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História da filosofia XIV - Nicola Abbagnano

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hist�ria da filosofia 14.rtf
HistÓria da Filosofia
Volume catorze
Nicola A bbagnano
obra digitalizada por ângelo Miguel Abrantes.
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA
VOLUME XIV
TRADUÇÃO DE: CONCEiÇÃO JARDIM EDUARDO LOCIO NOGUEIRA NUNO VALA.DAS
CAPA DE: J.
COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO
TIPOGRAFIA NUNES
R. D. João I V, 590 - Porto
EDITORIAL PRESENÇA . Lishoa 1970
TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA
Copyright by NICOLA ABBAGNANO
Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA, LDA. - R. Augusto Gil, 2 e/v.-E. ~ Lisboa
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O NEO-EMPIRISMO
§ 805. CARACTERISTICAS DO NEO-EMPIRISMO
Sob o nome de "neo-empirismo" ou de "empirismo lógico" podem ser reagrupadas todas aquelas filosofias que entendem e praticam a filosofia como análise da linguagem. Mas por análise da linguagem podem compreender-se duas coisas diferentes:
1.o A análise da linguagem científica, isto é, da linguagem própria das ciências parcelares; e neste caso a filosofia é reduzida à lógica, à qual é ainda atribuída a tarefa de determinar as condições gerais e formais que tornam possível uma qualquer linguagem.
2.o A análise da linguagem comum, isto é, das formas de expressão próprias do senso comum e usadas na vida quotidiana; e neste caso a tarefa da
filosofia será a de interpretar estas formas e de
investigar o seu significado ou os seus significados autênticos, eliminando os equívocos a que conduz o uso impróprio de tais significados.
À primeira posição pode dar-se o nome de "positivismo lógico" porque, tal como o positivismo clássico, privilegia a ciência e considera-a como única forma válida de conhecimento. À segunda pode chamar-se "filosofia analítica", nome que é usado pelos seus próprios defensores.
Ambas as formas do neo-empirismo consideram que a simplificação da linguagem conduz à eliminação dos problemas tradicionais da filosofia e, sobretudo, dos da metafísica que façam uso do vocabulário e da sintaxe da linguagem científica ou comum que é estranho a esse vocabulário e a essa sintaxe. Esses problemas tornam-se assim "privados de sentido" se a linguagem em que vêm expressos for reconduzida às suas regras. Reconhecê-los como privados de sentido é o papel curativo ou terapêutico da filosofia, da qual portanto se pode dizer que tem por tarefa a libertação da própria filosofia.
A esfera da linguagem, isto é, dos significados ou dos usos linguísticos, tem no neo-empirismo, e em certa medida, a função que a "experiência" tinha no velho empirismo; ou seja, a de constituir o critério ou norma da investigação filosófica. Mas o mais importante precedente histórico do neo-empirismo é a dicotomia instaurada por Hume entre as proposições que se referem às relações entre as ideias (tais como as proposições matemáticas) e as
proposições que se referem a factos: as primeiras
têm em si mesmas a sua verdade, as segundas só são verdadeiras se estiverem de acordo com a experiência (§ 468). Esta dicotomia é geralmente admitida pelas correntes neo-empiristas, e é para elas, tal como para Hume, a base para a eliminação da metafísica, cujas proposições não entram nem numa
nem noutra categoria. Mas a verificação empírica supõe o recurso a dados imediatos e, portanto, uma teoria da experiência, do mesmo modo que a análise das proposições matemáticas supõe a lógica. O neo-empirismo aproveita de Mach a teoria da experiencia, e de Russell os princípios fundamentais da sua
indagação lógica. Simultâneamente, utiliza todo o rico património de investigações metodológicas provocadas pela tendência crítica prevalecente nas matemáticas, na física e nas outras ciências nos últimos decénios; e participa no enriquecimento dessa tendência com contributos de importância fundamental.
§ 806. ESCOLAS NEO-EMPIRISTAS
O neo-empirismo foi primeiro uma tendência seguida pelo chamado "Círculo de Viena", isto é, por aquele conjunto de estudiosos de várias proveniências que se juntou, a partir de 1923, à volta de Moritz Schlick. O Tractatus, de Wittgenstein. (o qual, no entanto, só ocasionalmente se encontrava com alguns membros do Círculo), publicado pela primeira vez nos "Annalen der Naturphilosophie" de
1921, e a obra de Carnap, que fora chamado para
a Universidade de Viena em 1926, forneceram as principais bases das discussões do Círculo, nas quais tomaram parte, entre outros, H. Haim, F. Waisman, H. FeigI, Otto Neurath, Philip Frank, K. Gõdel, G. Bergmann, K. Popper e H. Kelsen.
Ao Círculo de Viena ligou-se o grupo de Berlim, que se constituiu em 1928 com o nome de "Gesellschaft fü r empírische Philosophie" à volta de Hans Reichenbach, e que inclui entre outros K. Lewin, W. KõhIer e C. G. Hempel. A colaboração entre os dois grupos estabeleceu-se sobretudo na revista "Erkenntnis" que se publicou de 1930 a 1938 e que foi dirigida por Carnap e Reichenbach,
Na Polónia, surgiu um movimento análogo por influência de Casimir Twardowsky, que fora aluno de Bolzano na Universidade de Viena e que renovou na Polónia a tradição dos estudos lógicos, mais tarde retomada por T. Kotarbinski, Jan. Lukasiewiez, Alfred Tarsky e muitos outros.
Depois da vitória do nazismo na Alemanha e na Áustria, muitos representantes do neo-empirismo retiraram-se para os Estados Unidos da América, tendo aí encontrado um ambiente receptivo sobretudo entre os pensadores da corrente pragmatista que se inspiravam em Peirce e Dewey. Foi assim possível retomar a ideia, expressa em 1929 numa espécie de manifesto, do Círculo, de uma "ciência unificada" que tivesse por objecto toda a realidade acessível ao homem e que se servisse de um único método de análise lógica. Nascia assim a Enciclopédia Internacional da Ciência Unificada, que se começou a publicar em Chicago em 1938 sob a direcção
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de Neurath, Carnap e Morris e que publicou monografias assinadas por cientistas e filósofos de muitos países (Bohr, Dewey, Rougier, Reichenbach, Russell, Tarski, etc.). Apesar do valor de muitos dos contributos publicados na Enciclopédia, não nos devemos esquecer de que ela mostra uma substancial diferença de opiniões sobre o próprio modo de entender a unidade da ciência. Com efeito, esta unidade é ainda compreendida por Neurath no sentido clássico, como combinação dos resultados das várias ciências e tentativa de os reunir num sistema axiomático, único (Internat. Enc. of Un. Sc., 1, 1, 1938, p. 20). É entendida por Dewey como uma exigência de estender o papel e a função da ciência a todo o palco da vida (Ib., p. 33); para Russell, apresenta-se como "unidade de método"; para Carnap, como
unidade formal que respeita às "relações, lógicas entre os termos e as leis dos vários ramos da ciência" (Ib., p. 49); para Morris, como "uma ciência da ciência", isto é, implicando que tal unidade se verificasse no âmbito da semiótica, de que ele é defensor (Ib., p. 70). Por outros termos, o próprio conceito da ciência unificada não se apresenta suficientemente unificado nos seus diversos defensores, que atribuem a essa expressão significados diversos e demonstram assim, de facto, o seu carácter utópico. Na realidade, o conceito de unidade da ciência não é um conceito científico mas sim filosófico que, portanto, acolhe e respeita a diversidade das filosofias.
Mais do que unidade, pode-se falar legitimamente de "conexões" ou relações recíprocas entre as ciências; e tais conexões ou relações constituem
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problemas filosóficos importantes aos quais se dedicam útilmente os neo-empiristas (e não apenas eles).
Em 1939 Wittgenstein foi chamado a Cambridge, na Inglaterra, para suceder na cátedra a G. E. Moore. Nessa época, começava a elaborar a segunda forma da sua filosofia, que se inspira no
clima filosófico característico da Inglaterra nestes últimos decénios: o da chamada "filosofia analítica", que assume como tarefa fundamental a análise da linguagem comum.
Hoje, no entanto, o neo-empirismo já não é apanágio de uma escola localizada. Muitas das suas exigências foram largamente aceites, e os resultados a que se chegou, sobretudo no campo da metodologia das ciências e da crítica da lógica, podem ser examinados e discutidos independentemente das posições polémicas em que se inspiravam os seus primeiros defensores.
§ 807. NEO-EMPIRISMO: SCHliCK
O homem em torno do qual se concentra o Círculo de Viena, Moritz Selilick (1882-1936), foi assassinado na escadaria da Universidade de Viena e
o seu assassino foi exaltado pelo nazismo como sendo
o homem que impedira o desenvolvimento de uma filosofia "viciosa". Os fragmentos publicados postumamente com o título Natureza e cultura (1952) dão-nos a conhecer a oposição de Sclilick à estrutura moral da sociedade e do estado nazis. A vida moral era considerada por Sclilick como a continuação da vida natural e, logo, como directamente
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dirigida ao prazer e consistindo essencialmente na escolha do prazer. A antítese polémica desta posição era constituída, segundo Schlick, pela filosofia dos valores e pela sua tentativa de tornar absolutos os próprios valores.
Schlick começava por realizar uma interpretação crítico-realista da ciência (Teoria geral do conhecimento, 1918); mas aceitou imediatamente o ponto de vista de Wittgenstein e Carnap, reproduzindo-o e desenvolvendo-o em numerosos artigos publicados no "Erkenritnis" e noutras revistas, artigos que depois da sua morte foram recolhidos em livro. O seu ponto de partida é o de Wittgenstein: a filosofia não é uma ciência mas sim uma actividade; e é uma actividade intrínseca ao próprio exercício da investigação científica. Esta, com efeito, é condicionada pela rigorosa comprovação dos termos que emprega; e esta comprovação é precisamente o objectivo da filosofia. Mas a filosofia não pode ser definida como "ciência do significado" dado que na comprovação dos significados não chega a proposições mas sim a actividades ou a experiências imediatas. "A descoberta do significado de uma proposição deve, em
última análise, terminar num acto, num procedimento imediato, como por exemplo na indicação de uma cor; não pode ser dada numa proposição. A filosofia como procura do significado, não pode consistir em proposições, não pode ser um ciência. Essa procura não é mais do que uma espécie de actividade mental" (Gesammelte Aufsãtze, 1938, p.
130). A filosofia conserva assim, aos olhos de Schlick, a sua dignidade -de "rainha das ciências"-,
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mas a rainha das ciências não pode ser uma ciência, mesmo atendendo à sua inclusão no campo especulativo de todas as actividades científicas. Deste ponto de vista, não existem outros problemas cognitivos além dos científicos. Quanto aos chamados problemas filosóficos, ou são resolúveis pelos métodos das ciências parcelares ou são problemas fictícios que devem ser considerados carentes de sentido. Por exemplo, o problema de o mundo ser finito ou
infinito, que Katit julgara impossível de resolver, foi resolvido, no sentido da finitude do mundo, pela física moderna, mais precisamente pela teoria da relatividade generalizada e por observações astronómicas. Por outro lado, existem problemas que não são susceptíveis de uma solução que possa ser verificada empIricamente: tal é, por exemplo, o problema do "mundo externo", entendido como uma realidade transcendente que se encontra para além da natureza dada empiricamente. A existência ou não existência deste inundo externo nada altera em relação à experiência efectiva: não pode assim ser comprovada experimentalmente e, como tal, carece de sentido. Aqui deparamos, segundo Sclilick, com o critério que permite distinguir os problemas verdadeiros dos falsos. "Uma questão é em princípio resolúvel se
pudermos imaginar as experiências que deveríamos fazer para dar-lhe uma resposta. A resposta a uma
pergunta é sempre uma proposição. Mas para entender uma proposição devemos poder indicar exactamente quais as circunstâncias particulares que a
tornariam verdadeira ou falsa. 'Circunstâncias' significa factos de experiência; sendo assim, a experiên-
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cia decide sobre a verdade ou falsidade das proposições, isto é, verifica as proposições; será resolúvel todo o problema que puder ser reduzido à experiência possível" (Ib., págs. 141-142). A diferença entre o velho e o novo empirismo consiste no facto de o primeiro ser uma análise das faculdades humanas e o segundo uma análise das expressões em geral. Todas as proposições, linguagens, sistemas de símbolos, e mesmo filosofias, devem exprimir qualquer coisa. Mas para que assim seja é necessário que exista alguma coisa que possa ser expressa: esse é o material do conhecimento, e afirmar que deve ser dado pela experiência é uma forma de dizer que as coisas devem existir antes de as conhecermos. Schlick mostra-nos o pressuposto fundamental da sua concepção, pressuposto que é também o de toda a moderna metodologia da ciência: conhecer não significa identificar-se com o objecto conhecido. "A** ffituição, a identificação do espírito com um
objecto, não é o conhecimento do objecto e não ajuda a alcançá-lo, pois não realiza a tarefa que define o conhecimento. Esta tarefa consiste em encontrar o nosso caminho por entre os objectos, em
prever o seu comportamento, e isto faz-se descobrindo a sua ordem, assinalando a cada objecto o seu lugar na estrutura do mundo. A identificação com uma coisa não nos ajuda a encontrar esta ordem, antes nos impede de o fazer. A intuição é desfrute, e este é vida, não conhecimento. E se disserem que isto é mais importante do que o conhecimento, eu não os contradirei; mas esta é mais uma razão para não o confundir com o conheci-
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mento (que tem uma importância própria)" (Ib., p. 196). Schlick vê em Sócrates o pai da filosofia assim entendida. "Foi um investigador do significado das proposições, particularmente daquelas que servem aos homens para avaliar mutuamente o seu
comportamento moral. Reconheceu que estas proposições, as mais importantes para dirigir a nossa
conduta, são também as mais incertas e difíceis dado que não se atribui às proposições morais nenhum significado claro e unívoco. E o mesmo sucede ainda nos nossos dias, salvo no que se refere ao significado das proposições que são continuamente confirmadas ou refutadas pelas nossas experiências quotidianas, tais como as que tratam dos utensílios, da nutrição, das necessidades e das comodidades da existência humana. Pelo contrário, reina hoje nas coisas de ordem moral a mesma confusão que nos tempos de Sócrates" (Ib., p. 396).
§ 808. NEO-EMPIRISMO: NEURATH
A ala extrema das primeiras posições empiristas é representada pelo sociólogo e economista vienense Otto Neurath (1882-1945), que foi um dos filósofos mais importantes do Círculo de Viena e o mais resoluto defensor da unidade de todas as ciências na linguagem (Sociologia empírica, 1931; Unidade da ciência e da psicologia, 1933; Fundamentos das ciências sociais, 1944, na EncicUintern. da ciência unificada). O ponto de vista de Neurath é o de um nominalismo radical que reduz a ciência à linguagem,
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sem referência a nada externo. "A linguagem, afirma (in "Scientia", 1931, p. 299), é essencial para a
ciência: é apenas no seio da linguagem que ocorrem todas as transformações da ciência, e não num confronto da linguagem com um 'mundo', com um conjunto de 'coisas', cuja diversidade seria reproduzida pela linguagem. Fazer uma tal tentativa seria entrar no campo da metafísica. Apenas a linguagem científica pode falar da própria linguagem, isto é, uma
parte dela pode falar da outra parte; mas não se
pode passar para além da linguagem". Esta intranscendibilidade da linguagem, é a tese fundamental de Neurath, que se encontra neste ponto em polémica com os outros representantes do
Círculo de Viena, especialmente com Carnap e Sclilick ("Erkenntnis",
111, 1932, págs. 204 e segs.; IV, 1933, págs. 346 e
segs.). O critério de verdade das proposições linguísticas não consiste no seu confronto com dados ou experiências imediatas mas sim no seu confronto com outras proposições linguísticas, dentro do sistema universal da linguagem científica. As expressões só podem ser confrontadas com outras expressões; são consideradas verdadeiras quando cabem no sistema linguístico geral e falsas quando não encontram lugar nele, mas não é possível falar de "linguagem" e emitir juízos sobre ela colocando-nos fora da própria linguagem, no ponto de vista da "realidade". Esta é, para Neurath, "a totalidade das proposições", isto é, a linguagem, já que não existe isomorfismo, ou seja, correspondência entre linguagem e realidade, mas sim uma identidade; e como a realidade é a linguagem, também a linguagem é a realidade, isto
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é, um facto físico ao mesmo título de qualquer outro. É esta a tese do fisicalismo, na sua forma extrema.
Deste ponto de vista, Neurath rejeita a existência de "protocolos originários" relativamente a um sujeito singular, rejeitando deste modo o solipsismo de Carnap. Uma proposição protocolar, enquanto proposição linguística, é em si mesma universal e inter-subjectiva mesmo que inclua nomes próprios e
circunstâncias bem determinadas. É evidente que este ponto de vista deve excluir, como privado de sentido ou como puro lirismo", qualquer problema filosófico que não possa ser formulado na linguagem física, e tende mesmo a reduzir a própria linguagem ao facto físico do som. Neurath formulou nestes termos as premissas de uma sociologia fisicalista, uma parte da ciência unificada que estudaria o comportamento social. Esta sociologia devia limitar-se à observação das correlações de factos existentes entre os fenómenos sociais, tentando prever o
futuro. A sua última formulação deste conceito (na Enciclopédia da ciência unificada), no entanto, refere-se largamente ao carácter incerto e problemático de toda a previsão sociológica.
§ 809. WITTGENSTEIN: LINGUAGEM E FACTOS
A figura dominante do neo-empirismo é a de Ludwig Wittgenstein, nascido em Viena em 26 de Abril de 1889 e falecido em Cambridge a 29 de Abril de 1951. Antes da primeira guerra mundial
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foi para Cambridge estudar com Russell durante alguns anos. Depois da guerra foi professor em escolas elementares austríacas e esteve em contacto com alguns membros do Círculo de Viena. Em 1929 voltou a Cambridge onde, em 1939, sucedeu na cátedra a Moore. Durante a segunda guerra mundial foi por algum tempo empregado num hospital de Londres. Demitiu-se da cátedra em 1947.
Em 1921 publicava nos "Annalen der Naturphilosophie" o Tratado lógico-filosófico, que no ano
seguinte (1922) foi publicado em Londres, traduzido e prefaciado por Russell. Durante todo o resto da sua vida só publicou um artigo (Observações sobre a forma lógica, nos Actos da "Aristotelian Society",
1929). Mas deixou inéditos numerosos manuscritos, alguns dos quais correram privadamente a Inglaterra com o nome de Cadernos azuis (Blue Book, 1933-34) e de Cadernos castanhos (Brown Book, 1934-35). Foi deste material inédito que se extraíram mais tarde as Investigações filosóficas., publicadas em 1953, as Notas sobre os fundamentos da matemática, em
1956, e os Cadernos azuis e castanhos, em 1958.
O Tratado e os outros escritos, especialmente os publicados nas Investigações filosóficas, constituem as principais fontes de inspiração das duas correntes fundamentais do neo-empirismo: o Tratado foi a base do neo-positivismo, e os outros escritos da filosofia analítica. A principal fonte de inspiração da primeira fase do pensamento de, Wittgenstein foi a
obra de Russell.
A filosofia de Wittgenstein é substancialmente, nas suas duas faces, uma teoria da linguagem. Com
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efeito, os termos de que se serve são dois: o mundo, como totalidade de factos, e a linguagem como totalidade de proposições que significam tais factos. As proposições, por sua vez, enquanto palavras, signos, sons, etc., são factos; mas, diferentemente dos outros factos, que ocorrem mas que são mudos, eles têm um significado que consiste precisamente em factos. Estes pressupostos constituem os limites genéricos de todas as investigações de Wittgenstein. No Tratado lógico-filosófico, a relação entre os factos do mundo e os da linguagem é expressa pela tese segundo a qual a linguagem é a refiguração lógica do mundo. Não existe, de acordo com este autor, uma esfera do "pensamento" ou do "conhecimento" que seja mediadora entre o mundo e a linguagem. Afirmações como as seguintes: "A refiguração lógica dos factos é o pensamento" (Tract., 3); "A totalidade dos pensamentos verdadeiros é uma refiguração do mundo" (3.01); "0 pensamento é a proposição significante" (4), equivalem à identificação do pensamento com a linguagem e à extensão ao pensamento da mesma limitação que vale para a linguagem: não é pensável nem exprimível aquilo que não for um
facto do mundo. É este o pressuposto empirista fundamental da filosofia de Wittgenstein.
Como se disse, e na opinião de Wittgenstein, o mundo é "a totalidade dos factos"; mais precisa' mente, a totalidade dos factos atómicos (Sachverhalte = estados das coisas), isto é, dos factos que ocorrem independentemente uns dos outros (2.04-2.062). Todo o facto complexo é composto por factos atómicos. Por sua vez, um facto atómico é
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composto por objectos simples, isto é, indecomponíveis, que constituem "a substância do mundo" (2.021). Chama-se forma dos objectos ao conjunto dos modos determinados em que eles se podem combinar nos factos atómicos. É por isso que a forma dos objectos é também a estrutura do facto atómico, sendo o espaço, o tempo e a cor considerados como formas dos objectos (2.0251-2.034).
Os objectos assim entendidos são aquilo a que Mach chamava "elementos" e que identificava com as sensações (§ 785). Segundo Mach, estes elementos entram na composição das coisas e dos processos psíquicos que permitem o conhecimento das coisas. Segundo Wittgenstein, os objectos entram na composição dos factos atómicos que são os elementos constitutivos do mundo e, sob a forma de nomes, na composição das proposições atómicas que são
os elementos constitutivos da linguagem. Com efeito, a proposição é, segundo este autor, a refiguração (Bild) de um facto; mas não no sentido de construção de uma imagem ou cópia e sim no de uma refiguração formal ou lógica do facto, isto é, da representação de uma configuração possível dos objectos que constituem o facto. Toda a refiguração deve ter qualquer coisa em comum com a realidade refigurada. A proposição tem em comum com o facto atómico a forma dos objectos, isto é, uma determinada possibilidade de combinação dos objectos entre si. Isto estabelece a conexão necessária entre as proposições e os factos: conexão que por um lado torna os factos refiguráveis, isto é, exprimíveis na linguagem, e que por outro lado toma válida, ou
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seja, dotada de sentido, a própria linguagem, garantindo-lhe a sua concordância com o mundo. Deste ponto de vista, uma proposição tem sentido se exprime a possibilidade de um facto: isto é, se os seus constituintes (signos ou palavras) se combinam numa forma que seja uma forma possível de combinação dos objectos que constituem o facto. Wittgenstein afirma que o sentido de uma proposição consiste numa "situação construída através da experiência" (4.031), pretendendo dizer com isto que uma proposição que seja dotada de sentido refigura um facto possível, e possível na medida em que é possível a combinação de objectos que o constituem. O sentido da proposição é diferenciada da sua verdade, que existe quando a proposição refigura não um facto possível mas sim um facto real. A forma afirmativa e a forma negativa da mesma proposição (por ex., " Esta rosa é vermelha", "esta rosa não é vermelha") têm sentido por serem igualmente possíveis; mas só uma delas
é verdadeira (4.05-4.061).
Deste ponto de vista, é fácil justificar a validade das ciências empíricas da natureza. Com efeito, "o
mundo é completamente descrito por todas as proposições elementares acrescidas da indicação de quais são verdadeiras ou falsas" (4.26); e "a totalidade das proposições verdadeiras c constitui a ciência natural total ou a totalidade das ciências naturais" (4.11). Mas as ciências são constituídas, para além das proposições elementares, por leis, hipóteses e teorias; acerca do valor destes instrumentos, Wittgenstein assume uma atitude que reproduz a
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de Hume. De uma proposição elementar não se
pode inferir nenhuma outra (5.134) porque toda a
proposição elementar diz respeito a um facto atómico e os factos atómicos são independentes uns
dos outros. Não existe nenhum nexo causal que justifique tais inferências e é assim impossível inferir os acontecimentos do futuro a partir dos do presente. "A fé no nexo causal é uma superstição" (5.1361), afirma Wittgenstein. Deste ponto de vista, não existem propriamente leis naturais. Estas, ou
melhor, a regularidade que elas exprimem, pertencem apenas à lógica e "fora da lógica tudo é acontecimento" (6.3). As teorias que reduzem a uma forma unitária a descrição do universo, como por exemplo a mecânica de Newton, são comparadas por Wittgenstein a um reticulado bastante fino, de malha quadrada, que cubra uma superfície branca na qual existam manchas negras irregulares. Com o reticulado é possível reduzir a uma forma unitária a descrição da superfície, na medida em que se pode afirmar que cada um dos quadradinhos é negro ou branco. Mas trata-se então de uma forma arbitrária, dado que poderia utilizar-se uma malha triangular ou hexagonal. Da mesma forma, são arbitrários os vários sistemas que podem ser usados para descrever o
universo, e quanto muito pode-se dizer que é possível conseguir com um sistema uma descrição mais simples do que com outro. A rede é a instrumentação lógica da teoria, instrumentação que fornece os tijolos para a construção do edifício da ciência, e isto porque uma teoria científica significa apenas: "Se queres construir um edifício, tens de o construir
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com estes tijolos e só com estes" (6.341). Uma teoria científica não nos diz nada, portanto, sobre o universo, tal como a rede do exemplo anterior nada nos diz sobre a forma das manchas. Mas já nos diz algo sobro o universo o facto de ser possível descrevê-lo mais simplesmente utilizando uma
teoria em lugar de outra (6.342). Estas considerações retiram ao universo todo o tipo de necessidade: "Não existe nenhuma necessidade que obrigue uma dada coisa a acontecer pelo simples facto de outra ter acontecido" (6.37). O facto de o Sol surgir amanhã é uma hipótese, o que equivale a dizer que não sabemos se ele surgirá. Mesmo a probabilidade não é senão ignorância. Com efeito, uma proposição não é em si mesma provável ou improvável, porque o
facto a que ela necessariamente se refere ocorre ou não ocorre, sem que haja soluções intermédias (5.153). Utiliza-se a probabilidade quando nos falta a certeza, quando não se conhece perfeitamente um facto mas se sabe algo sobre a sua forma, isto é, sobre a sua possibilidade (5.156).
§ 810. WITTGENSTEIN: AS TAUTOLOGIAS
Estas considerações do autor equivalem à confirmação da doutrina, comum a Leibnitz e a Hume, do carácter contingente (não necessário) das proposições relativas aos factos. Mas paralelamente a tais proposições Leibnitz admitia "a verdade da razão" e Hume as verdades que respeitam às "relações entre ideias"; e a este outro tipo de proposições
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ambos atribuíam a "necessidade", no sentido de que a sua negação implica a contradição. Wittgenstein admite, além das proposições elementares que exprimem a possibilidade dos factos e que são verdadeiras quando os factos as confirmam, proposições que exprimem a possibilidade geral ou essencial dos factos mas que são verdadeiras independentemente dos próprios factos. Estas proposições são chamadas tautologias e o seu estudo constitui uma das maiores contribuições de Wittgenstein para a teoria lógica.
A proposição "Chove" exprime a possibilidade de um facto e é verdadeira se o facto acontece, isto é, se na realidade chove. A proposição "Não chove" exprime também a possibilidade de um facto e é do mesmo modo verdadeira se na realidade não chove. Mas a proposição "Chove ou não chove" exprime todas as possibilidades que se referem ao tempo. Ela é verdadeira independentemente do tempo que faz; e o facto de chover não a confirma nem a desmente. Por outro lado, a proposição "Este solteiro está casado" não exprime um facto mas sim uma impossibilidade (já que "solteiro" significa "não casado"): ela é portanto falsa independentemente de qualquer facto, dado que o estado de solteiro ou casado em que se encontre o homem a que ela se refere não adianta nada relativamente à impossibilidade da frase. Ora "Chove ou não chove" é um exemplo de tautologia, "Este solteiro é casado" é um exemplo de contradição. Tautologia e
contradição são assim necessariamente verdadeiras ou falsas, independentemente de qualquer experiên-
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cia. Isto acontece, segundo Wittgenstein, porque a
tautologia é verdadeira e a contradição falsa para todas as possibilidades de verdade das proposições elementares que as constituem; ou por outros termos, a primeira é verdadeira e a segunda falsa seja o que for que aconteça (4.46-4.461). Mas isto quer dizer que tautologia e contradição não são refigurações da realidade, isto é, não representam nenhuma situação possível. A primeira permite toda a situação possível, a segunda nenhuma (4.462). Então, elas i-ião têm o "sentido" que se pode atribuir às proposições elementares; mas também não se podem considerar "sem sentido" porque faz= pai-te do simbolismo, isto é, constituem o verdadeiro campo da lógica.
Todas as proposições da lógica são tautologias, segundo Wittgenstein (6.1). "Não dizem nada": são analíticas, no sentido kantiano (6.11). A sua característica fundamental consiste em só se poder reconhecê-las como verdadeiras tendo em conta o símbolo, enquanto que a característica das proposições não lógicas é o não se saber se são verdadeiras ou falsas atendendo apenas às proposições (6.113). As proposições lógicas não dizem nada porque não dizem respeito a factos mas a possíveis modos de conexão entre as proposições ou de transformação de uma proposição noutra; isto é, respeitam a operações puramente linguísticas que estabelecem equivalência (ou não equivalência) de significado entre expressões linguísticas. É por esta razão que a experiência não pode confirmar ou negar as proposições lógicas (6.121-6.1222). A única relação entre as pro-
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posições lógicas e o mundo é que elas pressupõem que os nomes tenham significado e que as proposições elementares tenham sentido. A lógica revela aquilo que existe de necessário na natureza dos signos linguísticos: "Na lógica, fala a própria natureza dos signos necessários" (6.124). A matemática que, segundo Wittgenstein, é "um método da lógica" (6.2), reduz-se a esta última. O sinal de igualdade, usado na matemática, exprime a substituibilidade recíproca das expressões que reúne, o que quer dizer que as
duas expressões têm o mesmo significado, isto é, são tautológicas. A lógica e a matemática constituem todo o campo da necessidade. A necessidade e a
impossibilidade só existem na lógica, dado que os
factos não têm necessidade e que as proposições que exprimem factos não a podem ter como característica. Wittgenstein diz sobre isto que a verdade das tautologias é certa, a das proposições é possível, e a das contradições é impossível (4.464). No entanto, a necessidade da lógica não restringe nada; deixa que os factos aconteçam de forma puramente casual (6.37; 6.41).
Assim, Wittgenstein retomou a dicotomia instaurada por Hume corno distinção entre as proposições significantes que exprimem os factos possíveis e as
proposições não significantes, mas verdadeiras,
que são chamadas tautologias. Como Hume, admite também a existência de proposições nem significantes nem tautológicas, os não-sensos. A maior parte das proposições filosóficas são não-sensos, isto é, derivam do facto de não se compreender a lógica da
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linguagem. Com efeito, as proposições significantes são apanágio das ciências naturais e não consentem nenhuma inferência para além daquilo que mostram ou manifestam; por outro lado, as tautologias, de que se ocupa a lógica, só se referem à forma das proposições e não permitem dizer nada sobre a realidade do mundo. Nem umas nem outras permitem assim nenhuma generalização filosófica, nenhuma visão ou intuição do mundo na sua totalidade. A única tarefa positiva que Wittgenstein reconhece na
filosofia é a de ser uma "crítica da linguagem" (4.0031), isto é, "uma aclaração lógica do pensamento" (4.112). Mas neste sentido a filosofia não é uma doutrina e sim uma actividade; e a sua tarefa não consiste em fornecer "proposições filosóficas" mas em esclarecer o significado das proposições. "A filosofia deve esclarecer e delimitar com precisão as ideias que de outro modo seriam, por assim dizer, turvas e confusas" (4.112). E é esta precisamente a tarefa a que se dedicou o Tratado lógico-filosófico.
Todas as teses desta obra são condicionadas pelo princípio que constitui a posição ontológica fundamental de Wittgenstein: o mundo é constituído por factos, e os factos ocorrem e manifestam-se nesses outros factos que são as proposições significantes. Assim, os limites da linguagem são os limites do mundo e os limites da minha linguagem são os
limites do meu mundo, isto é, de tudo aquilo que compreendo, penso e exprimo. Neste sentido, o
solipsismo será verdadeiro não quando reduz o
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mundo ao eu mas sim quando reduz o eu ao mundo. Mas os limites de que falamos não pertencem ao
mundo (não são factos do mundo), e por isso não se exprimem na linguagem e não podem ser ditos: então, até o solipsismo é inexprimível (5.62-5.641). E não se pode falar do mundo na sua totalidade, dado que então deixa de ser um facto. Afirma Wittgenstein: "Aquilo que é místico é o que é o mundo, e não o como ele é" (6.44). Os factos constituem, e as proposições manifestam, o como do mundo, as suas determinações; nunca o que, a sua essência total e única, o seu valor, o seu porquê. E o
valor, que é um dever ser, nunca é um facto; se for um facto deixa de ser valor, já que "no mundo não existe nenhum valor e, se existisse, não teria valor" (6.41). Também não podem existir proposições da ética; e a ética, é inexprimível (6.42). Nem se pode falar da morte, que já não é um facto ("Não se vive a morte", 6.4311). Assim, não se pode pôr nenhum dos problemas relativos ao mundo, à vida, à morte ou aos fins humanos: não podem ter resposta porque nem sequer podem ser formulados como perguntas. Wittgenstein não nega que o inexprimível exista: afirma que ele "se mostra, e que constitui o
místico" (6.522). Mas o que significa este existir do inexprimível, é coisa a que o autor se não refere. E quanto ao seu mostrar-se, também nada nos diz. Quando se mostrou que todas as perguntas metafísicas carecem de sentido e que se deve guardar segredo de tudo aquilo de que não se pode falar, não resta nenhuma pergunta. Mas é esta precisamente a rês-
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posta: o problema da vida resolve-se quando desaparece (6.52-7).
§ 811. WITTGENSTEIN: A PLURALIDADE DAS LINGUAGENS
A teoria da linguagem que é exposta no Tratado é, tal como a de Aristóteles, uma teoria afirmativa: a linguagem é a manifestação daquilo que é. Mas para Aristóteles "aquilo que é" constitui a estrutura
necessária do mundo, e essa estrutura determina necessariamente as formas linguísticas que, nas suas
expressões essenciais, a reproduzem. Para Wittgenstein, pelo contrário, "aquilo que é" é um conjunto de factos que simplesmente "acontecem", sem ordem e sem relações recíprocas, isto é, sem serem necessários. No entanto, esses factos determinam as suas manifestações linguísticas, isto é, as proposições atómicas; e indirectamente determinam a necessidade das proposições da lógica. Ora a necessidade da relação mundo-linguagem, se bem que concorde
com o empenho ontológico de Aristóteles, para o qual o mundo é necessidade, não é corrente com o de Wittgenstein, para o qual o mundo é causalidade. Não admira portanto que este autor tenha a
certa altura abandonado as teses do Tratado e tenha introduzido na relação mundo-linguagem o carácter não necessário que reconhecera nos factos do mundo. Ora se tal relação fosse necessária, seria também única (não pode ser diferente da que é), e
seria única a linguagem definida pela natureza da própria relação. Mas se essa relação não é necessá-
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ria, pode assumir formas diferentes; e são então possíveis diversas formas de linguagem, correspondentes às várias formas que a relação pode assumir. Foi esta tese que Wittgenstein começou a desenvolver a partir de 1933 e que tem a sua melhor expressão nas Philosophical Investigations, cuja primeira parte só ficou completa em 1945 e cuja segunda parte foi escrita entre 1947 e 1949.
Deste ponto de vista, a linguagem definida no Tratado, onde a todas as palavras é atribuído um significado que é constituído precisamente pelo objecto a que corresponde a palavra, é apenas uma
das infinitas formas da linguagem. A multiplicidade das linguagens não pode também ser estabelecida de uma vez por todas: novos tipos de linguagem, novos jogos linguísticos nascem continuamente enquanto que outros caiem em desuso e são esquecidos. A expressão "jogos linguísticos" é utilizada por Wittgenstein para sublinhar o facto de a linguagem ser
uma actividade ou uma forma de vida. Como exemplos da multiplicidade dos jogos linguísticos, apresenta os seguintes: dar ordens e obedecer-lhes; descrever a aparência de um objecto ou dar as suas
medidas; construir um objecto partindo de uma descrição (um desenho); relatar um acontecimento; especular sobre um acontecimento; formular uma hipótese e pô-la à prova; apresentar os resultados de uma experiência em tabelas e diagramas; inventar Lima. história e lê-Ia; representar uma peça teatral; cantar um estribilho; descobrir enigmas; inventar uma anedota ou contá-la; resolver um problema de aritmética; traduzir de uma língua para
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outra, mendigar, agradecer, maldizer, augurar, pregar (Phil. Inv., 23). A própria matemática é um jogo linguístico. Com efeito, fazer matemática significa "agir de acordo com certas regras" (Remarks on the Foundations of Mathematics, IV, 1). A necessidade que preside a esta actuação, o "deve" (Must), é próprio das técnicas em que consiste a matemática e
que constituem um modo particular de tratar as situações. "A matemática, diz Wittgenstein, constitui uma rede de nonnas" (Ib., V, 46). A heterogeneidade dos jogos linguísticos é tal que não podem ser reduzidos a qualquer conceito comum, as suas relações recíprocas podem ser caracterizadas como "reuniões de família" e, tal como os membros de uma família apresentam várias semelhanças, seja na estatura, na
fisionomia, etc., também as várias linguagens têm entre si relações diversas que não se podem reduzir a um só (Phil. Inv., 67). Em muitos jogos linguísticos, o significado das palavras consiste no seu
uso. "Num grande número de casos, se bem que não em todos, em que utilizamos a palavra 'significado', ela pode ser assim definida: o significado de uma
palavra é o uso que tem na linguagem" (Ib., 43). Mas o uso não é uma regra normativa que possa ser
imposta à linguagem: é aquilo que surge na própria linguagem, é o que há de habitual nas suas técnicas.
O ideal da linguagem deve ser procurado na sua própria realidade (101). "É claro, diz Wittgenstein, que todas as proposições da nossa linguagem se encontram numa ordem que a caracteriza. Não procuramos a ordem ideal, tal como se as nossas frases habituais não tivessem ainda um sentido acabado e
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WITTGENSTEIN
como se ainda tivéssemos de construir
uma linguagem perfeita. Por outro lado parece evidente que, onde existe sentido, existe ordem. Logo, deve existir uma ordem perfeita mesmo na mais vaga das proposições" (98).
A filosofia, enquanto análise da linguagem, não pode portanto ter como tarefa a sua rectificação ou o seu desenvolvimento, até atingir uma forma mais completa ou perfeita. Segundo Wittgenstein, "não pode de forma alguma interferir no uso efectivo da linguagem mas sim, e apenas, descrevê-la. Com efeito, a filosofia não pode fundar a linguagem, e é obrigada a deixar tudo como encontra" (124). Ela não explica nem deduz coisa alguma: limita-se a pôr as coisas à nossa frente. A partir do momento em que todas as coisas se encontram perante nós, já não há nada para explicar. O que está oculto, está-o apenas devido à sua simplicidade e familiaridade: não se nota porque está sempre à frente dos nossos
olhos, e está sempre à frente dos nossos olhos porque é aquilo que mais nos interessa (129). A filosofia pode igualmente comparar entre si os vários jogos linguísticos e estabelecer entre eles uma ordem, com vista à realização de uma tarefa particular mas tal ordem será apenas uma das muitas possíveis (132). "Não pretendemos, diz Wittgenstein, refinar ou completar o sistema de regras que regula o uso das nossas palavras. A clareza para que tendemos é sempre uma clareza completa e isto significa simplesmente que os problemas filosóficos devem desaparecer completamente. A descoberta real é aquela que me toma capaz de deixar de filosofar quando quero:
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só ela elimina a filosofia, na medida em que deixa de a atormentar com as questões que servem para a justificar (133). O conceito da filosofia como "doença", e da cura desta doença pela abstenção de filosofar domina a segunda fase da filosofia do pensamento de Wittgenstein, tal como a procura de um
silêncio místico relativamente aos problemas filosóficos dominara a primeira. No entanto, não existe uma cura definitiva e imunizante: "Não existe um método de cura da filosofia, mas existem vários tipos de tratamento" (133). Todas estas terapias consistem essencialmente em dizer as palavras do seu uso metafísico para o seu uso quotidiano; e os
resultados dessas terapias são a descoberta deste ou daquele não-senso que o intelecto inventara batendo com a cabeça contra os limites da linguagem. É o próprio não-senso que mostra o valor da descoberta (119). Eliminando os não-sensos, a actividade filosófica curativa limita-se a reportar as palavras aos seus usos correntes e quotidianos sem
afirma nada de novo. "A filosofia, diz Wittgenstein, afirma apenas aquilo que todos já sabemos" (599).
A defesa da multiplicidade das linguagens ou, como se poderia dizer, do relativismo linguístico, é o aspecto mais importante da segunda fase de Wittgenstein. Esta tese, que é paralela e semelhante à do relativismo das culturas, é hoje confirmada, no terreno dos factos, pelos estudos linguísticos. Está relacionada com ela uma outra tese fundamental que surge aqui e ali nas Philosophical Investigations: a linguagem é um instrumento (uma técnica ou um
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conjunto de técnicas) para resolver situações existenciais. Afirma WitIgenstein: "A linguagem é um
instrumento. Os seus conceitos são instrumentos... Os conceitos aplicam-se à investigação; são a expressão dos nossos interesses e dirigem esses mesmos interesses" (569-70; cfr. 11). Por outro lado, existem outras teses fundamentais de Wittgenstein que não parecem muito coerentes com estas. A primeira é a
de a linguagem ser um "jogo". Se bem que Wittgenstein declare servir-se desta palavra para sublinhar o
carácter de actividade ou de vida da linguagem, é difícil não ligar à palavra a conotação comum segundo a qual o jogo é unia actividade que se efectua tendo-a em vista a si mesma e não para atingir outro fim qualquer. Se a linguagem fosse jogo (pelo menos
assim parece) seria um fim e não um instrumento, A segunda tese é a do privilégio concedido à linguagem ordinária ou quotidiana que é óbviamente apenas um dos jogos linguísticos possíveis, e que portanto não se sabe porque deverá ser a indicada para fornecer o critério e a norma para a eliminação dos problemas filosóficos e das suas dúvidas. Diz o autor: "Pensem nos instrumentos que se encontram na caixa de ferramentas de um operário: há um martelo, um alicate, uma serra, uma chave de parafusos, uma régua, grude, pregos e parafusos. As funções das palavras são tão diferentes como as destes objectos" (Phil. Inv., 11). Mas basta interessarmo-nos um pouco pela actividade de um artesão qualquer para nos rendermos conta de como, na linguagem em que ele se exprime, se encontram palavras, expressões ou
modos de dizer que não se referem à linguagem nor-
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mal mas sim à actividade específica do artesão. As linguagens científicas estão óbviamente ainda mais longínquas da quotidiana, e têm significados ainda menos redutíveis aos de uso corrente, mesmo que sejam expressos pelas mesmas palavras. Se pluralismo linguístico significa relativismo linguístico, se
qualquer linguagem, como afirma Wittgenstein, está numa certa ordem tal como está, não existe nenhuma linguagem que compreenda todas as outras ou que possa oferecer às outras um critério qualquer de interpretação ou de rectificação. Por outro lado, se a linguagem comum está sempre em ordem, se ela apresenta de uma forma aberta e evidente tudo aquilo que deve significar, como é possível que nela nasçam os não-sensos que levam a dúvidas angustiantes e nos tiram o sossego?
§ 812. CARNAP: RELAÇõES E EXPERIÊNCIAS
Uma outra figura dominante do neo-positivismo foi a de Rudolf Carnap, que nasceu em Wuppertal, na Alemanha, em 1891, ensinou na Universidade de Viena e na de Praga, e que posteriormente a 1936 foi para a América onde ensinou nas Universidades de Chicago e Los Angeles. As seguintes obras pertencem ao período em que este autor viveu na
Áustria e na Alemanha: A construção lógica do mundo, 1928; Pseudo-problemas da filosofia, 1928, Compêndio de lógica, 1929; Sobre Deus e a alma,
1930; A sintaxe lógica da linguagem, 1934, e ainda numerosos artigos publicados em "Erkenntnis", sendo
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o mais importante intitulado A eliminação da metafísica através da análise lógica da linguagem.
Durante a sua estadia na América publicou as seguintes obras: Os fundamentos da lógica e da matemática (na " Enciclopédia Internacional da Ciência Unificada"), 1939; Introdução à semântica, 1942; A formalização da lógica, 1943; Significado e necessidade, 1947; Fundamentos lógicos da probabilidade,
1950, e ainda muitos outros artigos entre os quais sobressai o intitulado Probabilidade e significado (1936), que marca uma viragem na interpretação da exigência básica do neo-positivismo.
Se as obras de Wittgenstein constituíram a principal fonte de inspiração para os filósofos do neo- _empirismo, as de Carnap deram às teses polémicas e
construtivas desta corrente a clareza e o desenvolvimento analítico que a tornaram muito importante na filosofia contemporânea. Carnap teve sempre presente e defendeu constantemente uma das teses básicas do Círculo de Viena: a ciência é una, apesar da diversidade de conteúdo existente nos vários campos específicos correspondentes às diversas ciências, e a sua linguagem é também una. É por isso que a
doutrina de Carnap é substancialmente, tal como a
de Wittgenstein, uma teoria da linguagem. Mas enquanto Wittgenstein insiste no atomismo da linguagem, a qual reflecte nas suas proposições elementares a não relatividade e a causalidade dos factos atómicos, Carnap insiste no seu carácter sintáctico, isto é, nas relações que ligam as proposições entre si. Assim, concorda com Wittgenstein quando admite, pelo menos a um certo nível ou para um certo tipo
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de linguagem, uma relação ou contacto com um
dado imediato; no entanto, este dado não é um "facto" mas sim um elemento de natureza psíquica. A primeira obra de Carnap, .4 construção lógica do mundo, tem a tarefa explícita de formular
o sistema de conceitos (ou objectos) constitutivos da ciência utilizando por um lado a teoria das relações aceite na lógica de Russell e Whitchead e, por outro lado, a
redução da realidade a dados elementares que é própria da filosofia de Avenarius, Mach e Driesch (Der Logische Aufbau der Welt, § 3). Mas é evidente na
obra de Carnap a influência do neo-criticismo, o qual insistira no carácter logicamente construtivo do conhecimento humano e que tinha considerado a relação como categoria fundamental (§ 730).
Deste ponto de vista, a teoria do conhecimento é uma análise do modo como são logicamente construídos os objectos da ciência a partir de certos elementos originários que, precisamente enquanto tais, não podem ser considerados por sua vez como construções lógicas. Esses elementos são, segundo Carnap, as experiências elementares vividas (Elementarerlebnisse), que ele prefere às "sensações" de Mach porque a psicologia da forma (Kõhler, Wertheimer) mostrou que as sensações não são dados mas sim abstracções dos dados, pelo que não podem ter prioridade gnoseológica. No entanto, Carnap defende que as experiências elementares são, tal como as sensações de Mach, neutras no sentido de nem serem propriamente físicas nem psíquicas, e que são referidas ao eu, não originariamente, mas
apenas na medida em que se fala das experiências
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vividas pelos outros e que são reconstruídas através das minhas (Ib., § 65). As experiências elementares têm entre si "relações fundamentais" já que <todo o enunciado de um objecto é materialmente um
enunciado dos seus elementos fundamentais e formalmente um enunciado das relações fundamentais" Qb., § 83). Carnap considera como relação fundamental a da "recordação da semelhança", que permite identificar parcialmente duas experiências vividas através do confronto de uma delas com a recordação da outra (Ib., § 88). Utilizando as experiências elementares vividas e a relação fundamental pode-se, segundo Carnap, reconstruir todo o mundo psíquico e físico, independentemente dos conceitos de substância e de causa de que se servia a metafísica tradicional. O conceito de "essência" é redifinido por Carnap no sentido de que se deve entender por " essência constitutiva" de um objecto a indicação do significado do signo do próprio objecto, e
dado que o signo só tem significado quando se encontra numa proposição, a essência consistirá na indicação dos critérios de verdade das frases em que pode aparecer esse objecto (Ib., p. 161). Definindo a
,essência deste modo segue-se que o eu é apenas "o conjunto das experiências elementares": Carnap nega que a existência do eu seja um dado originário e repete a crítica de Nietzsche (§ 664) ao cogito cartesiano Qb., § 163). Por outro lado, a "realidade" (diferente do sonho, da alucinação, da fantasia) é constituída por objectos que têm as seguintes características: 1.o -pertencem a um sistema que obedece a leis, isto é, ao mundo físico, psíquico ou espiritual;
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2.o - são inter-subjectivos; 3.o - têm um lugar na ordem do tempo (Ib., § 171). A realidade dos objectos não consiste pois no serem independentes da consciência cognoscente (como afirma o realismo) ou
no serem dependentes dela (como afirma o idealismo), mas sim no pertencerem a um campo em que são válidas leis objectivas independentes da vontade do indivíduo e que portanto são interpretadas pela metafísica como sendo a expressão de uma "substância": a matéria, a energia, ou qualquer outra (Ib., § 178).
Como vemos, a reconstrução da estrutura lógica do mundo põe, segundo Carnap, a metafísica fora de jogo. E a crítica à metafísica é reavivada por Carnap num artigo famoso que foi publicado em
"Erkenntnis" no ano de 1931 e que se intitulava A eliminação da metafísica através da análise lógica da linguagem. Uma linguagem, afirmava Carnap, consiste num vocabulário e numa sintaxe, isto é, num conjunto de palavras que têm um mesmo significado e nas regras que presidem à formação dos enunciados indicando como estes devem ser construídos a partir de vários tipos de palavras. Quando não se
têm em conta estes dois aspectos fundamentais, fica-se perante duas espécies de "pseudo-proposições": aquelas em que figuram palavras que se julga, erradamente, terem um significado e aquelas que são compostas por palavras individualmente dotadas de sentido mas reunidas de uma forma não concordante com as regras de sintaxe formando por isso frases sem sentido. Estas duas espécies de pseudo-proposições são aquelas que se encontram na metafísica,
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não só na antiga como até na mais recente. Carnap mostrava como na metafísica de Heidegger a palavra "nada" era considerada como o nome de um objecto e tratada como tal, se bem que nada não seja nome
de nenhum objecto mas apenas a negação de uma
proposição possível como por exemplo ao dizer-se "lá fora não há nada" se pretende afirma o contrário de " lá fora há uma determinada coisa" (Ueberwindung der Metaphysik durch logische Analyse der Sprache, § 5). **Cam&p via na metafísica uma expressão da atitude da pessoa relativamente à vida, isto é, qualquer coisa de semelhante à arte, tendo para além desta a
vã pretensão de querer raciocinar. "No fundo, afirmava, os metafísicos são músicos sem talento musical" (Ib., § 7). Numa nota datada de 1957 e acrescentada à tradução inglesa desta obra, Carnap declarou que ela era dirigida contra a metafísica tal como era entendida por Fichte, Schelling, Hegel, Bergson, Heidegger, isto é, como pretensão de conhecer a
essência das coisas de uma forma que transcende o
empirismo da ciência indutiva, mas não contra as
tentativas de síntese e de generalização dos resultados das várias ciências. Esta limitação não estava certamente presente nas suas primeiras obras, e o
prefácio à Sintaxe lógica da linguagem (1934) exprime perfeitamente a tarefa que Carnap, atribuía verdadeiramente à filosofia: "A filosofia deve ser substituída pela lógica da ciência, isto é, pela análise lógica dos conceitos e das proposições das ciências, e isto porque a lógica da ciência é precisamente a
sintaxe lógica da linguagem da ciência" (Logical Syntax of Language, prefácio).
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§ 813. CARNAP: DADO, PROTOCOLO, PREDICADOS OBSERVÁVEIS
Na Construção lógica do Mundo, Carnap utilizou, como vimos, dois tipos de elementos: um estrictamente lógico, a relação, e outro psicológico, a experiência vivida. Estes dois tipos de elementos, com diferentes designações, foram os temas fundamentais de todas as suas investigações ulteriores.
No que diz respeito ao segundo tipo de elementos, isto é, ao dado como ponto de partida e de referência da construção lógica, Carnap aceitou (a partir de 1931) a tese de Neurath sobre a intranscendibilidade da linguagem, afirmando que isso não se
apresenta, por assim dizer, em pessoa na própria linguagem, mas sim através da sua expressão ou
formulação linguística. No ensaio A linguagem física como linguagem universal da ciência (publicado em
"Erkemtnis", 11, 1931), distingue na ciência a liberdade sistemática e a linguagem dos protocolos. A primeira compreende as proposições gerais ou leis da natureza; a segunda é constituída por proposições protocolares que se referem imediatamente ao dado e que descrevem o conteúdo da experiência imediata e as mais simples relações reais conhecidas. Qual é precisamente a natureza do dado, se consiste em sensações elementares, como pretendia Mach, ou em experiências vividas, ou ainda em coisas, isto é, em corpos tridimensionais imediatamente perceptíveis, é uma questão que, segundo Carnap, se pode deixar em suspenso ("Erkenntnis", 11, 1931, p. 439). As proposições protocolares permitem realizar a ve-
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rificação empírica da ciência se bem que esta verificação não diga respeito às proposições singulares da própria ciência mas sim a todo o sistema ou, pelo menos, a uma certa parte do sistema. Isto implica necessariamente um momento convencional, que constitui precisamente a forma do sistema; e mesmo uma lei natural, relativamente
às proposições simples, é apenas uma hipótese. Mas dado que qualquer homem só pode assumir como ponto de partida das suas afirmações os seus próprios protocolos, Carnap fala de um solipsismo metódico. O adjectivo "metódico" realça o facto de não se pretender afirmar a existência de um único sujeito e a
não existência dos outros, mas tão-somente reconhecer o carácter dos protocolos originários a fim de construir proposições linguísticas que possam valer para todos os sujeitos. Ora uma afirmação qualquer, mesmo baseando-se nos protocolos do sujeito que a faz, só tem validade inter-subjectiva se puder exprimir-se em linguagem física. "Se, afirma Carnap, dois sujeitos tiverem opiniões diferentes sobre o
comportamento de um segmento, sobre a temperatura de um corpo ou sobre a frequência de uma
oscilação, esta diversidade de opiniões não é, na
física, atribuída a uma insuperável diferença, tentando-se antes chegar a uma unificação dessas opiniões através de uma experiência apropriada" (Ib., p. 447). A linguagem física é deste modo, e em
si mesma, inter-subjectiva e universalmente válida; e na medida em que as várias ciências (compreendendo aqui as do espírito, psicologia, sociologia, etc.) são autenticamente ciências, devem ser expressas em
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linguagem física e relacionar assim os próprios fenómenos psíquicos ou espirituais com estados ou condições de um corpo físico. Daqui deriva um materialismo metódico, isto é, um materialismo que não afirma nem nega a existência da matéria ou do espírito mas que exprime apenas a exigência de traduzir em termos físicos os diferentes protocolos, a fim de construir com eles uma linguagem verdadeiramente inter-subjectiva, isto é, válida universalmente.
Enquanto que na Construção lógica do mundo o dado se apresentava em pessoa na linguagem, na forma da experiência imediata, nesta segunda fase das investigações de Carnap apresenta-se na forma de uma expressão linguística, a proposição protocolar, que permite qualquer interpretação da natureza do próprio dado (que pode ser uma coisa ou um processo psíquico). Numa terceira fase, que se inicia com a obra Probabilidade e significado (1936-37), o dado afasta-se ainda mais, apresenta-se agora sob a forma de uma possibilidade, a possibilidade de reduzir, mediante um processo mais ou menos longo e complexo, os predicados descritivos, da linguagem científica a predicados observáveis que pertençam à "linguagem cousal", isto é, à linguagem que usamos na vida de todos os dias ao falar das coisas perceptíveis que nos rodeiam. É evidente que os " predicados observáveis" são já a transcrição linguística, na linguagem comum, da possibilidade de obter certos dados, enquanto que os predicados descritivos da ciência são transcrições, no sentido de poderem ser reconduzidos a estas últimas por um oportuno processo de redução. Por outro lado, Carnap substitui a
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exigência de uma verificação empírica directa dos enunciados científicos, que fora defendida pelo Círculo de Viena e pela primeira fase do neo-empirismo e era considerada como critério de significação das proposições sintéticas, pela exigência muito mais débil da confirmabilidade, que consiste precisamente na possibilidade de reduzir os predicados descritivos a predicados observáveis (Testability and Meaning, in Readings in the Philosophy of Science, 1953, p. 70).
Deste ponto de vista, já não é possível uma verificação completa e exaustiva; só é possível uma
confirmação gradualmente maior dos enunciados. Por outras palavras, e de acordo com a terminologia que Carnap adoptou nos últimos tempos, o acontecimento que constitui a confirmação de um enunciado científico é um acontecimento possível, entendendo-se por "possibilidade" a possibilidade física ou causal e não a simplesmente lógica. Por exemplo, um acontecimento que implique a transmissão de um sinal a uma velocidade superior à da luz não é um acontecimento possível, de acordo com o princípio físico que exclui a possibilidade de exceder a velocidade da luz; mas já é possível, se bem que inverosímil, que um homem consiga levantar um automóvel (The Methodological Character of Theoretical Concepts, in Minnesota Studies in Philosophy of Science, 1956,
1, págs. 53-54).
Estes desenvolvimentos foram sugeridos a Carnap depois de uma atenta consideração da ciência contemporânea, especialmente da física, a qual faz, como vimos (§ 791), um uso bastante grande de
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termos ou de entidades (chamadas por vezes "construções") que não têm nenhuma referência aparente às coisas ou aos dados simples da experiência. Uma destas entidades é o "campo", que tem uma função básica na física relativista. Carnap entende que esta entidade em particular é redutível a termos elementares e que esses termos elementares podem ser, por sua vez, reduzidos a propriedades observáveis das coisas (Foundations of Logic and Mathematics, 1939, § 24). Mas é duvidoso que esta dupla redução tenha fundamento, ou melhor, sentido, no âmbito da própria física. Carnap observou que, na física, compreender uma expressão, um enunciado, uma teoria, significa "capacidade para a usar na descrição dos factos conhecidos ou na previsão de factos novos", e que portanto uma "compreensão intuitiva ou uma tradução directa de um enunciado científico em termos que se refiram a propriedades observáveis não é necessária nem tão-pouco possível" (Ib., § 25).
§ 814. CARNAP: A SINTAXE LóGICA
O outro terna fundamental em que se concentraram as indagações de Carnap é o da estrutura lógica da linguagem. Como vimos, Carnap considerou a
linguagem como um contexto de relações e não como um atomismo de proposições (segundo a opinião de Wittgenstein no Tractatus). Por outro lado, acabou por reconhecer o carácter arbitrário e convencional do sistema de relações (isto é, da lógica)
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em que consiste a linguagem. Estes temas encontram o seu melhor estudo analítico na obra A sintaxe lógica da linguagem, publicada em 1934 e, em edição inglesa, em 1937. A tese fundamental desta obra é a da multiplicidade e relatividade das linguagens, que Carnap exprime sob a forma do princípio de tolerância: "Não é nossa tarefa estabelecer proibição mas apenas chegar a convenções... Em lógica não existe moral. Qualquer pessoa pode construir corno bem entender a sua própria lógica, isto é, a sua forma de linguagem. Se quiser discutir connosco, deve apenas indicar como o deseja fazer, quais as regras sintácticas que irá respeitar, e não argumentos filosóficos" (Logical SyWax of Language, § 17). Não existe, deste ponto de vista, uma linguagem única ou uma linguagem privilegiada; mas existem para cada linguagem regras determinadas, próprias dessa linguagem, além das regras que são válidas para todas as linguagens. Tais regras - e é esta a segunda tese fundamental da obra - são de natureza sintáctica: exprimem simplesmente a possibilidade de combinação dos termos linguísticos nos enunciados e dos enunciados nas suas consequências. Trata-se aqui de unia "arte combinatória" no sentido de Leibnitz ou, de acordo com a definição de Carnap, de um
cálculo cujas regras determinam "em primeiro lugar as condições em que uma expressão [isto é, uma série de símbolos] pertence a uma certa categoria de expressões, e, em segundo lugar, as condições que tornam lícita a transformação de uma ou mais expressões numa outra ou noutras expressões" (Ib., § 2). Este cálculo prescinde completamente do signi-
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ficado dos termos e do sentido das proposições, já que não é nem pressupõe nenhuma referência semântica a factos, realidades ou entidades de qualquer tipo. Afirma Carnap: "Para, determinar se uma
proposição é ou não consequência de outra, não se
faz nenhuma referência aos seus significados... Basta que seja dada a figura sintáctica das proposições" já que "uma lógica especial do significado é supérflua; uma lógica não formal é uma contradictio in adjecto. A lógica é sintaxe" (Ib., § 61).
Posto isto, a sintaxe lógica de Carnap reduz-se a
uma formulação
simbólica generalizada dos processos matemáticos, que muito deve à obra de Hilbert (§ 794). Distingue uma linguagem 1 que compreende a aritmética elementar e que é caracterizada pelo facto de nela só serem admitidas propriedades numéricas definidas, isto é, tais que a sua aplicabilidade a um qualquer número pode ser estabelecida por uma série finita de passagens dedutivas que sigam um método pré-estabelecido; uma linguagem 11, que além de conter a 1, compreende ainda conceitos indefinidos e na qual pode ser expressa a aritmética dos números reais, a análise matemática e a teoria dos conjuntos; e ainda uma ulterior generalização que Carnap chama "sintaxe de qualquer linguagem", que se baseia nas precedentes e especialmente na
segunda. A propósito desta última, Carnap insiste na importância fundamental da noção de "consequência". " Dada uma linguagem qualquer, afirma, ao ser estabelecida a relação consequência fica imediatamente determinada toda a asserção que diga respeito às relações lógicas" (Logical Syntax, § 46).
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A sintaxe universal Ocupa-se do estabelecimento das regras com as quais deve concordar a definição de consequência ou, por outros termos, com as quais devem concordar as regras de transformação de uma
expressão noutra.
A parte final desta obra é a propriamente filosófica, sendo o seu tema "Filosofia e sintaxe". Aí se pretende defender aquilo que Carnap chama "modo formal" ou "sintáctico" de falar, oposto ao
"modo, material". A diferença entre estes dois modos é ilustrada pelos seguintes exemplos, escolhidos entre aqueles que são dados por Carnap:
MODO MATERIAL
1. -Os números são classes de coisas.
2. -Os números fazem parte de um tipo primitivo especial de objectos.
3. - Uma coisa é um complexo de dados sensoriais.
MODO FORMAL
1. - A s expressões numéricas são expressões de classes do segundo nível.
2. - A s expressões numéricas são expressões do nível zero.
3. - Qualquer proPOSição em que figure uma designação de coisas é equivalente a uma
classe de proposições em que não figurem designações de qualidade mas apenas designações de dados sensoriais.
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4. - O mundo é a to- 4. -A ciência é um talidade dos factos e sistema de proposições não das coisas. e não de nomes.
5. -Deus criou os S. -Os símbolos dos números naturais (**Kro- números naturais são **necker). símbolos primitivos.
6.-Toda a cor 6. -Uma expressão ocupa uma posição. decores é sempre
acompanhada, nas proposições, por uma designação posicional.
A vantagem do modo formal de falar consiste, segundo Carnap, no facto de eliminar a possibilidade de controvérsias filosóficas, possibilidade essa que é deixada em aberto pelo modo material. Esta. é uma
forma desviada ou metafórica de falar, que não está errada em si mesma mas que se presta facilmente a ser utilizada de uma forma incorrecta. Carnap pensa "que a tradutibilidade no modo de falar representa a pedra de toque de todas as proposições filosóficas ou, mais exactamente, de todas as proposições que não entrem na linguagem de uma
ciência empírica" (Ib., § 81). Não possui essa característica nenhuma das proposições que apelam para o inexprimível, compreendendo aqui as de Wittgenstein. A proposição de que "o inexprimível existe, equivale a "existem objectos que não podem ser descritos", isto é, "existem objectos a que não se dá nenhuma designação objectiva", e é traduzida
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em linguagem formal pela frase contraditória "existem designações objectivas que não são designações objectivas" Qb., § 81).
Carnap admitiu sempre a distinção tradicional entre intenção e extensão (ou conotação e denotação) do conceito (ou em geral do signo), distinção que fora reintroduzida por Frege entre sentido e significado (§ 795). No entanto, e seguindo as pegadas de Russell (§ 800) e de Wittgenstein (Tractatus,
5.541-5.421), Carnap concebe a lógica inteiramente im dimensão extensiva, identificando o ponto de vista sintáctico (ao qual se reduz a lógica) com o ponto de vista extensional. Isto significa que para ele os conceitos são classes, ou classes de classes, e não essências, qualidades ou predicados; que, por exemplo, "homem" significa o "conjunto dos homens" e não a propriedade de ser homem, animal racional ou qualquer coisa semelhante. No entanto, Carnap não nega que existam proposições intensionais e que tais proposições tenham uma certa relevância na lógica: são aquelas que parecem exprimir uma relação de inerência do predicado ao sujeito (por exemplo, "os
corpos são compridos") ou as modais ("A é possível", "A é impossível", "A é necessário", "A é contingente"). No entanto, segundo Carnap, estas proposições podem ser consideradas "quase-sintácticas", já que são redutíveis a enunciados sintácticos ou extensionais se forem traduzidas do modo material de falar para o modo formal. Assim, "os corpos são pesados" transforma-se em "o enunciado 'os corpos são pesados' é analítico"; e os enunciados modais
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que referimos transformam-se em "A' é possível", "IAI é impossível", "'A' é necessário", nos quais A representa um enunciado (Logical Syntax, §§ 67-69). Nos escritos posteriores e sobretudo no mais especificamente dedicado à lógica modal, intitulado Significado e necessidade (1947), o autor confirma substancialmente esta redução, assumindo no entanto
como base o conceito da necessidade lógica (ou analítica) e definindo os outros significados modais relativamente a ele; então, "p é impossível" significa "não-p é necessário"; "p é contingente" significa "p não é nem necessário nem impossível"-, "p é possível" significa "p não é impossível" (Meanin., and Necessity, 1956, 2 a edição, § 39). No entanto, na última fase da sua actividade, Carnap dirigiu cada vez mais a sua atenção para o aspecto semântico e pragmático da linguagem que, como vimos, excluía anteriormente da lógica, sendo esta reduzida à sintaxe; deu também uma análise pragmática do significado intensional, considerando como "intenção de um predicado, para o orador X a condição geral a que um objecto deve satisfazer para que X lhe possa aplicar um predicado" (Ib., p. 246). Sublinha que com isto não se reduz a intenção a um acontecimento mental, visto ela não poder ser tão bem determinada por um robot como por um homem. Estas investigações de Carnap inserem-se nas discussões entre os neo-empiristas sobre alguns temas de lógica e de metodologia, e voltaremos a falar nelas a propósito destes últimos (§ 818).
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§ 815. REICHENBACH
O mundo a que Carnap dedica principalmente
a sua atenção é o da matemática; ao da física dedica-se quase exclusivamente Hans Reichenbach. (1891-1953), expoente máximo do neo-positivismo na Alemanha. Reichenbach foi professor de física em Berlim de 1926 a 1933, de filosofia em istambul de
1933 a 1938 e na Universidade da Califórnia, cin Los Angeles, de 1938 até à data da sua morte. As suas obras principais são as seguintes: Filosofia da doutrina do espaço-tempo, 1928; Átomo e cosmos,
1930; A tarefa e as vias da moderna filosofia da natureza, 1931; Teoria da probabilidade, 1935. Estas obras foram publicadas na Alemanha, assim como numerosos artigos, alguns dos quais apareceram em
"Erkenntnis", revista que ele dirigiu juntamente com
Carnap. Na América, Reichenbach. publicou: Experiência e previsão, 1938; Elementos de lógica simbólica, 1947; Teoria da probabilidade, 1949 (nova edição aumentada da obra publicada na Alemanha em 1935); O nascimento da filosofia científica, 1951; A direcção do tempo, 1956 (póstuma). Nesta última obra Reichenbach identifica a ordem do tempo com
a da causalidade, e entende que esta ordem é estabelecida pela entropia. As investigações de Reichenbach são muitas vezes enquadradas por considerações históricas que são, simultaneamente, toscas e
fantásticas. Por outro lado, nota-se uma certa dogmatização da ciência nas suas obras, o que contrasta singularmente com o carácter
probabilista que ele reconhece existir no conhecimento científico.
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As investigações de Reichenbach dirigem-se em
grande parte para uma defesa e uma justificação analítica da estrutura probabilista da ciência. Lógica dedutiva e lógica indutiva são, segundo Reichenbach, duas características fundamentais da ciência; mas assim como todos os positivistas, pensa que a dedução, enquanto procedimento puramente lógico, nunca alcança a realidade. Os seus resultados são necessários mas ocos, porque a dedução liga as
proposições de tal forma que as combinações resultantes são verdadeiras independentemente da verdade das proposições componentes. A combinação
"se nem Napoleão nem César chegaram à idade de
60 anos, então Napoleão não chegou à idade de
60 anos" é verdadeira quer Napoleão e César tenham morrido antes dos sessenta anos quer tenham morrido depois; nada se diz sobre o facto que a
frase refere. Por outro lado, a situação chega a
expressões que respeitam a factos e que tomam possível a sua previsão, mas não os dá como necessários. No final da Filosofia da doutrina do espaço-tempo, Reichenbach criticava a interpretação rigorosamente determinista da causalidade que se exprime nas leis naturais e insistia no carácter probabilístico da própria causalidade. A física quântica parece-lhe ser a maior confirmação desta tese e a
ela Reichenbach. dedicou um importante ensaio de interpretação. Partindo das relações de indeterminação de Heisenberg, Reichenbach refere-se aos acontecimentos observáveis e aos não observáveis: estes últimos seriam inter-fenómenos e só poderiam ser
introduzidos por inferências de tipo muito mais'
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complicado do que as usadas para os acontecimentos observáveis. A introdução dos inter-,fenómenos serviria para eliminar as anomalias causais, isto é, a relativa imprevisibilidade dos fenómenos quânticos (Philosophic Foundations of Quantum Mechanics, §
8). Quanto às linguagens em que o mundo físico pode ser descrito, o autor distingue a linguagem corpuscular, a ondulatória e a neutra. As duas primeiras incluem anomalias causais e tornam impossível uma completa descrição dos fenómenos; quanto à terceira, apresenta ainda uma anomalia na medida em que elimina o princípio do terceiro excluído e
introduz uma lógica a três valores na qual, além do verdadeiro e do falso, existe o indeterminado, (Ib., § 30). De acordo com esta concepção da ciência, a
teoria das probabilidades toma um interesse fundamental; e os resultados que Reichenbach conseguiu neste campo serão expostos um pouco mais à frente (§ 816).
Reichenbach partilha com todos os outros neo-empiristas a teoria segundo a qual o significado de uma proposição consiste na sua :verificação; mas considera que se deva apelar para uma verificação possível e não para uma que o seja de facto. A este propósito, o autor distingue três tipos de possibilidade: a lógica, que significa não contraditoriedade, à física, que significa a não contraditoridade com as leis físicas e a técnica que consiste no uso dos métodos práticos conhecidos. A física assume normalmente como critério de significação para os seus enunciados a possibilidade física; mas na discussão das teorias físicas usa muitas vezes a possibilidade
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lógica para mostrar a inconsistência de algumas delas (Verifiability Theory of Meaning, in Proceedings of the American Academy of Arts and Science, vol. 80, 1951, págs. 53 e segs.).
§ 816. REICHENBACH: PROBABILIDADE E INDUÇÃO
Como vimos, é um lugar-comum no neo-empirismo a afirmação de que a ciência é constituída por duas formas diferentes de proceder: aquela que consiste na formulação de inferência ou deduções analíticas e a que consiste na formulação indutiva de proposições sobre a realidade. As análises dos neo-positivistas dirigiram-se sobretudo para a primeira destas formas de proceder e para os problemas lógicos a que ela dá origem (cfr. § 819). Quanto à análise da segunda, podemos encontrar alguns contributos importantes em Carnap, Reichenbach e outros. Vamos agora falar deles.
Segundo o neo-positivismo, que repete neste ponto
a doutrina de Hume, as proposições que se referem
a factos serão possíveis ou contingentes mas nunca necessárias. Além disso, as proposições universais ou leis são apenas (de acordo com a doutrina comum de Wittgenstein, Sclilick e Carnap) hipóteses dotadas de um valor provável. O neo-positivismo acabou assim por se voltar contra a tese, própria do positivismo oitocentista, do rigoroso determinismo causal dos fenómenos. O físico austríaco Philipp Frank (nascido em 1884), que se encontrava entre os fun-
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dadores do Círculo de Viena, foi um dos críticos do conceito clássico da causalidade (O significado da moderna teoria física para a teoria do conhecimento, 1933; O princípio causal e os seus limites, 1932;
O fim da mecânica, 1935; Entre a física e a filosofia,
1941, A ciência moderna e a sua filosofia, 1949, sendo as duas últimas obras, publicadas na América, compostas por ensaios escritos entre 1907 e 1947). Frank criticou o significado ontológico ou metafísico do princípio da causalidade e considerou-o simplesmente como uma regra de previsão. Neste sentido, a diferença entre a física clássica e a quântica reside apenas no facto de a primeira explicar a coincidência aproximada entre as previsões dos acontecimentos
e os próprios acontecimentos, recorrendo ao carácter aproximado da descrição em que se baseia a previsão, enquanto que a segunda admite explicitamente o carácter indeterminado da relação entre previsão e acontecimento futuro. Frank notou ainda que é ilegítimo construir generalizações metafísicas dos princípios ou dos resultados da ciência experimental; e viu a razão de ser das diferenças existentes entre a
ciência e a filosofia no facto de esta se manter em fases já superadas pela ciência.
No âmbito destas ideias, que se tornaram património comum dos neo-empiristas, o conceito da probabilidade adquiriu grande importância para a interpretação dos enunciados factuais da ciência e em particular das leis científicas. E os neo-positivistas preferem uma interpretação estatística deste conceito, admitindo que a probabilidade consiste na frequência relativa com que se verifica um aconte-
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cimento; logo, ela diz respeito não a acontecimentos individuais mas sim a conjuntos de acontecimentos. Em fins de 1919 o matemático austríaco Richard Von Mises (nascido em 1883), membro do Círculo de Berlim e autor, entre outras obras, de um Manual do positivismo (1939; trad. ital, com o título Manuale di critica científica e filosófica, 1950), defendera a
concepção estatística das probabilidades, que expôs mais tarde no livro Probabilidade, estatística e verdade (1928; trad. inglesa, 1939). Mais precisamente, Von Mises achava que a probabilidade consiste no
limite das frequências relativas; se em n observações o acontecimento teve lugar m vezes, então o quociente mIn (frequência relativa) tende para um valor limite quando o numerador e o denominador se tornam sempre maiores e este valor limite pode ser
considerado como a medida da probabilidade. Von Mises achava porém que o cálculo das probabilidades não pode servir para justificar a inferência indutiva porque a passagem das observações para os princípios teóricos gerais não e uma conclusão lógica mas sim uma escolha; pode-se supor que essa escolha resista a futuras observações, mas acontece que, na realidade, ela pode variar em qualquer momento e das formas mais imprevistas (Kleines Lehrbuch des Positivismus, § 14).
Pelo contrário, Reichenbach considerou que a
probabilidade é um fundamento suficiente para a
indução (Theory of Probability, 1949, p. 446; Experience and Prediction, 1938, págs. 339 e segs.); e
concordaram com esta tese o americano C. I. Lewis (Analysis of Knowledge, 1946) e os ingleses W.
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Kneale (Probability and Induction, 1949), 1. O. Wisdom (Foundation of Inference, in Natural Science,
1952) e R. B. Braithwaite (Scientific Explanation,

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