélicas. Nas suas Dialecticae institutiones
(1543), procura formular uma lógica ou uma dialéctica diferente da
aristotélica e mais conforme ao funcionamento natural do pensamento. D3fine a
dialéctica como doetrina disserendi, ou seja, ciência que ensina a arte de
discutir, a qual deve acompanhar, no seu método e nas suas divisões, o
comportamento natural do homem quando discute consigo próprio e com os outros acerca de um qualquer objecto. Este comportamento natural é o seguinte:
primeiramente
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medita em silêncio para encontrar o argumento que resolverá determinada
questão; depois exprime a ideia assim formulada e elaborada racionalmente, de
tal modo que se preste a responder a toda e qualquer objecção que lhe seja
dirigida. De acordo com este processo natural de pensar, a dialéctica na sua
primeira parte será o guia e a
base para a solução das questões; na segunda parte será o guia para a expressão desta solução de maneira a poder responder às possíveis perguntas. Por outras palavras, os momentos da dialéctica serão dois: a elaboração mental de um problema e a sua expressão verbal apta a enfrentar a discussão.
Ramus constrói sobre estas bases uma exposição minuciosa e pedante que
conheceu grande êxito nas escolas lógicas da época mas que tem hoje reduzido
interesse. O que há nele de importante é apenas a exigência de que parte: a
recondução da forma lógica do discurso à sua forma natural e o consequente
amoldar da dialéctica ao método próprio de qualquer homem que pense e
raciocine. Nisto se revela o espírito humanístico da sua dialéctica
que
assina-Ia também, embora a seu
modo, um regresso à natureza e ao homem.
Exigência semelhante se encontra no espanhol Luís Vives, nascido em Valência em 1492 e falecido em 1540, o qual foi amigo de Tomás Moro (§ 367) e autor, entre outras, de uma obra enciclopédica intitulada De disciplinis (1531).
Víves parte também da crítica à lógica aristotélica e opõe-se sobretudo à
reverência incondicional que esta lógica desperta ainda nas várias escolas,
reverência esta, na qual
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Vives vê a causa da decadência das ciências. É necessário, segundo Vives,
regressar, não à doutrina de Aristóteles, agora já inadequada, mas ao exemplo de Aristóteles; os verdadeiros discípulos de Aristóteles não são os que juram pela sua palavra, mas sim os que interrogam a natureza como ele próprio fez.
Só através da investigação experimental se, pode chegar ao conhecimento da
natureza; são inúteis as subtilezas aristotélicas. Nos três livros da obra De
anima et vita (1539), Vives enuncia uma exigência empírica: é preciso
investigar, não o que é a alma em si, mas sim as propriedades da alma e
o modo pelo qual estas operam. Popérri, Vives só parcialmente se conserva
fiel a este princípio, que deveria assinalar a passagem da psicologia
metafísica dos antigos à psicologia empírica, pelo que os seus resultados são
escassamente significativos. É todavia fácil reconhecer em toda a sua obra-
que frequentemente cai no formalismo lógico - a
exigência fundamental do humanismo, que é a de um renascimento da ciência mediante o regresso -não já à letra das doutrinas antigas mas ao espírito (quer dizer, aos modos e métodos) em que foram formuladas.
Na Alemanha, quem primeiro enunciou esta exigência foi Rudolfo Agrícola
(1442-85), autor de uma
obra intitulada De inventione dialectica, na qual assume relativamente à
dialéctica a mesma posição de Lourenço Valla. Agrícola combate a reverência
inconsiderada por Aristóteles e afirma a necessidade de joeirar livremente as
suas doutrinas. Considera ele como indispensáveis o estudo e o conhecimento
56
dos escritores antigos para se poderem reconduzir as ciências à sua forma
legítima e o fim do seu livro é o de fornecer, deduzindo-os precisamente
desses escritores, os meios pelos quais se pode chegar ao conhecimento das
coisas e à expressão do seu carácter essencial. Agrícola resolve em sentido
nominalista. o problema dos universais. Certas coisas apresentam propriedades
idênticas e essas propriedades comuns constituem precisamente o universal. O
universal não é portanto outra coisa senão a semelhança que as coisas
apresentam nas
suas propriedades essenciais. Porém a importância de Agrícola reside, mais do
que nestas doutrinas e na análise por si feita das formas retóricas do
discurso, em ter sido o primeiro que na Alemanha contribuiu para aquele
regresso ao classicismo que constitui a mensagem do humanismo..
§ 343. MONTAIGNE
O regresso do homem a si mesmo, que constitui a essência do movimento de renovação renascentista, encontra a sua expressão culminante na obra de Montaigne.
Miguel de Montaigne nasceu em 23 de Fevereiro de 1533 no castelo de Montaigne
no Périgord, em França. Educado pelo pai com um método que excluía todo e
qualquer constrangimento ou severidade, aprendeu o latim como língua materna
através de um perceptor que não sabia francês. Estudou direito e tornou-se
conselheiro no parla-
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mento de Bordéus (1557). o seu primeiro trabalho literário foi a tradução de
uma obra do teólogo cataIão Raimundo Sabunde (falecido em Toulouse em
1436) intitulada Liber creaturarwn ou Theologia naturalis, livro de
apologética que procurava demonstrar a verdade da fé católica mais pelo
estudo das criaturas e do homem, do que com o apoio dos textos sagrados e dos
doutores da igreja. Em 1571 retirou-se para o seu castelo com o fim de se
dedicar aos seus estudos. Os primeiros frutos do seu trabalho (Ensaios, 1, 2-
20, 32-38, 40-48) são simples compilações de factos e sentenças, obtidas a
partir de diversos escritores antigos e modernos e nas quais não surge ainda
a personalidade do autor. Seguidamente, porém, essa mesma personalidade
começa a ser o verdadeiro objecto central da meditação de Montaigne, a qual
assume o carácter de "pintura do eu" (1, 26, 31; H, 7, 10, 17, 37). Naquele
mesmo ano, deixou a França e viajou pela Suíça, Alemanha e Itália onde, em
Roma, passou o inverno de 1580-81. Tendo sido nomeado prefeito de Bordéus,
regressou à pátria, mas as preocupações do cargo não o impediram de se
dedicar ao estudo e à meditação. Em 1582 publicou uma segunda edição dos
Ensaios enriquecida com algumas adendas, publicou outra em 1588, contendo
numerosas adendas aos primeiros dois livros e ainda um terceiro livro. Neste
último, a pintura do eu constituia a parte predominante. Montaigne trabalhava
numa nova edição da sua obra, com ulteriores aperfeiçoamentos quando em 13 de
Setembro de 1592 faleceu no seu castelo. O título da obra de Montaigne indica
58
claramente o carácter da mesma. Ensaios quer dizer experiências (e não
tentativas); Montaigne pretende descobrir as experiências humanas expressas nas obras de autores antigos e modernos e pô-las à prova, relacionando-as com as suas próprias experiências.
O olhar continuamente virado para si próprio, a
meditação interior não já religiosa mas laica e filosófica e incidindo
portanto não apenas sobre o próprio eu espiritual, mas também sobre todos os
assuntos e coisas humanas e símultâneamente o diálogo permanente com os
outros e o contínuo confronto entre as experiências próprias e as alheias,
constituem os traços essenciais da obra de Montaigne. É verdade que esta não
é uma filosofia no sentido de conter um complexo sistemático de doutrinas; é
porém um verdadeiro e autêntico filosofar no sentido moderno da palavra,
podendo afirmar-se que Descartes e Pascal são os seus mais directos
descendentes. Face a esta posição, perdem valor as caracterizações sobre as
quais habitualmente se insiste com o fim de determinar a situação histórica
do seu pensamento. Na realidade, ele passou de uma orientação estóica a uma
orientação céptica para acabar por encontrar o seu equilíbrio numa
posição socrática; só esta última constitui a substância da sua pessoa e do
seu pensamento. O estoicismo e o epicurismo são, para ele, não já doutrinas
às quaiis deva permanecer ligado, mas sim experiências através das quais
atinge o equilíbrio que lhe é próprio. A partir da experiência do estoicismo,
chega ao reconhecimento do estado de dependência em que o homem se encontra
relativamente às
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coisas; a partir da experiência do cepticismo, atinge o meio de se libertar,
tanto quanto possível, desta dependência e de reconduzir as coisas ao seu
justo valor. Assim, por exemplo, põe em evidência a preocupação que liga o
homem ao futuro. "Não estamos nunca junto de nós mas sempre para além de nós
mesmos. O temor, o desejo e a esperança lançam-nos para o futuro e tiram-nos
o sentimento e a consideração do que é, levando-nos, a interessarmo-nos; pelo
que será, quer dizer, quando já não existirmos" (1, 3, p. 14). Agarra-se de
novo à ideia estóica segundo a qual os homens são atormentados pelas opiniões
que têm das coisas e não pelas coisas em si, para promover um alívio da
"Miserável. condição humana", reconhecendo aos homens a faculdade de
desprezar aquelas opiniões ou de as aproveitar no sentido do bem (1, 14, p.
63). Por outro lado, aproveita para o mesmo fim a experiência céptica, a qual
deve curar os homens da presunção, que é a sua enfermidade natural original,
e conduzi-los a uma aceitação lúcida e serena da sua condição. É este o
espírito que anima o mais longo e difundido capitulo dos Ensaios (1, 12), a
Apologia de Raimundo Sabunde. Montaigno faz da condição humana uma diagnose

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