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História da filosofia X - Nicola Abbagnano

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hist�ria da filosofia 10.rtf
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
Décimo volume
Nicola Abbagnano
Digitalização e Arranjos:
Ângelo Miguel Abrantes
(quarta-feira, 1 de Janeiro de 2003)
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
VOLUME X
3ª Edição
TRADUÇÃO DE:
Armando da Silva Carvalho
Antônio Ramos Rosa
EDITORIAL PRESENÇA
Titulo original STORIA DELLA. FILOSOFIA @ Copyright by Nicola Abbagnano Capa de F. C.
Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à Editorial Presença, Lda. Rua Augusto Gil, 35-A - 1000 LISBOA
VIII
KIERKEGAARD
597. KIERKEGAARD: VIDA E OBRA
A obra de Kierkegaard não pode ser reduzida certamente a um momento da polémica contra o idealismo romântico. No entanto, muitos dos seus temas constituem uma antítese polémica exacta dos temas desse idealismo. A defesa da singularidade do homem contra a universalidade do espirito; da existência contra a razão; das alternativas inconciliáveis contra a síntese conciliadora da dialéctica; da liberdade como possibilidade contra a liberdade como necessidade; e por fim da própria categoria de possibilidade são pontos fundamentais da filosofia kierkegaardiana que, no seu conjunto, constituem uma alternativa radicalmente diversa daquela que o idealismo tinha apontado para a filosofia europeia. Trata-se, no entanto, de uma alternativa que permanece relativamente inoperante na filosofia de Oitocentos e que só no fim do século começou a alcançar ressonância primeiro no pensamento religioso e depois no filosófico.
Sõren Kierkegaard nasceu na Dinamarca, em Copenhaga, a 5 de Maio de 1813. Educado por um pai já velho no clima de uma religiosidade severa, inscreve-se na Faculdade de Teologia de Copenhaga, onde dominava, entre os jovens
teólogos, a inspiração hegeliana. Em 1840, dez anos depois do seu ingresso na Universidade, licenciava-se com uma dissertação Sobre o conceito de ironia especialmente em Sócrates, que publicava no ano seguinte. Mas não inicia a carreira de pastor a que ficara habilitado. Em 1841-1842 foi a Berlim e ouviu as lições de Schelling, que aqui ensinava a sua filosofia positiva, baseada (como já vimos, § 565) na radical distinção entre realidade e razão. Entusiasmado, a principio, com Schelling, Kierkegaard em breve se mostra desiludido. A partir de então passa a viver de um capital deixado pelo pai, absorvido em escrever os seus livros. Os incidentes exteriores da sua vida são escassos e aparentemente insignificantes: o noivado, que ele próprio frustrou, com Regina Olsen; o ataque de um jornal humorístico "0 corsário"; a polémica, que ocupou os últimos anos da sua vida, contra o ambiente teológico de Copenhaga e especialmente contra o teólogo hegeliano Martensen. Kierkegaard morreu a 11 de Outubro de 1855.
Mas estes episódios tiveram, quer na sua vida interior (como nos testemunha o seu Diário), quer nas suas obras, uma profunda ressonância, aparentemente desproporcionada com a sua real existência. Kierkegaard fala no Diário de um "grande terramoto" que em certa altura se produziu na sua vida e que o obrigou a mudar a sua posição perante o mundo (Tagebücher, II, A 805). Só vagamente se refere à causa desta alteração ("Uma culpa devia pesar sobre toda a família, um castigo de Deus descera sobre ela; por isso ela deveria desaparecer, banida como uma tentativa mal sucedida pela poderosa mão de Deus"); e apesar dos seus biógrafos haverem procurado, tão indiscreta quanto inutilmente, descobrir essa culpa, ela continua a ser, mesmo em relação ao próprio Kierkegaard, uma ameaça simultaneamente vaga e terrível. Kierkegaard fala no seu Diário, e também no seu leito de morte, de um "um espinho cravado na carne" que ele fora destinado a suportar; e também neste caso, perante a ausência de qualquer dado preciso, se pode descobrir o carácter grave e obsessivo do problema. Provavelmente seria esse espinho na carne que o impediu de levar a bom termo o noivado com Regina Olsen, com quem rompe, depois de alguns anos, por sua própria iniciativa. Também neste caso
nenhum motivo preciso, nenhuma causa determinada; apenas o sentimento de uma ameaça obscura e incompreensível, mas paralisante. No entanto, Kierkegaard não segue a carreira de pastor nem qualquer outra; e mesmo em relação à actividade de escritor sente perante ela uma "relação poética", uma relação longínqua e alheia: acentuada ainda pelo facto de haver publicado os seus livros sob pseudónimos diversos, impedindo assim qualquer relação entre o seu conteúdo e a sua própria pessoa. Estes elementos biográficos devem estar continuamente presentes para se compreender a posição filosófica de Kierkegaard.
Eis as suas obras principais: O conceito de ironia (1841); Aut-Aut, de que faz parte o Diário de um sedutor (1843); Temor e tremor (1843); A repetição (1843); Migalhas-filosóficas (1844); O conceito de angústia (1844); Prefácio (1844); Estádios no caminho da vida (1845); Postilha conclusiva não científica (1846); O ponto de vista sobre a minha actividade de escritor (póstumo, mas escrito em 1846-47); A doença mortal (1849). Kierkegaard é também autor de numerosos Discursos religiosos, e publicou em 1855 (Maio-Setembro) o periódico "0 momento" no qual dirigiu os seus ataques contra a Igreja dinamarquesa.
§ 598. KIERKEGAARD: A EXISTÊNCIA COMO POSSIBILIDADE
Aquilo que constitui sinal característico da obra e da personalidade de Kierkegaard é o facto de ele ter procurado reconduzir a compreensão de toda a existência humana à categoria de possibilidade e de ter evidenciado o carácter neRamente aparente da possibilidade como Já Kant tinha reconhecido como fundamento de todo o poder humano uma possibilidade real ou transcendental; mas Kant, que tinha apenas destacado o aspecto positivo de tal possibilidade, faz dela uma efectiva capacidade humana, limitada sim, mas que encontra nos seus próprios limites a sua validade e a sua promessa de realização. Kierkegaard descobre e acentua, com uma energia até então nunca alcançada, o aspecto negativo de toda a possibilidade que entra na construção da existência humana. Com efeito, todas as possibilida-
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des além de serem possibilidades-de-sim são também possibilidades-de-não: implicam a nulidade possível daquilo que é possível, por conseguinte a ameaça do nada. Kierkegaard vive e escreve, sob o signo desta ameaça. Vimos já como todos os passos característicos da sua vida se revestiram, para ele, de uma obscuridade problemática. As relações com a família, a promessa de noivado, a sua actividade de escritor, surgem-lhe carregadas de alternativas terríveis, que acabam por paralisá-lo. Ele próprio viveu, em absoluto, a figura descrita de forma tão impressionante nas páginas finais do conceito de angústia: a do discípulo da angústia, daquele que sente em si a possibilidade aniquiladora e terrível, latente em qualquer alternativa da existência. Perante qualquer alternativa, Kierkegaard sente-se paralisado. Ele próprio afirma ser "uma cobaia de experiências da existência" e de reunir em si os pontos extremos de toda a oposição. "Aquilo que eu sou é um nada; este procura em mim e no meu génio a satisfação de conservar a minha existência no ponto zero, entre o frio e o calor, entre a sabedoria e a estupidez, entre alguma coisa e o nada como um simples talvez" (Stadien auf dem Lebensweg, trad. Schrempf-Pfleiderer, pp. 246-7). O ponto zero é a indeterminação permanente, o equilíbrio instável entre as alternativas opostas que se abrem a qualquer possibilidade. E este foi sem dúvida o espinho na carne de que Kierkegaard falava: a impossibilidade de reduzir a própria vida a um objectivo preciso, de escolher entre as alternativas opostas, de reconhecer-se e actuar numa possibilidade -única. Esta impossibilidade traduz-se, para ele, no conhecimento de que o próprio objectivo, a unidade da própria personalidade, está precisamente nesta condição excepcional de indecisão e de instabilidade e de que o centro do seu eu está em não haver um centro.
A sua actividade literária não teve outro fim que não fosse o de esclarecer as
possibilidades fundamentais que se oferecem ao homem, os estádios ou momentos da vida que constituem as alternativas da existência, entre as quais o homem geralmente é levado a escolher, apesar de ele, Kierkegaard, não poder escolher. A sua actividade foi a de um contemplativo; afirmou e julgou ser, antes de tudo, um poeta. E multiplicou a sua personalidade com pseudónimos, de
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forma a acentuar a distância entre si e as formas de vida que ia descrevendo, para que desse a entender claramente que ele próprio não estava empenhado em escolher entre elas. Só no cristianismo Kierkegaard vislumbra uma âncora de salvação: na medida em que o cristianismo lhe parecia encarnar a mesma doutrina da existência que a seus olhos surgia como única verdadeira e ao mesmo tempo oferecer, com a ajuda sobrenatural da fé, um modo de se subtrair ao peso de uma escolha demasiado penosa.
Por seu lado a filosofia hegeliana é, para Kierkegaard, a antítese do ponto de vista sobre a existência por ele vivido, e uma antítese ilusória. As alternativas possíveis da existência não se deixam reunir e conciliar na continuidade de um único processo dialéctico. Neste, a oposição das próprias alternativas é apenas aparente, porque a verdadeira e única realidade é a unidade da razão consigo própria. Mas o homem singular, concretamente existente, é absorvido e dissolvido pela razão. Perante isto, Kierkegaard diz-nos que "A verdade, afirma ele (Tagebücher, 1, A 75), só é verdade quando é uma verdade para mim". A verdade não é o objecto do pensamento, mas o processo pelo qual ele se apropria dela, fazendo-a sua e vivendo-a: a apropriação da verdade é a verdade. À reflexão objectiva, própria da filosofia de Hegel,_Riçrkegg4r ntrapõe ar fiçxa aoa à existência: a re exão
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-o. subject.ivg,-jig- a @@_que.o homem singular çst"Lrectamente envolvido qqqRIQ_@@@ destino e que n&Q @,obj@ctiva_.e desinteressada, mas apaixonada e paradoxaL Hegel fez do hornem um género animal, uma vez que só nos géneros animais o género é superior ao singular. Mas o género humano tem como característica o facto de o indivíduo ser superior ao género. (Ib., X, A, 426). É isto, segundo Kierkegaard, o que nos ensina fundamentalmente o cristianismo; é o ponto em que se deve travar a batalha contra a filosofia hegeliana e em geral contra toda a filosofia que se baseie na reflexão objectiva. Kierkegaard considera como aspecto essencial do objectivo a que se propôs a inserção da pessoa singular, com todas as suas exigências, no plano da investigação filosófica. Não é sem razão que ele teria mandado gravar no seu túmulo esta única inscrição: "Um individuo" (Ib., 18).
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§ 599. KIERKEGAARD: ESTÁDIOS DA EXISTÊNCIA
O primeiro livro de Kierkegaard intitula-se significativamente Ou... Ou... Trata-se de uma recolha de escritos com pseudónimos e que apresentam a alternativa de dois estádios fundamentais da vida: a vida estética e a vida moral. O próprio titulo indica já como estes dois estádios não são dois graus de um desenvolvimento único que passe de um ao outro e os concilie. Entre um estádio e o outro existe um abismo e um salto. Cada um deles forma uma vida em si que, pelas suas oposições internas, se apresenta ao homem como uma alternativa que exclui a outra.
O estádio estético é a forma de vida que existe no átomo, furtivo e irrepetível. O esteta é aquele que vive poeticamente, que vive de imaginação e de reflexão. É dotado da sensibilidade delicada que lhe permite descobrir na vida o que ela tem de interessante e sabe tratar os casos vividos como se fossem obra da imaginação poética. Assim o esteta forja um mundo luminoso, donde está ausente tudo o que a vida tem de banal, insignificante e mesquinho; e vive num estado de embriaguês intelectual contínua. A vida estética exclui a repetição, que implica a monotonia e exclui o interessante dos factos mais prometedores. A vida estética é concretamente representada por Kierkegaard na figura de João, o protagonista do Diário de um sedutor, que sabe colocar o seu prazer, não na busca desenfreada e indiscriminada do gozo, mas na limitação e na intensidade da satisfação. Mas a vida estética revela a sua insuficiência e a sua miséria no aborrecimento. Todo o que vive esteticamente é um desesperado, tenha ou não consciência disso; o desespero é o último termo da concepção estética da vida (Entweder-Oder, trad. Hirsch, 11, p. 206). É o desejo de uma vida diferente que se projecta como uma outra alternativa possível. Mas para alcançar essa alternativa, o esteta precisa de se lançar no desespero, optando por ele e entregando-se a ele com todo o empenho, para romper o invólucro da pura esteticidade e alcançar, num salto, a outra alternativa possível, a vida ética. "Escolhe portanto o desespero, diz Kierkegaard; o próprio desespero é uma escolha, pois pode duvidar-se sem se optar pela dúvida, mas não se pode desesperar sem que haja uma
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escolha. Quem desespera, escolhe de novo e escolhe-se a si próprio, não na sua imediatidade, como indivíduo acidental, mas escolhe-se a si próprio dentro da própria validade eterna" (Ib., p. 224). A vida ética nasce portanto com esta escolha. Ela implica uma estabilidade e uma continuidade que a vida estética, como incessante busca da variedade, exclui por si. A vida ética é o domínio da reafirmação de si, do dever e da fidelidade a si próprio: o domínio da liberdade pela qual o homem se forma ou se afirma por si. "0 elemento estético é aquele para o qual o homem é imediatamente aquilo que é; o elemento ético é aquele para o qual o homem se transforma no que transforma" (Ib., p. 190). Na vida ética, o homem singular sujeita-se a uma forma, adequa-se ao universal e renuncia a ser excepção. Tal como a vida estética é incarnada pelo sedutor, a vida ética é incarnada pelo marido. O matrimónio é a expressão típica da eticidade, segundo Kierkegaard: é um objectivo que pode ser comum a todos. Enquanto que na concepção estética do amor, duas pessoas excepcionais só podem ser felizes por força da sua excepcionalidade, na concepção ética do matrimónio todos os esposos podem ser felizes. Além disso, a pessoa ética vive do seu trabalho. O seu trabalho é também a sua vocação porque trabalha com prazer: o trabalho põe-na em relação com outras pessoas, e ela ao realizar a sua tarefa realiza tudo aquilo que pode desejar no mundo (Ib., p. 312).
A característica da vida ética, neste sentido, é a escolha que o homem faz de si próprio. A escolha de si próprio é uma escolha absoluta porque não se trata da escolha de uma qualquer determinação finita mas a escolha da liberdade: ou seja, o fundo da própria escolha (Ib., p. 228). Uma vez efectuada esta escolha, o indivíduo descobre em si uma riqueza infinita, descobre que existe em si uma história onde reconhece a identidade consigo próprio. Esta história inclui as suas relações com os outros, mesmo nos momentos em que o indivíduo parece isolar-se mais, penetrando mais profundamente na raiz que o une a toda a humanidade. Pela sua escolha, o indivíduo não poderá renunciar a nada da sua história, nem mesmo aos aspectos mais dolorosos e cruéis; e ao reconhecer-se nesses aspectos, arrepende-se. O arrependimento é a última palavra da escolha ética, e faz com que
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essa mesma escolha pareça insuficiente, entrando no domínio religioso. "0 arrependimento do indivíduo, afirma Kierkegaard, envolve o indivíduo, a família, o género humano, até se encontrar com Deus. Só com esta condição ele poderá escolher-se a si próprio; e tal condição é para ele a única indispensável porque só através dela se pode escolher a si próprio num sentido absoluto" (Ib., p. 230). A escolha absoluta é portanto arrependimento, reconhecimento da própria culpa, da culpa de tudo aquilo de que se sente herdeiro. "Mas esse encontrar-se a si próprio não é algo de íntimo, deve verificar-se fora do indivíduo, deve ser conquistado; e o arrependimento é o seu amor porque o escolhe, de forma absoluta, pela mão de Deus" Ob.,
p. 230). É esta a jogada final da vida ética, a jogada que, pela sua própria estrutura, tende a alcançar a vida religiosa.
No entanto não existe continuidade entre a vida ética e a vida religiosa. Entre elas existe igualmente um abismo ainda mais profundo, uma oposição ainda mais radical do que a existente entre a estética e a ética. Kierkegaard esclarece esta oposição em Temor e Tremor, concretizando a vida religiosa na pessoa de Abraão. Tendo vivido até aos setenta anos no respeito pela lei moral, Abraão recebe-de Deus ordem para matar o filho Isaac, infringindo assim a lei que até então o tinha governado. O significado da figura de Abraão reside no facto de o sacrifício do filho lhe ser sugerido não por uma qualquer exigência moral (corno acontece, por exemplo, com o cônsul Brutus) mas por um puro comando divino que está em contraste com a lei moral e com o afecto natural e não encontra qualquer justificação, mesmo perante os familiares de Abraão. Por outras palavras, a afirmação do principio religioso suspende inteiramente a acção do princípio moral. Entre os dois princípios não existe possibilidade de conciliação ou de síntese. A sua oposição é radical. Mas se é assim, a escolha entre os dois princípios não pode ser facilitada por nenhuma consideração geral, nem decidida com base em qualquer regra. O homem que tem fé como Abraão optará pelo principio religioso, seguirá a ordem divina, ainda que à custa de uma ruptura total com a generalidade dos homens e com a norma moral. Mas a fé não é um princípio geral; é uma relação privada entre o ho-
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mem e Deus, uma relação absoluta com o absoluto. Estamos no domínio da solidão: nele não se entra "acompanhado", não se ouvem vozes humanas e não se distinguem regras. Dai o carácter incerto e perigoso da vida religiosa. Como pode o homem estar certo de ser a excepção justificada? Como pode saber que é ele o eleito, aquele a quem Deus encarregou de uma tarefa excepcional, que exige e justifica a suspensão da ética? Existe apenas um sinal indirecto: a força angustiante com que se apresenta esta pergunta ao homem que foi verdadeiramente eleito por Deus. A angústia da incerteza é a única segurança possível. A fé é por isso a certeza angustiante, a angústia que se torna certa de si e de uma relação oculta com Deus. O homem pode implorar a Deus que lhe conceda a fé; mas a possibilidade de implorar não é ela própria um dom divino? Daí a existência, na fé, de uma contradição não eliminável. A fé é paradoxo e escândalo. Cristo é o sinal desse paradoxo: é aquele que sofre e morre como homem, apesar de falar e agir como Deus; é-aquele que é e deve ser reconhecido como Deus, ainda que sofra e morra como um mísero homem. O homem é colocado perante um dilema: crer ou não crer. Por um lado, é ele quem deve escolher; por outro, toda a iniciativa fica excluída porque Deus é tudo e dele deriva também a fé. A vida religiosa encontra-se nas malhas desta contradição inexplicável.
Mas esta contradição é também a da existência humana. Kierkegaard vê deste modo revelada, através do cristianismo, a própria substância da existência. Paradoxo, escândalo, contradição, necessidade e ao mesmo tempo impossibilidade de decidir, dúvida, angústia, são as características da existência e são ao mesmo tempo os factores essenciais do cristianismo. Um cristianismo, todavia, de que Kierkegaard se apercebe (nos últimos anos da sua vida) ser bastante diferente do cristianismo das religiões oficiais. "Estou na posse de um livro, escreve ele, que neste pais se pode considerar desconhecido e cujo título não posso deixar de enunciar: "0 Novo Testamento de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo". A polémica contra o pacifico e acomodado cristianismo da Igreja dinamarquesa, polémica onde Kierkegaard declarou descer a terreiro, mais pela sinceridade e honestidade do que pelo cristianismo, demonstra como, na verdade,
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ele defendeu no cristianismo o significado da existência que tinha reconhecido e feito seu. Mas este significado, ainda que se encontre expresso e, por assim dizer, incarnado historicamente no cristianismo, não está limitado ao domínio religioso mas ligado a todas as formas ou estádios da existência. A religião integra-o, mas não o monopoliza: a vida estética e a vida ética incluem-no igualmente, como se viu. E as obras mais significativas de Kierkegaard são as que o tratam de forma directa e o fixam no seu significado humano.
§ 600. KIERKEGAARD: O SENTIMENTO DO POSSÍVEL: A ANGúSTIA
Kierkegaard começou por pretender delinear os estádios fundamentais da vida, apresentando-os como alternativas que se excluem e como situações dominadas por irremediáveis contrastes internos. O aprofundamento da sua investigação leva-o ao ponto principal em que se enraízam as próprias alternativas da vida e os seus contrastes: a existência como possibilidade. Kierkegaard enfrenta directamente, nas suas duas obras fundamentais, o Conceito de angústia e A doença mortal, a situação de radical incerteza, de instabilidade e de dúvida, em que o homem se encontra constitucionalmente, pela natureza problemática do modo de ser que lhe é próprio. No conceito de angústia esta situação é esclarecida nos confrontos das relações do homem com o mundo; na Doença mortal, nos confrontos das relações do homem consigo próprio, ou seja nas relações constitutivas do eu.
A angústia é a condição gerada no homem pelo possível que o constitui. Está estreitamente ligada ao pecado e na base do próprio pecado original. A inocência de Adão é ignorância; mas é uma ignorância que contém um elemento que determinará a queda. Este elemento não é nem calma nem repouso; mas também não é perturbação ou luta, porque nada existe contra que lutar. É apenas um nada; mas mesmo este nada é gerador de angústia. Diferentemente do temor e de outros estados análogos que se referem sempre a algo de determinado, a angústia não se refere a nada de preciso. Ela
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é o puro sentimento da possibilidade. "A proibição divina, afirma Kierkegaard, torna Adão inquieto porque desperta nele a possibilidade da liberdade. Aquilo que se oferecia à inocência como o nada da angústia, penetra agora dentro dele, mas permanecendo ainda um nada: a angustiante possibilidade de poder. Em relação àquilo que pode, Adão não tem ideia alguma, pois de outra forma seria um pressuposto tudo o que iria seguir-se, ou seja, a diferença entre o bem e o mal. Em Adão apenas existe a possibilidade de poder, uma forma superior de ignorância, uma expressão superior de angústia, uma vez que neste grau mais elevado ela é e não é, e Adão ama-a e furta-se a ela". Na ignorância daquilo que pode, Adão possui o seu poder na forma de pura possibilidade; e a experiência vivida desta possibilidade é a angústia. A angústia não é nem necessidade nem liberdade abstracta, livre-arbítrio; é liberdade finita, limitada e manietada e deste modo se identifica como o sentimento da possibilidade.
A conexão da angústia com o possível revela-se na conexão do possível como o futuro. O possível corresponde completamente ao futuro. "Para a liberdade, o possível é o futuro, para o tempo o futuro é o possível. E assim tanto a um como ao outro, corresponde, na vida individual, a angústia". O passado só pode causar angústia na medida em que se representa como futuro, ou seja, como possibilidade de repetição. Deste modo, uma culpa passada faz nascer a angústia, mas só no caso de não ser verdadeiramente passada, pois se assim fosse poderia fazer nascer o arrependimento,; não a angústia. A angústia está ligada àquilo que não é mas poderia ser, ao nada que é possível ou à possibilidade que origina o nada. Está intimamente ligada à condição humana. Se o homem fosse um anjo ou um ser bruto, não conheceria a angústia; com efeito, ela desaparece ou diminui nos estádios que degradam ou levam à bestialidade, e na espiritualidade através da qual o homem se sente extremamente feliz e privado de espírito. Mas também nestes estádios a angústia está sempre pronta a surgir: existe oculta e dissimulada,
mas sempre pronta a retomar o seu domínio sobre o homem. "É provável que um devedor consiga libertar-se do seu credor e apaziguá-lo com palavras, mas existe um credor que jamais se deixa enganar, esse credor é o espirito". Com
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efeito, a espiritualidade é a reflexão do homem sobre si próprio, sobre a sua própria condição humana, sobre a impossibilidade de adequar-se a uma vida puramente bestial. A consciência da morte é parte essencial da espiritualidade. "Quando a morte se apresenta com a sua face descarnada e truculenta, não há ninguém que a não considere com receio. Mas quando ela, para se divertir com os homens que se gabam de se divertirem à sua custa, avança camuflada, quando só a nossa meditação consegue desvendar que, sob os despojos de certa desconhecida, cuja doçura nos encanta e cuja alegria fulgura no ímpeto selvagem do prazer, existe a morte - então somos tomados por um terror sem limites".
As páginas conclusivas do Conceito de angústia exprimem, de modo poderosamente autobiográfico, a natureza da angústia como sentimento do possível. A palavra mais terrível que foi pronunciada por Cristo não é a que impressionava Lutero: Meu Deus porque me abandonaste? mas a outra, referindo-se a Judas: Aquilo que tens a fazer fá-lo depressa! A primeira palavra exprime o sofrimento pelo que estava a acontecer, a segunda a angústia por aquilo que podia acontecer; e só nesta última se revela verdadeiramente a humanidade de Cristo; porque humanidade significa angústia. A pobreza espiritual subtrai o homem à angústia; mas o homem que se subtrai à angústia é escravo de todas as circunstâncias que o impelem de um lado para o outro, sem parar. A angústia é a mais terrível de todas as categorias.
Kierkegaard liga intimamente a angústia ao principio de infinidade ou de omnipotência do possível; principio que ele exprime mais frequentemente, afirmando: "No possível tudo é possível." Segundo este principio, toda a possibilidade favorável ao homem é destruída pelo infinito número de possibilidades desfavoráveis. " Geralmente, afirma Kierkegaard, diz-se que a possibilidade é coisa-ligeira porque é entendida como possibilidade de felicidade, de fortuna, etc. Mas tal não é verdadeiramente possibilidade; é uma invenção falaz que os homens, com a sua corrupção, embelezam para terem um pretexto de se lamentarem da vida e da providência e de terem ocasião de se tornarem importantes a seus próprios olhos. Não, na possibilidade tudo é igualmente possível e aquele que foi realmente educado pela possibili-
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dade compreendeu tanto o lado terrível como o lado agradável da mesma. Quando se frequenta a sua escola sabe-se, melhor que a criança que aprende as suas lições, que da vida não se pode pretender nada e que o lado terrível, a perdição, o aniquilamento habitam paredes meias com cada um de nós; e quando se aprendeu a fundo que qualquer das angústias que receamos pode tombar sobre nós, de um instante para o outro, então somos obrigados a dar à realidade uma outra explicação: somos obrigados a louvar a realidade ainda que ela se erga sobre nós como mão pesada e a recordar que ela é de longe mais fácil que a própria possibilidade (Der Begriff Angst, V). É a infinitude ou indeterminação da possibilidade que torna insuperável a angústia e faz dela a situação fundamental do homem no mundo. "Quando a sagacidade fez todos os seus inumeráveis cálculos, quando os dados estão lançados, então surge a angústia, ainda antes do jogo se considerar ganho ou perdido na realidade; porque a angústia faz uma cruz em frente do diabo, este já não pode avançar e a mais astuta das combinações desaparece como um brinquedo, perante esse caso criado pela angústia através da omnipotência da possibilidade" (Ib., V). E assim a omnipotência da possibilidade liberta-se dessa sagacidade que se move entre as coisas finitas e vai ensinando o indivíduo "a encontrar descanso na providência". Do mesmo modo, faz surgir o sentimento de culpa que não pode ser apreciado através da finitude: "Se um homem é culpado, é infinitamente culpado" (Ib., V).
§ 601. KIERKEGAARD: O POSSíVEL COMO ESTRUTURA DO EU: O DESESPERO
A angústia é a condição em que o homem é colocado pelo possível que se refere ao mundo; o desespero é a condição em que o homem é colocado pelo possível que se refere à sua própria interioridade, ao seu eu. A possibilidade que provoca a angústia é inerente à situação do homem no mundo: é a possibilidade dos factos, das circunstâncias, dos laços, que ligam o homem ao mundo. O desespero é inerente à personalidade do homem, à relação do eu consigo próprio e à
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possibilidade desta relação. Desespero e angústia estão, por conseguinte, intimamente ligados, mas não são idênticos: ambos são todavia baseados na estrutura problemática da existência.
"0 eu, afirma Kierkegaard, é uma relação que se relaciona consigo própria; é na relação, o sentido interno dessa mesma relação. O eu não é relação, é o regresso da relação a si própria". Por isso o desespero está intimamente ligado à natureza do eu. Com efeito, o eu pode querer, como pode não querer ser ele próprio. Se quer ser ele próprio, uma vez que é finito, portanto insuficiente a si próprio, jamais alcançará o equilíbrio e o repouso. Se não quer ser ele próprio, procura então quebrar a relação que tem consigo, que é constitutiva e debate-se igualmente com uma impossibilidade fundamental. O desespero é característica quer de uma quer de outra alternativas. Ele é portanto a doença mortal, não porque conduza à morte do eu mas porque consiste no viver da morte pelo eu: é a tentativa impossível para negar a possibilidade do eu, quer tornando-o auto-suficiente quer destruindo-o na sua natureza concreta. As duas formas de desespero apelam uma para a outra e identificam-se: desesperar de si, no sentido de querer desfazer-se de si, significa querer ser o eu que não se é na verdade; querer ser o próprio a todo o custo significa ainda querer ser o eu que não se é verdadeiramente, um eu auto-suficiente e completo. Num e noutro caso, o desespero é a impossibilidade da tentativa.
Por outro lado, o eu, segundo Kierkegaard, é "a síntese da necessidade e da liberdade" e o desespero nasce dele ou da deficiência da necessidade ou da deficiência da liberdade. A deficiência da necessidade é a fuga do eu para possibilidades que se multiplicam indefinidamente e que jamais se materializam. O indivíduo passa a ser "uma miragem". Por fim, diz Kierkegaard, é como se tudo fosse possível, e é precisamente este o momento em que o abismo devora o eu" (Die Krankheit zum Tode, I, C, A, b). O desespero é aquilo a que hoje chamamos "evasão", ou seja, o refúgio em possibilidades fantásticas, ilimitadas, que não tomam forma, nem se radicam em nada. "Na possibilidade tudo é possível. Por isso a possibilidade se pode subdividir em todos os modos possíveis, mas essencialmente em dois. Uma destas for-
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mas é a do desejo, da aspiração, a outra é a melancólico-fantástica (a esperança, o temor ou angústia)" (Ib., 1, C, A, b). O desespero é portanto devido à deficiência do possível. Neste caso, a possibilidade é a única coisa que salva. Quando alguém desmaia pede-se água, água de Colónia, gotas de Hoffmann; mas quando alguém quer desesperar-se então haverá que pedir: "Descobri uma possibilidade, descobri-lhe uma possibilidade. A possibilidade é o único remédio; dai-lhe uma possibilidade e o desesperado retoma a respiração, reanima-se, porque o homem que permanece sem possibilidade é como se lhe faltasse o ar. Às vezes a invenção da fantasia humana pode bastar para que se descubra uma possibilidade; mas no fim, quando se trata de acreditar, serve apenas isto: "que a Deus tudo é possível" (Ib.).
Precisamente porque a Deus tudo é possível, o crente possui o antídoto seguro contra o desespero: "o facto da vontade de Deus ser possível, faz com que eu possa rezar, mas se ela fosse necessária, o homem seria essencialmente mudo como o animal" (Ib.).
Como oposto da fé, o desespero é o pecado: por isso o oposto
do pecado é a fé, e não a virtude. A fé consiste na eliminação total do desespero, é a condição em que o homem, ainda que orientando-se para dentro de si próprio, deixa de iludir-se sobre a sua auto-suficiência para reconhecer a sua dependência em relação a Deus. Neste caso, a vontade de se ser o próprio não colide com a impossibilidade da auto-suficiência que determina o desespero, porque é uma vontade que se socorre do poder em cujas mãos o próprio homem se colocou, o poder de Deus. A fé substitui o desespero pela esperança e pela crença em Deus. Transporta o homem para lá da razão e de qualquer possibilidade de compreensão: ela é o absurdo, o paradoxo, o escândalo. Que a realidade do homem seja a do indivíduo isolado perante Deus, que todo o indivíduo como tal, quer seja um poderoso da terra quer um escravo, exista na presença de Deus, - este é o escândalo fundamental do cristianismo, escândalo que nenhuma especulação poderá destruir ou diminuir. Todas as categorias do pensamento religioso são impensáveis. Impensável é transcendência de Deus, que implica uma distância entre Deus e o homem e assim exclui qualquer familiaridade entre
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Deus e o homem, mesmo no acto da sua relação mais intima. Impensável é o pecado na sua natureza concreta, como existência do indivíduo que peca. A fé crê, não obstante, em tudo, e assume todos os riscos. A fé, para Kierkegaard, é o inverso paradoxal da existência; perante a radical instabilidade da existência constituída pelo possível, a fé liga-se à estabilidade do princípio de toda a possibilidade, a Deus
- no qual tudo é possível. Deste modo, a fé apenas se subtrai à ameaça da possibilidade, transformando a negação implícita nessa ameaça numa afirmação de crença.
§ 602. KIERKEGAARD: A NOÇÃO DE "POSSíVEL"
As características que Kierkegaard reconheceu como próprias da existência humana no mundo, a angústia e o desespero, derivam da própria estrutura de possibilidade que a constituem. Nas obras em que Kierkegaard descreveu dramaticamente essas características, e que são as mais famosas, não existe no entanto uma análise da noção do possível. Essa análise é feita por Kierkegaard no seu trabalho Migalhas de filosofia de 1844, ainda que, como veremos, os esclarecimentos que vem aduzindo nem sempre sejam coerentes com o uso que Kierkegaard fez da noção do possível no Conceito da angústia e na Doença mortal. No Entremez daquele escrito (§ 1) Kierkegaard observa correctamente que o erro de Aristóteles quando trata do possível (De interpretatione, 13, cfr. § 85) foi o de considerar o próprio necessário como possível; e uma vez que o possível pode não ser e o necessário não pode não ser, Aristóteles foi levado a admitir, além do possível "mutável", que pode não ser, um possível imutável que significa simplesmente "não impossível". Kierkegaard observa que Aristóteles deveria ter simplesmente negado que o possível possa incluir-se no necessário ou que o necessário se inclua no possível. Portanto, também a tese de Hegel que afirma que a necessidade é a síntese do possível e do real é, segundo Kierkegaard, fruto de uma confusão. Se o possível e o real, diz ele, formassem na sua síntese o necessário, passariam a constituir uma essência absolutamente diferente e, tornando-se tal, excluiriam o devir
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(o necessário). Se os conceitos de possível e de necessário se mantêm individualizados é porque, segundo Kierkegaard, o "necessário não devém" e o "devir não é nunca necessário". Com efeito, o necessário não pode mudar porque se refere sempre a si próprio e sempre do mesmo modo. O necessário é por definição. Nada dele pode ser destruído, ao passo que o devir é sempre uma destruição parcial, no sentido em que o possível que ele próprio projecta (não só o que é excluído, como também o que é recuperado) é destruído pela realidade que lhe dá origem.
Estas considerações estão presentes na análise de Kierkegaard sobre o conceito de história. Mas nos seus dois trabalhos que já examinámos, o uso que Kierkegaard faz da noção de possível não está perfeitamente coerente com ela. Na Doença mortal recorre, como exemplo, à definição da realidade como "unidade da possibilidade e da necessidade": uma definição que combina duas categorias que, segundo As Migalhas, devem manter-se separadas. Além disso, em ambas as obras se afirma a infinitude do possível, no sentido em que se admite que as possibilidades são "infinitas" ou, por outras palavras, "a omnipotência da possibilidade". Com efeito a angústia nasce do número infinito das possibilidades e da sua radical negatividade; e o desespero nasce do excesso ou da deficiência de possibilidades do eu. Esta infinitude do possível atribuída ao homem, esta "omnipotência" do possível parecem no entanto contrastar com a finitude que Kierkegaard reconhece ser própria do homem. Provavelmente Kierkegaard pretende afirmar que todas (ou quase todas as possibilidades humanas estão destinadas ao fracasso, a não ser que estejam apoiadas na possibilidade de Deus ou garantidas por ela. Mas, em primeiro lugar, uma possibilidade destinada ao fracasso não é possibilidade, como não é uma possibilidade a que se destina ao sucesso. A forma da possibilidade é a da alternativa, do Ou... Ou..., em que tanto insistiu Kierkegaard. Se para o homem as possibilidades não têm esta forma, então o homem não vive na possibilidade mas na necessidade; na necessidade do fracasso. E se vive na necessidade, nem mesmo Deus pode salvá-lo a não ser alterando a natureza e fazendo-o igual a si: uma vez que o necessário é aquilo que não pode ser diferente do
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que é. Por outro lado, que "a Deus tudo é possível" significa isto: por mais desastrosa ou desesperada que seja a situação em que o homem se encontre, Deus pode encontrar para ele, para esse homem singular, uma possibilidade que lhe dê ânimo e o salve. Mas Deus pode fazer isto porque tem à sua disposição infinitas possibilidades. Se o homem se encontrasse na mesma situação não teria, obviamente, necessidade de Deus.
A doutrina da infinitude e da omnipotência do possível de que Kierkegaard se serviu no Conceito de angústia e na Doença mortal não é, portanto, muito coerente com a noção de possível que Kierkegaard tinha estabelecido nas Migalhas da filosofia e pode considerar-se como uma espécie de contaminação conceptual entre esta doutrina e a noção romântica do infinito.
§ 603. KIERKEGAARD: O INSTANTE E A HISTóRIA
Como se disse, as Migalhas da filosofia contêm a noção kierkegaardiana de história. Como domínio da realidade que devém, a história é, segundo Kierkegaard, o domínio do possível.
O devir pode incluir em si uma duplicação, ou seja, uma possibilidade de devir no interior do próprio devir: este segundo devir é propriamente o lugar da história. Verifica-se em virtude de uma liberdade de acção relativa, que por sua vez se liga a uma causa dotada de liberdade de acção absoluta. Na história, o passado já não tem necessidade do futuro. Se o passado, pelo facto de se encontrar realizado, se tornasse necessário, o próprio futuro seria necessário quanto à sua realização posterior. Querer predizer o futuro (profetizar) e querer entender a necessidade do passado são uma e a mesma coisa; e é apenas uma questão de moda o facto de uma geração achar mais plausível um que outro. O passado não é necessário no momento em que devém; não se torna necessário, devindo (isto seria contraditório) e ainda menos se torna no acto de ser compreendido e interpretado. Se se tornasse necessário no acto de ser compreendido, ganharia aquilo que a sua compreensão perdia, uma vez que esta en-
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tenderia coisa diferente daquilo que o passado é, e seria uma má compreensão. Se o objecto entendido se transforma com o entendimento, este último transforma-se em erro. A conclusão é de que a possibilidade, pela qual o possível se torna realidade, acompanha sempre o próprio real e mantém-se ao lado do passado, mesmo que, entretanto, tenham decorrido milénios. Portanto, a realidade do passado não é mais que a sua própria possibilidade.
Daqui deriva que o meio de conhecimento da história é a fé. A percepção imediata não pode enganar e não está sujeita à dúvida; mas o seu objecto é sempre o que devém, não o devir, por conseguinte o presente, não a história, que é passado. A história exige um meio que seja conforme à sua natureza que inclui uma dupla incerteza, enquanto é o nada do não ser ou a destruição da possibilidade que se realizou, e ao mesmo tempo a destruição de todas as outras possibilidades que foram excluídas. Esta é portanto a natureza da fé, uma vez que a certeza da fé implica sempre a abolição de uma incerteza análoga à do devir. A fé crê naquilo que não vê; não crê que a estrela exista, porque a estrela vê-se, mas crê que essa mesma estrela tenha sido criada. O mesmo acontece com qualquer outro acontecimento. Aquilo que aconteceu, é imediatamente cognoscível, mas não é cognoscível imediatamente o acto de acontecer. A duplicidade dos factos acontecidos consiste no terem acontecido e em serem o lugar de passagem do nada a uma possibilidade múltipla. A percepção e o conhecimento imediato ignoram a incerteza com que a fé se dirige ao seu objecto, mas ignoram também a certeza que surge dessa incerteza. Kierkegaard conclui que a fé é uma decisão e que por isso exclui a dúvida. Fé e dúvida não são dois géneros de conhecimento, entre os quais existe continuidade, são antes duas paixões contrárias. A fé é o significado do devir, a dúvida é o protesto contra uma conclusão que pretende ultrapassar o conhecimento imediato.
Segundo este ponto de vista, não é de forma alguma uma teofania a revelação e auto-revelação de Deus. A relação entre o homem e Deus verifica-se não na história, na continuidade do devir humano, mas antes no instante, entendido como súbita inserção da verdade divina no homem. Neste sentido, o cristianismo é paradoxo e escândalo. Se a relação
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entre o homem e Deus se verifica no instante, isso quer dizer que o homem, por sua conta, vive na não-verdade; e o conhecimento desta condição é o pecado. Kierkegaard contrapõe o cristianismo assim entendido ao socratismo, segundo o qual o homem, pelo contrário, vive na verdade e o problema consiste apenas em torná-la explícita, em arrastá-la para fora, maieuticamente. O mestre, para o socratismo, é uma simples ocasião para o processo maiêutico, uma vez que a verdade habita, desde o início, no próprio discípulo. Por isso Sócrates refutava a ideia de ser chamado mestre e declarava que nada ensinava. Mas, segundo o ponto de vista cristão, uma vez que o homem é a não-verdade, trata-se de recriar o homem, de fazê-lo renascer, para o tornar adaptado à verdade que lhe vem de fora. Por isso o mestre é um salvador, um redentor, aquele que determina o nascimento de um homem novo, capaz de captar no instante a verdade de Deus.
A relação instantânea entre o homem e e Deus, na qual a iniciativa é toda divina, porque o homem é a não-verdade, exclui a hipótese do homem poder, com as suas forças, elevar-se até Deus, demonstrando a sua existência. "Se Deus não existe - afirma Kierkegaard - demonstrá-lo é absolutamente impossível; mas se existe será também empresa insensata. No instante em que a prova começa, já eu pressupus a sua existência; e não como algo que se ponha em dúvida, pois um pressuposto não pode ser tal, mas como algo que está fora de questão, senão não teria empreendido a prova, compreendendo a impossibilidade". Desde que se permaneça no campo dos factos sensíveis e palpáveis ou no das ideias, nenhuma conclusão poderá alcançar a existência, mas só a partir dai. Não se prova, por exemplo, a existência de uma pedra, prova-se apenas que esta coisa existente é uma pedra; o tribunal não prova a existência de um criminoso mas prova que o acusado, que certamente existe, é um criminoso. Se se quisesse alcançar Deus através dos seus actos concretos, ou seja, através daquilo que imediatamente se
percebe na natureza e na história, permanecer-se-ia sempre em suspenso no receio de que acontecesse qualquer coisa de tão terrível que lançasse pelos ares todas as provas. Mas se tal não se verifica, isso deve-se ao facto de não se considera-
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rem as coisas imediatamente presentes, mas determinados conceitos das mesmas. E em tal caso a prova não parte dos actos concretos, apenas desenvolve um idealismo, que é pressuposto; baseados na confiança em tal, podemos pretender então desafiar as objecções futuras. Mas isto não é uma prova, é apenas o desenvolvimento de um pressuposto idealista.
Deus permanece sempre para lá de qualquer possível ponto de chegada da investigação humana. A sua única definição possível, segundo Kierkegaard, é aquela que o assinala como diferença absoluta,- mas é uma definição aparente, porque uma diferença absoluta não pode ser pensada, e portanto essa diferença absoluta não significa senão que o homem não é Deus, que o homem é a não-verdade, o pecado. E neste caso a investigação sobre Deus não avançou um passo.
O instante é portanto a inserção paradoxal e incompreensível da eternidade no tempo, e realiza o paradoxo do cristianismo, que é a vinda de Deus ao mundo. Só neste sentido o cristianismo pode ser considerado um facto histórico; e se qualquer facto histórico faz apelo à fé, este particular facto histórico implica uma fé à segunda potência porque exige uma decisão que supere a contradição implícita na eternidade que se faz tempo, na divindade que se faz homem. Mas este facto histórico não tem testemunhos privilegiados, uma vez que a sua historicidade se representa, no instante, sempre que o homem singular recebe o dom da fé. Kierkegaard afirma a este propósito que não existe nenhuma diferença entre o "discípulo em primeira mão", e o "discípulo em segunda mão" de Cristo. O homem que vive muitos séculos depois da vinda de Cristo, crê na afirmação dos contemporâneos de Cristo apenas em virtude de uma condição que ele próprio deriva directamente de Deus. Por conseguinte, para ele verifica-se originalmente a vinda de Deus ao mundo, e isso acontece por virtude da fé. A divindade de Cristo não era mais evidente para a testemunha imediata, para o contemporâneo de Jesus, do que para qualquer cristão que tenha recebido a fé. Em qualquer caso, essa revelação só pode acontecer no instante, e pressupõe um meio dado, a fé, e um dado necessário, a consciência do pecado. Pressupõe tam-
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bém um conceito de mestre diferente do do socratismo: Deus no tempo.
§ 604. KIERKEGAARD: BALANÇO DA OBRA KIERKEGAARDIANA
A filosofia de Kierkegaard é, na sua complexidade, uma apologética religiosa e precisamente a tentativa para basear a validade da religião na estrutura da existência humana como tal. Trata-se todavia de uma apologética bastante distante da racionalização da vida religiosa que tinha sido feita por Hegel e que, depois de Hegel, se havia tornado o principal objectivo da direita hegeliana. A religião não é, para Kierkegaard, uma visão racional do mundo, nem a transcrição emotiva ou fantasia de tal visão; é apenas a via da--.salvação, o único modo de o homem se furtar à angústia, ao desespero e ao fracasso, mediante a instauração de uma relação imediata com Deus. O regresso a Kierkegaard na filosofia contemporânea foi iniciado pelo chamado "renascimento kierkegaardiano" que tem em vista precisamente este aspecto da filosofia de Kierkegaard.
Por outro lado, Kierkegaard ofereceu à investigação filosófica instrumentos que se revelaram eficazes; como seja, os conceitos de possibilidade, de escolha, de alternativa, e de existência como modo de ser próprio do homem; e insistiu naquele aspecto da filosofia pelo qual ela é não tanto um saber objectivo, mas antes um projectar-se total da existência humana e por conseguinte o compromisso de tal projecção. Esta dimensão foi posteriormente assumida por todas as correntes do existencialismo contemporâneo.
A categoria de "singular", na qual Kierkegaard tanto insistiu em toda a sua obra, constitui um dos seus outros contributos para a problemática do pensamento moderno. Em primeiro lugar, o singular
contrapõe-se à universalidade impessoal do Eu de Fichte, do Absoluto de Schelling e da Ideia de Hegel e exprime a irredutibilidade do homem, da sua natureza, dos seus interesses e da sua liberdade a qualquer entidade infinita, imanente ou transcendente, que o pretenda absorver. Em segundo lugar, o singular contrapõe-se à "massa", ao "público", à "multidão", enquanto entidade
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diferenciada e individualizada, que tem um valor em si, não redutível à da unidade indiferenciada do número. Neste sentido, Kierkegaard contrapõe a comunidade, na qual o singular é, à multidão em que o singular é um nada. "A multidão, afirma Kierkegaard, é um não-senso, um conjunto de unidades negativas, de unidades que não são unidades, que são unidades em razão do conjunto, quando o conjunto deveria ser e tornar-se conjunto em razão da unidade" (Tagebücher, X, A 390). Nestes dois contextos a categoria do singular serve a Kierkegaard para enfrentar problemas que passaram a ser, à distância de um século, ainda mais urgentes: e principalmente o da salvaguarda do indivíduo contra o conformismo e a demissão na mentalidade das " massas". Mas a mesma categoria do singular surge também em Kierkegaard oposta a "povo" e em geral aos ideais igualitários e democráticos que começavam a surgir nas revoluções e nos movimentos de há um século; e é utilizada para defender a força e os privilégios do estado e uma espécie de governo de "sacerdotes cristãos" não muito bem identificados (Das eine was not tut (1847-487, trad. Ulrich, in Zeitwende, 1, p. 1 e sgs.). Neste aspecto, a categoria do singular serve a Kierkegaard para a defesa de posições politicamente conservadoras. Finalmente, essa categoria tem um significado sobretudo religioso. Kierkegaard não ignora certamente que do "singular" fazem parte as relações com os outros e com o mundo que definem a esfera do seu "objectivo" ou do seu trabalho; mas o que lhe interessa é a solidão do indivíduo perante Deus. A própria definição que dá do eu (ou seja, da personalidade humana): uma relação que se relaciona consigo própria e que surge na Doença mortal, parece encerrar o indivíduo na sua intimidade privada. Por isso as relações com os outros e as relações de trabalho em Kierkegaard estão limitadas ao estádio da ética que, no entanto, é sempre um estádio provisório da existência; no estádio religioso, que é o definitivo, o indivíduo encontra-se isolado perante Deus. "Como singular, afirma Kierkegaard, o homem está só: só em todo o mundo, só na presença de Deus" (Tagebücher, VIII, A 482). Em contraste com este último aspecto do pensamento de Kierkegaard, o marxismo e o existencialismo, ainda que assumindo a defesa do indivíduo, pro-
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curam integrá-lo nas suas relações com o mundo e com os outros e compreendê-lo na sua historicidade.
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 597. Das obras de Kierkegaard existe a edição dinamarquesa Samiede Vaerker, a cargo de A. B. DRACHMANN, J. L. HEILBERG, H. O. LANGE, Kõbenhavn, 1901-06, 2! ed., 1920-31; a tradução alemã Gesammelte Werke, a cargo de H. GOTTSCHED e CHR. SCHREMPF, Jena, 1909-22 e sucessivas reedições; e uma outra tradução alemã a cargo de E. HIRSCH,
36 vols., Dusseldórfia, 1956 e sgs. A uma e outra se faz referência no texto.
Traduções italianas: Il diário dei seduttore, trad. REDAELLI, Turim,
1910; In víno veritas, trad. K. FERLOV, Lanciano, 1910; Lora. Atto accusa ai Cristianesimo dei regno di Dinamarca, 2 vols., Milão-Roma,
1931; Il concetto dell'angoscia, trad. M. CORSSEN, Florença, 1942; Don Giovanni, trad. K. M. GULDBRANSEN e R. CANTONI, Milão, 1945; La ripetizione, trad. E. VALENZANI, Milão, 1945; Diario, 3 vols., escolha e trad. de C. FABRO, Brescia, 1948-51; Timore e tremore, Milão, 1948; li concetto dell'angoscia, La Malatia mortale, trad. C. FABRO, Florença,
1953; Briciole difilosofia, Postilia non scientifica, trad. C. FABRO, 2 vol., Bolonha, 1962.
Acerca das investigações efectuadas nestes últimos anos sobre alguns aspectos da biografia de Kierkegaard, especialmente sobre o seu modo de viver e sobre o uso pródigo do seu dinheiro, v. Alf Nyman, La vita di S. K. alia luce delia moderna ricerca, in " Séritti di sociologia e politica ín onore di Luigi Sturzo", 11, Bolonha, 1953.
§ 598. G. BRANDES, S. K., Leipsig, 1879; H. HOFFDING, S. K. ais Philosoph, Stuttgart, 1896; T. B0HUN, S. K., GütersIoh, 1925; E. L. ALLEN, S. K, His Life and Thought, Londres, 1925; E. GEISMAR, S. K.' Gottingen, 1929; W. RUTTENBECK, S. K., Berlim, 1929; J. A. BAIN, S. K., His Life and Religious Teaching, Londres, 1935; CHR. SCHREMPF, S. K., 2 vol., Jena, 1927-28; E. PRZYWARA Das Geheimnis, S. K., München, 1929; F. LOMBARD, K., com uma escolha de textos traduzidos, Florença, 1936; J. WAHL, Études kierkegaardiennes, Paris, 1937; W. LowRIE, A Short Life of. K., Princeton, 1946; P. MESNARD, Le vrai visage de K., Paris, 1948; R. CANTONI, La coscienza inquieta (S. K.) Milão, 1949; C. FABRO, Tra K. e Marx, Florença, 1952; J. COLLINS The Mind of K., Chicago, 1954; J. HOHLENBERG, S. K, New York, 1954; Symposion Kierkegaardianum, a cargo de S. STEFFENSEN, e H. SORENZEN, Copenhaga, 1955; Kierkegaardiana, vol. colectivo a cargo de N. THULSTRUP, Copenhaga, 1955; T. H. CROXALL, K. COMMENTAR Y, New York, 1956; Studi Kierkegaardiani, volume colectivo a cargo de C. FABRO, Brescia,
1957.
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IX
MARX
§ 605. MARX: FILOSOFIA E REVOLUÇÃO
A filosofia de Marx é, à primeira vista, a última e a mais conseguida expressão do movimento da esquerda hegeliana que foi a primeira reacção ao idealismo romântico e que a este mesmo idealismo contrapõe uma reabilitação do homem e do seu mundo. Mas nos próprios confrontos da esquerda hegeliana a filosofia de Marx distingue-se pelo seu carácter antiteórico e comprometido, empenhado como está em promover e dirigir o esforço de libertação da classe operária nos confrontos dessa sociedade burguesa que se havia formado após a revolução industrial do século XVIII. Ao idealismo de Hegel que, partindo da ideia, entendia justificar toda a realidade post factum, Marx contrapõe uma filosofia que, partindo do homem, se disponha transformar, activamente, a própria realidade. A acção, a "praxis" revolucionária faz parte integrante desta filosofia, que não se esgota com a elaboração de conceitos, ainda que (obviamente) não possa prescindir deles. A polémica de Marx contra a esquerda hegeliana é ditada por esta exigência, que Marx exprimiu uma vez de forma paradoxal ao afirmar: "A filosofia e o estudo do mundo real estão entre si em relação como
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estão o onanismo e o amor sexual" (Ideologia tedesca, 111, trad. ital., p. 229). O "estudo do mundo real" não tem nada a ver como o "mundo das ideias puras": deve tomar em consideração a realidade efectiva ou, como afirma Marx, "empírica e material" do homem e do mundo em que ele vive. Marx prevê (ou pressente) o tempo em que a "ciência natural compreenderá a ciência do homem como a ciência do homem compreenderá a ciência natural", e em que "não haverá senão uma única ciência" (Manoscritti economico-filosofici del 1844, 111, trad. ital., p. 266). Mas aquilo que poderemos chamar a sua "filosofia" é constituído substancialmente por uma antropologia, por uma teoria da história e por uma teoria da sociedade; esta última partindo da redução da própria sociedade à sua estrutura económica não é senão uma teoria económica.
Depois da publicação das obras de juventude (o que se verificou à volta de 1930) e que tornou possível um melhor conhecimento das primeiras duas partes da sua filosofia, a influência desta filosofia começou a ser cada vez mais extensa e profunda mesmo fora dos movimentos políticos que nela tiveram origem e que a consideraram frequentemente mais como um instrumento definitivo de luta do que uma via aberta para ulteriores desenvolvimentos.
§ 606. MARX: VIDA E OBRAS
Karl Marx nasceu em Treviri a 15 de Maio de 1818. Estudou na Universidade de Bona e depois em Berlim, onde se torna um hegeliano entusiasta; formou-se em filosofia em
1841 com uma tese sobre
a Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro. Renunciando à carreira universitária, Marx dedicou-se à política e ao jornalismo. Colaborou na "Gazeta renana" que foi o órgão do movimento liberal alemão. Uma vez suprimido o jornal, Marx, cujas ideias haviam entretanto evoluído do liberalismo para o socialismo, colaborou numa revista, os "Anais franco-alemães", que foi também proibida. Em 1843 dirige-se a Paris onde permanece até 1845, colaborando no órgão dos refugiados alemães o "Avante". Obrigado a ausentar-se de
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Paris, passa a viver em Bruxelas (de 1845 a 1848) e em 1848 publicava com Engels, a quem se tinha ligado de grande amizade em Paris, o Manifesto do partido comunista que assinalou o inicio do despertar político da classe operária e levou o socialismo do domínio utópico à realização histórica, dando à classe operária o instrumento que deve promover e solicitar a evolução da sociedade capitalista no Sentido da própria negação. Os acontecimentos de 1848 levaram Marx a Colónia e a Paris; mas em 1849 estabelecia-se com a família em Londres, onde continuou a inspirar e a dirigir o movimento operário internacional e onde faleceu a 14 de Março de 1883.
Os trabalhos filosoficamente mais significativos de Marx são os seguintes: Crítica da filosofia do direito de Hegel, escrito em 1843 e cuja introdução foi publicada em Paris em
1844 nos "Anais franco-alemães", Economia e filosofia, escrito em 1844, mantido inédito e só publicado postumamente; A sagrada família ou crítica da crítica crítica (1845), escrita em colaboração com Engels, e dirigida contra Bruno Bauer e os seus amigos hegelianos de esquerda que tinham erigido a guia da história o "poder critico da razão"; Teses sobre Féuerbach, brevíssimo, mas importante trabalho, escrito em 1845 e publicado postumamente por Engels; Ideologia alemã, escrita em 1845-46, dirigida contra Feuerbach, Bruno Bauer e Stirner, mantido inédito e publicado postumamente; A miséria da filosofia (1847), contra a obra de Proudhon, A filosofia da miséria; Crítica da economia política (1859); O Capital, vol. 1, 1867; vols. 11 e III, publicados postumamente por Engels (1885, 1895).
§ 607. MARX: ANTROPOLOGIA
O ponto de partida de Marx é a reivindicação do homem, do homem existente, na totalidade dos seus aspectos, feita já por Feuerbach. Engels partilha do entusiasmo que a obra de Feuerbach tinha suscitado nele e em Marx, como em muitos dos jovens hegelianos alemães. "Quem foi que descobriu o mistério do "sistema"? - Feuerbach. Quem negou a dialéctica do conceito, essa guerra dos deuses que só os
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filósofos conheciam? - Feuerbach. Quem foi que apresentou não "o significado dos homens" - como se o homem pudesse ter outro significado além de ser homem - mas "os homens" no lugar do velho xaile com que se embrulhava a autoconsciência infinita? Feuerbach e só Feuerbach" (Sagrada família, Gesamtausgabe, 111, p. 265). Mas Marx não se agarra a este aspecto negativo da filosofia de Feuerbach, como também não se agarra ao aspecto positivo, que é a valorização das necessidades, da sensibilidade, da materialidade do homem. Feuerbach fechou-se numa posição teórica ou contemplativa: ignorou o aspecto activo e prático da natureza humana que se constitui e realiza apenas nas relações sociais. Só estas relações, já não contempladas, mas realizadas e compreendidas na sua realização histórica, abrem a via àquilo que Marx chama o novo materialismo, que se opõe ao velho materialismo especulativo ou contemplativo. "Os filósofos, afirma Marx (Teses sobre Feuerbach, I?) até agora limitaram-se a interpretar o mundo; de agora em diante é preciso, pelo contrário,'transformá-lo". O ponto de vista do novo materialismo é o de uma praxis revolucionária (Ib., 3?); o homem alcança a solução dos seus problemas, não através da especulação da acção criticamente iluminada e dirigida.
Aquilo que Marx pretendeu realizar, não apenas na sua obra de filosofia e de economista, como também na própria actividade política, traduz-se numa interpretação do homem e do seu mundo que fosse simultaneamente compromisso de transformação e, neste sentido, actividade revolucionária. Ora esta interpretação só é possível se no homem deixar de se reconhecer uma essência determinável de uma vez por todas, em abstracto, essência que surge das suas relações privadas consigo próprio, na sua interioridade ou consciência; pois só se descobre o ser do homem nas suas relações exteriores com os outros homens e com a natureza que lhe fornece os meios de subsistência. Ora estas relações não são determináveis de uma vez para sempre porque são historicamente determinadas pelas formas de trabalho e de produção. Por outras palavras, a personalidade real e praticamente activa do homem é apenas aquela que se resolve nas relações de trabalho em que o homem se encontra. "Po-
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demos distinguir os homens dos animais, afirma Marx, pela consciência, pela religião, por tudo aquilo que se quiser; mas os homens começaram a distinguir-se dos animais quando começaram a produzir os seus meios de subsistência, um progresso que foi condicionado pela sua organização física. Produzindo os seus meios de subsistência, os homens produzem indirectamente a sua própria vida material" (Ideologia alemã, trad. ital., p. 17). Por conseguinte, é através do trabalho, como relação activa com a natureza, que o homem é, de certo modo, criador de si próprio; e criador não apenas da sua "existência material" mas também do seu modo de ser ou da sua existência específica, como capacidade de expressão ou de realização de si. "Este modo de produção não se deve julgar apenas enquanto reprodução da existência física dos indivíduos; ele é também um modo determinado da actividade de certo indivíduo, um modo determinado de tornar extrínseca a sua vida, um modo de vida determinado. Como os indivíduos exteriorizam a sua vida, assim são" (Ib.).
O ser humano é o que é na sua exterioridade, na relação activa com a natureza e com a sociedade que é o trabalho, ou a produção de bens materiais; não na sua interioridade ou consciência. A produção e o trabalho não são, segundo Marx, uma condenação que recai sobre o homem: são o próprio homem, o seu modo especifico de ser ou de se fazer homem. Deste modo a natureza passa a ser "o corpo inorgânico do homem"; deste modo também, o homem pode referir-se a si como natureza universal ou genética e assumir a consciência de si, não tanto como indivíduo, mas como "espécie ou natureza universal". Com efeito, enquanto o animal produz apenas imediatamente e sob o domínio da necessidade "o homem produz mesmo quando é livre da necessidade física e só produz verdadeiramente quando se encontra livre de tal necessidade"; enquanto o animal "produz apenas segundo a medida e a necessidade da espécie a que pertence, o homem sabe produzir segundo a medida de todas as espécies e sobretudo sabe conferir ao objecto a medida inerente e criar também segundo as leis da beleza" (Manuscritos económico-políticos de 1844, trad. ital., pp. 230-3 1).
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O trabalho é portanto, segundo Marx, uma manifestação, a única manifestação da liberdade humana, da capacidade humana de criar a própria forma de existência específica. Não se trata, certamente, de uma liberdade infinita porque a produção está sempre relacionada com as condições materiais e com as necessidades já criadas; e estas condições actuam como factores limitativos em qualquer fase da história. Mas trata-se de um condicionamento que não é exterior mas interior aos próprios indivíduos humanos. "As condições sob as quais os indivíduos, até ao momento em que não surge ainda a contradição, têm relações entre si, são condições que pertencem à sua individualidade e não a qualquer coisa de exterior a eles próprios: são condições sob as quais apenas esses indivíduos determinados, existentes em situações determinadas, podem produzir a sua vida material e aquilo que com ela está ligado; essas são, por conseguinte, as condições das suas manifestações pessoais e por
estas são produzidas" (Ideol. alemã, p. 70). Nas relações de produção, que são relações dos homens entre si e com a natureza, a actividade humana é simultaneamente condicionada e condicionante e, por conseguinte, a iniciativa respeitante a tais relações é, em última análise, autocondicionante. Cord efeito, quando a forma assumida pelas relações de produção, forma que até certo ponto condicionou as manifestações pessoais dos indivíduos, surge como um obstáculo a tais manifestações, acaba por ser substituída por uma outra forma, que se presta melhor ao condicionamento dessas manifestações mas que, por sua vez, poderá tornar-se um obstáculo e ser igualmente substituída. "Como em todos os estádios, segundo Marx, estas condições correspondem ao desenvolvimento contemporâneo das forças produtivas, a sua história é portanto a história das forças produtivas que se desenvolvem e que são retomadas por uma nova geração; é portanto a história do desenvolvimento das forças dos próprios indivíduos" (Ib., pp. 70-71). Nas relações produtivas, e, por conseguinte, na determinação da existência historicamente condicionada, insere-se o homem na sua totalidade, com as suas necessidades e com a sua razão, com os seus interesses e a sua ciência; mas insere-se na sua situação prática e activa, enquanto se manifesta ou actua no trabalho - na
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sua posição de contemplativo teórico como homem moral, religioso, filosófico, como "consciência": uma vez que a consciência (como veremos em breve) é o reflexo da sua actividade produtiva. Marx entendeu de forma articulada, não rígida, a relação entre as forças produtivas dos indivíduos e as formas, que elas determinam, das relações sociais e da consciência que as reflecte. O desenvolvimento das forças produtivas desenrola-se de modo diverso, de acordo com a diversidade dos povos ou grupos humanos; e só lentamente, e de modo bastante desigual, determina o desenvolvimento das formas institucionais correspondentes. Acontece que estas formas continuam por vezes a sobreviver mesmo quando se esboçaram novas forças produtivas que tendem a destruí-Ias e a suplantá-las com novas formas; ou então, no próprio interior do grupo, "haver indivíduos com um desenvolvimento diverso do todo"; ou, em geral, a consciência surgir mais avançada no que respeita à situação empírica contemporânea, de modo a que nas lutas de um período posterior possa haver apoio, como autoridade, em teóricos anteriores" Ob., p. 71). Noutros casos, como na América do Norte, o processo do desenvolvimento inicia-se "com os indivíduos mais evoluídos dos velhos países e portanto como forças de relações mais desenvolvidas, correspondentes a estes indivíduos, mesmo antes dessas formas de relações se haverem imposto aos outros países" (Ib., p. 7 1). Isto quer dizer que a redução, operada por Marx, do indivíduo (ou seja, do ser do homem) às relações sociais, não implica de forma alguma a dissolução do próprio indivíduo em formas já realizadas de tais relações, nem o determinismo rigoroso de tais formas sobre a estrutura dos indivíduos singulares.
Tudo isto não serve senão para demonstrar, segundo Marx, o carácter social do homem. "Tal como a sociedade produz o homem enquanto homem, afirma Marx, também ela é produzida por ele" (Manuscritos económico-políticos de 1844, 111, trad. ital., p. 259). A própria natureza, com a qual todo o homem, como ser vivo, está em relação, só se humaniza na sociabilidade tornando-se um elo entre cada homem e o fundamento da existência comum. "A sociedade, afirma Marx, é a total consubstanciação do homem com
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a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, a realização do naturalismo do homem, e a realização do humanismo da natureza" Ob., p. 260). As mesmas actividades individuais (por exemplo, a actividade científica) não são menos sociais que as actividades colectivas públicas: não só porque adoptam instrumentos, por exemplo a linguagem, que são produtos sociais, mas também porque o seu fim, o seu obj ectivo, é a própria sociedade. "0 indivíduo é um ser social. A sua manifestação de vida - ainda que não surja como forma de uma manifestação de vida comum, realizada em conjunto com as outras - é uma manifestação e uma afirmação de vida social" Ob., p. 260). Aquilo que distingue o indivíduo é simplesmente o seu modo mais especifico ou mais particular de viver a vida do género humano. "A morte, afirma Marx, surge como uma dura vitória do género sobre o indivíduo e uma contradição da sua unidade; mas o individuo determinado é apenas um ser determinado e como tal mortal" (Ib., p. 261).
Talvez possamos agora recapitular, da forma seguinte, os pontos principais da antropologia de Marx: 1) Não existe uma essência ou natureza humana em geral. 2) O ser do homem é sempre historicamente condicionado pelas relações em que o homem entra com os outros homens e com a natureza, pelas exigências do trabalho produtivo. 3) Estas relações condicionam o indivíduo, a pessoa humana existente; mas os indivíduos por sua vez condicionam-se promovendo a sua transformação ou o seu desenvolvimento. 4) O indivíduo humano é um ser social.
§ 608. MARX: O MATERIALISMO HISTóRICO
A terceira tese é o fundamento da concepção marxista da história, ou seja, do materialismo histórico. Marx insiste no carácter "empírico" do pressuposto em que se baseia. Este pressuposto é o reconhecimento de que a história é feita por "seres humanos vivos" que se acham sempre em certas "condições materiais de vida" que já encontraram existentes ou produziram com a sua própria acção (Ideologia alemã, I, p. 17). Na base deste pressuposto Marx avança a
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tese fundamental da sua doutrina da história: o único sujeito da história é a sociedade na sua estrutura económica. Marx formulou esta tese em oposição polémica com a doutrina hegeliana segundo a qual o sujeito da história é, pelo contrário, a Ideia, a consciência ou espírito absoluto. Ele próprio afirma que, na revisão crítica da filosofia do direito de Hegel, chegou à conclusão de que "tanto as relações jurídicas como as formas do estado não podem ser compreendidas nem por si próprias nem pela chamada evolução geral do espírito humano, mas têm as suas raízes nas relações materiais da existência, cuja complexidade Hegel assume, seguindo o exemplo dos ingleses e dos franceses do século XVIII, sob a designação de "sociedade civil"; e que a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política" (Para uma crítica da economia política, pref. trad. ital., p. 10). Mais precisamente, com base na antropologia, a tese surge apresentada da seguinte forma: "Na produção social da sua existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, em relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das suas forças positivas materiais. O conjunto destas relações constitui a estrutura económica da sociedade, ou seja, a base real sobre a qual se ergue uma superstrutura jurídica e política e à qual correspondem formas determinadas da consciência social. O modo de produção da vida material condiciona, em geral, o processo social, político e espiritual da vida. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser mas é, pelo contrário, o seu ser social que determina a sua consciência" (Ib., pp. 10- 11).
Segundo este ponto de vista, o único elemento determinante da história, e por isso também o único elemento que se autodetermina, é a estrutura económica da sociedade; enquanto que a superstrutura, com tudo o que a constitui, é uma espécie de sombra ou reflexo da estrutura e só de forma indirecta participa da sua historicidade. Por "superstrutura" Marx entende, além das formas do direito e do estado, a moral, a religião, a metafísica, e todas as formas ideológicas e as formas de consciência correspondentes. Todas estas coisas, afirma, "não têm história, não têm desenvolvimento, mas os homens que desenvolvem a sua produção mate-
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rial e as suas relações materiais, transformam, juntamente com esta sua realidade,
o seu pensamento e os produtos do seu pensamento. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência" (Ideologia alemã, 1, trad. ital., p. 23). Marx insiste continuamente no facto de que "os próprios homens que estabelecem as relações sociais de acordo com a sua produtividade material, produzem também os princípios, as ideias, as categorias, de acordo com as suas relações sociais. Assim estas ideias, estas categorias, são tão eternas como as relações que exprimem. São produtos históricos e transitórios. Existe um movimento continuo de acréscimo nas forças produtivas, de destruição nas relações sociais, de formação das ideias; de imutável não existe senão a abstracção do movimento, mors immortalis" (Miséria da filosofia, trad. ital., 11, 1, p. 89). Utilizar categorias, ideias ou "fantasmas" semelhantes da mente para explicar a história significa inverter o seu processo efectivo, fazer da sombra a explicação das coisas, quando são as coisas a explicação da sombra. Uma verdadeira teoria da história não explica a praxis partindo das ideias, mas, pelo contrário, explica a formação das ideias partindo da praxis material e assim consegue chegar à conclusão de que "todas as formas e produtos da consciência podem ser eliminados, não mediante a crítica intelectual, resolvendo-se na autoconsciência ou transformando-os em espíritos, fantasmas ou espectros, etc., mas só através da transformação prática das relações sociais existentes, de que derivam essas mesmas fantasias idealistas"; e que, portanto, "Não é a critica mas a revolução a força motriz da história, e também da história, da religião, da filosofia e de qualquer outra teoria" (Ideologia alemã, I, trad. ital., p. 34).
Segundo este ponto de vista, as ideias que dominam numa época histórica são as ideias da classe dominante: " A classe que tem o poder material dominante da sociedade é ao mesmo tempo a que tem o poder espiritual dominante" (Ib., p. 43). Com efeito, tais ideias não são mais que "a expressão ideal das relações materiais dominantes; as relações materiais dominantes tomadas como ideias". A dependência das ideias dominantes da classe dominante surge obliterada ou oculta; em primeiro lugar, devido ao facto de
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essas próprias ideias serem elaboradas, no interior da classe, pelos "ideólogos activos" cujo objectivo é o de promoverem a ilusão da classe sobre si própria; e em segundo lugar ao facto de que toda a classe que assume o poder deve representar o seu interesse como interesse comum de todos os membros da sociedade, deve assim "dar às próprias ideias a forma da universalidade e representá-las como as únicas racionais e universalmente válidas" (Ib., p. 44). Kant, por exemplo, não fez mais que transformar "os interesses materiais e a vontade condicionada e determinada por relações materiais de produção" da burguesia contemporânea em "autodeterminações puras da livre vontade, da vontade em si e por si", isto é: em "determinações ideológicas puramente conceptuais e em postulados morais" (Ib., trad. ital., III, pp. 189-190).
Como se disse, só a estrutura económica da sociedade tem, propriamente, história. A moda desta história, e portanto da história geral, é constituída pela relação entre as forças produtivas e as relações de produção (as relações de propriedade). Quando as forças produtivas alcançam um certo grau de desenvolvimento entram em contradição com as relações de produção existentes, que deixam por isso de ser condições de desenvolvimento para se transformarem em condições de estagnação. Entra-se então numa época de revolução social. No entanto, uma formação social só se extingue quando se tiverem desenvolvido todas as forças produtivas a que pode dar lugar; as novas relações de produção entram em acção quando se encontram amadurecidas, no seio da velha sociedade, as condições materiais da sua existência. Marx admite a este propósito o progresso incessante da história: "Os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno, podem ser designados como épocas que marcam o progresso da formação económica da sociedade" (Para a crítica da economia política, Pref., trad. ital., p. 11). Marx admite no entanto que este progresso se encontra dirigido para uma forma final e conclusiva: "As relações de produção burguesas são a última forma antagónica do processo de produção social... Mas as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para a solução deste
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antagonismo. Com esta formação social encerra-se portanto a pré-história da sociedade humana" (Ib., pp. 11-12). Mas na verdade, segundo este ponto de vista, depois da "pré-história" não será a "história" o progresso futuro: uma vez que deixa de existir a única mola para tal: a contradição entre as forças produtivas e as relações económicas.
§ 609. MARX: O COMUNISMO
Se o homem, como ser social, é constituído por relações de produção, a sua natureza e o seu desenvolvimento dependem das formas assumidas por tais relações. É evidente que, segundo este ponto de vista, o progresso da natureza humana não é um problema puramente individual ou privado, resolúvel por via de um aperfeiçoamento espiritual, através da moral, da religião ou da filosofia; mas é um problema social, resolúvel apenas através da transformação da estrutura económica da sociedade.
Marx acentuou com frequência as características daquilo que é hoje um dos teoremas mais estruturados no campo da psicologia social: a intima conexão da personalidade humana com o ambiente social. Um indivíduo cujas circunstâncias apenas permitem desenvolver uma qualidade à custa de outras terá um desenvolvimento unilateral e mutilado. Um indivíduo que vive num ambiente restrito e imóvel apenas será capaz - caso sinta a necessidade de pensar - de um pensamento abstracto que lhe servirá de evasão ao seu desolado quotidiano. Um indivíduo que tenha com o mundo relações múltiplas e activas será, pelo contrário, capaz de um pensamento universal e vivo. Em qualquer caso, afirma Marx, as "prédicas moralizantes" não servem para nada (Ideologia alemã, 111, trad, ital., p. 255 e segs.). O comunismo apresenta-se então como a única solução para o problema do homem porque é a única solução que faz depender a realização de uma personalidade humana, unificada e livre, de uma transformação da estrutura social que condiciona a própria personalidade. A sociedade capitalista, originada pela divisão do trabalho, que dividiu distintamente capital e trabalho, produz uma dilaceração interna na personalidade
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humana. Com efeito, nesta sociedade as forças produtivas são completamente separadas dos indivíduos e constituem um mundo independente, o da propriedade privada. A estas forças se contrapõe a maioria dos indivíduos que, privados de qualquer conteúdo de vida, se tornaram indivíduos abstractos, ainda que colocados na situação de se aliarem entre si. O trabalho, que é o único modo em que os indivíduos podem ainda querer entrar em relação com as forças produtivas, deixou de lhes permitir a ilusão de poderem manifestar-se pessoalmente e limita-se a dar-lhes o sustento a troco de uma vida sem a menor alegria (Ib., 1, p. 65). O comunismo, conseguindo a supressão da propriedade privada, do capital, elimina a frustração que este veio trazer à estrutura social e à personalidade dos indivíduos. O trabalho passa então a ser actividade autónoma, pessoal do homem, o instrumento da solidariedade humana. Por isso o comunismo surge como "o integral e consciente regresso do homem a si próprio, como homem social, como homem humano" (Manuscritos económico-filosóficos de 1844, 111, trad. ital., p. 258). Por um lado, suprime a oposição entre a natureza e o homem, resolvendo a favor desta toda a complexidade das forças naturais; por outro, suprime a oposição entre os homens, instituindo a solidariedade no trabalho comum. Assim realiza a naturalização do homem e a humanização da natureza (Ib., p. 260). Esta realização será possível de forma gradual. Numa

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