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História da filosofia VII - Nicola Abbagnano

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hist�ria da filosofia 7.rtf
HistÓrIa da Filosofia
Volume sete
Nicola Abbagnano
DIGITALIZAÇÃO E ARRANJOS:
Ângelo Miguel Abrantes
(segunda-feira, 30 de Dezembro de 2002)
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
VOLUME VII
TRADUÇÃO DE: ANTóNIO RAMOS ROSA ANTóNIO BORGES COELHO
CAPA DE: J. C.
COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO
TIPOGRAFIA NUNES
R. José Falcão, 57-Porto
EDITORIAL PRESENÇA * Lisboa 1970
TITULO ORiGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA
Copyright by NICOLA ABBAGNANO
Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA, LDA. - R. Augusto Gil, 2 cIE. - Lisboa
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LEIBNIZ
§ 436. LEIBNIZ: VIDA E ESCRITOS
Se a filosofia de Espinosa é uma doutrina da ordem necessária do mundo, a filosofia de Leibniz pode ser descrita como sendo uma doutrina da ordem livre do mundo. A diferença entre as duas filosofias tem o seu fundamento na diferença entre dois conceitos de razão: a razão é para Espinosa a
faculdade que estabelece ou reconhece relações necessárias, ao passo que é para Leibniz a simples possibilidade de estabelecer relações.
Gotfried Wilhelm Leibniz nasceu a 21 de Junho de 1646 em Leibniz. Foi um garoto precoce: aprendeu sozinho o latim e muito cedo conseguiu dar soluções pessoais aos problemas que se debatiam nas escolas. Estudou jurisprudência em Leipzig e em
Altdorf (perto de Nuremberga), onde se licenciou
em 1666. Os seus primeiros escritos são precisamente teses para a obtenção de títulos académicos: uma
discussão intitulada De principio individui, vários escritos jurídicos e a Ars combnatoria em que se anuncia já a sua ideia de um "alfabeto dos pensamentos humanos" e de uma lógica organizada matematicamente.
Em Nuremberga, Leibniz trava conhecimento com o barão de Boineburgo, um dos mais eminentes homens políticos alemães da época, que o levou a Francoforte e o apresentou ao Eleitor de Mogúncia. Leibniz escreve então o Novo nwthodus discendãe docendaeque jurisprudentiae (1667), que é o mais importante dos seus ensaios jurídicos. Em Mogúncia obtém o cargo de conselheiro do Eleitor e desempenha vários cargos científicos e políticos. Começava assim a actividade política, que ocupou grande parte, da sua vida e que, embora sendo inspirada por circunstâncias ocasionais e pelo interesse das pessoas que se valeram dele, obedece no seu conjunto a um grandioso desígnio: o de uma organização política universal ao serviço da civilizaçã o e da ciência. Entretanto, a sua actividade filosófica incide sobre problemas de ordem teológica, lógica e sobretudo física. Em 1671 compõe a Hypothesis physica nova. Inicia também neste período a correspondência com os maiores cientistas do tempo, na qual se encontra consignada boa parte da sua actividade de escritor.
Em 1762, Leibniz foi enviado a Paris com uma missão diplomática destinada a dissuadir Luís XIV da sua projectada invasão da Holanda inspirando-lhe
o desejo de conquistar o Egipto. O projecto gorou-se e foi declarada guerra à Holanda. Leibniz foi autorizado a permanecer em Paris, onde estreitou relações com os homens mais importantes da época. Aí permaneceu quatro anos que foram decisivos para a sua formação científica. Em França dominava então o cartesianismo, mas Leibniz
 interessou-se sobretudo pelas descobertas matemáticas e físicas. Em 1676, descobriu o cálculo integral que no entanto só tornou público em 1684 nos "Acta cruditorum". O cálculo integral havia sido descoberto por Newton uma dezena de anos antes; mas Leibniz fez a sua descoberta independentemente e
formulou-a de modo a torná-la mais fecunda, possibilitando uma mais rápida e cómoda aplicação. Em 1676, regressou à Alemanha, onde aceitou o
cargo de bibliotecário junto do duque de Hannover, João Federico de Braunchweig-Luneburg. Na viagem de Paris a Hannover, travou conhecimento com Espinosa em Haia e com ele teve longas conversações. Espinosa havia então já terminado a sua Ética e por isso, provavelmente, nada lhe trouxe o
conhecimento de Leibniz. Mas Leibniz viu-se, neste encontro com ele, perante uma doutrina que era directa e simètricamente oposta à sua. E esta doutrina tornou-se, nos seus escritos filosóficos e especialmente na Teodiceia, o seu ponto de referência polémico constante. Leibniz acabou por ver nela a expressão típica do ateísmo, do naturalismo e especialmente daquela necessidade cega que nega a liberdade humana e a providência divina.
Leibniz permaneceu durante a vida inteira ao serviço dos Duques de Hannover. Primeiro bibliotecário, depois historiógrafo da casa, foi incumbido pelos príncipes de Hannover dos mais variados encargos e foi o defensor teórico da sua política. Numerosos escritos políticos foram com esse intuito compostos por ele. A sua obra maior neste campo é a pesquisa histórica que empreendeu sobre as origens da casa de Braunschweig, que pretendia descender do próprio tronco dos Estc.,di. A fim de demonstrar com documentos a exactidão desta genealogia, Leibniz viajou durante três anos (1687-90) pela Alemanha e Itália para consultar arquivos e descobrir documentos; mas essa viagem proporcionou-lhe também o ensejo de abordar cientistas e homens vários e de nutrir a sua insaciável curiosidade científica. Mais conforme aos seus ideais foi o projecto, em que trabalhou longamente, de reunir a Igreja católica à protestante. Também este projecto lhe foi sugerido pelo interesse dos Duques de Hannover que, sendo católicos, governavam no entanto um país protestante. Leibniz manteve numerosa correspondência com muitos homens da época, e especialmente com Bossuet, que defendia o ponto de vista católico. O projecto falhou, mas as tentativas feitas por Leibniz nesta ocasião revelavam o
aspecto fundamental do seu pensamento, que é o de tender a uma ordem universal na qual encontrem lugar e se harmonizem espontâneamente os mais diversos pontos de vista.
Esta mesma tendência se revela nas suas tentativas de organizar na Europa uma espécie de
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República das ciências em que participassem, através das academias nacionais, os homens de ciência de toda a Europa. Em 1700, fundou em Berlim, segundo o modelo da sociedade de Paris e de Londres, uma sociedade das ciências que se tornou depois a Academia Prussiana. Em seguida, tendo sabido, através de padres missionários e especialmente Grimaldi, do grande interesse que o imperador chinês mostrava pelas ciências, bem como das tentativas realizadas por cientistas chineses, pensou também estabelecer contactos culturais com a China. Quando Pedro o Grande empreendeu a renovação cultural da Rússia, Leibniz tornou-se seu conselheiro e fez projectos para as instituições que deviam levar a Rússia a participar daquela organização universal das ciências que Leibniz patrocinava.
A pesquisa científica e filosófica constituía a actividade privada de Leibniz. Ela está quase toda consignada na sua vastíssima correspondência e em
breves ensaios publicados nas revistas do tempo. Em 1684 publicava nos "Acta cruditorum" o Nova methodus pro maximis et minimis em que tornava conhecida a sua descoberta do cálculo integral. Entretanto perseguia o seu ideal de uma ciência que contivesse os princípios e os fundamentos de todas as outras e determinasse os caracteres fundamentais comuns a todas as ciências e as regras da combinação delas. Os resultados que Leibniz alcançou restas tentativas encontram-se em vários manuscritos, tais como Mathesis universalis, Iiútia mathenwtica, etc.
Quase todos os escritos de Leibniz têm carácter circunstancial. Em 1681 compôs o Discurso de metafísica, um breve ensaio, que todavia é um
documento importante do seu pensamento. Seguiram-se-lhe o Novo sistema da natureza e da comunicação das substâncias (1695); os Princípios da natureza e da graça fundados na razão (1714); a Monadologia (1714), dedicada ao Príncipe Eugénio de Sabóia, que ele conhecera em Viena; os Novos ensaios sobre o intelecto humano (1705), que é uma crítica da obra de Locke. O único livro publicado (em 1710) por Leibniz foi o Ensaio de teodiceia que teve o seu
ponto de partida nas críticas expostas por Bayle no artigo Rorarius do seu Dicionário histórico e crítico da filosofia. Leibniz nunca escreveu uma exposição completa e sistemática do seu pensamento.
Os seus últimos anos foram os mais infelizes. Acumulara uma quantidade de cargos que lhe valiam lautas prebendas mas o distraíam do trabalho de historiógrafo a que o príncipe gostaria de o ver dedicar-se. Quando morreram as suas protectoras (a Rainha Sofia Carlota e sua mãe Sofia), impediram-no de sair de Hannover e procuraram humilhá-lo de todos os modos. Quando morreu, a
14 de Novembro de 1716, era já uma figura esquecida. E no entanto conhece-se o local onde foi sepultado,
Embora Leibniz tenha sido um filósofo de profissão, demonstrou nas múltiplas manifestações da sua actividade um espírito sistemático e universalista, que é de natureza genuinamente filosófica.
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Qualquer que fosse o problema particular considerado, logo ele o reconduzia a um princípio geral e reconhecido corno o elemento ou a expressão de um sistema universal. A sua filosofia não é mais
do que a tentativa de fundar e justificar a possibilidade de um tal sistema.
§ 437. LEIBNIZ: A ORDEM CONTINGENTE E A RAZÃO ]PROBLEMÁTICA
Todas as manifestações da personalidade de Leibniz, tanto as científicas e filosóficas como as políticas e religiosas, deixam-se reconduzir a um
único pensamento central: o de uma ordem, não geometricamente determinada e por isso necessária, mas espontaneamente organizada e portanto livre. A ordem universal que Leibniz quer reconhecer e
fazer valer em todos os campos não é necessária (como a que constituía o ideal de Espinosa), mas
é susceptível de se organizar e desenvolver-se do melhor modo, segundo uma regra não necessária. E, todavia, é, como a de Espinosa, uma ordem matemática ou geométrica cujo conteúdo Leibniz exprimiu com toda a clareza no Discurso de metafísica (§ 6): "Nada ocorre no mundo que seja absolutamente irregular nem se pode imaginar nada de semelhante. Suponhamos que alguém marque por acaso num mapa uma quantidade de pontos: digo que é possível encontrar uma linha geométrica cuja noção seja constante e uniforme segundo uma regra determinada e tal que passe por todos estes
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pontos precisamente na ordem em que a mão a traçou. E se alguém traçar um linha contínua, ora recta, ora circular, ora de outra natureza, é possível encontrar uma noção ou regra ou equação comum
a todos os pontos desta linha, em virtude da qual as mutações mesmas da linha vêm a ser explicadas... Assim se pode dizer que fosse de que forma Deus tivesse criado o mundo, o mundo seria sempre regular e provido de uma ordem geral". Um conceito de ordem assim formulado exclui toda a rigidez e necessidade e inclui a possibilidade da liberdade, isto é, da escolha entre várias ordens possíveis. Mas escolha não significa arbítrio, segundo Leibniz. Entre as várias ordens possíveis, Deus escolheu a
mais perfeita, isto é, a que é ao mesmo tempo a
mais simples e a mais rica de fenómenos. A escolha, portanto, é regulada pelo princípio do melhor, isto é, por uma regra moral e finalística. Uma ordem que inclua a possibilidade de uma escolha livre e que seja susceptível de ser determinada pela melhor escolha é a ordem que Leibniz procurou reconhecer e realizar em todos os campos da realidade. As suas tentativas de criar uma organização universal das ciências, como as de conciliar protestantismo e catolicismo, obedecem à exigência de tal ordem. A sua busca de uma ciência geral, de uma espécie de cálculo que servisse para descobrir a verdade em todos os ramos do saber, nasce da exigência de criar um órgão, um instrumento que permita descobrir e estabelecer aquela ordem em todos os campos. A própria realidade física deve revelar tal ordem. "São precisos, diz Leibniz, filó14
sofos naturais que não só introduzam a geometria no campo das ciências físicas (dado que a geometria carece de causas finais) mas tornem também manifesta nas ciências naturais uma organização por assim dizer civil" (Lett. al Thonjasius, in Gerhadt, 1, p. 33). A própria realidade física é uma "grande república" organizada e nascida de um princípio de liberdade. A ordem, a razão do mundo, é liberdade, segundo Leibniz.
Deste ponto de vista é evidente que para Leibniz a categoria fundamental para a interpretação Ja realidade não é a necessidade, mas a possibilidade. Tudo o que existe é uma possibilidade que se
realizou: e realizou-se não em virtude de uma regra necessária ou sem qualquer regra, mas em virtude de uma regra não necessária e livremente aceite.
O que quer dizer que nem tudo o que é possível se realizou ou se realiza e que o mundo dos possíveis é bastante mais vasto do que o mundo do real. Deus podia realizar uma infinidade de mundos possíveis; realizou o melhor através de uma escolha livre, isto é, segundo uma regra que ele próprio se impôs pela sua sabedoria. O que existe não é, portanto, como na doutrina de Espinosa, uma necessária manifestação da essência de Deus, que deriva ,geometricamente de tal essência, mas apenas o produto de uma escolha livre de Deus. Esta escolha, todavia, não é arbitrária mas racional: tem a sua
razão no facto de que é a escolha melhor entre todas as possíveis.
Toda a filosofia de Leibniz tende a justificar estes princípios fundamentais. Ela é portanto a pri15
meira grande tentativa para definir a razão como
razão problemática e estabelecer como norma da razão, não a necessidade geométrica, mas a obrigação moral. Só no âmbito da razão problemática e da categoria da possibilidade se pode resolver o
contraste que a crítica moderna pôs em relevo na obra de Leibniz. Leibniz, por um lado, contrapôs o princípio de razão suficiente como princípio da ordem real livre ao princípio, de identidade que regula a ordem necessária das verdades eternas; por outro lado, efectuou repetidas vezes a tentativa de reconduzir o próprio princípio de razão suficiente ao princípio de identidade. Esta última tentativa parece à primeira vista negar a aspiração fundamental de Leibniz, porquanto visa aparentemente a
concluir que a ordem contingente e livre é urna manifestação provisória e incompleta da ordem necessária. Leibniz seria assim, mau grado seu, reconduzido a Espinosa. Mas, na realidade, quando Leibniz diz que nas proposições idênticas o predicado é imediatamente inerente ao sujeito ao passo que nas verdades contingentes esta inferência só pode ser alcançada e demonstrada com uma análise continuada até ao infinito (Couturat, p. 16), ele não pretende dizer outra coisa senão que a análise das proposições contingentes (que concernem à ordem real) pode ser prosseguida até ao infinito sem alcançar jamais a identidade. Como em geometria duas rectas se dizem paralelas quando se encontram no
infinito, porque podem ser indefinidamente prolongadas sem nunca se encontrarem, assim as verdades contingentes dizem-se idênticas no infinito, porque
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podem ser indefinidamente analisadas sem que se possa alguma vez demonstrá-las -idênticas. O endereçamento teológico da sua doutrina conduzirá Leibniz a sustentar que em Deus tal possibilidade se actualizou e que por isso lhe é dado compreender a
identidade analítica das verdades contingentes E, na verdade, a razão problemática não pode ser
senão humana, e não é atribuível a Deus. Uma das suas menos despiciendas vantagens é, pelo contrário, a de estabelecer uma diferença radical entre o conhecimento humano e o conhecimento divino; o esta diferença é firmemente fundamentada pela filosofia de Leibniz
§ 438. LEIBNIZ: VERDADE DE RAZÃO
E VERDADE DE FACTO
A obra de Leibniz visa portanto a justificar a
possibilidade de uma ordem espontânea e de regras não necessitantes. O primeiro aspecto desta justificação é a demonstração de que ordem não significa necessidade. A necessidade, segundo Leibniz encontra-se no mundo da lógica, não no mundo da realidade. Uma ordem real nunca é necessária. Tal é o significado da distinção leibniziana
entre verdade de razão e verdade de facto. As verdades de razão são necessárias, mas não respeitam à realidade. São idênticas, no sentido de que não fazem senão repetir a mesma coisa sem dizer nada de novo. Quando são afirmativas fundam-se no princípio de identidade (cada coisa é aquilo que é);
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quando são negativas fundam-se no princípio de contradição (uma proposição é verdadeira ou falsa). Este último, por seu turno, implica duas enunciações: a primeira é que uma proposição não pode ser ao mesmo tempo verdadeira e falsa; a segunda, que é impossível que uma proposição não seja nem
verdadeira nem falsa (princípio do terceiro excluído).
O próprio princípio de contradição rege, segundo Leibniz, as proposições disjuntas, as quais dizem que o objecto de uma ideia não é o objecto de outra ideia (,por exemplo, homem e animal não são a mesma coisa). Todas as verdades fundadas nestes princípios são necessárias e infalíveis mas
nada dizem acerca da realidade existente de facto (Novos ensaios, IV, 2).
Estas verdades não podem derivar da experiência e são portanto inatas. Leibniz opõe-se à negação total de todas as ideias ou princípios inatos, como o
faz Locke (§ 454). Decerto que as ideias inatas não são ideias claras e distintas, isto é, plenamente conscientes: são antes ideias confusas e obscuras, pequenas percepções, possibilidades ou tendências. São semelhantes aos veios que num bloco de mármore delineiam, por exemplo, a figura de Hércules, de modo que bastam algumas marteladas para arrancar o mármore supérfluo e fazer surgir a estátua. A experiência realiza precisamente a função de martelo: torna actuais, isto é, plenamente claras e distintas, as ideias que na alma eram simples possibilidades ou tendências. Mas as ideias inatas não puderam derivar da experiência porque têm uma necessidade absoluta que os conhecimentos
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empíricos não possuem. As verdades de razão delineiam o mundo da pura possibilidade que é bastante mais vasto e extenso do que o da realidade. Por exemplo, muitos mundos seriam em geral possíveis desde que a sua noção não implique nenhuma contradição: mas só um mundo é real. E, evidentemente, nem todas as coisas possíveis se realizam: se assim fosse, não haveria senão a necessidade e não haveria escolha nem providência (Gerhardt. IV, p. 341).
As verdades de facto são, ao invés, contingentes e concernem à realidade efectiva. Elas delimitam, no
vastíssimo domínio do possível, o campo bastante mais restrito da realidade em acto. Tais verdades não se fundam no princípio de contradição: o que quer dizer que o contrário delas é possível. Fundam-se, ao invés, no princípio de razão suficiente. Este princípio significa que "nada se verifica sem uma razão suficiente, isto é, sem que seja possível, àquele que conhece suficientemente as coisas, dar uma razão que baste para determinar que é assim e não de outro modo" (Gerhardt, VI, p. 602). Mas tal razão não é uma causa necessária: é um princípio de ordem ou de concatenação pelo qual as
coisas que ocorrem se ligam umas às outras sem todavia formarem uma cadeia necessária. É um princípio de inteligibilidade que garante a liberdade ou contingência das coisas reais. É o princípio próprio daquela ordem que Leibniz se esforçou constantemente por encontrar em todos os aspectos do universo: uma ordem que torne possível a liberdade
de escolha.
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Este princípio postula imediatamente uma causa livre do universo. De facto, convida-nos a formular esta pergunta: porque é que há algo em vez de nada? Desde o momento em que as coisas contingentes não encontram em si próprias a sua razão de ser, é necessário que tal razão esteja fora delas e se encontre numa substância que não seja, por sua vez, contingente mas necessária, isto é, que tenha em si mesma a razão da sua existência. E tal substância é Deus. Mas se além disso se pergunta por que é que Deus criou, entre todos os mundos possíveis, este que é assim e assim determinado, é necessário encontrar a razão suficiente da realidade do mundo na escolha que Deus fez dele e a razão de tal escolha será que elo é o
melhor de todos os mundos possíveis e que Deus devia escolhê-lo. Mas este devia não significa aqui uma necessidade absoluta, mas o próprio acto da vontade de Deus que livremente escolheu em conformidade com a sua natureza perfeita. A razão suficiente, diz Leibniz, inclina, sem obrigar: ela explica o que acontece de modo infalível e certo e todavia sem necessidade, porque o contrário daquilo que acontece é sempre possível.
O princípio de razão suficiente implica a causa
final; e sobre este ponto Leibniz afasta-se decisivamente de Descartes e de Espinosa para se voltar para a metafísica aristotélico-escolástica. Se Deus criou este mundo por ser o melhor, agiu em vista de um fim e este fim é a verdadeira causa da sua escolha. E se a ordem do universo é uma ordem contingente e livre, deve fundar-se no fim que as
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actividades contingentes e livros tendem a realizar. Mesmo o mecanismo da natureza deve por fim resolver-se no finalismo.
§ 439. LEIBNIZ: A SUBSTâNCIA INDIVIDUAL
O princípio e razão suficiente conduz Leibniz a formular o conceito central da sua metafísica, o de substância individual. Uma verdade de razão é aquela em que o sujeito e o predicado são em realidade idênticos, onde não se pode negar o predicado sem contradição. Não se pode dizer, por exemplo, que um triângulo não tenha três lados e não tenha os
ângulos internos iguais a dois rectos: tais proposições são contraditórias, portanto impossíveis. Mas nas verdades de facto o predicado não é idêntico ao sujeito e pode mesmo ser negado sem contradição. O contrário de uma verdade de facto não é por isso contraditório, nem impossível. O sujeito dela deve portanto conter a razão suficiente do seu predicado.
Ora um sujeito deste género é sempre um sujeito real, uma substância (desde o momento que se trate de verdades de facto). Ele é aquilo que Leibniz denomina uma substância individual. "A natureza de uma substância individual ou de um ser completo é tal que a sua noção é tão completa que basta para compreender e fazer deduzir dela todos os predicados do sujeito a que ela é atribuída" (Disc. de met., § 8). A noção individual de Alexandre Magno, inclui, por exemplo, a razão suficiente de todos
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os predicados que se lhe possam atribuir com verdade, por exemplo, que venceu Dario e Poro, e até o conhecer a priori se ele morreu de morte natural ou envenenado. Naturalmente, o homem não pode ter uma noção tão completa da substância individual e por isso deduz da história ou da experiência os atributos que se lhe referem. Mas Deus, cujo conhecimento é perfeito, tem a capacidade de descobrir na noção de uma qualquer substância individual a razão suficiente de todos os seus predicados, e por isso pode descobrir na alma de Alexandre os resíduos de tudo o que lhe aconteceu, os sinais de tudo o que lhe acontecerá e também os vestígios de tudo o que acontece no universo.
Isto não quer dizer que uma substância individual seja obrigada a agir de um certo modo, que por exemplo, Alexandre não possa deixar de vencer Dario e Poro; César, de passar o Rubicão, etc. Estas acções podiam não acontecer, porque o contrário delas não implica contradição. Mas era na
realidade certíssimo que teriam acontecido, dada a natureza das substâncias individuais que as realizaram, porquanto tal natureza é a razão suficiente delas. E, por seu turno, a natureza dessas substâncias individuais tem a sua razão suficiente na ordem geral do universo querido por Deus. Tanto a escolha por parte de Deus daquela particular ordem do universo que requer substâncias como Alexandre ou César, como as acções ou as escolhas de Alexandre, são livres: mas é a escolha por parte de Deus de que as substâncias individuais tenham em si mesmas a sua razão suficiente que as explica
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e as torna inteligíveis. Deus poderia ter escolhido um mundo diferente e César poderia não ter cometido aquela acção, mas a perfeição do
universo teria sido afectada; e assim as coisas deviam passar-se tal como se passaram.
Toda a doutrina de Leibniz sobre este ponto se apoia sobre a diversidade e contraste entre a conexão necessária que tem lugar nas verdades de razão (como as geométricas), e a conexão contingente que é estabelecida pelo princípio de razão suficiente e implica uma necessidade que é só ex hypotesis (segundo a expressão de Leibniz), isto é, puramente problemática. "Se bem que seguramente Deus faça sempre a melhor escolha, isso não impede que algo menos perfeito seja e se mantenha possível em si mesmo, embora não se verifique; porque não é a sua impossibilidade mas a sua imperfeição que o faz ser rejeitado. Ora nada de que seja possível o oposto, é necessário (Ib., § 13).
E no entanto evidente que esta doutrina, se justifica plenamente a liberdade da escolha de Deus, não justifica de igual modo a liberdade do homem. No Ensaio de teodiceia e em numerosas cartas, Leibniz defendeu longamente o seu conceito da liberdade negando que ele ponha termo à necessidade. Decerto que ele exclui aquela liberdade de indiferença que poria o homem em equilíbrio frente a possibilidades diversas e opostas. A ordem do universo exige que toda a substância tenha uma natureza determinada e que esta natureza determinada seja a razão suficiente de todas as acções. E, na realidade, para Leibniz, a substância indivi23
dual não é mais que a razão suficiente na sua realidade. Mas o que torna incerta ou duvidosa a liberdade humana é a certeza e a infalibilidade da previsão divina. Por que razão, pergunta-se Leibniz, tal homem cometerá necessariamente tal pecado? A resposta é fácil: é que, de contrário, não seria o
homem que é. Assim Deus prevê infalivelmente a
traição de Judas porque vê, desde toda a eternidade, que haverá um certo Judas cuja noção ou ideia contém aquela acção futura livre. Subsiste, portanto, o problema seguinte: porque é que Deus criou o
universo de cuja ordem faz parte integrante aquela determinada substância, problema este que, segundo Leibniz, se deve resolver sustentando que o universo criado é, apesar disso, o melhor possível (Ib., § 30). Ele remete assim o problema para o terreno puramente teológico; e a um dos seus correspondentes, Jaquelot, que apertava com ele sobre este ponto, acabou por responder que as suas objecções eram dirigidas a todos os teólogos, "já que o decreto de Deus não é só para mim a causa eficaz e antecedente das acções, mas para todos eles". E acrescentava: "Tal como eu, todos responderam que a
criação das substâncias e o concurso de Deus para a realidade da acção humana, que são os efeitos do seu decreto, não constituem uma determinação necessária" (Gerhadt, VI, p. 568).
Na realidade, sobre este ponto Leibniz fazia uma
clara distinção entre o ponto de vista de Deus e o
ponto de vista dos homens. Do ponto de vista de Deus, é certo e infalível que todas as escolhas e acções humanas procedem da substância individual,
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LEibniz
mas do ponto de vista do homem não existe tal certeza. As determinações de Deus nesta matéria são imprevisíveis e nenhuma alma sabe que é determinada a pecar senão quando peca efectivamente. As queixas post factum, diz Leibniz, são injustas, ao passo que teriam sido justas ante factum. "Talvez esteja fixado desde toda a eternidade que eu peque? Respondeis vós: talvez não. E sem pensar no que não podeis conhecer e que não pode dar-vos nenhuma luz, agis segundo o vosso dever, que conheceis" (Disc. de met., § 30). Por outros termos, o homem não possui a noção suficiente e completa da sua
própria substância individual e portanto não pode descobrir nela a razão suficiente das suas acções senão depois de as ter praticado; de sorte que ele não pode ter qualquer certeza antecipada sobre elas. Para Deus que vê plenamente a substância individual, as acções futuras desta são certas, mas certas
apenas em virtude de um decreto seu, portanto não necessárias. A garantia da liberdade humana está, segundo Leibniz, na diversidade e incomunicabilidade do ponto de vista humano com o ponto de vista divino; e, conquanto Leibniz queira ser ao
mesmo tempo filósofo e teólogo e parta da filosofia para chegar à teologia, a solução que ele apresenta não oferece teologicamente nada de novo relativamente por exemplo ao tomismo, mas é nova a sua interpretação do princípio de razão suficiente. Em virtude deste princípio, a escolha que o homem faz de uma acção qualquer não é arbitrária porque tem a sua razão na natureza mesma do homem, mas não é determinada, porque essa razão não é neces25
sária. A força da solução de Leibniz reside na energia com que contrapôs à ordem geométrica a ordem moral e ao determinismo da razão cartesiana e espinosana a problematicidade e a obrigatoriedade moral da razão suficiente.
§ 440. LEIBNIZ: FORÇA E NONISMO
A natureza não constitui para Leibniz uma excepção ao carácter contingente e livre da ordem universal. Esta convicção que dominou sempre o espírito de Leibniz levou-o a modificar pouco a pouco as doutrinas físicas que expusera no seu escrito juvenil intitulado Hypothesis physica nova. Neste escrito ainda admitia a diferença que Descartes estabelecera entre a extensão e o movimento e bem assim, tal como Gassendi, a constituição atómica da matéria quando chegou a formular uma das suas grandes máximas, como ele lhe chama, ou seja, a lei de continuidade, o princípio de que "a natureza nunca dá saltos". Segundo este princípio, deve admitir-se que, para passar do pequeno ao grande ou vice-versa, é necessário passar através de infinitos graus intermédios e que, por consequência, o processo de divisão da matéria não pode deter-se em elementos indivisíveis, como seriam os átomos, mas tem de progredir até ao infinito. Em seguida, deixou de ver na extensão e no movimento, que eram os elementos da física cartesiana, os elementos originários do mundo físico e viu, ao invés, o elemento originário na força. Aconteceu isto quando se con26
venceu de que o princípio cartesiano da imutabilidade da quantidade de movimento era falso e que era necessário substituí-lo pelo princípio da conservação da força ou acção motora. Aquilo que permanece constante nos corpos que se encontram num sistema fechado não é a quantidade de movimento mas a quantidade de acção motora que é igual ao produto da massa pelo quadrado da velocidade. A acção motora ou força viva representa a possibilidade de produzir um determinado efeito, por exemplo levantar um peso, e isso implica uma actividade ou produtividade, a qual se exclui do movimento que é a simples translacção no espaço. Leibniz considera por isso a força como bastante mais real do que o movimento. O movimento não é real por si mesmo, como não são por si mesmos reais o espaço e o tempo, que devem antes ser considerados entes de razão. O movimento relativo aos fenómenos é uma simples relação, a força é a realidade deles (Specimen dynamicum, Escritos matemáticos, VII, p. 247). Nos seres corpóreos, diz Leibniz, há algo para além da extensão, e mesmo anterior à extensão: a força da natureza, colocada em toda a parte pelo autor supremo, e que não consiste apenas numa simples faculdade, como diziam os escolásticos, mas também num conatus ou esforço, o qual terá o seu pleno efeito se não for impedido por um conatus contrário... O agir é o carácter essencial das substâncias, e a extensão não determina a substância mesma, senão que indica a continuação ou difusão de uma substância já dada, a qual tende e se opõe, ou seja, resiste" (Ib., VI, p. 325).
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Deste modo, o único elemento real do mundo natural é a força. A extensão e o movimento, que
eram os princípios fundamentais da física cartesiana são por Leibniz, se não negados, reduzidos a um princípio último que é ao mesmo tempo físico e metafísico: a força. Leibniz aceita o mecanismo cartesiano apenas como explicação provisória, que necessita ser integrada por uma explicação físico-metafísica mais alta. "Devo declarar inicialmente, diz ele (Gerhardt,
IV, p. 472), que, em meu parecer, tudo acontece mecanicamente na natureza e que para dar uma explicação exacta e completa de qualquer fenómeno particular (como por exemplo do peso ou da elasticidade), bastam as noções de figura ou de movimento. Mas os princípios fundamentais da mecânica e as leis do movimento nascem, a meu
ver, de algo de superior, que depende mais da metafísica do que da geometria e que não se pode atingir com a imaginação, se bem que o espírito o possa conceber perfeitamente". A força é precisamente aquele superior princípio metafísico que funda as próprias leis do mecanismo. Leibniz distingue a força passiva que constitui a massa de um corpo e é a resistência que o corpo opõe à penetração e
ao movimento, e a força activa, a verdadeira e genuína força, que é conatus ou tendência para a acção. Esta força activa compara-a Leibniz à enteléquia aristotélica. Mas é evidente que a própria massa material, reduzida a força passiva, já não é nada de corpóreo. De modo que o último resultado das indagações físicas de Leibniz é a resolução do mundo físico num princípio que nada tem de
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corpóreo. A interpretação leibniziana do mecanismo anula o próprio mecanismo. O elemento constitutivo do mecanismo, reconhecido na força, revela-se-lhe de natureza espiritual. O dualismo cartesiano de substância extensa e de substância pensante é negado e o universo é totalmente interpretado em
termos de substância espiritual. Não há verdadeiramente extensão, corporeidade, matéria no universo:
tudo é espírito e vida, porque tudo é força. Assim, para Leibniz, o mundo da física, embora reconhecido nas suas leis mecânicas, transforma-se num
mundo espiritual, e, portanto, numa ordem contingente e livre.
§ 441. LEIBNIZ: A MÓNADA
Leibniz devia portanto chegar a reconhecer que o único é o elemento último que entra na composição tanto do mundo do espírito como do mundo da extensão. No Discurso de metafísica de 1686 elaborara o conceito de substância individual referindo-se sobretudo à individualidade humana. Como se disse, a substância individual é o próprio princípio lógico da razão suficiente elevado a entidade metafísica, ou seja, a elemento constitutivo de uma ordem contingente e livre. Nesse escrito (§ 12) Leibniz tinha, na verdade, atentado na exigência de que também os corpos físicos possuíam em si mesmos uma "forma substancial" que correspondia à substância individual humana, mas não tinha levado mais longe a sua analogia. Cerca de 1696, começa a
introduzir a palavra e conceito de mónada. A aqui29
sição deste termo assinala o momento em que Leibniz teve a possibilidade de estender ao mundo físico o seu conceito de ordem contingente e unificar portanto o mundo físico com o mundo espiritual numa ordem universal livre
A mónada é um átomo universal, uma substância simples, sem partes, e por isso privada de extensão e de figura, e indivisível. Como tal, não se pode desagregar e é eterna; só Deus pode criá-la ou anulá-la. Todas as mónadas são diferentes entre si: não há na natureza dois seres perfeitamente iguais que não sejam caracterizados por uma diferença interior. Leibniz insiste neste princípio que ele denomina da identidade dos indiscerníveis. Duas coisas não podem diferir só local ou temporalmente, mas é necessário que exista entre elas uma diferença interna. Dois cubos iguais só existem em matemática, não na realidade. Os seres reais diversificam-se pelas qualidades interiores; e mesmo que a diversidade deles consistisse apenas nas diferentes posições que ocupam no espaço, esta diversidade de posição transformar-se-ia imediatamente numa diferença de qualidades internas e portanto deixaria de haver uma simples diferença extrínseca (Couturat, p. 8-10).
Na sua individualidade irredutível, a mónada implica também a máxima universalidade. Toda a mónada constitui de facto um ponto de vista sobre o mundo e é por isso todo o mundo de um determinado ponto de vista. Este carácter de universalidade que no Discurso de metafísica (§ 14) foi já
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esclarecido pelo que respeita à substância individual humana, é agora extensivo a todas as mónadas. Nenhuma mónada todavia comunica directamente com as outras: ela não tem janelas através das quais qualquer coisa possa sair ou entrar. As mutações naturais das mónadas derivam apenas de um princípio interno. E uma vez que todas as mutações se dão gradualmente, na mónada qualquer coisa muda e qualquer coisa permanece. Há portanto nela uma
pluralidade de estados ou de relações, embora não haja partes. Cada um destes estados, que representa uma multiplicidade como unidade, é uma percepção, termo que Leibniz distingue da apercepção ou consciência que é própria da alma racional. O princípio interno que opera a passagem de uma percepção a outra é a apetição (Mon., § 11-15).
Os graus de perfeição das mónadas são determinados pelos graus das suas percepções. Há uma
diferença fundamental entre Deus (que é também uma mónada) e os mundos criados, pois estes representam o mundo apenas de um determinado ponto de vista, enquanto que Deus o representa de todos os possíveis pontos de vista e é neste sentido a mónada das mónadas. Mas entre Deus e as mónadas criadas, que o são pela sua natureza finita, há uma diferença ulterior e é que as mónadas criadas não concebem a totalidade do universo com o mesmo grau de clareza. As percepções das mónadas são sempre de algum modo confusas, semelhantes às que se têm quando se cai num estado de delíquio ou de sono. As mónadas puras e simples são as
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que possuem apenas percepções confusas deste género, ao passo que as mónadas dotadas de memória são as que constituem as almas dos animais e as providas de razão constituem os espíritos humanos. Leibniz admite por isso, ao contrário de Descartes e dos cartesianistas, que os animais têm uma alma, se bem que não idêntica à dos homens e capaz apenas de estabelecer entre as percepções uma conCatenação que imita a razão, mas que permanece distinta dela. (Ib., § 26).
Mas também a matéria é constituída de mónadas. Ela não é verdadeiramente nem substância corpórea nem substância espiritual mas antes um agregado de substâncias espirituais, como um rebanho de ovelhas ou um monte de vermes. Precisamente por isso é infinitamente divisível. Mas os seus elementos últimos nada têm de corpóreo, são átomos de substância ou pontos metafísicos, como se poderiam chamar as mónadas (Gerhardt, IV, p. 483). "Cada porção de matéria pode ser concebida como um jardim de plantas ou como um lago cheio de peixes. Mas cada ramo de planta, cada membro de animal e todas as gotas dos seus humores são ainda um jardim ou um lago do mesmo género" (Mon., § 67). Leibniz chama Matéria segunda à matéria entendida deste modo, como agregado de mónadas, enquanto que chama matéria prima à potência passiva (força de inércia ou de resistência) que existe nas mónadas e que constitui a mónada juntamente com a potência activa ou enteléquia (Gerhardt, 111, p. 260-61). Nas mónadas superiores,
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que são os espíritos ou almas humanas, a potência passiva ou matéria prima é o conjunto das percepções confusas, que constituem aquilo que há de propriamente finito, isto é de imperfeito, nas mónadas espirituais criadas. Leibniz observa a propósito que, de um ponto de vista rigorosamente metafísico, considerando como acção o que sucede à substância espontaneamente e a partir do seu próprio fundo, cada substância não faz senão agir, dado que nela tudo provém de si mesma depois de se ter originado em Deus e ela na realidade não sofre a acção de nenhuma outra substância. Mas acrescenta que, considerando como acção um exercício de perfeição e como paixão o contrário, não há acção nas substâncias senão quando a percepção delas se desenvolve e se torna. mais distinta; e não há paixão se não quando se torna mais confusa (Novos Ensaios,
11, 21). De sorte que nas mónadas espirituais as
percepções confusas correspondem ao que é inércia ou impenetrabilidade das mónadas corpóreas,
isto é, aquilo que Leibniz chama matéria prima. As percepções confusas indicam, diz Leibniz, a nossa
imperfeição, as nossas afecções, a nossa dependência para com o conjunto das coisas externas ou da matéria, enquanto a perfeição, a força, o domínio, a liberdade e a acção da alma consistem nos
nossos pensamentos distintos. Todavia, no fundo, os pensamentos confusos não são mais que uma
multiplicidade de pensamentos em si mesmos iguais e distintos, mas tão pequenos que cada um separadamente não excita a nossa atenção nem é dis33
tinguível (Gehrardt., IV, p. 574). Assim as percepções confusas são reconduzidas àquelas pequenas percepções de que Leibniz se servira para justificar a presença inata no espírito de verdade daquilo de que ele não é plenamente consciente.
O corpo dos homens e dos animais é, segundo Leibniz, matéria segunda, isto é, agregado de mónadas. Este agregado é mantido e dominado por uma mónada superior e que é a verdadeira alma (mónada dominante.) Mas, não obstante não haver entre o corpo, que é agregado de mónadas, e a
alma, que é a mónada dominante, diversidade substancial ou metafísica porque entre umas e as outras
existe apenas uma diferença nos graus de distinção das respectivas percepções, Leibniz admite todavia que o corpo e a alma seguem leis independentes. Os corpos, diz Leibniz, actuam entre si segundo leis mecânicas, ao passo que as almas actuam segundo as leis da finalidade. E não há modo de conceber a acção da alma sobre o corpo ou do corpo sobre a alma, uma vez que não se pode explicar de nenhum modo como as variações corpóreas, isto é, as leis mecânicas, fazem nascer uma
percepção ou como da percepção pode derivar uma
mudança de velocidade ou de direcção dos corpos. Cumpre concluir, portanto, que a alma e o corpo seguem cada um as suas leis separadamente, sem que as leis corporais sejam perturbadas pelas acções da alma ou que os corpos encontrem janelas para introduzir na alma o influxo deles (Gerhardt, HI, p. 340-41. Surge então o problema de entender o
acordo da alma com o corpo.
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§ 442. LEIBNIZ: A HARMONIA PREESTABELECIDA
Neste problema se resolve o problema mais geral da comunicação recíproca entre as mónadas que constituem o universo. Todas as mónadas, de facto, são perfeitamente fechadas em si mesmas, sem janelas, isto é, sem possibilidade de comunicarem directamente umas com as outras. Ao mesmo tempo cada uma está ligada à outra, pois cada uma
é um aspecto do mundo, isto é, uma representação mais ou menos clara de todas as outras mónadas. As mónadas são como diversas vistas de uma mesma cidade e como tais se conjugam para constituir a vista total e complexa do universo, que é plenamente expressa e reassumida na mónada suprema que é Deus. Mas, embora cada mónada represente o universo inteiro, ainda representa mais distintamente o corpo que se lhe refere particularmente e de que constitui a enteléquia, e visto que tal corpo, constituído por mónadas, exprime todo o universo, assim à alma, ao representar-se-lhe o
corpo que lhe pertence, se lhe representa ao mesmo
tempo o universo inteiro (Mon., § 62). Deste modo, * problema da comunicação entre os mundos vem * configurar-se na forma particular que ela tinha assumido na filosofia cartesiana, como problema da relação entre a alma e o corpo. Leibniz distingue três possíveis soluções para tal problema.
Se se compara a alma e o corpo a dois relógios, o primeiro modo de explicar o acordo entre eles é o de admitir a influência recíproca de um sobre
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o outro. É esta a doutrina da filosofia vulgar que se choca contra a incomunicabilidade das mónadas e a impossibilidade de admitir um influxo entre duas substâncias cujas acções obedeçam a leis heterogéneas. A segunda maneira de explicar o acordo é a que Leibniz chama assistência, e que é própria do sistema das causas ocasionais: dois relógios mesmo maus, podem manter-se em harmonia um com o outro desde que um hábil operário cuide deles a cada instante. Segundo Leibniz, este sistema incorre no erro de introduzir um Deux ex machina num facto natural e ordinário, no qual Deus não deve intervir senão do mesmo modo em que concorre para todos os outros factos da natureza. Resta então só a terceira maneira, que é supor que os dois relógios tenham sido construídos com
tanta arte e perfeição que trabalhem de acordo para todo o sempre. Esta é a doutrina da harmonia preestabelecida sustentada por Leibniz. Segundo ela, a alma e o corpo seguem cada um as suas próprias leis mas o acordo é estabelecido previamente por Deus no acto de estabelecer tais leis. O corpo seguindo as leis mecânicas e a alma seguindo a sua
própria espontaneidade interna estão a cada instante em harmonia, e esta harmonia foi preestabelecida por Deus no acto da criação (Gerhardt, IV, p. 500-501).
A doutrina da harmonia preestabelecida é o
desfecho e a conclusão derradeira da filosofia de Leibniz, se bem que não seja (como muitas vezes se sustentou) o seu pensamento central e aninia36
dor. Para tal doutrina o corpo orgânico (dos animais ou do homem) é uma espécie de máquina divina ou de autómato espiritual cujas manifestações não sofrem qualquer influência dos actos espirituais. É só pela harmonia preestabelecida, diz Leibniz, que na alma do cão entra e dor quando o seu corpo é atingido (lb., IV, p. 531). Por outro lado, a vida da alma desenvolve-se com perfeita espontaneidade desde o seu interior. Ela é uma espécie de sonho bem arquitectado no qual as percepções se sucedem em virtude de uma lei que está inscrita na própria natureza da mónada e que Deus estabeleceu no acto da sua criação. Leibniz chega mesmo a dizer que até a alma é uma espécie de autómato imaterial (Ib., IV, p. 548). Ele tem, portanto, de defender um inatismo total: a mónada é ,inteiramente inata em si mesma, já que nada pode receber do exterior. Não só as verdades de razão
e os princípios lógicos em que ela assenta são inatos, mas também as verdades de facto e mesmo as sensações nascem somente do fundo das mónadas: do seu fundo obscuro, constituído pelas pequenas percepções que se tornam gradualmente, pelo menos em parte, distintas (1b., V. p. 16). A mónada sai assim das mãos de Deus completa na sua
natureza e determinada, posto que não necessariamente, em todos os seus pensamentos e em todas as suas acções. Leibniz chama às mónadas fulgurações contínuas da divindade, limitadas, a cada momento, pela receptividade da criatura, à qual é essencial o ser limitada.
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§ 443. LEIBNIZ: DEUS E OS PROBLEMAS DA TEODICEIA
A filosofia de Leibniz, rematando no sistema da harmonia preestabelecida, torna-se neste ponto especulação teológica. E em tal especulação, Leibniz acolhe os temas tradicionais da teologia, a
começar pelas provas da existência de Deus, que ele elabora a seu modo, e concluindo com um estudo dos problemas inerentes a toda a teologia: o problema da liberdade e da prodeterminação, e o problema do mal.
Em primeiro lugar, Leibniz elabora uma das provas tradicionais da experiência de Deus, prova que ele define a posteriori. Ela é a terceira entre as enumeradas por Tomás de Aquino na Summa theologica e precisamente deduzida da razão entre o possível e o necessário. Leibniz formula esta prova recorrendo ao princípio de razão suficiente. Deus, diz ele, é a primeira razão das coisas, visto que as coisas limitadas, como são todas as que vemos e experimentamos, são contingentes e não têm em si nada que torne necessária a sua existência. Cumpre portanto procurar a razão da existência do mundo; e há que procurá-la na substância que traz em si a razão da sua existência e que por isso é necessária e eterna. Se existe só um mundo entre inúmeros mundos todos igualmente possíveis e todos com uma pretensão à existência, a razão suficiente de tal não pode ser senão um intelecto que tem as ideias de todos os mundos possíveis e uma vontade que escolhe um deles; o intelecto
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e a vontade de Deus. A potência da substância divina torna portanto eficaz a vontade
(Teod., 1, 7*, Mon. § 37-39). Deus é ao mesmo tempo a razão suficiente do mundo que existe de facto e a razão suficiente de todos os mundos possíveis. Mesmo as puras possibilidades devem de algum modo assentar em algo de real ou de actual: assentam na existência do ser necessário, cuja essência implica a existência ou a que basta ser possível para ser
actual. Deus é deste modo não só a fonte de toda a realidade, mas também a das essências e das verdades eternas (Mon., § 43-44). Estas últimas todavia não dependem da vontade divina, como Descartes sustentara, mas apenas do intelecto divino de que são o objecto interno. As verdades de facto, que concernem às existências reais, dependem pelo contrário da vontade divina (lb., § 46).
Em segundo lugar, Leibniz elaborou o argumento ontológico de Sto. Anselmo, utilizando o seu
conceito de possível. À forma cartesiana do argumento ontológico, Leibniz opõe que é possível deduzir a existência (como perfeição) do conceito de um ser que possua todas as perfeições, só depois que se demonstrou que o conceito deste ser é possível (isto é, privado de contradições internas) (Gerhardt, IV, p. 274 segs.). De sorte que, na realidade, aquele argumento não pode inferir da perfeição de Deus a sua existência mas deve inferir da possibilidade de Deus a sua existência. E esta é a forma verdadeira do argumento, segundo Leibniz. "Só Deus, ou o ser necessário, tem este privilégio: que, se é possível, é necessário que exista.
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E, visto que nada pode impedir a possibilidade daquilo que não implique algum limite, alguma negação, portanto alguma contradição, isso só basta para reconhecer a priori a existência de Deus" (Mon., § 45). Em Deus portanto possibilidade e realidade coincidem: tal é, segundo Leibniz, o significado da necessidade da sua natureza. Desde que seja reconhecido possível, deve ser reconhecido existente; e não há dúvida de que pode e deve ser reconhecido possível, dada a total ausência de limitações intrínsecas que o caracterizam.
Os problemas da teodiceia são considerados por Leibniz à luz daquela regra do melhor que ele considera como a norma fundamental da acção divina e por isso da ordem do mundo. Leibniz distingue em Deus uma vontade antecedente que quer o bem em si e uma vontade consequente que quer o melhor. Como efeito desta vontade consequente, Deus quer aquilo que em si não é bem nem mal, e até o mal físico como meio para alcançar o melhor, e permite o pecado com o mesmo fim. A vontade permissiva de Deus com respeito ao pecado é por conseguinte uma consequência da sua vontade consequente, quer dizer da sua escolha do melhor. Por outros termos, Deus escolheu o melhor entre todos os mundos possíveis, o que contém a mínima parte de mal. A sua vontade é a causa positiva das perfeições que este mundo contém, mas não quer positivamente o pecado. Desde o momento em que o pecado faz parte da ordem do mundo, ele permite-o; mas esta vontade
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permissiva não o torna responsável por ele (Teod.,
1, 25).
Viu-se já como Leibniz não sustenta que a predeterminação divina, e a presciência que é condição dela, anulem a liberdade humana. Os motivos tradicionais que por tal razão retoma, assumem
ressonâncias novas só em virtude do princípio fundamental que inspira toda a sua especulação: o de que a ordem do universo é contingente e livre. Criada por um acto livre da divindade, a ordem do universo é conservada e desenvolvida pela liberdade das mónadas espirituais nas quais melhor se ,reflecte e reconhece a substância divina. O princípio de razão suficiente, sobre o qual assenta a
ordem do mundo, conduz Leibniz a ver esta ordem orientada segundo o melhor, que é o fim da vontade divina e da humana. A prodeterminação divina, agindo por meio da vontade que tende para o melhor, não é por isso necessitante mas propendente; e a escolha do melhor por parte das criaturas permanece livre e responsável.
São sem dúvida reais as dificuldades que Bayle, Jaquelot e outros contemporâneos, e depois deles inúmeros críticos, encontraram na teologia de Leibniz. Mas a teologia, se é ponto de chegada da especulação de Leibniz, não é toda a sua filosofia. E, indubitavelmente, o princípio inspirador da sua filosofia, como de toda a sua obra política, histórica, jurídica e de toda a sua vida, é a liberdade da ordem universal. Leibniz procurou realizar na sua filosofia a justificação da atitude que assumiu constantemente frente aos problemas de todo o
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género que teve de defrontar no curso da sua vida: a atitude de quem quer promover e fundar no
mundo humano, à semelhança do que reconhece em
todo o universo, um conjunto de actividades que livremente se encontrem, se limitem e acabem por encontrar uma pacífica coordenação.
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 436. A primeira grande edição das obras de Leibniz é a Opera omnia ao cuidado de L. Dutens,
6 vol., Genebra, 1768.-São fundamentais: Die philosophische Schriften, editados por G. J. Gerhardt, 7 vol., Berlim, 1875 (cit. no texto: Gerhardt) e Die mathematische Schrifen, ao cuidado do mesmo Gerhardt,
7 vol., Berlim e Halle, 1848-63 (cit. no texto: Escritos matemáticos). São notáveis os fragmentos publicados por L. COUTURAT, Opuscules et fragments inédits, Paris,
1903 (Cit. no texto: Couturat). Obras políticas: Historisch-politische und staatswissenschaftlichen Schrifen, ao cuidado de O. Mopp, 11 vol., Hannover,
1864-84. A Academia Prussiana das Ciências iniciara a publicaçáo completa dos escritos de Leibniz; saíram seis vol. desta edição, os quais compreendem: o epistolário geral até 1680 (Série I, vol. 1.1-3.1): o epistol&rlo filosófico até 1685 (S5,rie II, vol. 1.o); os escritos políticos até 1685 (Série IV, vol. l.,); parte dos escritos filosóficos até 1672 (Série VI, vol. 1.o).
Entre as ediç. parciais, são notáveis: La Monadologie, ao cuidado de E. Boutroux, 13.a ed., Paris,
1930; Discours de méthaphysique, ao cuidado de IL Lestienne, Paris, 1929. trad. it. da Monad. por E. Colorni, Florença, 1935 (contém também uma boa antologia leibniziana); Lettres de L. a Arnauld, ed.
42
G. Lewis, 1952; Correspondance L.-Clarke, ed. R<>binet, Paris, 1957.
Outras trad. italianas: Nuovi Saggi, de E. Cecchi,
2 vol., Bari, 1910-11; Discorso di metafisica, de G. E. Bari, 1938; Scritti polítici e di diritto naturale, de V. Mathieu, Turim, 1951; Saggi filosofici e jettere, de V. Mathicu, Bari, 1963.
§ 437. Sobre a formação de Leibniz: W. Y.ABITZ, Die philosophie des jungen L., Heide51berg, 1909.
Sobre a actividade político-religiosa de Leibniz: BARUzi, L. e rorganization religieuse de Ia terre, Paris,
1.907. Sobre a obra histórica: DAVILLÉ. L. historien, Paris, 1909; W. CONZE, L. aIs historiker, Berlim, 1951. Sobre as relações com Espinosa: STEIN, L. und Spinoza, Berlim, 1830; G. FRIEDMANN, L. et Spinoza, Paris, 1946. Sobre as relações com Malebranche: A. RoBINET, L. et Malebranche. Relations personnelles, Paris, 1955.
Monografias fundamentais: G. E. GUMANER, G. W. Freiherr von L., 2.1 ed., Breslãvia, 1846; K. nsCHER, Gesc. der neuren Phil., IU, L. ed., Heidelberg,
1920; B. Rij.SSFL, A critical exposition of the Phil. of L., Cambridge, 1900, 1937; Cagsirer, L. s System in seinen ~senschaftlichen GrundIagen, Marburg, 1902; COUTURAT, La logique de L., Paris, 1901; 1. PAPE, L., Stocearda, 1949; R. M. YOST, L. and Philosophical AnaIysis, Berkeley and Los Angeles, 1954.
Entre os escritos italianos: CARLOTT, Il sistema di L., Messina, 1923; OLGIATI, Il significato storico di L.,
1929; BARIR, La spiritualità dellIessere e L., Pádua,
1933; DEL BoCA, Finalismo e necessità in L., Morença,
1936; GALIMBERTI, L., Contro Spinoza, Benevagienna,
1941, G. GALLI, Studi sulla fi7. di L., Pádua, 1948; A. CORSANo, L., Nápoles, 1952, G. PRETI, 11 cristianosimo universale di L., Milão, 1953.
§ 440. Sobr.- as relações entre matemática e
filosofia; MOHNKE; Leibnizens Synthese von Universalmathematik und Individualmetaphysic, Halle, 1925.
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VIII
VICO
§ 444. VICO:
VIDA E OBRA
Depois de Leibniz, Vico representa a segunda grande afirmação da razão problemática no mundo moderno. Leibniz explicara e interpretara em termos de razão problemática toda a realidade física e metafísica; Vico interpreta em termos de razão problemática o mundo da história. As personalidades e as doutrinas dos dois filósofos são diferentes e independentes uma da outra, mas a inspiração fundamental delas é comum e as obras de ambos são complementares, de modo que se torna historicamente significante a sua vizinhança cronológica.
João Baptista Vico nasceu em Nápoles a 24 de Junho de 1668. Estudou filosofia escolástica e direito. Durante nove anos (1689-95) foi preceptor dos filhos do marquês Rocca no castelo de Vatolla
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no Cilento, onde, utilizando a rica biblioteca do marquês, adquiriu a maior parte da sua cultura. Regressado a Nápoles em 1699, obtém a cadeira de retórica naquela universidade; mas em seguida (1723) aspirou debalde a obter uma cátedra de jurisprudência, que teria melhorado muito a sua situação e teria sido mais consoante com a natureza dos seus estudos. Viveu assim uma vida pobre e
obscura entre as restrições financeiras e o ambiente familiar, pouco propício ao recolhimento e ao estudo. Assente em 1720 a primeira ideia da sua
obra fundamental nela trabalhou tenazmente até à morte, fazendo-lhe incessantemente correcções e
acrescentos. Teve, durante a sua vida, escassos e raros reconhecimentos; a originalidade e complexidade do seu pensamento em relação à cultura italiana do seu tempo, a pesada e caótica erudição com que sobrecarregou a sua obra, fizeram que só numa época relativamente recente lhe fosse conferido o lugar que lhe está reservado na
história do pensamento. Morreu em Nápoles a 23 de Janeiro de 1744.
Com o seu ensino se prendem as cinco Orações inaugurais, das quais a mais importante é a intitulada De nostri temporis studiorum ratione de 1708. Em
1710 prepara-se para dar expressão sistemática ao
seu pensamento numa obra intitulada De antiquissima Italorum sap@*entia ex finguae latinae originibus eruenda. Esta obra que devia resultar de três livros, respectivamente dedicados à metafísica, à física e à moral, resultou de facto apenas do primeiro porque os outros não chegaram a ser escritos. Nela Vico
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procura remontar, através da história de algumas palavras latinas, às doutrinas dos primeiros povos itálicos (os Jónios e os Etruscos), povos estes que transmitiram essas palavras à língua latina. E apresenta por isso a sua metafísica como a verdadeira metafísica daquelas antiquíssimas populações itálicas. A um artigo crítico aparecido no "Giornale dei letterati", Vico responde com um opúsculo polémico intitulado Risposta al giornale dei letterati (1711); e à resposta do jornal replicou com uma
Seconda risposta (1712). Em 1716 Vico publicou uma obra histórica De rebus gestis Antonii Caraphei, escrita a pedido do duque Adriano Carafa. E em 1720 deu à estampa o escrito que é a primeira formulação das ideias da ciência nova: De uno universi juris principio et fine uno, à qual fez seguir De constantia jurisprudentis. Em 1725 publicava a primeira edição da sua obra fundamental Principi di una scienza nuova intorno alla comune natura dele nazioni e a Autobiografia. Em seguida reescrevia inteiramente a Ciência Nova (1730) e desta segunda edição não difere substancialmente a outra que viu a luz em 1744, alguns meses depois da sua morte.
§ 445. VICO
ENTRE OS SÉCULOS XVII E XVIII O ponto de partida explícito de Vico é a crítica da filosofia cartesiana; mas, na realidade, a obra de Vico encontra as suas raízes na cultura filosófica do século XVII, que ele conheceu através das
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derivações e discussões que suscitava no ambiente napolitano do seu tempo. Na Autobiografia, Vico indicava os quatro grandes autores que inspiraram o seu pensamento. Em primeiro lugar, Platão e
Tácito porque "com uma mente metafísica incomparável, Tácito contempla o homem tal qual como é, Platão tal qual deve sem, de modo que ambos lhe deram a primeira ideia de uma "história ideal eterna de acordo com a qual decorresse a história universal de todos os tempos". Depois, Francisco Bacon que lhe teria dado a ideia da complexidade e riqueza do universo cultural e da exigência de descobrir as leis deste universo. E enfim Grócio, que o levara a compreender as leis desse mundo dos homens que permanecera estranho a Bacon. Mas estes quatro autores constituem sobretudo pontos de referência simétrica do quadro da filosofia de Vico na sua plena maturidade, nada dizem sobre as fontes que inspiraram os traços característicos desta filosofia ou que contribuíram para os formar. Ora é precisamente por estes traços que a obra de Vico se liga à cultura filosófica do século XVII. O conceito de uma razão experimentadora e problemática cujo domínio seja o provável e não só o necessário encontrava-se em Gassendi (§ 417) e encontrou a sua codificação na obra de Locke. A contraposição do engenho, como faculdade inventiva, à lógica é um tema humanístico renascentista vivíssimo no século XVII e que se pode reencontrar nos próprios pensadores de Port-Royal. A identidade do verdadeiro e do facto como critério do conhecimento autêntico é uma noção
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extraída de Hobbes (§ 405), que, por sua vez, a tinha provavelmente extraído de Gassendi. A metafísica de De antiquissima, que Vico refere a Zenão de Eleia, inspira-se em certas formas do neoplatonismo do século XV11; e a noção de Deus como
motor da mente humana, que surge repetidas vezes
na mesma obra, é claramente extraída de Malebranche.
Por outro lado, embora imerso na cultura do século XVII, Vico chega a alguns resultados fundamentais que o ligam ao século seguinte. Ele não tem decerto nada da audácia inovadora dos iluministas. O seu pensamento político-religioso está ancorado no passado e apresenta-se com um intento declaradamente conservador. A mesma característica teorética da sua filosofia que quer o
certo, isto é, o peso da autoridade da tradição, mostra-nos que nele há a busca de um equilíbrio que é estranho ao pensamento iluminista. Mas liga-o todavia a este pensamento em primeiro lugar o
carácter limitativo da sua gnoseologia, e a própria polémica contra a razão cartesiana, que recusava ou parecia recusar toda a limitação, é um tema fundamental do iluminismo. A recondução da poesia o do mito à esfera das emoções; a declarada irredutibilidade desta esfera à do pensamento, a
importância dela na determinação dos caracteres humanos e das formas do costume, são elementos de doutrina que, no século XVII, por obra dos iluministas, deviam levar ao reconhecimento do sentimento como forma autónoma da vida espiritual
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e do gosto como critério de juízo dos objectos inerentes a esta forma.
Finalmente, o conceito da história de Vico, como curso progressivo de eventos que conduz, ou
deve conduzir, à "razão completamente esclarecida", liga-se estreitamente à concepção histórica do iluminismo, se bem que Vico, diversamente deste, não renuncie à linguagem teológica.
§ 446. VICO: O VERDADEIRO E O FALSO
O ponto de partida de Vico é a polémica contra Descartes. Descartes tinha a pretensão de reduzir todo o conhecimento à evidência racional, isto é, à razão necessária ou geométrica. Vico considera tal pretensão impossível. Há certezas humanas fundamentais que não se deixam reconduzir à evidência e à demonstração. Descartes resolve todas as
certezas válidas na necessidade da razão geométrica. Vico defende a autonomia e a validez do certo frente ao verdadeiro.
E, de facto, manifestações humanas fundamentais como a retórica, a poesia, a história e a própria prudência que rege a vida, não se fundam nas verdades geométricas, mas só no verosímil. O verosímil é a verdade problemática, aquilo que está no meio entre o verdadeiro e o falso: o mais das vezes é verdadeiro, excepcionalmente é falso: mas
a sua característica é que não implica uma garantia infalível de verdade (De nostri temp., §
3). Esta problematicidade faz do verosímil a verdade
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humana por excelência. Será um vão empreendimento querer introduzir mediante o método geométrico uma garantia infalível de verdade no domínio dos conhecimentos respeitantes ao
homem. Afora os números e as medidas, diz Vico, todas as outras matérias são insusceptíveis de método geométrico. O próprio pedantismo do método que, quando é aplicado no seu domínio particular, opera sem se fazer sentir, demonstra a sua ineficiência. Conhecer clara e distintamente é mais vício do que virtude do intelecto humano quando se passa do campo das matemáticas para o campo da metafísica (Prima risp. al Giorn. dei Lett., § 3). O fundamento desta última é o provável. Porque a filosofia nunca serviu senão para fazer as nações "ágeis, vigilantes, capazes, agudas e reflexivas, onde os homens fossem nas acções dóceis, pontos, magnânimos, engenhosos e avisados"; e isto não o pode ela conseguir se não se valer do provável, que é o fundamento "de todas as artes e disciplinas do honesto, do cómodo e do prazer humano". Por isso o "apanágio dos filósofos" é o provável, como o dos matemáticos é o verdadeiro; e o ter querido inverter esta obra e
reconduzir a filosofia à verdade demonstrativa das matemáticas foi só causa de dúvida e de desordem (Seconda risp. al Giorn. dei Lett., § 4). À razão cartesiana, órgão da verdade demonstrativa, contrapôs Vico o engenho, que é a faculdade de descobrir o novo; e à crítica, a nova arte cartesiana fundada na razão, contrapõe Vico a tópica, que é a arte que disciplina e dirige o procedimento inventivo do
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engenho. O engenho tem tanto mais força produtiva e inventiva em relação à razão quanto menos capacidade demonstrativa e certeza apodíctica possui relativamente a ela (De ratione, § 5; De antiquissiina, § 4).
A exposição da gnoseologia no De antiquissima assenta inteiramente na antítese entre conhecimento divino e conhecimento humano. A Deus pertence o entender (intelligere) que é o conhecimento perfeito de todos os elementos que constituem o objecto. Ao homem pertence o pensar (cogitare), o ir recolhendo fora de si alguns dos elementos constitutivos do objecto. A razão, que é o órgão do entender, pertence verdadeiramente a Deus; o homem é apenas participe dela. Deus e o homem só podem conhecer com verdade aquilo que fazem: porque as palavras verum e factum têm em latim o mesmo significado. Mas o fazer de Deus é criação de um objecto real; o fazer humano é criação de um objecto fictício, que o homem engendra recolhendo do mundo, @por meio da abstracção, os elementos do seu conhecer. Em Deus as coisas vivem, no homem perecem (De antiq., 1, 1). O conhecimento humano nasce assim de um defeito da mente humana, isto é, do facto de que ela não contém em si os elementos de que as coisas procedem e não os contém porque as coisas estão fora dela. Este defeito converte-se todavia em vantagem, pois o homem procura mediante a abstracção os elementos das coisas que originariamente não possui e dos quais depois se
serve para reconstruir as próprias coisas em imagem.
O princípio de que o verdadeiro e o facto se
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identificam e que se pode conhecer tanto quanto se
faz, é portanto um princípio que, segundo Vico, restringe o conhecimento humano a Emites assaz estreitos. O homem não pode conhecer o mundo da natureza que, sendo criado por Deus, só pode ser objecto do conhecimento divino. Pode conhecer, pelo contrário, com verdade o mundo da matemática, que é um mundo de abstracções por ele próprio criado. O homem nem sequer pode conhecer o seu
próprio ser, a sua própria realidade metafísica.
O erro de Descartes está em tê-lo considerado possível. O cogito é a consciência do próprio ser, não a
ciência dele. A consciência pode também pertencer ao ignorante: a ciência é o conhecimento verdadeiro fundado nas causas. Ora, o homem não conhece a causa do seu próprio ser porque ele próprio não é essa causa: ele não se cria a si mesmo. O cogito cartesiano seria princípio de ciência só no caso em
que o meu pensamento fosse a causa da minha existência: o que não é, visto que eu sou composto de espírito e corpo e o pensamento não é causa do corpo. E nem sequer é causa da mente. Se eu fosse apenas corpo, não pensaria; se fosse apenas mente, também não pensaria porque teria, como Deus, a inteligência: a união do corpo e da mente é portanto a causa do pensamento. E o pensamento é apenas um sinal e não a causa do facto de que eu
sou mente (lb., 1, 3). Descartes quis por outros termos erigir em verdade racional e em princípio de todas as outras verdades um puro facto de consciência não susceptível de ser transformado em verdade. O intuito que move Vico nesta crítica é
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negativo e limitativo: tende a restringir o conhecimento humano aos limites que lhe são próprios e a reconhecer-lhes aquela validez que em tais limites lhe cabe. Por isso Vico observa que Descartes deveria ter dito não já "eu penso, logo sou", mas
"eu penso, logo existo 1". A existência é o modo de ser próprio da criatura: significa estar aí ou ter surgido ou estar sobre e supõe a substância, isto é, tudo o que a sustém e encerra a sua essência (Prinia @isp. al Giorn. dei Lett., § 3). Entre o conhecimento do homem e o conhecimento de Deus há portanto o mesmo desvio que entre a existência e a substância que a rege.
§ 447. VICO: A NOVA CIÊNCIA
Reconduzida pelo princípio da identidade do verdadeiro e do real aos seus limites próprios, o conhecimento humano revela-se capaz de investigar uma certa ordem de realidade e incapaz frente a
outras ordens. Ele é impotente ante o mundo da natureza e ante o próprio homem como parte deste mundo, porque a natureza é obra divina. Mas está-lhe aberto o mundo das criações humanas. Em De antiquissinw Vico restringira o mundo da criação humana às abstracções da matemática, apresentando
1 Uma vez que esta é a tradução corrente do célebre Bilogismo cartesiano, a observação de Vico parece não ter sentido em português. O leitor no entanto restituirá imediatamente esse sentido abstraindo dessa evidência curiosa. (N. do T.).
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uma tese já exposta por Hobbes no De homine (1658). Mas na Ciência nova ele reconhece como objecto próprio do conhecimento humano, enquanto obra humana, o mundo da história. No mundo da história o homem não é substância física e metafísica, mas produto e criação da sua própria acção, de modo que este mundo é o mundo humano por excelência, aquele que decerto foi feito pelos homens e cujos princípios eles podem e devem procurar no
próprio homem.
Mas considerada a esta luz a história não é uma desligada sucessão de eventos: deve ter em si uma ordem fundamental, à qual o desenrolar dos acontecimentos tende ou aponta como ao seu significado final. A tentativa que o homem tem visto sempre frustrar-se, a de descobrir a ordem e as leis da natureza, só pode ser efectuada com êxito no mundo da história, uma vez que só este é verdadeiramente obra humana. Vico quer ser o Bacon do mundo da história e efectuar relativamente a este mundo a obra que Bacon realizara com respeito ao mundo da natureza. A ciência nova de Vico é nova precisamente no sentido em que instaura uma indagação do mundo histórico que tem por objecto revelar a ordem e as leis deste mundo. Mas é nova apenas como reflexão sobre a história, visto que a reflexão nasce apenas de um certo ponto e é um post factum relativamente à história. Num outro sentido, ela é antiquíssima e nasceu com o homem e com a sua vida social "As doutrinas, diz Vico (S. N., degn.,
106) devem começar a partir do momento em que começam as matérias de que tratam." Ela começou
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de facto a partir do momento em que os homens começaram a pensar humanamente, e não quando os filósofos começaram a reflectir sobre as ideias humanas (1b., p. 186). Como humano pensar, a
ciência que Vico chamou nova é a sabedoria originária da qual derivam todas as ciências e artes que formam a humanidade e o homem mesmo no próprio ser do homem.
(lb., p. 198). Nesse sentido, acompanha ela toda a história humana e constitui-a essencialmente: de sorte que se verifica nela do modo mais rigoroso a identidade do verdadeiro e do real: é o próprio homem, que pensa a história, que a faz. As fases da história são intrinsecamente caracterizadas pela menor ou maior clareza daquele humano pensar que a acompanha e que passa a constituir as suas manifestações mais salientes: os
costumes e o direito, o governo, a língua, etc.
§ 448. VICO: A História IDEAL ETERNA
O ponto de partida da história e da meditação histórica de Vico é a situação originária do homem: "0 homem desesperado de todos os socorros da natureza, deseja uma coisa superior que o venha salvar" (S. N., p. 182). Vico assume assim o ponto de partida do pensamento religioso. De superior à natureza e ao homem só existe Deus. O homem tendo por isso a sair do seu estado de queda para s-. dirigir para uma ordem divina: ele efectua um conato, um esforço, para se subtrair à desordem dos impulsos primitivos. Ora a filosofia deve aju56
dá-lo neste esforço mostrando-lhe como ele deve ser: indicando-lhe como meta a "república. de Platão" e impedindo-o de cair na "degradação de Rómulo", isto é, no estado bestial. Vico indicou assim o marco inicial e o marco final da existência histórica do homem.
Ao considerar o termo final, a ciência da história surge a Vico como "teologia civil e racional da providência divina", isto é, a demonstração de uma
ordem providencial que vai actuando na sociedade humana à medida que o homem se subtrai à sua queda e à sua miséria primitiva. A história move-se
no tempo, mas tende a uma ordem que é universal e eterna. Os homens deixam de ser movidos pelos seus impulsos primitivos para buscarem as suas
conveniências particulares; mas mesmo sem o pretenderem explicitamente ou até contra a sua vontade, a "grande cidade do género humano" vai-se definindo como meta geral da história. A grande cidade do género humano é a comunidade humana na sua ordem ideal, é aquilo que a vida associada do homem deve ser na sua realização final. À luz dela a sucessão temporal adquire o seu verdadeiro significado. Ao mero reconhecimento do facto substitui-se a valorização; ao foi, é, será sucede-se o devia, deve, deverá; sucede-se a necessidade ideal pela qual, entre as muitas direcções que o curso cronológico dos factos podia assumir, uma só é a que ele devia assumir para realizar a ordem da comunidade ideal. É só uma, na série dos possíveis, a alternativa que deve verificar-se (1b., p. 185). Mas esta necessidade ideal não é uma necessidade de facto que anule
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a possibilidade das outras alternativas. A história ideal eterna, que é a ordem e o significado universal da história, não se identifica nunca com a história no tempo. Esta decorre segundo aquela. "Segundo a história ideal eterna, diz Vico, decorrem no tempo as histórias de todas as nações nos seus surtos, progressos, estados, decadências e fins". Ela é a substância que rege a história temporal, a norma que permite ajuizar. Neste sentido é o dever ser da história no tempo; mas é um dever ser que não anula a problematicidade de tal história, a qual pode também não adequar-se a ela e não alcançar o termo que ela indica.
Isto quer dizer que a história ideal eterna é transcendente relativamente à história particular das nações. Esta transcendência não exclui a relação, antes a implica; mas trata-se da relação entre a condição e o condicionado, entre o dever ser e o ser,
entre a norma e aquilo que se deve erigir em norma.
Por isso Vico reconhece o antecedente do seu pensamento na obra de Platão. A república platónica é a norma para a constituição de um estado ideal, é o termo final a que a história deve tender. Vico exproba a Platão o ter ignorado o estado de queda dos homens e o "ter elevado as bárbaras e rudes origens da humanidade pagã ao estado perfeito das suas sublimes cogitações". Reprova, assim, a Platão o ter fixado a sua atenção na meta final da história humana, no seu término transcendente, e não já no seu ponto inicial, na realidade de facto da qual ela parte. Por isso pretende aliar o ensinamento de Platão ao de Tácito e pode considerar todo o
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desenvolvimento ideal da história como o projecto que vai da humanidade decaída e dispersa à humanidade restituída à ordem da "razão inteiramente esclarecida".
Pondo o vinho novo em velhas pipas, Vico descreve este curso progressivo valendo-se da velha ideia de uma sucessão de idades e fala de uma idade dos deuses, de uma idade dos heróis e de uma idade dos homens. Vico atribui esta divisão das idades humanas ao erudito romano Marco Terêncio Varrão, que a teria exposto na sua grande obra Rerum divinarum et humanarum libri, que se perdeu; na realidade, porém, foi exposta pela primeira vez por Platão no Crítias (109 b segs.), que reduzira assim a divisão das cinco idades estabelecidas por Hesíodo. Em Vico, todavia, este velho conceito apresenta-se com o sinal mudado: para os antigos a sucessão das idades constituía a ordem da decadência ou do regresso, estando a perfeição no princípio; para Vico, essa sucessão é uma ordem progressiva. Além disso, a diferença entre as diversas idades não tem um fundamento histórico-mítico, como para os antigos, mas sim antropológico: cada idade é marcada, segundo Vico, pela prevalência de uma particular faculdade humana sobre as outras. Neste sentido, a ciência nova, como doutrina da história ideal eterna, é considerada também por Vico como "uma história das ideias humanas sobre a qual parece haver de prosseguir a metafisica da mente humana": ela vem a ser a determinação do desenvolvimento intelectual humano desde as rudes origens até à "razão inteiramente esclarecida" e, inclui uma
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"crítica filosófica" que mostra a origem das ideias humanas e a sua sucessão.
Este é um dos pontos-chave da doutrina de Vico. De facto, a história no tempo pode correr sobre a linha da história ideal porque tem em si, como fundamento e norma de todas as suas fases, uma relação com ela: com a totalidade dela e não apenas com aquela parte que se refere ou corresponde à fase em acto. Por isso, seja qual for a fase de desenvolvimento da história temporal, seja a divina da humanidade rude e bestial, seja a heróica, seja a humana da reflexão inteiramente esclarecida, o que impede a imobilidade, a dispersão e a morte da comunidade humana é a relação com a ordem total da história eterna. História que, precisamente por ser
eterna, não tem partes não se distribui na sucessão cronológica de um modo tal que a um período desta sucessão corresponda uma fase só dela. Ela é uma ordem transcendente, uma norma divina, que sustém o homem desde os primeiros passos incertos da sua vida temporal. O que constitui a
diferença entre as várias fases desta vida temporal é portanto apenas a modalidade da relação, ou seja, a forma espiritual por que o homem se apercebe dela. E a este propósito Vico estabelece o seu aforismo fundamental: "Os homens primeiro sentem sem se aperceberem, depois apercebem-se com
ânimo conturbado e comovido, finalmente reflectem com a mente pura". De sorte que os homens começam por se dar conta daquela história ideal eterna, que é a norma e o dever ser da sua história, sob a forma de um obscuro sentir; têm, assim, um con60
fuso pressentimento dela e só por último chegam a pensá-la distintamente.
§ 449. VICO: AS TRÊS IDADES
DA HISTORIA E A SABEDORIA POÉTICA
O que provocou a saída do homem do estado bestial e portanto o início da vida civilizada e da história é o obscuro sentimento da ordem providencial da história eterna. A sabedoria primitiva dos homens não tem nada de racional, não tem a clareza da verdade demonstrada: é uma simples certeza obtida sem nenhuma reflexão. É um juízo comummente sentido por toda uma ordem, por todo um
povo, por toda uma nação ou por todo o género humano, juízo que é o senso comum das nações (S. N., 12). Antes que a ordem providencial resplandecesse claramente como

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