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História da filosofia VIII - Nicola Abbagnano

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hist�ria da filosofia 8.rtf
História da Filosofia
Volume oito
Nicola Abbagnano
Digitalização e arranjos:
Ângelo Miguel Abrantes
(quarta-feira, 1 de Janeiro de 2003)
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
VOLUME VIII
TRADUÇÃO DE:
ANTóNIO RAMOS ROSA ANTóNIo BORGES COELHO
CAPA DE: J. C.
COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO
TIPOGRAFIA NUNES
R. José Falcão, 57-Porto
EDITORIAL PRESENÇA . Lisboa 197o
TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILoSOFIA
Copyright by NICOLA ABBAGNANO
Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA, LDA. - R. Augusto Gil, 2 cIE. - Lisboa
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O ILUMINISMO ITALIANO
§ 500. O ILUMINISMO EM NÁPOLES
O que caracteriza o Iluminismo italiano, que está estreitamente ligado ao francês, é a prevalência dos problemas morais, políticos e jurídicos.
O seu principal contributo reside na obra de César Beccaria, Dos delitos e das penas, obra que incorpora no domínio do direito penal os princípios fundamentais da filosofia moral e política do iluminismo francês. No que se refere à gnoseologia, o
iluminismo italiano visou sobretudo moderar as teses extremistas do iluminismo francês, optando por um prudente celectismo, mediante o qual aquelas teses perdem grande parte da sua virulência e da sua força renovadora. Os dois centros do iluminismo italiano foram Nápoles e Milão. Em Nápoles, o
espírito do iluminismo encontra a sua primeira realização
na História civil do Reino de Nápoles (1723) de .Pedro Giannone (1676-1748), obra que pretendia mostrar como o poder eclesiástico tinha, através de sucessivas usurpações, limitado e enfraquecido o poder político, e quanto convinha a este confinar o
poder eclesiástico no puro âmbito espiritual. Um dos fins da obra de Giannone era "o esclarecimento das nossas leis pátrias e das nossas instituições e
costumes" (História, intr., ed. 1823, 1, p. 213).
Uma figura que pertence mais ao iluminismo francês do que ao italiano é a do abade napolitano Fernando Galiani (1728-87) que foi durante dez anos
(1759-69) secretário da Embaixada do Reino de Nápoles em Paris e dominou os salões da capital francesa com o seu espírito e o seu brio. Galiani foi especialmente economista. O ensejo do seu tratado Da moeda (1751) era o de criticar a tese do mercantilismo de que a riqueza de uma nação consistia na posse de metais preciosos. As suas
ideias filosóficas, não expostas de forma sistemática, mas lançadas aqui e ali como ditos de espírito, estão contidas nas Cartas (escritas em francês) e
são em tudo conformes às ideias dominantes no ambiente francês em que Galiani viveu. Os filósofos que afirmam que tudo vai bem no melhor dos mundos, considera-os Galiani verdadeiros ateus que, com receio de serem queimados, não chegam a concluir o seu silogismo. E eis aqui, segundo ele, o silogismo: "Se um Deus tivesse criado o mundo, este seria sem dúvida o melhor de todos os mundos; mas não é, nem de longe; portanto, Deus não existe". A estes ateus camuflados cumpre
responder, segundo Galiani, da maneira seguinte: "Não sabeis que Deus criou este mundo do nada? Pois bem, nós temos portanto Deus por pai e o
nada por mãe". Decerto que o nosso pai é unia
grandíssima coisa, mas a nossa mãe não vale nada. Temos algo do pai, mas recebemos também alguma coisa da nossa mãe. O que há de bom no mundo
vem do pai e o que há de mau da senhora nada, nossa mãe, que não valia grande coisa (Carta ao
Abade Mayeul, 14 de Dezembro de 1771). Contra os
ateus e os materialistas, aduz o argumento dos dados chumbados. "Se dez ou doze lances de dados vos fizerem perder seis francos, credes firmemente que isso é devido a uma manobra hábil, a uma combinação artificiosa, a uma artimanha bem urdida; mas vende neste universo um número tão prodigioso de combinações mil e mil vezes mais difíceis e complicadas, mais elaboradas e úteis, não supondes, de facto, que os dados da natureza estejam igualmente chumbados e que haja lá em cima um grande trampolineiro que se diverte a enganar-vos". Galiani está convencido de que o mundo é uma máquina que se move e caminha necessariamente e que, por consequência, nele não há lugar para a liberdade dos homens. Todavia, o homem julga-se livre e a persuasão da liberdade constitui a própria essência do homem. Como resolver a contradição? "Se houvesse um único ser livre no universo, não poderia haver Deus, não poderia haver laços entre os seres. O universo desintegrar-se-ia. E se o homem não estivesse íntima e essencialmente convencido de ser
sempre livre, a moral humana não seria o que é.
A convicção da liberdade é suficiente para estabelecer uma consciência, um remorso, uma justiça, recompensas e castigos. Ela basta paira tudo, e eis assim o mundo explicado em duas palavras". Está demonstrado que nós não somos livres, mas agiremos sempre como se o fôssemos do mesmo modo que veremos sempre quebrado um pau submerso na água, conquanto o raciocínio nos diga que o não está (Carta, a Madame d'Epinay, 23 de Novembro de 177 1).
Do sensualismo francês extraiu o fundamento das suas doutrinas Antonio Genovesi (1712-69), que foi o primeiro na Europa a professar na universidade a nova ciência da economia. Leccionou, de facto, a partir de 1754 a disciplina de lições de comércio na
Universidade de Nápoles. Genovesi considera como princípio motor, quer dos indivíduos, quer dos corpos políticos, o desejo de evitar a dor que deriva da necessidade insatisfeita e chama a tal desejo interesse, considerando-o como o que incita o homem, não só à sua actividade económica, mas também à criação das artes, das ciências e a todas as virtudes (Liç. de Comércio, ed. 1778, 1, 57). Genovesi é também autor de obras filosóficas: Meditações filosóficas sobre a religião e sobre a moral (1758); Lógica (1766), que é um resumo italiano de um manual latino de lógica que Genovesi publicara em 1745 e que conheceu um grande êxito na Europa; Ciências metafísicas (1766); Diceosina, ou seja, doutrina do justo e honesto (1776). Nas Meditações retoma à sua maneira o procedimento cartesiano, considerando, porém, que o primeiro princípio não é o pensa10
mento mas o prazer de existir. "Eu existo, de facto. Este pensamento e o prazer que implica, enche-me por completo; e, visto que é belo e grande, de hoje em
diante esforçar-me-ei tanto quanto puder por me deter
nele e fazer, se possível, por que se converta, tanto por reflexão como por natureza, na substância de todos os meus pensamentos e dos outros prazeres meus" (Meditações, 1). Deste modo, o prazer vem a ser para Genovesi o acto originário do ou, o fundamento e a substância de toda a sua vida. E a própria razão toma-se numa "faculdade calculadora" de tudo o que existe ou é possível. Esta orientação, que parece proceder de Helvétius, não impede Genovesi de defender a tese do espiritualismo tradicional: a espiritualidade e a imortalidade da alma, o finalismo do mundo físico e a existência de Deus.
Caetano Filangieri (1752-88) inspirou-se em Montesquieu ao escrever Ciência da legislação (1781-88), em que se vale da obra do filósofo francês para extrair dela o que se deve fazer para o futuro, ou seja, para tirar dela os princípios e as regras de uma reforma da legislação de todos os países. Da reforma da legislação, espera Filangieri o progresso do género humano para a felicidade e a educação do cidadão. <Faremos ver, diz ele no
Plano da obra (ed. Vilari, 1864, p. 55), como uma
sábia legislação servindo-se do grande móbil do coração humano e dando uma direcção análoga ao
estado presente das coisas, àquela paixão principal da qual todas as outras dependem, àquela paixão que é ao mesmo tempo o germe fecundo de tantos bens e de tantos males, de tantas paixões benéficas
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de tantas paixões perniciosas, de tantos perigos e
de tantos remédios, servindo-se, dizia eu, do amor próprio, poderá introduzir a virtude entre as riquezas dos modernos, pelos mesmos meios com que as
antigas legislações a introduziram entre as legiões dos antigos". Inspirado
por esta confiança optimista na
função formativa e criadora da lei, Filangieri delineia
o seu plano de legislação, em que se deve salientar a
defesa da educação pública, defesa que parte do princípio de que só ela pode garantir a uniformidade das instituições, das máximas e dos sentimentos e que por isso só a menor parte possível dos cidadãos s-- deixa à educação privada. Mas em relação às ponderadas análises de Montesquieu, o optimismo de Filangieri com respeito à acção legislativa parece utópico.
Mário Pagano (1748-99), nos Ensaios políticos dos princípios, progressos e decadência da sociedade (1783-85), retoma a doutrina de Vico sobre as três idades e sobre os fluxos e refluxos históricos, dentro do espírito do iluminismo. Mas Pagasio é completamente alheio à problematicidade da história que domina a obra de Vico. O fluxo e refluxo das nações é para ele uma ordem fatal, que se deve mais a causas físicas do que a causas morais. Pagano considera o mundo da história como um mundo natural, cujas leis não são diferentes das do mundo físico. "A natureza é uma contínua e ininterrupta passagem da vida à morte e da morte à vida. A geração o a destruição, com ritmo veloz, num
perpétuo circuito, sucedem-se sem interrupção. E os
componentes que constituem a grande massa do
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universo unem-se e dissolvem-se numa perene sucessão; o tudo perece, tudo se renova, por meio das diversas catástrofes que corrompem a ordem antiga das coisas e produzem novas formas, que se assemelham inteiramente às velhas, e assim repetem os mesmos tempos" (Ensaios, 1, 3). A decadência e a morte das nações é pois inevitável depois de alcançarem o estádio do máximo florescimento. O maior triunfo da razão é o princípio do fim Qb., i, 4). O homem não tem o poder de afastar as catástrofes que ameaçam a sociedade pela força das coisas. E o motivo é que ele é um ser sensível e que, por isso, está ligado à natureza e à mercê de todos os seus movimentos acidentais. "A função natural da razão é a de dirigir, e não extinguir o sentimento (isto é, a sensibilidade), purificá-lo, e não
oprimi-lo. O homem vive tanto como sente. E, dado que as sensações se produzem em nós pela impressão dos objectos exteriores, é o homem, quando sente assim, um ser passivo e escravo das coisas externas de que está rodeado; a sua existência é precária e depende da existência dos objectos exteriores. A cadeia dos acontecimentos acidentais envolve-o e arrasta-o como o torvelinho das ondas faz rodopiar os corpos que nelas flutuam" (1b., VI, 1). Somente pelas suas convicções naturalistas e sensualísticas Pagano adere à tese de Vico sobre o carácter primitivo da poesia. No seu Discurso sobre a origem e natureza da poesia, interpreta o nascimento da poesia a partir das paixões como o
efeito da "impressão produzida na máquina pelo objecto" (Discurso, 2); na máquina, isto é corpo hw
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'mano. E atribui a causas puramente físicas o ressurgir da poesia na idade da razão. "E agora que as
nações são cultas e educadas, e a razão acabou com o império da fantasia, se por uma força de temperamento em ninguém despertar e ressurgir aquele fantástico furor que experimentaram naturalmente as primeiras nações, teremos versificadores o não poetas, cópias e não originais" (lb., 12).
§ 501. O ILUMINISMO EM MILÃO
O outro centro do iluminismo italiano foi Milão, onde uma plêiade de escritores, se reuniu em torno de um periódico, 11 café, que teve vida breve e intensa (1764-65). O jornal, concebido segundo o
modelo do Spectador inglês, foi dirigido pelos irmãos Verri, Pedro e Alexandre, e nele colaborou, entre outros, César Beccaria. Alexandre Verri, (1741-1816) foi literato e historiador. Pedro Verri (1728-97) foi filósofo e economista. No seu Discurso sobre a índole do prazer e da dor (1781), Podro Verri sustenta o princípio de que todas as sensações, agradáveis ou dolorosas, dependem, não só da acção imediata dos objectos sobre os órgãos corpóreos, mas
também da esperança e do temor. A demonstração desta tese começa por uma análise do prazer e da dor moral reportados a um impulso da alma para o futuro. O prazer do matemático que descobriu um
teorema deriva, por exemplo, da esperança dos prazeres que colherá no futuro, da estima e dos benefícios que a sua descoberta lhe trará. A dor causada por uma desgraça é semelhante ao temor das
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dores e das dificuldades futuras. Ora, como a esperança é para o, homem a probabilidade de viver melhor rio futuro do que no presente, supõe sempre a carência de um bem e é portanto o resultado de um efeito, de uma dor, de um mal (Disc. 3). O prazer moral não é mais do que a rápida cessação da dor e
é tanto mais intenso quanto maior for a dor da privação ou da necessidade (lb., 4). Verri estende a
sua doutrina também aos prazeres, mostrando que frequentemente o prazer físico não é mais do que a cessação o de uma privação natural ou artificial do homem (Ib., 7). À objecção de que a tese se pode inverter, dado que parece também verosímil que toda a dor consista na rápida cessação do prazer, Verri responde que uma semelhante geração recíproca não pode dar-se, porque "o homem nunca poderia começar a sentir prazer nem dor; de contrário, a primeira das duas sensações deste género seria a primeira hipótese, o que é absurdo" (1b.,
6), Verri chega a confirmar a conclusão que Maupertuis (§ 493) extraíra do seu cálculo, e que é a de que a soma total das dores é superior à dos prazeres. De facto, a quantidade do prazer nunca pode ser superior à da dor porque o prazer não é mais do que a cessação da dor. "Mas todas as dores que não terminam rapidamente 	 são uma quantidade de mal que na sensibilidade humana não encontra compensação, e em todos os homens ocorrem sensações dolorosas que cedem lentamente" (1b., 6). Também os
prazeres que as belas artes proporcionam têm a mesma origem: o fundamento delas reside naquelas dores que Verri designa por dores inominadas. A
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arte nada diz aos homens que teMam. de contentamento, mas, em contrapartida, fala aos que se deixam dominar pela dor ou pela tristeza. o magistério da arte consiste sobretudo em "espalhar as belezas consoladoras da arte de modo que exista um intervalo suficiente entre, uma e outra para se poder voltar à sensação do alguma dor inominada, ou em fazer nascer de quando em quando, propositadamente, sensações dolorosas e em acrescentar-lhes depois uma ideia risonha, que docemente surpreenda e rapidamente faça cessar a dor" (1b., 8). A conclusão é que "a dor é o princípio motor de todo o género humano". E deste pressuposto parte a outra tese que Verri defende na sua obra Sobre a felicidade. Para o homem é impossível a felicidade pura e constante, e, ao invés, é possível a miséria e a infelicidade.
O excesso dos desejos relativamente às nossas capacidades, é a medida da infelicidade. A ausência dos desejos é mais um indício de simples vegetar, do que de viver, ao passo que a violência dos desejos pode ser experimentada por todos e é talvez um estado duradouro. A sabedoria consiste em proporcionar em todos os campos os desejos com as possibilidades, e por isso só pode ser feliz o homem esclarecido e virtuoso.
§ 502. ILUMINISMO ITALIANO: BECCARIA
A obra de César Beccaria. (15 de Março de
1738-28 de Novembro 1794) Dos delitos e das penas (1764) é o único escrito do iluminismo italiano que teve uma repercussão europeia. Traduzido para fran16
cês pelo Abade Morellet e publicado em Paris em
1766, traduzido em seguida nas demais línguas europeias, pode dizer-se que representa o ponto de vista do iluminismo no campo do direito penal. Os princípios de que a obra parte são os de Montesquieu. e
de Rousseau. O escopo da vida social é "a máxima felicidade repartida pelo maior número"; fórmula ulteriormente adoptada por Bentham. O estado nasce de um contracto e a única autoridade legitima é a dos magistrados que representam a sociedade unida pelo contracto (Dos delitos, § 3). As leis são as condições do pacto originário e as penas
são o motivo sensível para reforçar e garantir a acção das leis. Destes princípios deriva a consequência fundamental, que inspira todo o ensaio. "As penas que ultrapassam a necessidade de manter a conservação da saúde pública, são injustas por sua natureza; e tanto mais justas são as penas quanto mais sagrado e inviolável é a segurança, e maior a liberdade que o soberano reserva para os súbditos" Qb., § 2).
Deste ponto de vista nascem os problemas debatidos por Beccaria. Será a morte verdadeiramente uma pena útil e necessária para a segurança o a boa ordem da sociedade? A tortura e os tormentos são justos e atingem o Em que as leis se propõem? As mesmas penas serão igualmente úteis em todos os tempos? Ora, o fim da pena não é outro senão o de impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos e evitar que outros pratiquem danos iguais. É necessário, pois, escolher aquelas penas e
o modo de as infligir que, mantendo a proporção com o delito cometido, exerçam uma impressão mais
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c6caz e duradoura sobre a alma dos homens e sejam menos dolorosas para o corpo do réu (lb., § 15). Mas o réu não é tal antes da sentença do juiz, nem
a sociedade lhe pode tirar a protecção pública antes que se tenha decidido que ele violou os pactos com os quais; ela lhe foi concedida. A tortura é portanto, ilegítima: e é também inútil pois é vão supor que "a dor se torne cadinho da verdade, como se o critério dela residisse nos músculos e nas fibras de um miserável". A tortura é o meio seguro de absolver os criminosos robustos e de condenar os fracos inocentes, é uma questão de temperamento e de cálculo que varia em cada homem consoante a sua robustez e sensibilidade. E coloca o inocente em piores condições do que o réu, que, se resiste à tortura, é declarado inocente, ao passo que ao inocente reconhecido como tal ninguém lhe pode tirar o mal produzido pela tortura (lb., § 12). Quanto à pena de morte, Beccaria pergunta-se que direito é esse que os homens se arrogam, de matar os seus
semelhantes? Tal direito não pode provir do contrato social, porque é absurdo que os homens tenham neste contrato conferido aos outros o poder de lhes tirar a própria vida. A pena de morte não é um
direito, mas "uma guerra da nação com um cidadão". Justificar-se-ia apenas no caso de ser o verdadeiro e único freio para impedir os homens de praticarem delitos, mas é precisamente isto que Beccaria nega. Não é a intensidade da pena que produz o efeito mais forte sobre a alma humana, mas a extensão dela, porque a nossa sensibilidade é mais fácil e estavelmente movida por mínimas e 
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continuadas impressões do que por um forte mas passageiro impulso. As paixões violentas surpreendem os homens, mas não por muito tempo; por isso, num
governo livro e tranquilo, as impressões devem ser
mais frequentes do que fortes. "A pena de morte toma-se um espectáculo para a maioria das pessoas
e um objecto de compaixão e de desdém para alguns; ambos estes sentimentos dominam mais a alma dos espectadores do que o poderá fazer o salutar terror que a lei pretendo inspirar. Mas nas penas moderadas o contínuas, o sentimento dominante é este último, porque é o único. O limite que o legislador deveria fixar ao rigor das penas parece consistir no
sentimento de compaixão, quando este começa a
prevalecer sobre qualquer outro na alma dos espectadores de um suplício, mais feito para eles do que para o réu (lb., § 16). Aquele que vê perante si o grande número de anos que há-de passar na
escravidão, faz uma comparação útil de tudo isso com a incerteza do êxito dos seus delitos e com a brevidade do tempo que gozaria os frutos do seu crime. Não é necessário que a pena seja terrível; é necessário, isso sim, que ela seja certa e infalível. "A certeza de um castigo, se bem que moderado, produzirá sempre uma impressão mais forte do que um outro mais terrível, aliado à esperança da impunidade" (1b., § 20). Seja como for, a verdadeira medida dos delitos é o mal que causam à sociedade. Não se deve tomar em consideração o intuito, que é diferente de indivíduo para indivíduo e não se presta a entrar nas normas gerais de um código; e tão-pouco a consideração do pecado. O pecado diz
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respeito à relação entre o homem e Deus, ao passo que a única base da justiça humana é a utilidade comum (1b., § 24). A exigência geral da legislação penal é indicada por Beccaria no fim da obra. "Para que toda a pena não seja uma violência de um ou de muitos contra um cidadão particular, deve ser essencialmente pública, imediata, a mínima possível nas circunstâncias dadas, proporcionada aos delitos e ditada pelas leis" (Ib., § 42).
Em face do escrito agora examinado, as outras obras de Beccaria têm escasso relevo. Nas Investigações em torno da natureza do estilo (1770) utiliza pressupostos sensualistas. Distingue as ideias principais ou necessárias que asseguram a verdade de um juizo, das ideias acessórias destinadas apenas a aumentar a força e a impressão do mesmo juizo.
O estilo consiste na escolha e no uso das ideias acessórias. Tal escolha deve considerar sobretudo o interesse ligado às ideias, isto é, à sua relação com o prazer e com a dor. Beccaria vale-se aqui dos elementos da psicologia de Condillac.
§ 503. ILUMINISMO ITALIANO: ROMAGNOSI. GiOIA
A influência de Condillac é também evidente nos escritores do iluminismo italiano que abordaram o problema gnoseológico. Giovanni Domenico Romagnosi (1761-1835) foi sobretudo um jurista, que seguiu as pisadas de Filangieri e de Beccaria. As questões com que deparou na sua ciência conduziram-no aos problemas gnoseológicos, que procurou resolver no
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sentido de um empirismo revisto e corrigido (Que é a mente sã?, 1827; Pontos de vista fundamentais sobre a arte da lógica, 1832). Romagnosi não considera possível extrair da sensação todas as faculdades e conhecimentos humanos, como o fez Condillac. Na sensação não vê mais do que uma
simples modificação passiva, em relação à qual a
percepção Representa já um progresso, porquanto consiste na apropriação activa de um modo determinado e discernível de sentir (Vedute, 1. 6). Nas percepções, na memória e bem assim na dúvida, no juízo e em todos os actos da inteligência actua, segundo Romagnosi, um poder concreto, simples, uniforme, imutável, universal, que ele chama de sentido racional o que constitui a unidade de desenvolvimento do espírito humano desde o sentido e o instinto até à razão inteiramente desenvolvida ou "razão dominante". As funções do sentido racional não são criadas espontaneamente pela alma, mas são sempre estimuladas por uma intuição externa e a ela associadas. Constituem a reacção que o nosso eu
pensante opõe à acção das coisas exteriores (Que é a mente sã?, § 10). O sentido lógico é pois um
produto natural e as suas leis são leis naturais, semelhantes às que determinam a acção de um espelho reflector (1b., § 10). A lei fundamental da inteligência é a que estabelece a relação entre a acção do objecto e a reacção analítica do sentido lógico, relação da qual nasce a percepção do ser e da acção das coisas (b., § 12).
É fácil notar o carácter naturalista e determinista desta concepção gnoseológica. Aliás, naturalismo e
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determinismo dominam, também as concepções morais e políticas de Romagnosi. A sociedade vive e
desenvolve-se segundo leis naturais e através de fases constantes, precisamente como o indivíduo. A moralidade é o conjunto das condições necessárias para que o homem viva em sociedade e persiga de harmonia com a sociedade os seus fins naturais que são a conservação, a felicidade e o aperfeiçoamento. Conquanto Romagnosi tenha conhecido (e criticado mal) a doutrina de Kant, a sua doutrina ainda está ligada à orientação sensualista do iluminismo francês.
Uma variante análoga do sensualismo de Condillac patenteia-se nas obras filosóficas (Elementos de filosofia, 1818; Ideologia, 1882) de Melchiorre Gioia (1767-1828), mais benemérito pelos seus estudos sobre estatística o pela defesa que fez da
utilidade desta ciência para fins sociais. Gioia combate a tese de que os fenómenos da consciência dependam apenas da acção dos sentidos. Se assim fosse, a inteligência deveria ser proporcionada à intensidade das sensações, ao passo que a experiência nos mostra que esta não aumenta, mas sim, diminui, a energia das faculdades intelectuais. Uma força independente dos sentidos é necessária, não só para decompor, isto é, para considerar separadamente as qualidades dos corpos e descobrir as suas relações, mas também para decompor, isto é, para dar lugar a produtos que não existem na natureza. Da mesma forma que não se pode confundir a madeira com o machado que a
corta, também não se pode confundir a força 
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intelectual com o material que os sentidos oferecem ao hornem (Ideologia, ed. 1822, 11, p. 175 sgs.).
Deve recordar-se, uma vez que os seus manuais introduziram nas escolas italianas a fil, osofia de Locke e de Condillac, o Padre Francisco Soave, (1743-1816), professor da Universidade de Parma, quepermaneceu sempre, fiel à filosofia de Condillac, que elo conheceu durante a estadia do filósofo francês na corte de Parma.
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 500. Giannone, opere, Milão (Clássicos italianos), 1823.-Nicohni, Gli scritti e Ia fortuna li P. G., Bari, ID., Le teorie politiche di P. G., Nápoles, 1915.
Gãliani, Della moneta, ed. Nicolini, Bari, 1915; Correspondance, ed. Perey e Maugras, 2 vol., Paris 1881;
11 pen~ro dellIab. G., ant. -a cargo de Nicolini, Bari,
1909.
Genovesi, Sul vero fine delle lettere e delle scienze,
1753; De jure et officiis, 1764 (além das ob. ctt. no texto).
Fil-angieri, Seienza della legislazione, ed. P. VillIari,
2 vol., Florença, 1864. - S. COTTA, G. F. e il problema della legge, Turim, 1954.
Pagano, Saggi politici, reimp., Calpolago, 1837; ed. Colletti, Wonha, 1936.
§ 501. Pietro Verri, Op. filos, e di econ. politica,
4 vol., Milão, 1818; Opere varie, ao cuidado de N. VaJeri, vol. I, Florença, 1947. - OTTOLINI, P. V. e suoi tempi, Palermo, 1921; N. VALERI, P. V., Milão, 1937.
§ 502. Beccaria, Opere, 2 vol,. Milão (Clássicos ital,ianos), 1821; Seritii e lettere inedite, Milão, 1910; Opere seelte, ed. Mondolfo, Wonha, 1924.
DE RuGGIERO, Il pensiero político meridionale nei sec. XVIII e XIX, Bari, 1922.
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§ 503. Romagnosi, Opere, ed. Marzucchi, 19 vGI., Florença, 1832-39; ed. De Giorgi, 8 vol. Milão, 1841-52. -A. NORSA, II pens. filos, di G. D. R., Milão, 1930; CABOARA, La ftl. del diritto di G. D. R. Città di Castello,
1930; SOLARI, in "Riv. di Filos". 1932.
Gioia, Del merito e delle ricompenze, 1818; Esercizio logico sugli errori di ideologia e di zoologia, 1823; Filosofia della statistica, 1822.
Soave, Elementi di filos.; Istruzioni di logica, metalisica ed etica, Milão, 1831.
G. CAPONE BRAGA; La fil. franc. e it. del 700, cit..
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XIV
O ILUMINISMO ALEMÃO
§ 504. ILUMINISMO ALEMÃO: WOLFF
o iluminismo alemão deve a sua originalidade, relativamente ao inglês e ao francês, mais do que a novos problemas ou temas especulativos, à forma lógica com que apresenta e trata tais temas e problemas. O ideal de uma razão que tem o direito de atacar, com as suas dúvidas e os seus problemas, o mundo inteiro da realidade, é transformado pelo iluminismo alemão num método de análise racional, a um tempo cauteloso e decidido, que avança demonstrando a legitimidade de cada passo e a possibilidade intrínseca dos conceitos de que se serve, o seu fundamento (Grund). É este o método da fundamentação que devia ser característico da filosofia alemã posterior e que alcançou o seu grande triunfo na obra de Kant. O fundador deste método
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foi Wolff que, sob este aspecto, é o máximo representante do Iluminismo alemão. As obras de Wolff, tão escrupulosas e pedantes na sua construção sistemática, contrastam de maneira estranha com o carácter inspirado, genial e divertido dos escritos dos maiores iluministas ingleses e franceses. Mas a exigência iluminista concretiza-se e incorpora-se precisamente na forma dessas obras, pois se trata do objectivo de uma razão que pretende justificar-se por si e reencontrar em si própria, isto é, no próprio procedimento analítico, o fundamento da sua validez.
Christian Wolff nasceu em Breslau a 24 de Janeiro de 1679. Nomeado professor em Halle em 1706, foi destituído em 1723,pelo rei Frederico Guilherme 1 a pedido dos seus colegas pietistas, Francke e Lange.
O pietismo era uma corrente protestante, fundada em
fins de 1600 por Ph. J. Spencer (1635-1705), que insistia no carácter prático e místico do cristianismo e combatia as tendências intelectualistas e teológicas.
O que escandalizou especialmente os colegas de Wolff foi o seu Discurso sobre a filosofia prática dos Chineses, na qual, à maneira dos iluministas franceses, punha Confucio entre os profetas, ao lado de Cristo. Subido ao trono Frederico H, Wolff foi restabelecido na sua cátedra de Halle (1740), onde ensinou até à sua morte (1754).
A obra de Wolff exerceu sobre toda a cultura alemã uma influência extraordinária. Num primeiro período, escreveu em alemão; posteriormente, em
latim, pois queria falar como "preceptor de todo o
género humano". Na realidade, a sua eficácia mais durável foi a que demonstrou no domínio da 
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linguagem filosófica. Grande parte da terminologia filosófica, dos séculos XVIII e XIX e da que ainda hoje está em uso sofreu a influência das definições e das distinções wolfianas.
As obras alemãs de Wolff são as seguintes: Pensamentos racionais sobre as forças do entendimento humano (1712); Pensamentos racionais sobre Deus, o mundo e a alma dos homens (1719); Pensamentos racionais sobre a acção humana (1720); Pensamentos racionais sobre a vida social dos homens (1721); Pensamentos racionais sobre as operações da natureZa1723); Pensamentos racionais sobre a finalidade das coisas naturais (1724); Pensamentos racionais sobre as partes dos animais, dos animais e das plantas (1725). As suas obras latinas são: Philosophia rationalis sive Logica (1728); Philosophia prima sive Ontologia (1729); Cosmologia generalis (1731); Psychologia empirica (1723); Psychologia racionalis (1734); Theologia naturalis (1736-37); Philosophia practica universalis (1738-39); Jus naturae (1740-48); lus gentium (1749); Philosophia moralis (1750-53).
O objectivo final da filosofia é, segundo Wolff, iluminar o espírito humano de modo a tornar possível ao homem o uso da actividade intelectual na qual consiste a sua felicidade. A filosofia tem, portanto, uma finalidade prática, que é a felicidade humana; mas só se pode atingir esta finalidade através de um
conhecimento claro e distinto. Tal objectivo não poderá ser atingido se não existir a "liberdade filosófica" que consiste na possibilidade de manifestar publicamente o que se pensa sobre as questões filosóficas (Lógica, § 151). Sem liberdade filosófica,
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não é possível o progresso do saber, já que então "cada um é obrigado a defender como verdadeiras as opiniões comummente transmitidas, mesmo se lhes parecem falsas" (1b., § 169). Wolff aceita e perfilha, a exigência iluminista da liberdade e interpreta-a como libertação da tradição. A filosofia é "a ciência das coisas possíveis enquanto tais" assim como das "razões pelas quais as coisas possíveis se realizam", entendendo-se por "possível" o que não implica contradição. As regras do método filosófico devem pois ser idênticas, segundo Wolff, às do método matemático. "No método filosófico, diz Wolff, não há necessidade de fazer uso de termos que não se tenham tornado claros através de uma definição exacta, nem se pode admitir como verdadeiro algo que não tenha sido suficientemente demonstrado; nas proposições, cumpro determinar com igual cuidado o sujeito e o predicado e tudo deve ser ordenado de modo a que sejam premissas aquelas coisas em virtude das quais as seguintes são compreendidas e justificadas" (lb., § 139). Wolff divide a filosofia em conformidade com as actividades fundamentais do espírito
humano e, uma vez que tais actividades são substancialmente duas, o conhecer e o querer, assim os dois ramos fundamentais da filosofia são a filosofia teorética ou metafísica e a filosofia prática. Ambas pressupõem a lógica como sua propedêutica. A metafísica divide-se, por sua vez, nos seguintes ramos: ontologia, que concerne a todos os objectos em geral, enquanto existem; psicologia, que tem por objecto a alma, cosmologia, que tem por objecto o
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mundo e teologia racional, que tem por objecto a
existência e os atributos de Deus.
Na lógica, Wolff considera como princípio supremo o princípio de contradição, que não é apenas uma lei do pensamento mas também de todo o
objecto possível. Em conformidade com o princípio de contradição, os conceitos podem ser utilizados só nos limites do que contêm e os juízos só são verdadeiros na medida em que fazem a análise dos seus sujeitos. Wolff não exclui no entanto a experiência, que nas ciências naturais se deve aliar ao raciocínio e que mesmo nas ciências racionais deve ser utilizada para formar as definições empíricas das coisas. Contudo, sobre tais definições podem-se fundamentar apenas demonstrações prováveis, não necessárias; e tais demonstrações assumem na obra de Wolff uma grande importância. A par das proposições necessárias, cujo contrário é impossível, Wolff coloca as proposições contingentes (as verdades de facto de Leibniz) cuja negação não implica contradição.
A ontologia, ou filosofia prima, é a ciência do ser em geral, isto é, do ente enquanto é. O seu
objecto é o de demonstrar as determinações que pertencem a todos os entes, seja absolutamente, seja sob determinadas condições (Ontologia, § 8). Baseia-se em dois princípios fundamentais que são o
princípio de contradição e o princípio de razão suficiente: por razão suficiente entende-se "aquilo que nos faz compreender a razão por que algo acontece" (1b., § 56). Com algumas modificações que a
actualizam, encontra lugar no tratado de Wolff toda
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a metafisica arístotélico-escolástica, que ele de facto declara querer resgatar do desprezo que se lhe votou depois de Descartes. Isto quer dizer que os conceitos; centrais da ontologia são para ele os de substância e de causa. Todavia, pode notar-se a tentativa de apoiá-los numa certa base empírica. Assim Wolff afirma que as determinações de uma coisa que não resultam de outra e não derivam uma da outra constituem a essência da coisa mesma (1b., §§ 143,
144). A substância é o sujeito, duradouro e modificável, dos atributos essenciais e dos modos variáveis de tais atributos (lb., § 770). Toda a substância é dotada de uma força que produz as mudanças dela: mudanças que são as suas acções e têm o seu fundamento na essência da substância (1b., § 776).
Na cosmologia, Wolff considera o mundo como um relógio ou máquina em que nada sucede por acaso e que por isso depende de uma ordem necessária. Dado que esta ordem necessária foi produzida por Deus e é, portanto, perfeita, é impossível que Deus mesmo intervenha para a suspender ou mudar, assim o milagre é posto de parte.
Wolff divide a psicologia em empírica e racional. A primeira considera a alma tal como ela se manifesta no corpo e emprega o método experimental das ciências naturais. A segunda considera a alma humana em geral, elimina, segundo o procedimento cartesiano do cogito, a dúvida sobre a existência da alma mesma e estuda as duas faculdades fundamentais, o conhecer e o agir. Wolff exclui a redução da substância corporal à substância espiritual, operada por Leibniz mediante o conceito de mónada. A alma
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não está desde o princípio unida ao corpo, mas foi. lhe agregada de fora, ou seja, por Deus. Sobre as relações entre alma e corpo, Wolff admite a doutrina da harmonia preestabelecida, mas torna-a independente da vontade de Deus admitindo que cada alma vê o mundo apenas dentro dos limites dos seus órgãos corporais e segundo as mutações que se verificam na sua sensibilidade.
Na teologia, que Wolff chama natural (ou racional, contrapondo-a à fundada sobre a revelação sobrenatural, Wolff dá o máximo valor ao argumento cosmológico da existência de Deus, aceita o ontológico, e exclui o teológico. Na realidade, a
ordem do mundo é para ele a ordem de uma máquina e a finalidade das coisas não é intrínseca às coisas mesmas, mas sim extrínseca e devida à acção de Deus. Wolff remonta aos atributos da essência divina mediante uma reflexão sobre a alma humana. E quanto aos problemas da teodiceia, serve-se sistematicamente das soluções de Leibniz.
Na filosofia prática mantém-se a divisão aristotélica de ética, economia e política. A sua ética, completamente diversa da de Leibniz, é deduzida do seu racionalismo. As normas da ética teriam valor mesmo que Deus não existisse, porque o bem é bem por si mesmo, e não pelo querer de Deus. Tais normas deduzem-se do Em mesmo do homem, que é a perfeição, e reduzem-se a uma única máxima: "Faz o que contribui para a tua perfeição, a da tua condição e do teu próximo, e não faças o contrário". Para a perfeição do homem contribui tudo o que é conforme à sua natureza, e por isso também o
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prazer que Wolff define como a percepção de uma real ou suposta perfeição. O conceito da perfeição funda-se no pressuposto da possibilidade do progresso do homem individual e da sociedade: progresso que Wolff de facto considera necessário e que se realizará à medida que a sociedade se organizar de modo a
tornar possível que cada um dos seus membros trabalhe para o aperfeiçoamento dos outros. . O sistema de Wolff costuma ser designado como leibniziano-wolffiano. Na realidade, apresenta características, bastante distintas do de Leibniz. Em primeiro lugar, nega o conceito de mónada, como substância espiritual que constitui tanto a matéria como o espírito; deste modo, abandona-se o conceito dominante de Leibniz, o de uma ordem universal e livre, fundada na 'escolha do melhor. A ordem do mundo é para Wolff a de uma máquina, sendo por isso necessária e não admitindo liberdade de escolha. Daí deriva ainda uma terceira diferença que é a negação da finalidade interna das coisas: estas são, decerto, úteis, porque se prestam a ser utilizadas para o aperfeiçoamento do homem, mas não estão intrinsecamente constituídas para tal fim. Neste ponto está bastante mais próximo de um Diderot ou de um Voltaire do que de um Leibmiz. Mas também se afasta , de Leibniz pela renúncia em estabelecer um acordo entre a filosofia e a religião revelada, acordo que Leibniz procurou por todos os meios realizar, conformemente ao seu princípio de harmonia universal. No sistema de Wolff só existem dois pontos verdadeiramente leibnizianos: 1.o a doutrina da harmonia universal, que, no entanto, se limita à
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WOLFF
relação entre alma e corpo e é interpretada naturalisticamente; 2.a as justificações da teodiceia. O espírito do iluminismo prevalece na doutrina de Wolff sobre a inspiração leibniziana.
§ 505. PRECURSORES DO ILUMINISMO ALEMÃO
Podem considerar-se precursores do Iluminismo alguns pensadores contemporâneos de Leibniz que preanunciam alguns dos temas desse movimento Assim o holandês Walther de Tschirnhaus (1651 _1708), que foi matemático e físico, além de autor de um livro de lógica intitulado Medicina mentis sive artis inveniendi praecepta generalia (1687). Este livro pretende ser uma espécie de introdução à investigação científica e prescreve as regras que ela deve seguir. A origem de todos os conhecimentos é a experiência, mas a experiência entendida no sentido característico, como consciência interior. Esta revela-nos quatro factos fundamentais que podem servir para a descoberta de todo o saber: 1.* Somos conscientes de nós mesmos como de uma realidade distinta, este, facto, que nos conduz ao conceito do espírito, é o fundamento de todo o conhecimento.
2.' Temos consciência de que somos movidos por algumas coisas que nos interessam e por outras que não nos interessam. Deste facto deduzimos os conceitos de vontade, conhecimento, bem e
mal, e, por. consciência de poder compreender algumas coisas e,. por consequência, o fundamento da ética. 3.O Temos,
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consciência de poder compreender algumas coisas t
não poder compreender outras. Mediante este facto alcançamos o conceito de entendimento, a distinção entre o verdadeiro e o falso, e, portanto, o fundamento das ciências racionais. 4.' Sabemos que, através dos sentidos, a imaginação e o sentimento formam uma imagem dos objectos externos. Neste facto @c fundam o conceito dos corpos e as ciências naturais. Tschirnhaus está convencido de que estes factos da experiência interior, se forem adoptados como princípios gerais de dedução e desenvolvidos sistematicamente, podem conduzir à aquisição de um
método útil à verdade em todas as ciências. Por outras palavras, partilha o ideal de uma ciência universal, tal como o entendia Leibniz, com o qual manteve relações pessoais.
No campo da filosofia do direito é notável a
obra de Samuel Pufendorf (1632-94), De iure naturae et gentium libri octo (1672), que é a justificação do absolutismo esclarecido. O direito natural nasce, segundo Pufendorf, em primeiro lugar do amor-próprio que compele o homem à sua conservação e ao seu bem-estar; e, segundo lugar, do estado de indigência a que a natureza reduz o homem. Uma vez que o homem é por natureza um ser racional, o direito natural é a resposta que a razão humana dá ao problema posto ao homem pelo amor-próprio e
pela inteligência: e o seu princípio pode ser formulado da seguinte maneira. "Cada qual, na medida das suas possibilidades, deve promover e manter com os seus semelhantes um estado pacífico de socialismo,
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conforme em geral à índole e finalidade do género humano (De iure, H, 3, 10). Consequentemente, devem considerar-se impostas pelo direito natural todas as acções necessárias para promover tal sociabilidade e proibidas as que a estorvam ou a dissolvam. Pela necessidade da sociabilidade é o homem conduzido a estabelecer convenções o pactos de que nascem em primeiro, lugar a propriedade e o
Estado e, em seguida, os sucessivos desenvolvimentos e as sucessivas determinações destas duas instituições fundamentais.
Nas ideias de Pufendorf se inspira outro jusnaturalista, Christian Thomas (Thomas ius) (1655-1728), autor dos Fundamenta iuris naturae et gentium ex sensu communí deducta (1705). Nesta obra Thomasius vê os fundamentos da vida moral e social na própria natureza humana e, precisamente, nas suas
três tendências fundamentais; a de viver o maior número de anos o do modo mais feliz possível, a de evitar a morte o a dor, e a tendência à propriedade e ao domínio. Sobre estas três tendências se fundam respectivamente o direito, a política e a ética. O direito, fundado na primeira tendência, visa à conservação de uma ordem pacífica entre os homem. A política, fundada na segunda tendência, visa a promover esta ordem pacífica por meio de acções que visem esse fim. A ética, fundada na terceira tendência, visa à aquisição da paz interior dos indivíduos. Em Thomasius patenteiam-se já as tendências iluministas. Ele afirma resolutamente que a filosofia se funda na razão e tem como escopo Somente o
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bem-estar terreno dos homens, enquanto a teologia, que se funda na revelação, visa ao bem-estar celeste. Ademais, vê-se claramente no seu pensamento a independência da esfera do direito em relação à esfera teológica.
§ 506. O ILUMINISMO WOLFFIANO
Depois de Wolf, os problemas filosóficos foram tratados na Alemanha de uma maneira mais ou menos conforme com as soluções que este filósofo lhe dera, mas sempre conformemente ao método que elo empregara. A filosofia wolffiana dominou durante largo tempo nas universidades germânicas; mas não muitos dos seus representantes conservaram um autêntico interesse histórico. Entre os menos servis adeptos de Wolff conta-se Martin Knutzen (1713-51) que foi professor em Conisberga e mestre de Kant. É autor de um Systema causarum efficientium, no qual substitui a doutrina do influxo físico entre os corpos pela da harmonia preestabelecida, clarificando e levando ao seu termo uma tendência que era já evidente no sistema de Wolff.
Entre os adversários de Wolff, o mais notável é Christian August Crusius (1715-75). No seu Esquema das verdades de razões necessárias (1745) Crusius combate o optimismo e o determinismo. Nega que o mundo seja o melhor de todos os mundos possíveis e que nele domine uma ordem necessária (como queria Wolff) ou uma harmonia preestabelecida (como queria Leibniz). Crusius critica também, noutro 36
escrito, o princípio de razão suficiente, ao qual contrapõe como lei fundamental do pensamento que o que não pode ser pensado é falso e o que não pode ser pensado como falso é verdadeiro.
Maior relevo tem a personalidade de João Henrique Lambert (1728-77), que manteve com Kant uma importante correspondência e que, além de filósofo, foi matemático e astrónomo. A sua primeira obra filosófica é o Novo órgão (1764), dividido em quatro partes. A primeira, Dianoiologia, estuda as leis formais do pensamento; a segunda, Aletiologia, estuda os elementos simples do conhecimento; a terceira, Semiótica, aborda as relações das expressões linguísticas com o pensamento; e a quarta, Fenomenologia, as fontes dos erros. Enquanto a dianoiologia reproduz substancialmente a lógica formal de Wolff, a aletiologia é a parte mais original da obra de Lambert. Esta parte é uma espécie de análise dos conceitos, que tem por fim chegar aos conceitos mais simples e indefiníveis. Os conceitos simples são por natureza não contraditórios, porquanto carecem de multiplicidade interna. A sua possibilidade consiste, portanto, na sua imediata "pensabilidade". Só são conhecidos através da experiência, mas são independentes dela porque a sua possibilidade não é empírica, e neste sentido são a priori. Aos conceitos simples pertencem: solidez, existência, duração, extensão, força, consciência, vontade, mobilidade, unidade, e bem assim as qualidades sensíveis, luzes, cores, sons, ete. O problema que nasce do reconhecimento dos conceitos simples é o da sua possível combinação. Assim como a geometria, combinando
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os pontos, as linhas, as figuras, constitui todo o seu sistema, também deve ser possível construir, mediante a combinação dos conceitos simples, todo e qualquer sistema de conhecimento. Bastará encontrar os princípios e os postulados que exprimem (como acontece na geometria) as relações existentes entre os elementos simples. O conjunto destes postulados constituiria o que Lambert chama o "reino da verdade" a que pertenceriam a aritmética, a geometria, a cronometría, a foronomia (doutrina das leis do movimento), e todas as ciências possíveis. A Semiótica, terceira parte do Novo órgão, é a investigação das condições que tornam possível exprimir por palavras e sinais o reino da verdade.
A outra obra de Lambert, Arquitectónica ou teoria dos elementos simples e primitivos no conhecimento filosófico e matemático (1771), apresenta um
problema que foi na mesma altura tratado por Kant: o da passagem do mundo do possível ao mundo real, do que é simplesmente pensável, enquanto isento de contradição, ao que existe. Lambert observa que se o problema da lógica é o de distinguir o verdadeiro do falso, o problema da metafisica. é o de distinguir a verdade do sonho. Ora, o que é pensável, não existe necessariamente. A metafisica deve juntar à demonstração da pensabilidade, a demonstração da existência real, sem a qual se reduz a um sonho (Arquit., § 43). Ora, os elementos objectivos do saber só podem ser procurados, segundo Lambert, "nos sólidos e nas forças" pois só eles constituem "algo categoricamente [real" e só eles, portanto, podem constituir a base de um juízo sobre a existência
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(1b., § 297). Porém, as forças não se deixam alcançar e aprisionar pela pura lógica, mas tão-só pela sensibilidade (1b., § 374), de maneira que só a experiência pode conferir o carácter de (realidade aos nossos conhecimentos. Ora, a experiência dá-nos apenas
confirmações parciais dos sistemas cognitivos que constituem o reino da verdade. Isto não implica a
garantia de uma correspondência constante entre este reino e a realidade mesma. Tal garantia, segundo Lambert, só Deus a pode dar. "0 reino da verdade lógica, sem a verdade metafísica que se radica nas
coisas mesmas, seria um puro sonho, e sem a existência de um suppositum intelligens, não só seria um s,3nho, como não existiria de facto. Assim se chega ao princípio de que há uma verdade necessária, eterna e imutável, do qual se infere que deve haver um terno e imutável suppositum intelligens e que o objecto desta verdade, isto é, o sólido e a força, têm uma necessária possibilidade de existir" (1b., § 29). Deus é, assim, a garantia de toda a verdade: só ele garante a relação entre o mundo lógico e o
mundo real, e, por consequência, a objectividade real do pensamento.
Apesar da garantia metafísica a que Lambert recorre, a sua doutrina é um claro apelo à experiência como fundamento de todo o conhecimento válido. E igualmente apelam para a experiência as investigações psicológicas de João Nicolau Tetens (1736-1807). A obra principal de Tetens intitula-se Investigação filosófica sobre a natureza humana e o seu desenvolvimento (1776-77), e é dominada pela necessidade de conciliar o ponto de vista do empirismo
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inglês, que reduzira a vida psíquica ao conjunto dos elementos empíricos, com o ponto de vista de Leibniz que insistira no seu carácter activo e dinâmico. Esta preocupação condu-lo bastante próximo da solução que Kant dará ao problema: o reconhecimento de funções a priori que dominam e formam a matéria sensível. Com efeito, Tetens considera as representações originárias como a matéria das representações derivadas. A alma tem o poder de escolhê-las, de as dividir e separar umas das outras para depois de novo misturar, punir e compor os fragmentos e as partes assim obtidas. Esta capacidade activa revela-se sobretudo no poder criativo da poesia, que é semelhante à força criadora da natureza corpórea que, embora não crie novos elementos, produz sempre novos corpos mediante a mistura das partículas elementares da matéria mesma (Philow. Vers., 11,
1, 24). As análises empíricas daqueles que Tetens chama "novos investigadores", como Locke e Condillac, Bonnet e Hume, não podem explicar as funções do espírito, aquelas que dão origem, por exemplo, à poesia e à geometria, nas quais há algo que transcende o puro dado da experiência. Os princípios da ciência natural, como o da inércia, da igualdade entre acção e reacção, e todos os outros, têm uma certeza que não procede da observação dos factos empíricos dos quais foram extraídos. "Existem sem dúvida sensações que proporcionam a descoberta de tais princípios, mas estes só se alcançam através de um raciocínio, de uma actividade autónoma do entendimento, pela qual foi produzida cada (relação de ideias... Estes pensamentos universais são pensamen40
tos verdadeiros, anteriores a toda a experiência. Não os apreendemos através da abstracção nem é possível que um exercício repetido amiúde haja ocasionado tais conexões de ideias" (1b., 11, 1, p. 320 sgs.). Os empiristas ingleses e franceses consideraram sobretudo os produtos mais simples do espírito; Tetens considera, pelo contrário, os mais elevados. A geometria, a óptica, a astronomia, estas obras do espírito humano, estas indubitáveis provas da sua grandeza, são conhecimentos sólidos e reais. Com que regra fundamental construiu a razão humana estes prodigiosos edifícios? Onde pode encontrar-se o terreno o como podem sair de simples experiências, as ideias e os princípios fundamentais que constituem os fundamentos indestrutíveis de obras tão altas? É precisamente aqui que se deve demonstrar na sua máxima energia a força do pensamento (Ib., 11, 1, p. 427 sgs.). O problema é aqui equacionado nos mesmos
termos em que será retomado por Kant na Crítica da razão pura. Tetens conduziu-o até ao ponto em que era possível no plano da pura análise empirista, no qual se movia. Kant, retomando-o, levá4o-á ao plano da análise transcendental. Mas já na análise de Tetens começam a delinear-se "o encontro e os Emites do entendimento humano". Poderá ser o entendimento, humano a norma da realidade em geral? "Poderemos porventura afirmar que outras Mações universais objectivas não são pensáveis por outros espíritos, dos quais não temos ideia alguma como
não a temos de um sexto sentido e da quarta dimensão?" (1b., 11, 1, p. 328 sgs.). A pergunta de Tetens implica já uma resposta negativa; e desta
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resposta negativa parte Kant para estabelecer a
sua distinção entre fenómeno e númeno.
§ 507. ILUMINISMO ALEMÃO: BAUMGARTEN
O mais notável dos seguidores de Wolff foi Alexander Gottfried Baumgarten (1714-62), autor de uma Metaphysica (1739) que compendia. em 1.000 parágrafos a filosofia wolffiana e foi adoptado por Kant como manual para as suas lições universitárias. Mas a sua fama é devida sobretudo à Aesthetica (1750-58), que o converteu no fundador da estética germânica e num dos mais eminentes representantes da estética do século XVIII. O próprio termo de estética foi introduzido por Baumgarten.
A metafísica é definida por Baumgarten como a "ciência das qualidades das coisas, cognoscíveis sem
a fé". Antepõe à metafísica a teoria do conhecimento que ele foi o primeiro a designar pelo termo de gnoseologia. Esta divide-se em duas partes fundamentais: a estética, que tem por objecto o conhecimento sensível, e a lógica, que trata do conhecimento intelectual. A originalidade de Baumgarten reside no relevo que ele deu ao conhecimento sensível, o qual não é por ele considerado Somente como grau preparatório e subordinado do conhecimento intelectual, mas também, e sobretudo, como dotado de um valor intrínseco, diverso e independente do do conhecimento lógico. Este valor intrínseco é o valor poético. Os resultados fundamentais da estética de Baumgarten são substancialmente dois: ].' O reconhecimento do
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valor autónomo da poesia e, em geral, da actividade estética, isto é, de um valor que não se reduz à verdade que é própria do conhecimento lógico. 2.' O reconhecimento do valor de uma atitude ou de uma actividade humana que era considerada inferior e, portanto, a possibilidade de uma mais completa valoração do homem na sua totalidade. Foi devido a este segundo ponto que Baumgarten se tomou num dos mais notáveis representantes do espírito do Iluminismo. A estética é definida por Baumgarten como
a "ciência do conhecimento sensível" e é também considerada como "teoria das artes liberais, gnoseologia inferior, arte de bem pensar, arte do análogo da razão, Aest., § 1). O fim da estética é "a perfeição do conhecimento sensível enquanto tal" e esta perfeição é a beleza (Ib., § 14). Por isso não pertencem ao domínio da estética, quer aquelas perfeições do conhecimento sensível que estão tão ocultas que permanecem sempre obscuras para nós, quer as que não podemos conhecer senão por meio do entendimento. O domínio da estética tem um limite inferior representado pelo conhecimento sensível obscuro e um limite superior representado pelo conhecimento lógico distinto; a ele pertencem apenas as
representações claras mas confusas. A beleza, como perfeição do conhecimento sensível, é universal, mas de uma universalidade diversa do conhecimento lógico, porque abstrai da ordem e dos sinais e realiza uma forma de unificação puramente fenoménica. A beleza das coisas e dos pensamentos é distinta da beleza da consciência e da beleza dos objectos e da matéria. As coisas feias podem ser pensadas
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de uma maneira bela e as coisas belas podem ser pensadas de uma maneira feia (1b., § 18). Baumgarten crê que a facúndia, a grandeza, a verdade, a clareza, a certeza e, numa palavra, a vida do conhecimento, podem contribuir para formar a beleza desde que se reunam numa única percepção fenoménica e sejam, por assim dizer, presentes e vivas no seu conjunto (1b., § 22). Neste sentido, o conhecimento estético é
um "análogo da razão; assim, não devem ser-lhe necessariamente estranhos os caracteres que são próprios do conhecimento racional; mas, para constituir uma obra de beleza, estes caracteres devem estar presentes em sua vida total e serem, precisamente na sua totalidade, intuídos como um fenómeno. Requer-se para isso uma disposição natural, com que se nasce, e que só pelo exercício se pode desenvolver e manter, disposição que Baumgarten chama engenho beloconatural (ingetdum venustum connatum, § 29). Requer-se outrossim, para se obter um feliz carácter estético, o ímpeto estético, isto é, a inspiração ou o entusiasmo (1b., § 78); e, além disso, a disciplina da investigação e do estudo (Ib., § 97). Estas determinações esclarecem * que Baumgarten pretende dizer quando define * beleza como o fim do conhecimento sensível. Enquanto no domínio da investigação científica o elemento sensível é o ensejo ou o meio para atingir o conceito, na estética o elemento sensível é ele mesmo o fim da investigação que tende a individuá-lo e a aperfeiçoá-lo no seu puro valor fenoménico. O principio de que a beleza é determinada pela atitude mediante a qual a aparência
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se converte no verdadeiro fim de si própria, iria inspirar e dirigir a Crítica do Juízo de Kant.
Mas ao mesmo tempo este princípio permite conferir, conformemente ao espírito do iluminismo,
uma nova dignidade a aspectos da vida humana que, na época precedente, estavam condenados a
uma irremediável inferioridade. Alguns críticos da época, e outros mais recentes, tinham chegado a acusar Baumgarten de ter relegado a faculdade do belo para o domínio das faculdades inferiores, pelo que quase não valia a pena desejá-la; e um historiador da estética alemã, Lotze, afirmou que "a estética alemã começa com o manifesto desprezo pela sua própria matéria". Na realidade, porém, Baumgarten respondeu antecipadamente a tais objecções. No prefácio do seu primeiro ensaio, Meditações filosóficas sobre argumentos concernentes à poesia (1735), defendera a dignidade e o valor das suas investigações sobre um tema "por muitos considerado ligeiro e muito pouco próprio do engenho de um filósofo". Mas nos "Prolegómenos" da Estética a sua defesa converte-se na defesa de uma parte ou
de um aspecto fundamental do homem ao afirmar decididamente que "o filósofo é um homem entre os homens e não pode crer verdadeiramente que uma parte tão grande do conhecimento humano lhe seja estranha" (1b., § 6). Ã objecção de que o conhecimento distinto (isto é, racional) é superior ao estético, responde que " num espírito finito isso é verdadeiro apenas nas coisas de maior importância (lb., § 8); e à observação de que as faculdades inferiores devem ser antes dominadas que estimuladas e 
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fortalecidas, contrapõe ele que "se requer domínio sobre as faculdades, mas não a tirania" (Ib., § 12). Desta maneira, a defesa da estética como ciência autónoma coincide, na obra de Baumgarten, com a defesa da dignidade e do valor de uma atitude humana fundamental.
§ 508. ILUMINISMO ALEMÃO: O ILUMINISMO RELIGIOSO
O carácter peculiar do Iluminismo alemão, conforme se apresenta em Wolff e nos filósofos wolffianos (incluído Baumgarten), para. os quais a razão se identifica com o método analítico da fundamentação, é explicado algumas vezes como resultante do carácter alemão. Esta é uma explicação digna da metafísica escolástica, porquanto recorre a uma qualidade oculta. Ademais, é uma explicação falsa no terreno dos factos, porque o iluminismo alemão encontrou também expressão numa literatura ágil e popular, semelhante à francesa. E esta literatura não tem menos valor do que a outra, dado que entre os seus cultores figura Lessing.
Esta segunda corrente do iluminismo alemão discutiu principalmente o problema religioso e, tal corno as expressões análogas do iluminismo inglês e francês, está dominada pelo deísmo, que encontrou alguns dos seus defensores entre os próprios pietistas. O primeiro defensor declarado do deísmo foi Hermann Samuel Reimarus (1694-1678), autor de um Tratado das principais verdades da religião natural (1754), cuja tese fundamental é a de que
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o único milagre de Deus é a criação. São impossíveis ulteriores milagres porque seriam correcções ou
mutações de uma obra que, por ter saído das mãos de Deus, deve considerar-se perfeita. Deus não
pode querer senão a imutável conservação do mundo na sua totalidade. Se os milagres são impossíveis, também é impossível uma revelação sobrenatural que seria ela mesma um milagre. E conquanto a religião não deva ser negada, deve fundar-se unicamente no conhecimento natural. A religião natural deve cortar as pontes com a religião revelada porque a verdade não deve contemporizar com o erro e a verdade está só do lado da religião natural. Na sua Defesa ou apologia de um
racional adorador de Deus e noutros escritos e fragmentos publicados postumamente, Reimarus extraji e defende todas as consequências do deísmo com um vigor que nada fica a dever aos seus colegas ingleses e franceses e ainda com maior rigor lógico do que eles. Afirma explicitamente a falsidade de toda a revelação, incluída a do Velho e do Novo Testamento. "Só a religião natural é verdadeira, ora, a religião bíblica está em contradição com a
religião natural; portanto, é falsa". Com este simples silogismo Reimarus rejeita em bloco to-do o ensino da tradição. "Só o livro da natureza, criação de Deus, é o espelho no qual todos os homens, cultos ou incultos, bárbaros ou gregos, judeus ou
cristãos, de todos os lugares e de todos os tempos, podem reconhecer-se a si mesmos".
Os temas filosóficos e religiosos do iluminismo foram expostos e defendidos de uma maneira simples
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e popular por Moisés Mendelssohn (1729-86), que foi amigo pessoal de Lessing e manteve correspondê ncia com Kant. Os seus escritos principais são: Cartas sobre as sensações (1755); Considerações sobre, a origem e relações das belas artes e das ciências (1757); Tratado sobre a evidência das ciências metafísicas (1764); Fédon 'ou sobre a imortalidade da alma (1767); Jerusalém ou sobre o poder religioso e o judaísmo (1783); Aurora ou sobre a existência de Deus (1785). O pensamento de Mendelssohn reúne' eclèticamente a gnoseologia empirista de Locke, o ideal ético de perfeição de Wolff e o panteísmo de Espinosa. Assim como Reimarus condena em bloco toda a revelação, também Mendelssohn condena em bloco todas as igrejas e todo o poder eclesiástico. A religiosidade existe, tal como a moral, nos sentimentos e pensamentos íntimos do homem, mas os pensamentos e sentimentos íntimos não se deixam coagir por forma alguma de poder jurídico. Toda a organização jurídica supõe uma imposição; e a religião escapa por natureza a qualquer imposição. A tese principal da obra Jerusalém ou sobre o poder religioso e o judaísmo, é a de que sobre os fundamentos da moral e da religião não se pode erguer nenhuma forma de direito eclesiástico e que um tal direito existe apenas em detrimento da, religião. Daí que o estado deva defender a mais absoluta, liberdade de consciência, quer dizer, é preciso que a igreja e a religião percam todo o poder político e sejam completamente separadas do estado. Mendelssohn é também contrário ao ideal da unificação religiosa propagado por Leibniz, já que a
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LESSING
unificação religiosa supõe um símbolo ou uma fórmula a que se reconheça validez jurídica e que por isso se impõe com a força do poder político. Ela conduziria à limitação ou à negação da liberdade de consciência. Mendelssohn vê realizado o seu ideal de religião natural na religião de Israel; nesta não há nenhum direito eclesiástico, nenhum credo obrigatório nem nenhuma revelação divina das crenças fundamentais, as quais pelo contrário assentam no conhecimento natural. O único objectivo da revelação judaica foi o de dar uma legislação prática e normas de vida.
No Fédon, Mendelssohn procura actualizar o diálogo platónico, desfiando a trama das demonstrações em favor da imortalidade que se encontram
nessa obra e acrescentando-lhe uma sua; a alma tende por si ao aperfeiçoamento indefinido; Deus teve portanto de criá-la imortal, pois, de contrário, tal tendência, por ele próprio criada, não chegaria a realizar-se. Mas se Mendelssohn admite o progresso do homem para a perfeição, recusa-se a admitir o progresso de todo o género humano, em que o seu amigo Lessing insistia. "0 progresso, diz ele em Jerusalém, é só para os homens individuais. Que também o todo, a humanidade inteira deva no curso dos tempos progredir e aperfeiçoar-se, não me parece que tenha sido esse o escopo daprovidência divina". Em Aurora, defende o panteísmo espinosano, considerando-o conciliável com a religião e a moral. Nas Cartas sobre as sensações e nas Considerações sobre as belas artes, aceita a dou49
de Bau~en e considera a beleza como
~manifestação confusa" ou "representação sensível Perfeita".
§ 509. ILUMINISMO ALEMÃO: LESSING
A mais genial figura do Iluminismo alemão é Gottfreid Efraim. Lessing (22 de Janeiro de 1729
- 15 de Fevereiro de 1781). Lessing representou poeticamente nos seus dramas o ideal de vida do iluminismo; estudou a natureza da poesia e da arte, especialmente a poesia e a arte clássica (Laocoonte,
1766; Dramaturgia de Hamburgo, 1767-69); debateu amplamente o problema religioso numa série de escritos breves e fragmentários, mas extremamente eficazes, o último e mais importante dos quais é A educação do género humano (1780). O seu pensamento, que a princípio girava em tomo das ideias wolfianas e do deísmo, orientou-se, numa segunda fase, através da leitura de Shaftesbury, para Espinosa. Jacobi, nas suas Cartas sobre a doutrina de Espinosa a Moisés Mendelssohn (1785), referiu, depois da morte de Lessing, as palavras que, segundo consta, pronunciou pouco antes de morrer
e que são provavelmente autênticas: "Os conceitos ortodoxos da divindade já não são para mim; não consigo gostar deles. En kai Pan! Nada mais sei."
O Uno4odo, a imanência de Deus no mundo como o espírito da sua harmonia, da sua unidade-tal foi a última convicção de Lessing. Mas foi uma
convicção que para ele não se restringe, como Espinosa, só ao mundo natural: estende-se ao mundo
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da história, como o demonstra o seu escrito sobre a educação do género humano.
Este escrito marca uma fase extraordinariamente significativa da elaboração que o conceito de história sofreu no iluminismo. A ela chegou Lessing após longas investigações, cujas primeiras fontes se podem reencontrar em Wolff. O conceito de Wolff de que toda a actividade humana é dirigida para a perfeição, permite ver em todos os aspectos do homem um aperfeiçoamento incessante que lhes dá um novo significado. E assim Lessing, num
escrito de 1778 (Eine Duplik), atribui o valor do homem, mais do que à verdade alcançada, ao esforço paira alcançá-la, esforço que põe em movimento todas as suas forças e revela toda a perfeição de que é capaz. E nesta ocasião faz a célebre afirmação: "Se Deus tivesse na sua mão direita toda a verdade e na esquerda apenas a tendência para a
verdade com a condição de errar eternamente perdido e me dissesse: - Escolhe -, eu precipitar-me-ia com humildade para a sua mão esquerda e
diria: Senhor, escolhi; a pura verdade é só para ti". Em que consiste propriamente o valor desta tendência eterna, que é o quinhão de cada homem e
a lei da história, foi o problema que ocupou longamente Lessing e que foi debatido em todos os seus
escritos teológicos. Leibniz distingue as verdades de razão, universais e necessárias, das verdades de facto, particulares e contingentes. Lessing parte precisamente desta distinção para se perguntar a qual das duas espécies de verdade pertencem as verdades religiosas. Estas assentam sempre em factos 
particulares como o milagre e a revelação; como podem tais factos particulares constituir o fundamento de verdades eternas e universais, como são as que a
religião ensina? "Todos nós cremos, diz Lessing (Ueber den Beweis des Geistes und Kraft, Werke, ed. Matthias, H, p. 139), que tenha existido um Alexandre que em breve tempo conquistou toda a
Ásia. Mas quem arriscaria nesta crença algo de grande e capital importância, cuja perda não pudesse ser reparada? Quem abjuraria para sempre, para seguir tal crença, todo o conhecimento que a contradissesse? Eu não, decerto." Os milagres do cristianismo ocorridos há muitos séculos, são paira nós simples notícias que nada têm de miraculoso; mas ainda que admitíssemos como verdadeiras tais notícias, será que delas deriva a verdade eterna do cristianismo? Que relação tem a nossa incapacidade de rebater qualquer objecção fundada no testemunho bíblico com a obrigação de crer nalguma coisa a que a razão repugna. Mesmo se se admite que Cristo tenha ressuscitado, dever-se-á por isso admitir que o Cristo ressuscitado seja filho de Deus? Lessing considera impossível "passar de uma verdade histórica para uma classe totalmente diferente de verdades e pretender que eu modifique por este preço todos os meus conceitos metafísicos e morais." Constitui de algum modo uma resposta a estas dúvidas e interrogações o escrito intitulado Educação do género humano.
O conceito fundamental desta obra é que a revelação é educação. Com efeito, na educação, cada homem aprende dos outros o que a sua razão
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ainda não é capaz de entender. O que ele aprende não é todavia contrário à razão, só que não pode ser captado e entendido plenamente pela sua razão ainda débil e pueril. Ora, a história da humanidade tem um desenvolvimento idêntico ao do indivíduo. A humanidade foi educada através da revelação, a qual lhe comunica aquelas verdades que ela ainda não é capaz de entender, enquanto não se torne capaz de as alcançar e possuir de maneira autónoma,
Deste ponto de vista, a própria revelação historiciza-se, já que não incide num ponto único da história mas acompanha todo o curso dela, anunciando e antecipando os desenvolvimentos autónomos da razão. Assim como a natureza é uma contínua criação, assim também a religião é uma contínua revelação. Toda a religião positiva é um grau desta revelação, que compreende em si mesma todas as religiões e as unifica no curso da sua história progressiva. A coincidência total da revelação com a
razão, da religião positiva com a religião natural, é o último termo a que a humanidade é destinada pela divina providência. Dado que a religião cristã é a mais elevada religião positiva, os seus dogmas - a encarnação, a trindade, a redenção- transformar-se-ão finalmente em verdades de razão; e a
"razão do cristianismo" dilucidar-se-á por último volvendo-se "o cristianismo da razão". ,Esta doutrina de Lessing que esclarece em sentido religioso e especulativo a ideia da história como
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imagem progressiva, que o iluminismo elaborou, iria ter a mais ampla ressonância no período romântico. No domínio da estética, Lessing permanece substancialmente fiel à concepção aristotélica, cujas regras considera tão infalíveis como os elementos de Euclides (Hamburgische Dramartugie). No Laocoonte propõe-se pôr a claro a diferença entre pintura e
poesia. A primeira emprega formas e cores no
espaço e pode exprimir apenas objectos que coexistem ou cujas partes coexistam. A poesia usa
sons articulados no tempo e dessa maneira exprime objectos sucessivos ou cujas partes são sucessivas. Ora, os objectos que coexistem ou cujas partes são sucessivas chamam-se acções: os corpos e as suas
qualidades visíveis são, portanto, os objectos da pintura, enquanto as acções são os objectos próprios da poesia. Mas as regras fundamentais da poesia e da pintura são idênticas porque ambas são artes imitativas. "A pintura nas suas composições coexistentes pode utilizar apenas um único momento da acção e deve por isso escolher o mais significativo, pelo qual se torna mais compreensível o que o antecede e o que se lhe segue. De igual modo a poesia nas suas imitações sucessivas pode utilizar apenas uma única propriedade dos corpos e deve por isso escolher a que
suscite a imagem mais sensível do corpo segundo o ponto de vista por que o considera. Daqui se tira a regra da unidade dos adjectivos pictóricos e da economia na representação dos objectos corpóreos" (Laoc., ap., 4). A divisão entre poesia
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e pintura não é todavia absoluta. A pintura pode representar também movimentos indicando-os mediante corpos; e a poesia pode representar também corpos indicando-os mediante movimentos. A regra aristotélica da unidade domina a estética de Lessing.
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 504. Os escritos alemães de Wolff tiveram várias edições, além da primeira, cuja data vem indicada no texto. As obras latinas (títulos e datas indicados no texto) constituem um "corpus" de 23 vol., in-4.1, Francofort, Leipzig, 17.36. Nova edição fotocopiada, Hildesheim, 1962, sgs.-M. CAmpo, C. W. e il
razionalismo pre-critico, Milão, 1939, com bibl.; F. BARONE, Logica formale e logica trascendentale, I, Turim,
1957, pp. 83-119.
K. FiSCHER, Geschichte der neuern PhiZosiphie, III, Leibniz, 4.1 ed., Heidelberg, 1902, p. 627 %gs.
Sobre o Iluminismo alemão: E. ZELLER, Geschichte de-r deutschen Philos. seit Leibniz, 2.1 ed. Münehen,
1875; Cassirer, Das ErkenntnissprobTem, cit., II, Berlim, 1922.
§ 505. Sobre Tschirnhaus: G. RADETTI, Cartesianismo e spinozismo nel pensiero di E. W, v. T., Roma,
1939.
Sobre Pufendorf: P. MEYER, S. P., Grinuna, 1895; E. WOLFF, Grosse Rechtsdenker der deutschen Geistesgeschichte, Tübingen, 1939.
Sobre Thomasius A. NICOLADONI, C. T., Berlini,
1888.
§ 506. Knutzen, Dissertatio metaphysica de aeternitate mundi imposstbili, Kõnigsberg, 1733; Commen5,5
tatio Philosophka de commercio mentis e corporis, Kõnigsberg, 1735; COmmentaU0 phi;osQVhica de hun~ae mentis índividua natura sive immate@ialitate, Kõnigsberg, 1741, Elementa philosophiae rationaZis seu logicae cum generalis tUm sPecia7is mathematica methodo demonstrata.
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XV
KANT
§ 510. KANT: A VIDA
A orientação crítica que O empirismo inglês havia iniciado, reconhecendo e assinalando à razão os limites do mundo humano, e que o iluminismo havia feito sua, torna-se na obra de Kant uma viragem decisiva da história da filosofia. A construção de uma filosofia essencialmente crítica, na qual a razão humana, levada ante o tribunal de si própria, delimita de modo autónomo os seus confins e as suas possibilidades efectivas, tal é o objectivo próprio de Kant. Este objectivo é por isso o de um racionalismo que se propõe, em primeiro lugar, a elaboração do próprio conceito de razão. Kant identifica este racionalismo com o iluminismo; e na realidade o conceito da razão que ele alcança está na linha daquela elaboração que começara com Hobbes e
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que o iluminismo aceitara de Locke: isto é, na linha
que vê na razão um órgão autónomo e eficaz para guia da conduta humana no mundo mas não uma actividade infinita e omnipotente que não tenha limites nem condições.
Manuel Kant nasceu, de família originária da Escócia, em Kõnigsberg, a 12 de Abril de 1724. Foi educado no espírito religioso do pietismo, no
Collegium Fridericianum, do qual era director Francisco Alberto Schultz, a mais notável personalidade do pietismo naquele período. Ao sair do colégio (1740), Kant estudou filosofia, matemática e teologia na Universidade de Kõnigsberg, onde teve como mestre Martin KnutZen. que o encaminhou para os estudos de matemática, de filosofia e da física newtoniana. Depois dos estudos universitários, foi perceptor nalgumas casas patrícias. Em 1755, com a dissertação Principiorum primorum cogníltionis tnetaphysicae nova dilucidatio obteve a docência livre na Universidade de Kõnigsberg e durante
quinze anos desenvolveu na Uníversidade os seus cursos livres sobre várias disciplinas. Em 1766 tornou-se bibliotecário de Schlõssbibliothek de Kõnigsberg; e só em 1770 foi nomeado professor ordinário de lógica e metafísica naquela Universidade.
Kant exerceu este cargo até à sua morte, cumprindo com grande escrúpulo todos os seus deveres 'académicos, mesmo quando devido à debilidade senil se lhe tornaram extremamente penosos. Herder, que foi seu aluno nos anos 1762-1774, deixou-nos dele esta imagem (Briefe zur Mefõrderung 'der Htímatútãt, 49): "Tive a felicidade de conhecer um
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filósofo que foi meu mestre. Nos anos juvenis, tinha a alegre vivacidade de um jovem e esta creio eu que nunca o abandonou nem mesmo na mais avançada velhice. A sua fronte aberta, feita para o pensamento, ora a sede de uma imperturbável serenidade e alegria; o discurso mais rico de pensamento fluia dos seus lábios; tinha sempre pronta a ironia, a argúcia e o humorismo e a sua lição erudita oferecia o andamento mais divertido. Com o mesmo espírito com que examinava Leibniz, Wolff, Baumgarten, Crusius, Hume e seguia as leis naturais descobertas por Newton, por Kepler e pelos físicos, acolhia também os escritos que então a-pareceram de Rousseau, o seu Emílio e a sua Heloísa, como qualquer outra descoberta natural que viesse a conhecer: valorizava tudo e reconduzia tudo a um conhecimento sem preconceitos da natureza e ao valor moral dos homens. A história dos homens, dos povos e da natureza, a doutrina da natureza, a matemática e a experiência eram as fontes que davam vida à sua lição e à sua conversação. Nada que fosse digno de ser conhecido lhe era indiferente; nenhuma cabala, nenhuma seita, nenhum preconceito, nenhum nome soberbo, tinha para ele o menor apreço frente ao incremento e ao esclarecimento da verdade. Encorajava e obrigava docemente a pensar por si; o despotismo era estranho ao seu espírito. Este homem, que nomeio com a máxima gratidão e
veneração, é Manuel Kant: a sua imagem está sempre diante dos meus olhos."
A vida de Kant carece de acontecimentos dramáticos e de paixões, com poucos afectos e amizades 
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 inteiramente concentrada num esforço contínuo de pensamento. Todavia Kant não foi alheio aos acontecimentos políticos do seu tempo. Simpatizou com os americanos na sua guerra da independência e com os franceses na sua revolução que considerava encaminhada para a realização do ideal da liberdade política. O seu ideal político, tal qual o delineou na obra Pela Paz Perpétua (1795), era uma constituição republicana " fundada, em primeiro lugar, no princípio de liberdade dos membros de uma sociedade, como homens; em segundo lugar, sobre o princípio de independência de todos, como súbditos; em terceiro lugar, sobre a lei da igualdade como cidadãos."
O único episódio notável da sua vida foi o conflito em que se encontrou com o governo prussiano depois da publicação da segunda edição (1794) da Religião nos Limites da Razão. O rei Frederico Guilherme 11, sucessor de Frederico o Grande, restringira em 1788 a liberdade de imprensa, submetendo a censura prévia as publicações de carácter religioso. Apesar de a obra de Kant ter sido vista pela censura, a 14 de Outubro de 1794 o filósofo recebia uma carta do rei assinada pelo ministro WõlIner na qual se afirmava que as ideias contidas naquele escrito estavam em contradição com pontos fundamentais da Bíblia e do cristianismo e se proibia a Kant ensiná-las ulteriormente sob pena de graves sanções. Na sua resposta, Kant, embora rejeitando a acusação, prometia ater-se à proibição "como súbdito de Sua Majestade": frase com a qual entendia limitar a sua promessa à duração da vida do rei.
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E de facto, com a subida ao trono de Frederico Guilherme HI (1797) e a demissão do ministro Wõllner, a liberdade de imprensa foi restaurada e
Kant podia, no Conflito das Faculdades (1798), reivindicar a liberdade de pensamento e de palavra contra as arbitrariedades do despotismo, mesmo a
respeito da religião. Todavia, não leccionou mais cursos sobre filosofia da religião.
Nos últimos anos Kant caiu numa debilidade senil que o privou gradualmente de todas as suas faculdades. Depois de 1798 não pôde mais continuar os seus cursos universitários. Nos últimos meses perdia a memória e a palavra. E assim este homem que vivera para o pensamento,

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