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História da filosofia XII

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História da Filosofia
Volume doze
Nicola Abbagnano
obra digitalizada por ângelo Miguel Abrantes.
Se quiser possuir obras do mesmo tipo ou, por outro lado, tem livros que não se importa de ceder, por favor, contacte-me:
Ângelo Miguel Abrantes, R. das Açucenas, lote 7, Bairro Mata da Torre, 2785-291, S. Domingos de Rana. 
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA
VOLUME XII
TRADUÇÃO 'DE: ANTÓNIO RAMoS ROSA CONCEIÇÃO JARDIM EDUARDO LúClõ NOGUEIRA
EDITORIAL PRESENÇA - Lisboa 1970
TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA
Copyright by NICOLA ABBAGNANO
III
BERGSON
§ 692. BERGSON: VIDA E OBRA
A obra de Bergson apresenta-se-nos, logo à primeira vista, como a máxima expressão do espiritualismo francês, que principia com Maine de Biran e continua numa numerosa família de pensadores franceses contemporâneos (§ 675). No entanto, pode ser também legitimamente incluída no quadro do evolucionismo espiritualista que teve representantes e defensores em todos os países da Europa (§ 660). Além disso, interessa-se por alguns temas da critica da ciência e do pragmatismo.
O seu traço mais característico é, no entanto, o espiritualismo. O tema fundamental, ou antes, o único tema, da investigação bergsoniana, é a consciência; mas a originalidade desta investigação consiste no facto de não considerar a consciência como uma energia infinita e infinitamente criadora, mas
4,
@I, 01, energia finita, condicionada e limitada por situações, circunstâncias ou obstáculos que podem também solidificá-la, desagradá-la, bloqueá-la ou dispersá-la. O próprio Bergson declarou sob este aspecto o carácter original do seu espiritualismo. "0 grande erro das doutrinas espiritualistas - disse ele (Evolution créatr., 1911, p. 291)-foi o de crer que isolando a vida espiritual de tudo o mais, suspendendo-a no espaço mais alto possível sobre a terra, a colocariam assim ao abrigo de qualquer ataque; como se assim não a tivessem exposto a ser confundida com o efeito de uma miragem". As doutrinas espiritualistas opuseram o testemunho da consciência aos resultados da ciência sem ter em conta estes últimos ou até ignorando-os. Bergson pretende, ao invés, aceitar e fazer seus os resultados da ciência, ter presente a exigência do corpo e do universo material a fim de entender a vida da consciência e assim reconduzir a consciência mesma à sua existência concreta, que é condicionada e problemática. O espiritualismo adquire, por isso, na sua obra um sentido novo e tende a inserir a própria problematicidade na vida espiritual.
Henri Bergson nasceu em Paris a 18 de Outubro de 1859 e morreu a 4 de Janeiro de 1941. Foi durante muitos anos professor no Colégio de França. A primeira obra que publicou intitula-se o Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (1889), que logo no título mostra o que será o método da filosofia bergsoniana: libertar das estruturas intelectuais fictícias a vida original da consciência para a atingir na sua pureza. A segunda obra, Matéria e memória
(1896) é dedicada ao estudo das relações entre corpo e espírito. Reporta a essência do espírito à memória e atribui ao corpo a função de limitar e escolher as recordações para os fins da acção. A evolução criadora (1907) é a sua obra principal, em que apresenta a vida como uma corrente de consciência (impulso vital) que se insinua na matéria subjugando-a, mas mantendo-se ao mesmo tempo limitada e
condicionada por ela. Em 1900, Bergson publicou os ensaios sobre o riso, (Le rire) que continham também a sua doutrina sobre a arte; constituem três colectâneas de ensaios os livros intitulados A energia espiritual (1919), Duração e simultaneidade (1922), a
propósito da teoria de Einstein, e O pensamento e o
movente (1934). Em As duas fontes da moral e da religião (1932), Bergson. mostrou o significado ético e religioso da sua doutrina.
Após a publicação destas obras, Bergson, que era
de origem judaica, foi-se orientando cada vez mais para o catolicismo, no qual viu, segundo declarou, o
complemento do judaísmo. Mas (como disse num
passo do seu testamento [19371 revelado pela sua mulher), r-enunciou a uma expressa conversão devido à onda de anti-semitismo que se espalhara pelo mundo. "Quis-escreveu ele-permanecer entre os
que amanhã serão perseguidos".
§ 693. BERGSON: A DURAÇÃO REAL
O ponto de partida e o fundamento de toda a filosofia de Bergson é a doutrina da duração real.
O próprio Bergson indicou a fonte desta doutrina, ou
pelo menos, o ponto de partida onde foi buscar a inspiração dela. Perante a imprecisão de todas as doutrinas filosóficas, "uma doutrina - segundo afirma (La Pensée et le Mouvant, 1934, p. 8) - parecera-nos já fazer excepção e, provavelmente por isso, afeiçoaramo-nos a ela desde a nossa primeira juventude. A filosofia de Spencer visava seguir o rasto das próprias coisas e modelar-se pelos pormenores dois factos. Sem dúvida que procurava ainda o seu ponto de apoio em vagas generalidades. Víamos bem a debilidade dos Primeiros princípios, mas tal debilidade parecia-rios que derivava do facto de que o autor, insuficientemente preparado, não pudera aprofundar as "ideias últimas" da mecânica. Ganhou-nos o desejo de desenvolver esta parte da sua obra, completá-la e
consolidá-la. Foi então que se nos deparou a ideia do tempo. E aí aguardava-nos uma surpresa". A surpresa consistiu em verificar que o tempo real, que tem um papel fundamental na filosofia da evolução escapa às ciências matemáticas. Deste modo, a filosofia de Bergson, nascida da tentativa de aprofundamento de um capítulo particular do evolucionismo de Spencer, apresenta-se na sua origem como a transformação do evolucionismo naturalista num evolucionismo espiritualista, que identifica o
processo contínuo, incessante e progressivo da evolução com o devir temporal da consciência.
A duração real é, de facto, o dado da consciência, despojado de toda a superestrutura intelectual ou
simbólica e reconhecido na sua simplicidade originária. A existência espiritual é uma mudança incessante, uma corrente contínua e ininterrupta que varia
]o
permanentemente, não substituindo todo o estado de consciência por outro, mas dissolvendo os próprios estados numa continuidade fluída. Não existe um substracto imóvel do eu sobre o qual se projectasse a sucessão dos estados conscientes. A duração é o
processo contínuo do passado que rói o futuro e cresce à medida que avança. A memória não é uma
faculdade especial, mas é o próprio devir espiritual que espontaneamente conserva tudo em si mesmo. Esta conservação total é ao mesmo tempo uma criação total, uma vez que nela cada momento, embora seja o resultado de todos os momentos anteriores, é absolutamente novo em relação a eles. "Para um ser consciente - diz Bergson - existir significa mudar, mudar significa amadurecer, amadurecer significa criar-se indefinidamente a si mesmo" (Evol. créat., p. 8).
A vida espiritual é, essencialmente, autocriação e liberdade, No Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (1889), Bergson mostrou como toda a
discussão entre deterministas e indeterministas nasce da tentativa de entender a vida da consciência, que é movimento e duração, servindo-se dos esquemas extraídos do estudo da matéria, que é extensão e
imobilidade. Não é possível reduzir a duração da consciência ao tempo homogéneo de que fala a ciência, o qual é constituído por instantes iguais que se sucedem. O tempo da ciência é um tempo especializado e que perdeu por isso o seu carácter original. Nem tão-pouco é possível falar de uma multiplicidade de estados de consciência análoga à multiplicidade dos objectos espaciais que se separam e se excluem uns
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os estados de consciência se unificam. Todos
, ,
fluída corrente da consciência, da qual não p
em distinguir a não ser por um acto de abstracção, e o tempo é, na consciência, a corrente, da mudança, não uma
sucessão regulada de instantes homogéneos. Só o labor abstracto do intelecto e o uso da linguagem, que se encontra intimamente ligado àquele, transformam esta corrente contínua numa
multiplicidade de estados de consciência diversos, numeráveis e imóveis. Sendo assim, não se pode dizer (como faz o determinismo) que a alma é determinada por uma simpatia, por um ódio ou por qualquer outro sentimento, como por uma força que actue sobre ela. Tais sentimentos, quando atingem uma certa profundidade, não são forças estranhas à alma, mas cada um deles constitui a alma inteira; e dizer que a alma se determina sob a influência de um deles significa reconhecer que se determina por si mesma e, que, portanto, é livre. Além disso, a liberdade não tem o carácter absoluto que o espiritualismo algumas vezes
lhe atribui; pelo contrário, admite graus. Sentimentos e ideias que provêm de uma educação mal compreendida chegam a constituir um eu parasitário que se sobrepõe ao eu fundamental, diminuindo na mesma medida a sua liberdade. Muitos, afirma Bergson (Essai, p. 127), vivem assim e morrem sem ter conhecido a verdadeira liberdade. Em contrapartida, somos verdadeiramente livres quando os nossos actos emanam da nossa personalidade inteira, quando entre esta e aqueles existe aquela semelhança indefinível que existe algumas vezes entre o artista e a sua obra (1b., p. 131). A relação entre o eu e os seus actos não
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pode, portanto, ser explicada mediante o conceito de causalidade que serve para explicar os liames entre os fenómenos naturais e tomá-los previsíveis. Os actos livres nunca são previsíveis e, propriamente falando, não se pode dizer que o eu seja a causa deles, dado que o eu não se distingue deles, senão que vive e se
constitui neles. A liberdade é indefinível, porque coincide com o próprio processo da vida consciente. Defini-Ia, isto é, exprimi-Ia numa fórmula de linguagem, significa transferi-Ia para o plano da consideração espacial e dos objectos físicos, mas aqui não existe senão o determinismo, porque desapareceu precisamente o que constitui a consciência: a duração real.
§ 694. BERGSON: ESPÍRITO E CORPO
O evolucionismo espiritualista caracteriza-se, no
que concerne à relação entre espírito e corpo, pela doutrina do paralelismo (ou monismo) psicofísico (§ 660). Bergson considera, ao invés, que esta doutrina é equivalente, nos seus resultados, à da consciência como epifenómeno dos dados físicos, própria do evolucionismo materialista. "Quer se considere-afirma ele (Matière et mémoire, p. 4)-o pensamento como uma simples função cerebral e o
estado de consciência como um epifenómeno do estado cerebral, quer se encarem os estados do pensamento e os estados do cérebro como traduções em duas línguas diferentes do mesmo original, supõe-se tanto num caso como noutro o mesmo princípio: se
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pudéssemos penetrar no interior de um cérebro que trabalha e assistir ao entrecruzamento dos átomos de que é feito o córtex cerebral ou se, por outro lado, possuíssemos a chave da psicofisiologia, saberíamos pormenorizadamente tudo o que sucede na consciência correspondente". Contra esta adequação ou equivalência do psíquico e do físico é dirigida a tese que Bergson expõe em Matéria e memória (1896). Bergson começa por rejeitar tanto o realismo como o idealismo, no que concerne à realidade da matéria, Apela para o "senso comum", o qual afirma, é certo (como faz o realista) que o objecto existe independentemente da consciência que o percebe, mas crê (como faz o idealista) que este objecto é perfeitamente idêntico ao dado sensível. Por outros termos, para o senso comum o objecto não é mais do que uma imagem, mas uma imagem existente. No sistema de imagens, a que o mundo se reduz, uma, no entanto, se apresenta com características especiais: o nosso corpo, que é o único meio para agir sobre as imagens. A percepção é, precisamente, o acto da inserção activa daquela imagem que é o nosso corpo no sistema das outras imagens: é acção, e não contemplação.
Há, portanto, uma diferença radical entre a percepção e a recordação. Considera-se, habitualmente, que a diferença entre estes dois elementos é apenas de grau, e que a recordação é uma percepção menos intensa ou mais ténue. Segundo Bergson, isto é um erro comum à psicologia materialista e à espiritualista. Entre a percepção e a recordação existe, pelo contrário, uma diferença de natureza. A percepção é o
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poder de acção do corpo vivo, que se insere activamente entre as outras imagens e provoca o abalo e a readaptação; a recordação, como sobrevivência de imagens passadas, guia e inspira a percepção (já que se age sempre tendo por base as experiências passadas) mas só se torna verdadeiramente actual no
acto da percepção mesma. Por consequência, a função do corpo, interposto entre os objectos que actuam sobre ele e aqueles sobre os quais ele actua, é a de um condutor, incumbido de recolher os movimentos e de os transmitir, quando não os detém, a certos mecanismos motores, determinados se a acção for reflexa, escolhidos se a acção for voluntária. "Tudo se passa, como se uma memória independente recolhesse as imagens ao longo do curso do tempo, à medida que se produzem, e como se o nosso corpo, com tudo o que o circunda, não fosse mais do que uma dessas imagens, a última, a que obtemos a cada momento praticando um corte instantâneo no devir em geral" (Matière et mémoire, p. 81).
Bergson distingue três termos: a recordação pura, a recordação-imagem e a percepção, termos estes que explicam a passagem da duração real, como puro processo espiritual, à percepção, em que a duração se torna acção e reacção das imagens entre si. "As ideias, as puras recordações, chamadas do fundo da memória, desenvolvem-se em recordações-imagens cada vez mais capazes de se inserirem no sistema motor. À medida que estas recordações tomam a
forma de uma representação mais completa, mais concreta e mais consciente, tendem cada vez mais a confundir-se, com a percepção que as atrai e cujo
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adoptam. Portanto, não há nem pode haver no cérebro uma região em que as recordações se
fixem e se acumulem. A pretensa destruição das recordações por obra das lesões cerebrais é apenas a
interrupção do progresso contínuo pelo qual a recordação se actualiza" (1b., p. 140). Donde se conclui que a recordação pura (a consciência na sua duração real) não está ligada a nenhuma parte do corpo e é, portanto, espiritualidade independente. "0 corpo
- diz Bergson (1b., p. 199) -, sempre orientado para a acção, tem por função essencial a de limitar, com vista à acção, a vida do espírito". Esta função é exercida pelo corpo mediante a percepção que é "a
acção possível do nosso corpo sobre os outros corpos". Quando se trata de corpos circunstantes, separados do nosso por um espaço mais ou menos considerável, que mede a longinquidade no tempo das suas promessas ou das suas ameaças, a percepção não faz mais do que destroçar acções possíveis. Quando a distância decresce, a acção possível tende a transformar-se em acção real, e quando se torna nula, isto é, quando o corpo se percebe a si mesmo, a percepção delineia, não já uma acção virtual, mas
uma acção real. Surge então a dor, o esforço actual da parte ofendida para repor as coisas no seu lugar; e nisto consiste a subjectividade da sensação efectiva (sentimento).
A vida espiritual transcende, pois, por todos os
lados, os limites do corpo e, por conseguinte, da percepção e da acção que estão ligadas ao corpo.
O corpo representa somente o plano da acção, ao
passo que a memória pura é o plano em que o
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espírito conserva o quadro de toda a vida passada e se identifica com a duração. Bergson. substituiu assim o dualismo de corpo e espírito pelo dualismo da acção (ou percepção) e memória. O escopo de L'évolution créatrice é a resolução deste dualismo.
§ 695. BERGSON: O IMPULSO VITAL
A Evolução criadora mostra-nos, de facto, como o próprio mundo da acção e da percepção, enquanto sistema de imagens
exteriorizadas e espacializadas e, por conseguinte, objecto da inteligência e da ciência, se constitui em virtude daquele mesmo movimento que é o processo temporal da vida consciente. A obra tende a mostrar que, enquanto a inteligência é incapaz de compreender a natureza da vida, esta, como evolução espiritual, torna possível explicar a
natureza e a origem da inteligência e dos seus objectos.
Em primeiro lugar, Bergson reporta a vida bio- lógica à vida da consciência, à duração real. A vida é sempre criação, imprevisibilidade e, ao mesmo tempo, conservação integral e automática de todo o passado. Tal é a vida do indivíduo, assim como da natureza;
mas as perspectivas de uma e de outra são distintas. Cada um de nós, considerando retrospectivamente a sua história, verificará que a sua personalidade infantil, ainda que indivisível, reunia em si pessoas diversas que podiam coexistir no estado nascente, mas que a pouco e pouco se foram tomando incompatíveis, pondo-nos cada vez mais perante a necessi-
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dàde de uma escolha. "A via que percorremos no
tempo-diz Bergson (Évolution créatr., p. 109)está salpicada de fragmentos de tudo o que começávamos a ser, de tudo o que poderíamos ter chegado a ser. Nós não podemos viver senão uma única vida; por isso devemos escolher. A vida da natureza, ao invés, não é obrigada a semelhantes sacrifícios: conserva as tendências que num certo ponto se bifurcaram e cria séries divergentes de espécies que evoluem separadamente. Por outros termos, a vida não segue uma linha de evolução única e simples. Desenvolve-se "corno um feixe de caules" criando, pelo simples facto do seu crescimento, direcções divergentes entre as quais se divide o seu impulso originário. As bifurcações do seu desenvolvimento são por isso inúmeras. Mas muitas são também as vias sem saída em relação aos poucos grandes caminhos que ela tem aberto.
A unidade das várias direcções não é uma unidade de coordenação, de convergência, como se a
vida realizasse um plano preestabelecido. O finalismo, neste sentido, é excluído; a vida é criação livre e imprevisível. Trata-se, ao invés, de uma unidade que precede a bifurcação, isto é, da unidade da vis a tergo, do impulso que a vai pouco a pouco realizando.
O impulso da vida, conservando-se ao longo das linhas de evolução nas quais se divide, é a causa
profunda das variações, pelo menos das que se transmitem regularmente pela hereditariedade, que se adicionam e criam novas espécies. Tudo isto, se exclui o plano preestabelecido de qualquer teoria finalista, exclui também a hipótese de que a evolução se
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tenha dado mediante causas puramente mecânicas.
O mecanismo não pode explicar a formação de órgãos complicadíssimos que têm, no entanto, uma função bastante simples, como é o caso do olho. Bergson serve-se da imagem de uma mão que atravessa a limalha de ferro que se comprime e resiste à medida que a mão avança. A certa altura, o esforço da -mão esgotar-se-á e, no mesmo preciso momento, as partículas da limalha ter-se-ão justaposto e coordenado numa forma determinada: a da mão que se detém e de uma parte do braço. Se supusermos que a mão e o braço permaneceram invisíveis, os espectadores procurarão nas partículas de limalha e nas forças internas da massa, a causa
da sua disposição. Uns explicarão a posição de cada partícula mediante a acção que as partículas próximas exercem sobre ela: esses serão os mecanicistas. Outros pretenderão que um plano de conjunto presidiu a cada uma destas acções elementares: esses serão os finalistas. A verdade é que há um acto invisível, o da mão que atravessou a linalha: os inexauriveis pormenores dos movimentos das partículas, como a
sua ordem final, exprimem negativamente este movimento indiviso, porque é a forma global da resistência, e não uma síntese de acções positivas elementares (É vol. créatr., p. 102-03). A acção indivisível da mão é a do impulso vital; subdivisão do impulso vital em indivíduos e espécie, em cada indivíduo na variedade dos órgãos que o compõem e em
cada órgão nos elementos que o constituem, é devida à resistência da matéria bruta (correspondente, no
exemplo citado, à limalha de ferro).
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primeira bifurcação fundamental do impulso é a que deu origem à divisão entre a planta a o animal, O vegetal caracteriza-se pela capacidade de fabricar substâncias orgânicas com substâncias minerais (função clorofílica). Os animais, obrigados a
andar e a procurar alimento, evoluíram no sentido da actividade locomotora, e, portanto, de uma consciência cada vez mais desperta. As duas tendências dissociaram-se ao crescerem, mas na forma rudimentar implicam-se reciprocamente; e o mesmo impulso que levou o animal a prover-se de nervos e centros nervosos, conduziu à aquisição por parte da planta da função clorofílica (Ib., p. 124). Por outro lado, nem mesmo a vida animal se desenvolveu ao longo de uma única linha. Os Artrópodes e os Vertebrados são as linhas em que a evolução da vida animal no sentido da mobilidade e da consciência teve maior êxito. As outras duas direcções da vida animal, as indicadas pelos Equinodermes e pelos Moluscos, foram ter a um beco sem saída. A evolução dos Artrópodes alcançou o seu ponto culminante nos insectos e, em particular, nos Himenópteros, a dos Vertebrados, no homem. Nestas duas direcções, o progresso efectuou-se de forma diferente, pois que, na primeira direcção se dirigiu para o instinto, na segunda para a inteligência.
§ 696. BERGSON: INSTINTO E INTELIGÊNCIA
Instinto e inteligência são tendências diferentes mas conexas e nunca absolutamente separáveis. Não
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existe inteligência sem traços de instinto, nem instinto que não esteja rodeado por um halo de inteligência. Contudo, na sua forma perfeita, o instinto pode ser definido como a faculdade de utilizar e construir instrumentos organizados, e a inteligência como a faculdade de fabricar instrumentos artificiais e variar indefinidamente a sua fabricação. Originariamente, o homem não é homo sapiens, mas homo faber (Ib., p. 151). A sua característica é a de suprir a deficiência dos órgãos naturais de que dispõe mediante instrumentos que lhe permitam defender-se contra os inimigos e contra a fome e o frio. Os instrumentos que o homem cria artificialmente correspondem, na outra direcção da vida, aos
órgãos naturais -de que o instinto se serve; e por isso o instinto e a inteligência representam duas soluções divergentes, mas igualmente elegantes, de um só e mesmo problema (Évol. créatr., p. 155). Mas enquanto a inteligência se orienta para a consciência, o instinto orienta-se para a inconsciência. Quando a natureza fornece ao ser o instrumento que deve em.
pregar, o ponto em que tem de aplicá-lo, o resultado que deve obter, a parte reservada à escolha é extremamente débil, e por isso a consciência será também muito débil e crepuscular. O instinto será, portanto, consciente só na medida em que for deficiente, isto é, só na medida das contrariedades e dos obstáculos que encontrar na sua acção moral. Na inteligência, pelo contrário, o estado normal é o deficit, isto é, o desnível entre a representação e a acção. A inteligência deve, de facto, através de mil dificuldades, escolher para o seu trabalho o lugar
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a forma e a matéria. E nunca poderá satisfazer-se inteiramente, uma vez que cada nova satisfação criará novas necessidades. Desta diferença fundamental derivam as outras: a inteligência é levada a considerar as relações entre as coisas, ao passo que o instinto se dirige às próprias coisas; a inteligência é conhecimento de uma forma; o instinto, conhecimento de uma matéria. Esta última característica constitui, à primeira vista, uma superioridade da inteligência: uma forma, precisamente por estar vazia, pode ser preenchida da maneira que se quiser e por isso todo o conhecimento formal é praticamente iliinitado e um poder inteligente "traz em si o que lhe permite ultrapassar-se a si próprio". Todavia, esta mesma característica formal priva a inteligência da capacidade
de se deter na realidade de que teria necessidade. "Há coisas -diz Bergson (1b., p. 165) -
que só a inteligência é capaz de procurar, mas que, por si só, nunca poderá encontrar. Tais coisas só o instinto as encontraria; mas nunca as procurará".
Tudo isto determina as capacidades e os limites da inteligência humana. A inteligência está virada, fundamentalmente, para os fins da vida, serve para construir instrumentos inorgânicos e só se encontra à vontade quando tem que lidar com a matéria inorgânica. Mas a matéria inorgânica é solidificação, imobilidade, descontinuidade: a inteligência tende, portanto, a transformar tudo o que considera em elementos sólidos, descontínuos e imóveis. Por isso o devir se lhe apresenta como uma série de dados, em que cada um permanece a si mesmo e, portanto, imutável. Mesmo quando a sua atenção se fixa na mu-
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dança interna de um destes estados, decompõe-no numa série de estados ulteriores que terão as mesmas
características de fixidez e imobilidade. Assim, a inteligência deixa fugir precisamente o que há de novo na evolução da vida e caracteriza-se por uma natural incompreensão do movimento e da vida.
Bergson define o funcionamento da inteligência como um mecanismo cinematográfico. De facto, a
inteligência colhe instantâneos imóveis do devir e
procura reproduzi-lo mediante a sucessão de tais instantes. Mas este mecanismo deixa escapar o que é peculiar à vida: a continuidade do devir, em que não se podem distinguir estados. Daí que todas as
tentativas da inteligência para compreender o devir não consigam senão transformá-lo numa série de imobilidades sucessivas, que já nada têm da continuidade originária. Surgem então as objecções de Zenão de Eleia contra o movimento: objecções irrefutáveis do ponto de vista da inteligência porque fundadas na espacialização do devir, na sua redução a uma série de imobilidades sucessivas. A incapacidade da inteligência perante a vida é a incapacidade da ciência, que se funda na inteligência. A ciência obtém os maiores sucessos no mundo da natureza inorgânica, onde a duração real da consciência é substituída por um tempo homogéneo e uniforme (constituído por instantes iguais), que na realidade já não é tempo, mas espaço. A este tempo espacializado é aplicável a medida científica; ao invés, o tempo verdadeiro, a duração, não é susceptível de medida porque não apresenta nenhuma uniformidade e é criação contínua. Todavia, este método da
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não é uma inferioridade sua, mas a condição êxito. A ciência visa à acção; saber equivale a **Wo-,kr, isto é, A partir de uma situação dada para **J@f **etiegar a uma situação futura. Avança por saltos, isto
é., por intervalos, que podem ser tão pequenos quanto se deseje, mas que nunca constituem uma continuidade. A ciência só revela os seus limites quando procura compreender a vida. Para compreender a vida é necessário um órgão completamente diferente da inteligência científica. Existe tal órgão?
§ 697. BERGSON: A INTUIÇÃO
Vimos que a outra direcção fundamental da vida é o instinto. Mas a inteligência nunca se separa completamente do instinto: é possível, portanto, um
retorno consciente da inteligência ao instinto: tal retorno é a intuição. A intuição é um instinto que se tomou desinteressado, consciente de si, capaz de reflectir sobre o seu objecto e de o estender indefinidamente (Évolut. Créatr., p. 192). Que um tal esforço é possível, prova-o a presença no homem da intuição estética, que dá lugar à arte. A intuição estética, na verdade, faz-nos captar a individualidade das coisas que escapa à percepção comum, inclinada a reter dos objectos só as impressões úteis para os fim da acção. Por outros termos, a intuição tira à arte aquele véu que as exigências da acção interpõem entre nós e as coisas, véu sem o qual todos os hoIliens poderiam entrar em comunicação imediata com
as coisas mesmas e ser naturalmente artistas. Dado
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que, ao invés, as exigências da acção obrigam o homem a ler as etiquetas que a necessidade da prática impõe à s coisas mediante a linguagem, o artista surge de quando em quando e caracteriza-se pela capacidade de ver, escutar ou pensar sem se referir às necessidades da acção. Se fosse possível um desprendimento completo de tais necessidades, ter-se-ia um artista excelente em todas as artes, Mas, na realidade, acontece que o véu se levanta acidental mente só de um lado, ou seja, na direcção de um só dos sentidos humanos; e daqui deriva a diversidade das artes, a especialidade das predisposições (Le Rire, 1908, p. 160).
A intuição estética, no entanto, tende apenas ao individual e não pode ser o órgão de uma metafísica da vida. Mas pode-se conceber uma investigação orientada no mesmo sentido que a arte e que tenha por objecto a vida em geral. Uma investigação deste género será propriamente filosófica, ou melhor, constituirá o próprio órgão da metafísica. Enquanto a
ciência tem o seu órgão na inteligência e o seu
objecto apropriado na matéria imóvel, a metafísica tem o seu órgão na intuição e o seu objecto apropriado na vida espiritual. Se a análise é o procedimento próprio do intelecto, o procedimento próprio da intuição será a simpatia, "pela qual penetramos no interior de um objecto para coincidir com o que ele tem de único e, portanto, de inexprimível" (La Pensée et le mouvant, p. 205). Se a análise intelectual tem necessidade de símbolos, a metafísica intuitiva é, ao invés, a ciência que pretende dispensar os
símbolos. Com efeito, possui de um modo absoluto
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e infinitamente a realidade, em vez de a conhecer; coloca-se directamente nela, em vez de adoptar pontos de vista em torno dela e por isso a atinge para lá de toda a expressão, tradução ou representação simbólica (Ib., p. 206).
Bergson apela continuamente para a intuição ao
longo de toda a sua investigação. A intuição revela-nos a duração da consciência e põe-nos em guarda contra a espacialização da mesma operada pela inteligência. É a intuição que nos torna conscientes da nossa liberdade. É também a intuição que nos permite recuperar o impulso vital que é a força criadora de toda a evolução biológica. Na realidade, o
único objecto da intuição é o espírito. Ela é "a visão directa do espírito por parte do espírito". Contudo, o universo material não se apresenta opaco à intuição. Se o domínio próprio desta é o espírito, "ela desejaria, no entanto, realizar nas coisas materiais a sua participação na espiritualidade - e diríamos na espiritualidade, se não soubéssemos tudo o que de humano ainda se mistura à nossa consciência, mesmo depurada e espiritualizada" (1b., p. 37). A intuição pode ter significados diversos e não se pode definir univocamente. Todavia, a sua característica fundamental é que pensa em termos de duração, isto é, de espiritualidade ou de consciência pura. E é isto precisamente que faz dela o órgão específico da metafísica. Entre a metafísica e a ciência, Bergson não pretende estabelecer uma diferença de valor, mas somente de objecto e de método. À ciência compete o conhecimento intelectual da matéria; à metafísica a intuição do espírito. Uma vez
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que o espírito e a matéria se tocam, também a ciência e a metafísica, hão-de ter uma superfície periférica comum: poderão assim agir uma sobre a outra e estimular-se mutuamente.
Para exercer a sua função, a filosofia deverá deixar de ser uma mera análise de conceitos implícitos nas formas da linguagem e deverá tratar da própria existência real. Mas toda a existência só pode ser dada numa experiência. Esta experiência chamar-se-á visão ou contacto ou percepção externa em geral, se se trata de um objecto material; chamar-se-á intuição se se trata do espírito. Até onde pode chegar a intuição? Só ela o pode dizer. "Ela diz Bergson (Ib., p. 61)-chega. a possuir um fio: ela própria deverá ver se este fio vai até ao céu ou se se detém a uma certa distância da terra. No primeiro caso, a experiência metafísica relacionar-se-á com a dos grandes místicos; e eu posso comprovar,
pela minha parte, que esta é a verdade. No segundo caso, as experiências metafísicas permanecerão isoladas umas das outras, sem no entanto se oporem umas às outras. Em qualquer caso, a filosofia elevar-nos-á acima da condição humana".
§ 698. BERGSON: GÉNESE IDEAL DA MATÉRIA
A recusa de Bergson em admitir qualquer diferença de valor entre a metafísica e a ciência e a sua afirmação de que a metafísica e a ciência se distinguem unicamente pela diversidade dos seus objec-
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tos, poderá fazer supor que tal diversidade seja de algum modo irredutível, isto é, que a matéria e o espírito constituam duas realidades últimas, ainda que em mútuo contacto e com mútuas possibilidades de aproximação e de inserção. Porém, a Evolução criadora tem, entre as suas partes mais significativas, uma "génese ideal da matéria" que é uma tentativa para explicar a matéria mesma por meio de unia detenção virtual ou possível do impulso vital, que é pura espiritualidade.
A evolução da vida surge à primeira vista a Bergson como o resultado do encontro e da luta entre o espírito e a matéria. "Tudo se passa como se uma ampla corrente de consciência tivesse penetrado na matéria, carregada, como toda a consciência, de uma enorme, multiplicidade de virtualidades que se interpenetrassem. Ela impeliu a matéria para a organização, mas o seu movimento foi a um tempo infinitamente atrasado e infinitamente dividido" (Évol. créatr., p. 197). Mas a intuição não tarda em compreender que a materialidade, como interrupção da tensão vital, como detenção virtual do impulso, como aparição da extensão e da divisão dos entes e como inversão da ordem vital na ordem estática da matéria, é, de algum modo, presente à própria consciência humana. "Quanto mais tomamos consciência do nosso progresso na pura duração - diz Bergson. (1b., p. 219-20) -tanto mais sentimos as
diversas partes do nosso ser entrarem umas nas outras e toda a nossa personalidade concentrar-se num ponto, ou melhor, numa ponta, que se insere no futuro, acutilando-o sem tréguas. Nisto consistem a
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vida e a acção livre. Deixamo-nos ir, ao invés; sonhamos em vez de agirmos. Neste mesmo acto, o
nosso eu se dispersa; o nosso passado, que até àquele momento se recolhia em si mesmo no impulso indivisível que nos comunicava, decompõe-se em mil recordações que se exteriorizam umas em relação às outras. Renunciam a interpenetrar-se à medida que se solidificam. A nossa personalidade desce assim na direcção do espaço". A materialidade é, portanto, um movimento, ou melhor, uma suspensão virtual do movimento ou um obstáculo ao movimento que se encontra na própria consciência.
Deste ponto de vista, a vida é "um. esforço para ascender pela vertente pela qual a matéria desce". Se a vida fosse pura consciência, e, por maioria de razão, se fosse supraconsciência, seria pura actividade criadora (Evol. créat., p. 267). Mas o limite da sua criatividade é-lhe intrínseco: o seu movimento para a
frente complica-se com o seu movimento para trás, e este movimento para trás, a dispersão da vida, a
solidificação que procura deter o fluxo criador, é a
imaterialidade. "Na realidade, a vida é um movimento, a materialidade é o movimento inverso, e cada um destes dois movimentos é simples, uma vez que a matéria que forma um mundo é um fluxo indiviso, como indivisa é a vida que a atravessa, recortando nela os seres vivos, Destas duas correntes, a segunda opõe-se à primeira; não obstante, a primeira obtém alguma coisa da segunda: daí resulta aquele modus vivendi que é, precisamente, a organização" (Ib., p 271). A organização biológica, toma, para os nossos, sentidos e para a nossa inteligência, a forma de
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partes extrínsecas umas às outras no tempo e no espaço, porque fechamos os olhos à unidade 1) impulso que, através das gerações, une os órgãos aos órgãos, os indivíduos aos indivíduos, as espécies às espécies, e faz de toda a série dos vivos uma única onda que corre através da matéria. Mas assim que, mediante a intuição, estalamos o esquema solidificado da inteligência, tudo se põe de novo em movimento e se resolve no movimento. Este movimento é continuado na natureza unicamente pelo homem, já que, em toda a parte, salvo no homem, a consciência se viu bloqueada e impedida de chegar à sua
forma. Só o homem continua o movimento criador do impulso vital e o continua nas manifestações que lhe são próprias: a moral e a religião.
§ 699. BERGSON: SOCIEDADE FECHADA E SOCIEDADE ABERTA
Nem mesmo no mundo humano, que é o mundo social, a consciência é pura actividade criadora. O antagonismo de movimentos que a intuição descobre na consciência do eu e que se volta a encontrar na vida como contraste entre impulso vital e materialidade, domina também o mundo social. As sociedades humanas que historicamente se formaram e se formam são sociedades fechadas, nas quais o indivíduo actua unicamente como parte do todo, e que deixam uma margem mínima à iniciativa e à liberdade. A ordem social modela--se pela ordem física, conquanto as suas leis não tenham a necessidade absoluta das
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leis físicas. Mas o indivíduo segue o caminho já traçado pela sociedade: automaticamente obedece às regras desta e conforma-se aos seus ideais. A sociedade é a fonte das obrigações morais. Estas não são, como queria Kant, exigências da pura razão, mas hábitos sociais que garantem a vida e a solidez do corpo social. A razão entra nestas obrigações só para ditar as modalidades do seu exercício mas nada tem a ver com a origem delas. Na base da sociedade existe o costume de contrariar hábitos, e este é o único fundamento da obrigação moral. O que na outra grande linha da evolução animal a natureza realizou mediante o instinto, dando origem à colmeia e ao formigueiro, na linha da inteligência realizou-o mediante o hábito. Nesta linha, deixou uma certa latitude à escolha individual, e, portanto, todo o hábito moral tem uma certa contingência- Mas o seu conjunto, isto é, o hábito de contrair hábitos, tem a mesma intensidade e regularidade que o instinto (Deux sources, p. 21).
Mas além da moral da obrigação e do hábito, que é própria de uma sociedade fechada, existe a moral absoluta, a dos santos do cristianismo, dos sábios da Grécia, dos profetas de Israel, que é a moral de uma sociedade aberta, Esta moral não corresponde a um grupo, mas a toda a humanidade. Tem por fundamento uma emoção original, e continua o esforço gerador da vida. A moral da obrigação é imutável e tende à conservação; a moral absoluta está em movimento e tende ao progresso. A primeira exige a impersonalidade, porque a conformidade a hábitos adquiridos; a segunda corresponde ao apelo
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de uma personalidade que pode ser a de um revelador da vida moral ou um dos seus imitadores, ou também a da própria pessoa que age. A estas duas morais distintas correspondem dois tipos diversos de religião.
§ 700. BERGSON: RELIGIÃO ESTÁTICA E RELIGIÃO DINÂMICA
O nascimento das superstições religiosas é explicado por Bergson. mediante a função fabuladora. As superstições têm, de facto, um carácter fantástico, mas não podem ser reduzidas à fantasia que actua nos inventos científicos e nas realizações artísticas. A função fabuladora nasce no curso da evolução por uma exigência puramente vital. A inteligência, que é o instrumento principal da vida humana (a qual, como se viu, se rege somente enquanto é capaz de fabricar instrumentos artificiais), ameaça voltar-se contra a própria vida. O ser dotado de inteligência é levado, de facto, a pensar apenas em si mesmo
e a desprezar os seus laços sociais. A religião é a
reacção defensiva da natureza contra o poder dissolvente da inteligência: os seus mitos e superstições servem para impelir o homem para os seus semelhantes, subtraindo-o ao egoísmo em que a inteligência o faria cair. Além disso, a inteligência mostra claramente ao homem a sua natureza mortal, e isso representa para uma mentalidade primitiva um segundo perigo, contra o qual a religião reage com a crença na imortalidade e com
o culto dos mortos. Em ter-
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BERGSON
ceiro lugar, a inteligência faz perceber claramente ao
homem a imprevisibilidade do futuro e, portanto, o
carácter aleatório de todos os seus empreendimentos. A religião exerce também aqui unia função defensiva, dando ao homem o sentido de uma protecção sobrenatural, que o subtraia aos perigos e à incerteza do futuro. Finalmente, a religião fornece mediante as
crenças e as práticas mágicas a possibilidade de crer numa influência do homem sobre a natureza muito superior à que o homem pode efectivamente alcançar mediante a técnica.
Uma religião assim constituída é, segundo Bergson, infra-intelectual. É, em geral, a reacção defensiva da natureza contra o que há de deprimente para o indivíduo e de dissolvente para a sociedade no exercício da inteligência. É, pois, uma religião natural no sentido de que é um produto da evolução natural. Mas a par desta religião estática, a religião dinâmica constitui a forma supra-intelectual da religião, que retoma e continua directamente o impulso vital originário. Bergson identifica a religião dinâmica com o nústicismo.
O misticismo é muito raro e pressupõe um homem privilegiado e genial. Mas ele apela para algo que existe em todos os homens; e mesmo quando não chega a comunicar aos outros homens a sua força criadora, tende a subtraí-los ao formalismo da religião estática e produz assim numerosas formas inter- .. ~..=- "0 resultado do misticismo - diz Bergson (Deux Sources, p. 235) -é uma tomada de contacto e, por consequência, uma coincidência par-
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com o esforço criador que a vida manifesta,
é de Deus, se não é Deus mesmo".
O misticismo antigo, tanto o platónico como o
oriental, é um misticismo da contemplação: não acreditou na eficácia da acção humana. o misticismo completo é o dos grandes místicos cristãos (5. Paulo, Sta. Teresa, S. Francisco, Joana de Are), para os quais o êxtase não é um ponto de chegada, mas o
ponto de partida de uma acção eficaz no mundo.
O amor do místico pela humanidade é o próprio amor de Deus: é um amor que não conhece problemas nem mistérios, porque continua a obra da criação divina (Ib., p. 251). A experiência mística fornece a
única prova possível da existência de Deus. O acordo entre os místicos não só cristãos, mas também pertencentes a outras religiões, é "o sinal de uma identidade de intuição, que se pode explicar do modo mais simples pela existência real do Ser com o qual crêem estar em comunicação" (ib., p. 265). A experiência mística leva a considerar o universo como o
aspecto visível e tangível do amor e da necessidade de amar. "Deus é amor e é objecto de amor: aqui está todo o misticismo". (1h., p. 270). Só o amor justifica a multiplicidade dos seres vivos e, portanto, a realidade do próprio universo, requerido pela existência de seres distintos entre si e por Deus. Bergson aceita francamente uma concepção optimista do mundo". "Existe um optimismo empírico-diz ele (1b., p. 280) - que consiste simplesmente em verificar dois factos: em primeiro lugar, que a humanidade julga boa a vida no seu conjunto porque está ligada a ela, em segundo lugar, que existe uma alegria sem
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mescla, situada para já do prazer e da dor, que é o
estado de alma definitivo do místico".
Bergson aspira a que surja algum génio místico que venha corrigir os males sociais e morais de que sofre a humanidade. A técnica moderna, estendendo, a esfera da acção do homem sobre a natureza, tem de certo modo engrandecido desmedidamente o corpo do homem. Este corpo engrandecido "espera um suplemento de alma, e a mecânica exigiria uma mística" (Ib,, p. 355). Os problemas sociais e políticos internacionais que nascem desta desproporção poderiam ser eliminados por um renascimento do misticismo. Neste caso, a mecânica que curvou ainda mais a humanidade para a terra, poderia servir-lhe para se endireitar e olhar o céu. E a humanidade poderia então retomar no nosso planeta "a função essencial do universo, que é uma máquina de fazer deuses" (1b., p. 343).
A doutrina da religião dinâmica que acabamos de expor é a parte mais débil de toda a obra de Bergson, e é também aquela em que a elegância imaginativa do estilo do filósofo se transforma abertamente em ênfase e oratória. A identificação da religião autêntica com o misticismo não poderia ser
aceite por nenhuma das grandes religiões ocidentais; e a própria identidade, em que Bergson insiste, das experiências místicas procedentes de religiões diversas é fortemente suspeita. Na realidade, o misticismo, como o entende Bergson, tem um pressuposto panteísta: a identidade substancial do homem e de Deus. O homem, enquanto constituído na sua essência por um impulso vital super-individual e sobre-hu-
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~o que, como Bergson diz, "é divino ou é o próprio Deus", não é, na sua natureza espiritual, senão um ou uma manifestação do divino ou de Deus. Mas a relação de íntima comunhão entre o homem e Deus, a firmeza e a estabilidade da comunicação postulada pelo misticismo tal como Bergson o entende, elimina de um golpe a vida religiosa. Nenhuma religião, e muito menos o catolicismo para o qual iam as simpatias de Bergson nos últimos anos, poderia considerar o universo como "uma máquina de fazer os deuses" e os homens iguais a estes deuses. Bergson repetiu na sua última obra as linhas de um panteísmo romântico para o qual o finito é manifestação e revelação do infinito e a individualidade do homem se dissolve ou parece inconsistente e a sua liberdade se identifica com a espontaneidade criadora da força cósmica.
§ 701. BERGSON: O POSSÍVEL E O VIRTUAL
As categorias metafísicas que Bergson explicitamente elucidou e estabeleceu como base da sua investigação inspiram-se precisamente neste panteísmo romântico. Por isso se prestam a justificar a filosofia de Bergson só naqueles aspectos em que ela é redutível a um tal pensamento, mas não os outros, talvez mais vivos, pelos quais a filosofia bergsoniana se insere no círculo da filosofia contemporânea.
A categoria que preside à duração real (na variedade das suas manifestações) é a própria realidade, é a criação. Bergson define esta categoria como "a
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novidade imprevisível" da evolução universal, enquanto é sempre evolução espiritual e que, por isso, se revela directa e imediatamente na consciência. A ideia de criação não é mais do que a percepção imediata que cada um de nós tem da sua própria actividade e das condições em que ela se exerce. "Dêem-lhe o nome que quiserem - diz Bergson (Pensée et Mouv, p. 118-19 -, ela é o sentimento que temos de ser criadores das nossas intenções, das nossas decisões, dos nossos actos, e, por consequência, dos nossos hábitos, dos nossos caracteres, de nós mesmos. Artífices da nossa vida, e também artistas, quando queremos sê-,lo, trabalhamos continuamente com a matéria que nos oferece o passado e o presente, a hereditariedade e as circunstâncias, a fim de plasmarmos uma figura única, nova, original, imprevisível como a forma que o escultor imprime ao barro".
Esta simples verificação imediata, elimina, segundo Bergson, todos os problemas da metafísica e da teoria do conhecimento, uma vez que elimina o
problema do ser (e do nada) e o da ordem (e da desordem). O problema da metafísica consiste em perguntar-se porque é que existe o ser, porque é que Z,
existe qualquer coisa ou alguém em geral, quando, afinal, poderia não existir nada. Ora, este problema é puramente fictício, porque se baseia no uso arbitrário do termo nada, que só tem sentido no seu
terreno, precisamente o do homem: o da acção e da fabricação. "Nada" designa a ausência do que buscamos, do que desejamos ou do que esperamos, mas
não designa positivamente nada do que percebemos
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ou pensamos. que é sempre um "pleno", nunca um
"vazio". Quando dizemos que não existe nada, pretendemos dizer que o que existe não nos interessa e que estamos interessados no que já não existe ou poderia ter existido. De modo que a ideia do nada está ligada à de
uma supressão real ou eventual e, por conseguinte, à de uma substituição. Ora, a supressão, enquanto substituição, nunca pode ser total, uma vez que nesse caso não seria substituição. O mesmo se pode dizer do problema da ordem. A ordem torna-se um problema quando nos perguntamos porque é que ela existe em lugar da desordem, e implica portanto, como problema, a legitimidade da ideia da desordem. Mas esta ideia significa simplesmente a ausência da ordem procurada; e é impossível suprimir, mesmo mentalmente, uma ordem sem fazer surgir dela outra. O problema fundamental da gnoseologia revela-se, como o da metafísica, um problema fictício derivado do uso arbitrário das palavras.
Estas análises, que Bergson desenvolveu amplamente na Evolução criadora e repetiu e confirmou depois, mais recentemente (Pensée et Mouv., p. 122 sgs.), figuram entre as mais merecidamente famosas da filosofia contemporânea, mas não serviam para o fim que ele pretende atingir, isto é, a geração do problema da metafísica ou da metafísica como problema. Com efeito, tais análises não conduzem à eliminação do nada e da desordem, mas somente à definição destes como nulidade possível do ser e da ordem, ainda que seja só no sentido da possível substituição deles por um ser ou por uma ordem em que o homem não esteja interessado. Estas anã-
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lises deveriam, portanto, ser completadas com uma
análise da categoria do possível; mas esta, infelizmente, não se encontra nas obras de Bergson. De facto, Bergson entendeu sempre o possível no sentido de "virtual", no sentido da potencialidade aristotélica e ignorou simplesmente ou passou em silêncio o seu significado próprio de problemático. O possível, segundo Bergson, é apenas "a miragem do presente no passado": à medida que a realidade se cria a si mesma, sempre imprevisível e nova, a sua imagem reflecte-se por detrás no passado indefinido. A realidade mesma passa deste -modo a ser possível, mas precisamente no momento em que se torna realidade:
a sua possibilidade não a precede verdadeiramente, mas segui-a (Ib., p. 128). Por outras palavras, o possível é, para Bergson, a sombra virtual que a realidade, autocriando-se, projecta no próprio passado. Esta sombra virtual não tem, evidentemente, nada a ver com o sentido concreto da possibilidade presente, mesmo emotivamente, em toda a experiência ou
situação humana. Contudo, este sentido não é estranho à filosofia de Bergson que pôs em luz na Evolução criadora o bloqueamento e a dispersão do impulso vital em muitas das suas direcções e correntes, e exprimiu nas páginas finais das Deux sources as
suas preocupações pela sorte do homem no futuro. Isto implica, indubitavelmente, o reconhecimento de uma radical incerteza, instabilidade e insegurança de desenvolvimento da experiência humana, que aliás se encontra ensombrada pelo carácter de "imprevisibilidade" que Bergson lhe atribui. Pode dizer-se que a experiência mística subtrai o homem a esta condi-
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ção (e à categoria da possibilidade que filosoficamente a exprime) para o vincular a uma certeza em que já não subsistem problemas nem dúvidas sobre o futuro. Mas a consecução e a consolidação da experiência mística, que vem a ser para o homem senão uma possibilidade a que agarrar-se, um problema a resolver?
A filosofia de Bergson rompe, nalguns pontos essenciais, o quadro da necessidade romântica em
que, explicitamente, o autor quis mantê-la. Sob este aspecto, encontra a sua continuação e o seu enriquecimento no pragmatismo contemporâneo.
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 692. Passagens do testamento de B. em A.
BÉGUIN e P. THÉVENAZ, H.B., Neuchâtel, 1941. Sobre a bibliografia: A Contribution to a Bibliography of H.B., Nova Iorque, 1913; e "Revue Internationale de Philosophie", 1949, n. 10.
Alguns escritos menores de Bergson encontram-se recolhidos em Ècrits et Paroles, ao cuidado de R. M. MOSSÉ-BASTIDE, Paris, 1957.
Sobre as relaçõe:s de B. com Maine de Biran: H. GAUBIER, in Études bergsoniennes, 1, 1948.
J. BENDA, Le Bergsonisme ou une philosophie de Ia mobilité, Paris, 1912; R. BERTHELOT, Le pragmatisme chez Bergson, Paris, 1913; F. KOLGIATI, La filosofta di R., Turim, 1914; J. MARITAIN, La philosophie bergsonienne, Paris, 1914; LE ROY, Une philosophie nauvelle, Paris, 1914; H. H~DING, La philosophie de R., Paris,
1916; F. D'AMATO, 11 pensiero di E.B., Città di Castello,
1921; THIBAUDET, Le Bergsonisme, Paris, 1923; J. CHEVALIER, B., Paris, 1929; JANNÉLÉVITC11, B., Paris, 1931;
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A. METZ, Bergson et le Bergsonisme Paris, 1933; G. SANTAYANA, II pensiero americano e aZtri saggi, Milão,
1939, p. 191-248; E. LF, Roy, B. RoMEYER, P. KUCHARSKI, A. FOREST, P. D'AUREc, A. BRÉMOND, A. RICOEUR, Bergson et le Bergsonisme, in "Archives de philosophie", V. XVII, e. 1; V. MATI-IIEU, R., II profondo e Ia sua espressione, Turim, 1954 (com bibl.).
§ 693. J. DELHOMME, Durée et vie dans Ia phitosophie de Bergson, in Êtudes ber98oniennes, 11, 1949; E. BR£HIER, Images plotiniennes, images bergsoniennes, in Êtudes bergsoniennes, E, 1949, V. MATMEU, op. Cit.
§ 696. L. HUSSON, L'intelectualisme de, Bergson, Paris, 1947.
§ 697. J. SEGOND, L'intuition bergsonienne, Paris,
1923; R. M. MossÉ-BASTIDE, L'intuition bergsonienne, in "Revue philosophique", 1948, p. 195-206; F. DELATRIZE, Bergs,on et Proust, in Études bergsoniennes, 1, -1948.
§ 700. CARBONARA, in "Logos", Nápoles, 1934; H. IVIAVIT, Lex mesisage de Bergson, in "Culture humaine,>,
1947, p. 491-501; H. SUNDIN, La théorie bergsonienne de Ia religion, Paris, 1948.
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IV
O IDEALISMO INGLÊS E NORTE-AMERICANO
§ 702. CARACTERISTICAS DO IDEALISMO
O termo "idealismo" é empregado ordinariamente num sentido gnoseológico e serve, portanto, para designar toda a doutrina que reduza a realidade a "ideia", isto é, a sensação, a representação, a pensamento, a dado ou a elemento de consciência. Neste sentido, o idealismo é o aspecto comum de doutrinas diversas e díspares e pode servir igualmente para caracterizar, por exemplo, a doutrina de Berkeley ou de Hume e a de Schelling ou de Hegel. Além disso, muitas correntes da filosofia contemporânea são, neste sentido, igualmente idealistas: o espiritualismo e o neocriticismo, o transcendentalismo in- ,-lês e norte-americano, o idealismo italiano, a filosofia
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da acção e grande parte da fenomenologia. Este idealismo gnoseológico é o dominador comum de todas as filosofias antipositivistas que caracterizaram os últimos decénios do século passado e os primeiros do nosso; enquanto que o seu oposto, o realismo, foi,
no mesmo período, uma excepção e só mais recentemente adquiriu uma certa importância e significação. Neste sentido, portanto, a palavra idealismo não se presta para indicar nenhuma orientação histórica determinada mas apenas uma doutrina gnoseológica que, sendo comum a orientações diversas, não caracteriza historicamente nenhuma.
Neste estudo, empregaremos o termo de idealismo no seu sentido especificamente histórico, ou seja, no sentido de uma orientação que principia com a
chamada "filosofia clássica alemã" e pretende demonstrar a unidade ou a identidade de infinito e finito, de espírito e natureza, de razão e realidade, de Deus e mundo. Neste sentido, só poderão ser compreendidos sob a rubrica "idealismo" aqueles movimentos que se vinculam estritamente às teses fundamentais do idealismo clássico alemão, isto é, o idealismo inglês e norte-americano e o italiano. A característica principal deste idealismo, tal como se verifica nas demais orientações, reside na maneira como entende e pratica a filosofia: consiste essa maneira em mostrar a unidade entre o infinito e o finito, quer partindo do infinito, quer partindo do finito, mas, de qualquer modo, mediante procedimentos puramente "especulativos" ou "dialécticos".
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§ 703. AS ORIGENS DO IDEALISMO INGLÊS E NORTE-AMERICANO
O idealismo inglês e norte-americano visa a mostrar a unidade entre o finito e o infinito partindo do primeiro; ou, como também se pode dizer, por via
negativa, isto é, mostrando que o infinito, pela sua
intrínseca irracionalidade, não é real ou é real na medida em que revela e manifesta o infinito, que é a
verdadeira realidade, e postulando portanto a resolução final do finito no infinito.
As manifestações técnicas deste último idealismo são precedidas por uma verdadeira floração romântica que se verifica na Inglaterra e na América pouco antes dos meados do século XIX. Em Inglaterra, os poetas Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) e
William Wordsworth (1770-1850) inspiraram-se, nas suas poesias (e o primeiro também em ensaios literários e filosóficos) no idealismo de Schelling. Simultaneamente, o idealismo encontrava na Inglaterra e
na América dois expositores e defensores que o revestiam de uma forma brilhante e popular, embora superficial e enfática: Carlyle e Emerson.
Tomás Carlyle (1795-1881), depois de alguns ensaios e estudos em que se preocupava em dar a conhecer ao público inglês a literatura romântica alemã, publicou o Sartor resartus, que é ao mesmo tempo uma sátira alegórica da sociedade contemporânea e a expressão dos seus princípios filosóficos. Num trabalho histórico, A revolução francesa (1837), exaltou liricamente as grandes figuras dessa revolução; e na obra Os heróis (1841) concebeu a história como
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o campo de acção das grandes personalidades e estudou diversas manifestações do heroísmo humano. Em numerosos ensaios posteriores dirigiu uma crítica mordaz à sociedade mecânica exaltando liricamente, em oposição a ela, o ideal de uma vida espiritual domina-da pela vontade e pelos valores morais. Em Sartor resartus, o universo é um vestido, isto é, um
símbolo ou uma aparição do poder divino que se
manifesta e actua em graus diversos em todas as coisas. Carlyle exalta o mistério que envolve "o mais estranho de todos os mundos possíveis". O universo não é um armazém ou um fantástico bazar, mas o místico templo do espírito. A segurança de que a
ciência tem de possuir a chave do mundo da natureza é ilusória. O milagre que viola uma suposta lei da natureza não pode ser, em compensação, a acção de uma lei mais profunda, que vise pôr a força material ao serviço da energia espiritual? Na realidade, todas as coisas visíveis são sinais ou emblemas: a matéria só existe para o espírito: não é mais do que a encarnação ou a representação exterior de uma
ideia. No mundo da história, o poder divino manifesta-se naquelas grandes personalidades a que Carlyle chama heróis. Os heróis são "os indivíduos da história universal" de que falava Hegel, ou seja, os instrumentos da providência divina que domina a história, E tudo o que na história humana encerra de grande e de duradouro é devido à sua acção.
Quase ao mesmo tempo Relph Waldo Emerson (1803-82) arvorava-se na América em defensor do "transcendentalismo", ou seja, de um idealismo panteísta de cunho hegeliano. Tal concepção surge pela
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primeira vez num escrito intitulado Natura (1836) e foi depois defendida em numerosos Ensaios. A sua obra Homens representativos (1850) reduz (como os
Heróis de Carlyle) a história à biografia dos grandes homens. A convicção fundamental de Emerson é que em toda a realidade actua uma força superior que ele denomina de Super-alma ou Deus. A única lei do homem consiste em conformar-se com esta força. O próprio mundo é um símbolo e um emblema. A natureza é uma metáfora do espírito humano e os
axiomas da física não são mais do que a tradução das leis -da ética. Mas o espírito humano é o próprio espírito de Deus. "0 inundo - diz Emerson (Nature, ed. 1883, p. 68), -procede do mesmo espírito de que procede o corpo do homem: é uma inferior e mais remota encarnação de Deus, uma projecção de Deus no inconsciente. Mas difere do corpo num aspecto importante: não está como o corpo, sujeito à vontade humana. A sua ordem serena é inviolável para nós. Ele é, portanto, para nós, o testemunho presente do Espírito divino, é um ponto fixo em
referência ao qual podemos medir os nossos erros.
Assim que degeneramos, o contraste entre nós e a
nossa casa torna-se mais evidente, e nós tornamo-nos estranhos na natureza ao afastarmo-nos de Deus". Emerson pode afirmar sobre esta base a identidade romântica entre filosofia e poesia: uma e outra descobrem no mundo a sua força oculta, a Super-alma que o domina. A Super-alma é o espírito de verdade que se revela no homem, como um olho que vê através de uma janela aberta de par em par. É o
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fundamento da comunicação entre os homens, que só é possível sobre a base de uma natureza comum e impessoal, de Deus mesmo. É, enfim, a força, que actua no génio e nos homens a quem a humanidade deve os seus maiores progressos (Essays, ed. 1893, 1, p. 270). A liberdade humana não consiste, pois, em fugir ao mundo e à necessidade que o domina, mas sim em reconhecer a racionalidade e a perfeição desta necessidade e em conformar-se a ela.
A verdadeira especulação idealista inicia-se em
Inglaterra com a obra de Jacob Hutchinson Stirling (1820-1909), O segredo de Hegel (1865), obra muito pouco original, dedicada à exposição e à defesa do sistema hegeliano. O segredo de Hegel é, segundo Stirling, a estreita relação de Hegel com a de Kant, de que a primeira é a legítima e necessária consequência. Stirling via o ponto basilar do hegelianismo na redução de toda a realidade ao pensamento infinito de Deus, de que o próprio homem é um aspecto ou um elemento.
A primeira manifestação original do idealismo inglês deve-se ao filósofo Tomás Hill Green (1836-82). Green é autor de duas longas Introduções às duas partes do Tratado da natureza humana de Hume (ed. 1874-1875) e dos Prolegómenos à ética (1883), que é a sua obra principal, e de outros ensaios menores. A Hume e, em geral, ao empirismo, Green objecta que é impossível reduzir a natureza
a um conjunto de percepções ou ideias e que é impossível entender a conexão que tais percepções ou
ideias apresentam entre si. Toda a percepção ou ideia só pode ser reconhecida na sua singularidade
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por uma consciência que não é idêntica a elas, porque delas se distingue no próprio acto do reconhecimento; e toda a conexão ou sucessão de ideias só o é para uma consciência, que não é em si mesma conexão ou
sucessão, mas compreende em si tais coisas. De facto, o sujeito que reconhece uma ideia ou a relação entre várias ideias, não pode ser, por sua vez, uma ideia, porque isto implicaria que uma ideia fosse, ao mesmo tempo, todas as outras. E não pode ser um composto de sensações ou de ideias porque as ideias na consciência se sucedem umas às outras, e a sucessão não pode constituir um composto. É necessário, portanto, que o sujeito esteja fora das ideias para que perceba as ideias, e fora da sucessão para que perceba a
sucessão. Por outros termos, deve ser um Sujeito único, universal e eterno. Um sujeito desta espécie é também o pressuposto tácito de todo o naturalismo mas torna impossível o próprio naturalismo. Se o
mundo é uma série de factos, a consciência não pode ser um destes factos, porque um facto não pode compreender em si todos os outros. A natureza é uma contínua mudança; mas uma mudança não pode produzir a consciência de si mesma, porque esta deve estar igualmente presente em todos os estádios da mudança. As relações entre os factos surgem mediante a acção de uma Consciência unificante que não se reduz a um dos factos relativos. Assim, as relações temporais só o são para uma consciência eterna. Deste modo, Green deduz a necessidade de uma Consciência absoluta (isto é, infinita e eterna) da própria consideração da realidade natural a que
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o empirismo e o positivismo pretendiam reduzir a consciência.
Todavia, a consciência humana tem uma história no tempo, e Green não nos esconde a dificuldade que este facto fundamental e inigualável apresenta para a sua teoria da consciência absoluta. A sua solução é que a história não pertence verdadeiramente à consciência, mas apenas ao processo através do qual o organismo animal se toma
o veículo da consciência mesma. A nossa consciência, segundo afirma, pode significar duas coisas: ou a função de um organismo animal, que se tornou, gradualmente
e com interrupções, um veículo da eterna consciência; ou esta mesma eterna consciência, que faz do organismo animal o seu veículo e está por isso sujeita a certas limitações, mas conserva as suas características essenciais de independência em relação ao
tempo e de determinante do devir. A consciência, que varia a cada momento, que está em sucessão, e em cada um de cujo§ estados sucessivos depende de uma série de eventos interiores e externos, é consciência no primeiro sentido. A nossa consciência, com as suas relações características em que o tempo não entra, que não devêm mas são de uma vez por todas o que são, é a consciência no outro sentido (Prol. to Ethios, p. 73). Esta distinção elimina toda a incompatibilidade entre a afirmação da consciência absoluta e a admissão de que todos os processos do cérebro, dos nervos e dos tecidos, todas as funções da vida e do sentido, têm uma história estritamente natural. Tal incompatibilidade só existiria se estes processos e funções constituíssem realmente o homem
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capaz de conhecimento; a actividade humana, ao invés, só se pode explicar mediante a acção de uma consciência eterna, que se serve dela como de um órgão próprio e se reproduz a si mesma através dela. Porque é que esta repetição deve existir, porque é que a eterna consciência deve procurar e promover
a sua repetição imperfeita através dos órgãos e das funções do organismo humano, é um enigma que Green considera insolúvel. "Devemos contentar-nos em dizer que, por muito estranho que possa parecer, a coisa é assim" (Ib., p. 86). Como quer que seja, Green considera que só o conceito de uma consciência absoluta pode justificar a ideia de progresso, uma vez que os conhecimentos novos que o homem adquire não podem vir ao ser no momento em que são descobertos; são já reais na consciência absoluta e o progresso não é mais do que a adequação crescente da história animal da consciência à consciência absoluta (1b., p. 75). Estas considerações estendem-se também à vida moral do homem. O aperfeiçoamento do homem tende a um termo que é já plenamente real e completo na consciência absoluta. Quando se diz que o espírito humano tem a possibilidade de realizar alguma coisa que não se realizou ainda na
experiência humana, pretende dizer-se que há uma
consciência na qual este algo já existe. A consciência eterna, Deus, é, pois, ab aeterno tudo o que o homem tem a possibilidade de chegar a ser. Não só é o Ser que nos fez, no sentido de que existimos como um
objecto da sua consciência, como a natureza, mas é também o Ser em que existimos e ao qual somos idênticos na medida em que é tudo o que o espírito humano é capaz de chegar a ser (1b., p. 198). A vida moral impele o homem para o aperfeiçoamento individual e a satisfação das suas próprias exigências; mas esta tendência universaliza-se e racionaliza-se imediatamente porque o seu termo é a
consciência absoluta em que todos os homens estão igualmente presentes. Devido a isto o bem foi concebido como uma actividade espiritual de que todos podem e devem participar e, portanto, como uma
vida social em que todos os homens devem cooperar livre e conscientemente e em que deve dominar a
harmoniosa vontade de todos (Ib., p. 311.).
Esta concepção de Green foi a base constante do idealismo inglês posterior. John Caird (1820-98) fez dele a base de uma filosofia da religião (Introdução à filosofia da religião, 1880). O fundamento da religião é, segundo Caird, a unidade do finito e do infinito: unidade que é plenamente realizada e
actual na vida divina, mas que o homem só pode alcançar através de um infinito progresso, que é exactamente a sua vida religiosa. "A religião é a elevação do finito para o infinito, o sacrifício de todo o desejo, inclinação ou volição que me pertence como indivíduo privado, a absoluta identificação do meu querer com o querer de Deus" (Intr., ed. 1889, p, 283). Eduard Caird (1835-1908) fazia de uma concepção análoga o critério de uma crítica miinuciosa e pedante da doutrina kantiana (A filosofia crítica de Kant, 2 vol., 1889) e a base para entender A evolução da religião (1893). Com efeito, delineia três formas "teoricamente progressivas da consciência religiosa. A Primeira é a objectiva, segundo a qual Deus é
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concebido como um objecto entre os objectos (politeígnio, enoteísmo). A segunda é a subjectiva, segundo a qual Deus é concebido como uma vontade espiritual que se revela na autoconsciência dos homens (estoicismo, profetismo, puritanismo, Kant). A terceira é a final e perfeita, em que Deus é reconhecido na verdadeira forma da sua ideia, isto é, como a unidade do sujeito e do objecto e, portanto, como principio comum da exterioridade cósmica e da interioridade espiritual.
§ 704. BRADLEY
A maior figura do idealismo inglês é Francisco Herberto Bradley (1846-1924) que elegeu para tema fundamental da sua especulação o antigo e sempre novo contraste entre aparência e realidade, que dá o título à sua obra principal (Aparência e realidade,
1893). Bradley é também autor de Estudos éticos, (1876), Princípios de lógica (1893), Ensaios sobre a
verdade e a realidade (1914) e de muitos outros estudos de filosofia e psicologia.
Segundo Bradley, todo o mundo da experiência humana é aparência, e só é real a consciência absoluta. O mundo da experiência é, com efeito, inteiramente irracional, contraditório e incompreensível; e é assim porque todos os aspectos dele se baseiam em relações e as relações são inconcebíveis. Bradley examina a relação entre qualidades primárias e secundárias, entre a coisa e as suas qualidades, a relação espacial e temporal, a zausal, a que constitui o
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sujeito ou eu. Bradley encontra em todas elas a mesma dificuldade fundamental: toda a relação tende a identificar o que é diverso, e nisso é contraditória. Toda a relação modifica os termos relativos, mas cada um destes termos cinde-se em duas partes: uma, modificada, e outra, que permanece inalterada: e
estas duas partes não podem unir-se senão por uma
nova relação, o que implica uma nova modificação e uma nova cisão; e assim até ao infinito. Deste modo, a relação que deveria tornar inteligível a unidade dos termos relativos, não faz mais do que dividi-los e
multiplicá-los internamente até ao infinito: por isso é contraditória. Todo o sistema da experiência humana, assente nas relações, se pulveriza, mediante a
reflexão filosófica, numa miríade de termos no interior de outros termos que não estão juntos de nenhuma maneira inteligível. Nem mesmo o eu, segundo Bradley, escapa a esta dificuldade. É, no entanto, verdade que a existência do eu está de algum modo fora de qualquer dúvida, mas só como unidade da experiência imediata, anterior à reflexão racional. Esta unidade deveria ser entendida e justificada racionalmente; mas logo que se inicia esta tentativa introduzindo a distinção entre eu e não eu, as dificuldades inerentes a toda a relação deparam-se-nos imediatamente e o eu torna-se inconcebível.
Nenhum aspecto do inundo finito se salva da contradição, e nenhum deles pode ser considerado real. Nem sequer o mundo da pura lógica se salva da contradição. Os Princípios de lógica de Bradley e os numerosos ensaios que dedicou a problemas de lógica põem em relevo as contradições que se ani-
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nham no acto lógico fundamental. O juízo é, segundo Bradley, a referência de uma ideia à realidade, a qualificação da realidade mediante um conceito que é tomado como símbolo e significado dela. Por outros termos, todo o juízo implica uma ideia que não é uma simples ideia, mas uma qualidade do real. Mas se é assim, a multiplicidade e a variedade dos juízos implica que estes sejam incompatíveis e contraditórios. É bem certo que todo o juízo qualifica a realidade sob certas limitações ou condições; mas, dado que estas limitações ou condições qualificaria, por
seu
turno, a própria realidade, a contradição não é eliminada mas apenas multiplicada (Essays, p, 229).
O facto de todo o mundo da experiência e do pensamento ser aparência não significa que se possa admitir uma realidade em si para além dele mesmo.
Toda a realidade era si não poderia ser senão o termo de uma experiência ou de um acto lógico e
cairia por isso nas mesmas dificuldades fundamentais.
Todavia, esta mesma condenação radical implica, segundo Bradley, a posse de um critério absoluto de verdade. Se rejeitarmos como aparente o que é contraditório, consideramos implicitamente como real o que é isento de contradições e, portanto, absolutamente consistente e válido. A ausência de contradição implica um carácter positivo e não deve ser uma pura abstracção. As aparências devem pertencer à realidade porque o que parece de algum modo existe, quanto mais não seja como aparência. A realidade que o critério da não contradição nos faz entrever deve portanto conter em si todo o mundo fenoménico de forma coerente e harmoniosa. Além
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disso, não pode ser outra coisa senão consciência porque só a consciência é real. Ao mesmo tempo, esta consciência universal, absoluta e perfeitamente coerente, não pode ser determinada mediante nenhum dos aspectos da consciência finita (sensação, pensamento, vontade, etc.), porque tais aspectos são contraditórios. Por outro lado, não deve conter a divisão entre objecto e sujeito que é própria da consciência finita. Todas estas determinações negativas implicam a impossibilidade de um conhecimento pormenorizado da consciência absoluta. Pode-se ter dela uma ideia abstracta e incompleta, embora verdadeira: mas não se pode reconstruir a
experiência especifica em que ela realiza a sua perfeita harmonia. Tão-pouco a moralidade pode ser
atribuída ao absoluto. Pode-se supor que neste cada coisa finita atinja a perfeição que busca; mas não que obtenha a perfeição que busca. No absoluto, o
finito deve ser mais ou menos transmudado e, portanto, desaparecer como finito; e tal é também o destino do bem. Os fins que a afirmação e o sacrifício do eu podem atingir estão para lá do eu e do significado dos actos morais. No absoluto, onde nada se pode perder, todas as coisas perdem o seu carácter mediante uma nova acomodação ou um complemento mais ou menos radical. Nem o bem nem o mal se subtraem a este destino (Appearance, p. 420). Assim entram, certamente, no absoluto o espaço, o tempo, a individualidade, a natureza, o corpo, a alma; mas tudo entra nele, não com a sua constituição finita, mas com uma reconstituição radical, cujas características é- impossível determinar com precisão. No abso-
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luto tão-pouco pode subsistir a diversidade entre o sujeito e o objecto, que é inerente a todo o pensamento finito, o qual é sempre pensamento de algo ou acerca de algo, e implica portanto uma relação interna que o tome contraditório. O absoluto não pode ser concebido como alma ou como complexo de almas, porque isto implicaria que os centros finitos de experiência se mantivessem e fossem respeitados dentro do absoluto: e esse não é o destino final e último das coisas. Não conhece progressos nem retrocessos. Estes são aspectos parciais, próprios da aparência temporal e têm apenas uma verdade relativa. "0 absoluto não tem história, embora contenha inúmeras histórias" (Ib., p. 500). Nem é pessoa, uma vez que uma pessoa que não seja finita é algo sem sentido (Ib., p. 532).
Desta doutrina substancialmente negativa do absoluto não deduz Bradley que o conhecimento humano seja totalmente erróneo. Se este conhecimento não alcança nunca a verdade, que seria a sua perfeita conversão e total conformidade com o absoluto, pode no entanto atingir diversos graus de verdade. De duas aparências, a mais vasta e mais harmoniosa é a mais real, porque se aproxima mais da verdade omnicompreensiva e total. A verdade e o facto de requererem, para se converterem no absoluto, uma acomodação e uma adição menor, são mais verdadeiros e
reais. O argumento ontológico pode ser interpretado como uma ilustração desta doutrina dos graus de verdade. Decerto que se deve reconhecer que desde o momento em que a realidade é qualificada como pensamento, deve possuir todas as características im-
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plícitas na essência do pensamento. No entanto, a
prova ontológica vai além deste princípio genérico quando afirma não só que a ideia deve ser real mas também que deve ser real como ideia. isto é falso, segundo Bradley, dado que um predicado como tal nunca é realmente verdadeiro: deve estar sujeito, para o ser, a adições e a acomodações. Assim, toda a ideia existente na minha mente pode qualificar verdadeiramente a realidade absoluta; mas quando a
falsa abstracção do meu particular ponto de vista for corrigida e ampliada, essa ideia pode ter desaparecido completamente. Por isso, nem toda a ideia será verdadeiramente real; contudo, quanto maior é a perfeição de um pensamento, a sua possibilidade e a sua interna necessidade, tanto maior será a realidade que ele possui. A esta exigência nem mesmo
a ideia do absoluto se subtrai, já que toda a ideia, por muito verdadeira que seja, nunca inclui a totalidade das condições requeridas e é por isso sempre abstracta, enquanto que a realidade é concreta.
Bradley renovou assim a tese hegeliana da identidade entre o finito e o infinito, mas renovou-a com o espírito de um cepticismo radical que se recusa
a determinar, seja de que maneira for, as vias e as formas de uma tal identidade. O processo do pensamento que para Hegel é uma dialéctica que demonstra efectivamente tal identidade, é, para Bradley ao invés, a confirmação da natureza contraditória do finito e, portanto, da exigência da sua transmutação total no infinito. Bradley admite, na verdade, diversos graus de verdade e de realidade; mas, ao mesmo tempo entre os graus mais altos e o absoluto
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abre um fosso intransponível, uma vez que tudo no absoluto deve ser transformado e reajustado até nos seus mais íntimos elementos (Appearance, p. 529). A identidade do finito e do infinito, que levara Hegel a demonstrar a intrínseca racionalidade do finito e a aceitá-la como infinito, levou Bradley a
negar a realidade finita como tal e a exigir a sua transmutação no infinito.
§ 705. DESENVOLVIMENTO DO IDEALISMO INGLÊS
Creen e Bradley inspiraram numerosos pensadores ingleses que apresentam de maneira diversa a doutrina de uma consciência infinita na qual encontra a sua última realidade o mundo finito.
Alfredo Eduardo Taylor (1869-1945), tão conhecido pelos seus estudos sobre Platão (1926) e sobre a filosofia grega, numa obra que obteve muito êxito na Inglaterra, Elementos de metafísica (1903), tenta preencher com algum conteúdo concreto a ideia do absoluto que na doutrina de Bradley era uma pura forma vazia, indeterminável. Entende o absoluto como uma sociedade de indivíduos que estivessem teleologicamente ordenados à unidade do conjunto. Uma sociedade humana, em sentido próprio, é de facto uma unidade de estrutura finalista, que não o é apenas para o observador sociólogo, mas também para os seus membros, a cada um dos quais activamente atribui um lugar em relação a todos os outros. Embora o eu e a sociedade não sejam
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n**xak'@b que aparências finitais, Taylor crê que o predomínio da categoria da cooperação na vida humana tornará ~Ivel considerar o absoluto como uma sociedade espiritual. Frente a estas determinações mais positivas da natureza está o ponto de vista negativo de H. H. Joachim, que se atém às teses de Bradley (A natureza da verdade, 1906; Estudos lógicos, 1948) e as utiliza como critério para uma crítica da unida-de da substância ---spinosiana (Estudo sobre a ética de Espinosa, 1911).
Mais próximo do hegelianismo original encontra-se Bernardo Bosanquet (1848-1923), o qual, no entanto, renovou por sua conta os princípios da lógica de Bradley (Lógica ou morfologia do conhecimento, 2 vol., 1888) e é autor de uma História da estética (1892). No Princípio da individualidade

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