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MANUAL DE SOCIOLOGIA DO CRIME Helena Machado 2008 Manuscrito pré-publicação Versão editada: Machado, Helena (2008) Manual de Sociologia do Crime. Porto: Afrontamento i Índice NOTA INTRODUTÓRIA ............................................................................................. VI I. ORIENTAÇÕES GERAIS DA UNIDADE CURRICULAR E MÉTODOS DE ENSINO TEÓRICO E PRÁTICO ............................................................................................... XI CAPÍTULO 1 - OBJECTIVOS, PROGRAMA, APRENDIZAGEM E AVALIAÇÃO .............. 12 1.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ....................................................... 14 1.2. OBJECTIVOS E ORIENTAÇÃO GERAL ......................................................................... 15 1.3. APRESENTAÇÃO GENÉRICA DO PROGRAMA ............................................................ 18 1.4. ESTRUTURAÇÃO DAS SESSÕES DE TRABALHO ........................................................ 22 1.5. MÉTODOS DE ENSINO TEÓRICO E PRÁTICO .............................................................. 23 1.6. SISTEMA DE AVALIAÇÃO ............................................................................................. 26 1.7. RECOMENDAÇÕES PARA O PLANEAMENTO E ORGANIZAÇÃO DA APRENDIZAGEM .. ................................................................................................................................... 27 1.8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 28 II. APRESENTAÇÃO E JUSTIFICAÇÃO DO PROGRAMA E DOS SEUS CONTEÚDOS 29 CAPÍTULO 2 – O CRIME COMO OBJECTO DA SOCIOLOGIA .................................... 30 2.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ....................................................... 32 2.2. A DEFINIÇÃO SOCIOLÓGICA DE CRIME ..................................................................... 33 2.3. ACTIVIDADE FORMATIVA 1.......................................................................................... 39 2.4. A ESPECIFICIDADE DA ABORDAGEM DA SOCIOLOGIA DO CRIME ........................... 40 2.5. AS INTERROGAÇÕES DA SOCIOLOGIA DO CRIME .................................................... 42 2.6. ACTIVIDADE FORMATIVA 2.......................................................................................... 45 2.7. SÍNTESE ....................................................................................................................... 46 2.8. TESTE FORMATIVO ...................................................................................................... 46 2.9. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR ............................................................ 47 2.10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ............................................................................. 48 CAPÍTULO 3 – PRINCIPAIS MÉTODOS, TÉCNICAS DE PESQUISA E FONTES DE INFORMAÇÃO NA SOCIOLOGIA DO CRIME ............................................................ 49 3.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ....................................................... 51 3.2. MÉTODOS NA SOCIOLOGIA DO CRIME ...................................................................... 52 ii 3.3. TÉCNICAS DE INVESTIGAÇÃO NA SOCIOLOGIA DO CRIME ...................................... 54 3.3.1. INQUÉRITOS SOCIAIS ..................................................................................... 54 3.3.2. ESTUDOS DE CASO ........................................................................................ 56 3.3.3. OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE ....................................................................... 57 3.3.4. ESTUDOS DE FOLLOW-UP ............................................................................. 58 3.4. ACTIVIDADE FORMATIVA 3.......................................................................................... 59 3.5. FONTES DE INFORMAÇÃO SOBRE O CRIME .............................................................. 60 3.5.1. ESTATÍSTICAS CRIMINAIS .............................................................................. 60 3.5.2. ESTATÍSTICAS DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE APOIO À VÍTIMA (APAV) . ...................................................................................................................... 62 3.5.3. RELATÓRIOS DE SEGURANÇA INTERNA ....................................................... 63 3.5.4. INQUÉRITOS DE VITIMAÇÃO .......................................................................... 64 3.6. ACTIVIDADE FORMATIVA 4.......................................................................................... 67 3.7. SÍNTESE ....................................................................................................................... 67 3.8. TESTE FORMATIVO ...................................................................................................... 67 3.9. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR ............................................................ 69 3.10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 72 CAPÍTULO 4 – SOCIOGÉNESE DA SOCIOLOGIA DO CRIME..................................... 74 4.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ....................................................... 76 4.2. O PENSAMENTO SOBRE O CRIME NA ANTIGUIDADE................................................. 77 4.3. A VISÃO ESPIRITUAL .................................................................................................... 79 4.4. O RENASCIMENTO ...................................................................................................... 80 4.5. A CRIMINOLOGIA CLÁSSICA ....................................................................................... 81 4.6. ACTIVIDADE FORMATIVA 5.......................................................................................... 84 4.7. O POSITIVISMO CRIMINOLÓGICO .............................................................................. 84 4.8. ACTIVIDADE FORMATIVA 6.......................................................................................... 87 4.9. SÍNTESE ....................................................................................................................... 87 4.10. TESTE FORMATIVO ................................................................................................... 88 4.11. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR .......................................................... 89 4.12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 90 CAPÍTULO 5 – A ABORDAGEM DO CRIME NOS CLÁSSICOS DA SOCIOLOGIA ........ 91 5.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ....................................................... 93 5.2. INTRODUÇÃO ÀS TEORIAS SOCIOLÓGICAS DO CRIME ............................................ 94 5.3. KARL MARX E A VISÃO DO CRIME NA SOCIEDADE CAPITALISTA .............................. 97 5.4. DESENVOLVIMENTOS POSTERIORES DA ABORDAGEM MARXISTA .......................... 99 5.5. ACTIVIDADE FORMATIVA 7........................................................................................ 101 iii 5.6. O CONCEITO DE ANOMIA E A TESE DA NORMALIDADE E DA FUNCIONALIDADE DO CRIME EM DURKHEIM ................................................................................................ 102 5.7. ACTIVIDADE FORMATIVA 8........................................................................................ 105 5.8. SÍNTESE ..................................................................................................................... 105 5.9. TESTE FORMATIVO ....................................................................................................105 5.10. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR ........................................................ 106 5.11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 107 CAPÍTULO 6 – TEORIA DA ANOMIA DE MERTON E DA ESTRUTURA DAS OPORTUNIDADES ILEGÍTIMAS DE CLOWARD E OHLIN ......................................... 109 6.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ..................................................... 111 6.2. A TEORIA DA ANOMIA E DAS FORMAS DE ADAPTAÇÃO À SOCIEDADE SEGUNDO ROBERT MERTON ...................................................................................................... 112 6.3. ACTIVIDADE FORMATIVA 9........................................................................................ 117 6.4. AS SUB-CULTURAS DELINQUENTES E A ESTRUTURA DE OPORTUNIDADES ILEGÍTIMAS, SEGUNDO CLOWARD E OHLIN .................................................................... 117 6.5. ACTIVIDADE FORMATIVA 10...................................................................................... 120 6.6. SÍNTESE ..................................................................................................................... 121 6.7. TESTE FORMATIVO .................................................................................................... 121 6.8. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR .......................................................... 122 6.9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 122 CAPÍTULO 7 - A ESCOLHA DE CHICAGO: ESPAÇO URBANO, ECOLOGIA CRIMINAL E DESORGANIZAÇÃO SOCIAL ................................................................................. 124 7.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ..................................................... 126 7.2. CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DO DESENVOLVIMENTO DA ESCOLA DE CHICAGO .. ................................................................................................................................. 127 7.3. A TEORIA DA ECOLOGIA HUMANA ........................................................................... 128 7.4. A TEORIA DAS ZONAS CONCÊNTRICAS ................................................................... 129 7.5. ACTIVIDADE FORMATIVA 11...................................................................................... 132 7.6. SÍNTESE ..................................................................................................................... 133 7.7. TESTE FORMATIVO .................................................................................................... 133 7.8. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR .......................................................... 134 7.9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 134 CAPÍTULO 8 – TEORIAS DA SUBCULTURA DELINQUENTE ..................................... 136 8.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ..................................................... 138 iv 8.2. O CONCEITO DE SUBCULTURA DELINQUENTE ....................................................... 139 8.3. AS DIFERENTES PERSPECTIVAS DA SUBCULTURA DELINQUENTE ......................... 140 8.4. ACTIVIDADE FORMATIVA 12...................................................................................... 143 8.5. SÍNTESE ..................................................................................................................... 144 8.6. TESTE FORMATIVO .................................................................................................... 145 8.7. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR .......................................................... 146 8.8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 146 CAPÍTULO 9 – TEORIA DA ROTULAGEM ............................................................... 147 9.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ..................................................... 149 9.2. O DESVIO COMO O RESULTADO DE UMA ACÇÃO COLECTIVA .............................. 150 9.3. ALGUNS AUTORES DA TEORIA DA ROTULAGEM ..................................................... 151 9.4. CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA TEORIA DA ROTULAGEM .................................... 153 9.5. ACTIVIDADE FORMATIVA 13...................................................................................... 156 9.6. SÍNTESE ..................................................................................................................... 156 9.7. TESTE FORMATIVO .................................................................................................... 157 9.8. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR .......................................................... 158 9.9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 158 CAPÍTULO 10 – GÉNERO E CRIME ........................................................................ 159 10.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ................................................... 161 10.2. TEMAS E DEBATES DA CRIMINOLOGIA FEMINISTA ............................................... 162 10.3. AS DIFENTES CORRENTES DAS TEORIAS FEMINISTAS DO CRIME ........................ 164 10.4. OS IMPACTOS DO GÉNERO NO CRIME .................................................................. 166 10.5. ACTIVIDADE FORMATIVA 13 ................................................................................... 168 10.6. SÍNTESE ................................................................................................................... 168 10.7. TESTE FORMATIVO ................................................................................................. 169 10.8. LEITURAS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR ........................................................ 170 10.9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 170 III. – PROBLEMÁTICAS, ORIENTAÇÕES E DEBATES ACTUAIS SOBRE O CRIME ... 172 CAPÍTULO 11 – TENDÊNCIAS DA CRIMINALIDADE, SISTEMA PRISIONAL E POLÍTICAS CRIMINAIS ............................................................................................................ 173 11.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM ................................................... 175 11.2. ESTRATÉGIA PEDAGÓGICA NA ABORDAGEM DAS ACTUAIS PROBLEMÁTICAS, ORIENTAÇÕES E DEBATES SOBRE O CRIME ......................................................... 176 v 11.3. GUIÃO DE AUTO-APRENDIZAGEM PARA «TENDÊNCIAS DA CRIMINALIDADE» .... 176 11.3.1. NOTAS INTRODUTÓRIAS ........................................................................... 176 11.3.2. ACTIVIDADE FORMATIVA 14 ...................................................................... 178 11.3.3. LEITURAS E FONTES DE INFORMAÇÃO .................................................... 179 11.4. GUIÃO DE AUTO-APRENDIZAGEM PARA «SISTEMA PRISIONAL» ......................... 181 11.4.1. NOTAS INTRODUTÓRIAS ........................................................................... 181 11.4.2. ACTIVIDADE FORMATIVA 15 ...................................................................... 184 11.4.3. LEITURAS E FONTES DE INFORMAÇÃO .................................................... 184 11.5. GUIÃO DE AUTO-APRENDIZAGEM PARA «POLÍTICAS CRIMINAIS»....................... 186 11.5.1. NOTAS INTRODUTÓRIAS ........................................................................... 186 11.5.2. ACTIVIDADE FORMATIVA 16 ...................................................................... 189 11.5.3. LEITURAS E FONTES DE INFORMAÇÃO ....................................................190 11.6. SÍNTESE ................................................................................................................... 191 11.7. TESTE FORMATIVO ................................................................................................. 191 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 192 vi NOTA INTRODUTÓRIA Este livro é um manual de ensino e de aprendizagem na área da Sociologia do Crime, segundo as novas metodologias pedagógicas preconizadas pelo denominado “Processo de Bolonha”. Trata-se de um texto que pode interessar tanto a estudantes, como a docentes do ensino superior, de áreas como a Sociologia, a Criminologia, o Direito, a Antropologia, a Psicologia Social, o Serviço Social, a Reinserção Social e a Animação Sócio-Cultural. Redigido numa linguagem acessível, oferece um instrumento pedagógico de organização de uma unidade curricular em Sociologia do Crime. Propõe e expõe alguns dos principais conteúdos programáticos centrais ligados a esta área do saber, aponta actividades formativas a desenvolver em grupo e na sala de aula, apresenta testes formativos destinados à auto-aprendizagem e auto-avaliação e indica leituras e fontes de informação. A selecção de conteúdos vai de encontro aos principais eixos temáticos, perspectivas teóricas e abordagens metodológicas da Sociologia do Crime, tentando-se alcançar um equilíbrio entre o tratamento geral do crime e a discussão de temas mais específicos da criminalidade. Sempre que possível, apresentam-se casos retirados da realidade portuguesa e recorre-se às experiências e conhecimentos próximos das realidades vividas e conhecidas pelos próprios estudantes, procurando mostrar a relevância da Sociologia do Crime para a sua análise, desconstrução crítica e interpretação. A construção deste texto nasceu num contexto de expressiva mudança do ensino superior em Portugal, conduzido pelo “Processo de Bolonha”. De facto, ao mesmo tempo que ainda se assiste hoje nas Universidades Portuguesas a uma reduzida atenção face às questões especificamente pedagógicas, é agora convocada a necessidade de substituir as anteriores pedagogias “transmissivas”, centradas no saber e autoridade institucionalmente legitimado do docente, que encontrava na sala de aula o cenário adequado à expressão ritualizada da transmissão da informação. vii Novos modelos pedagógicos impõem-se no quadro de uma emergente sociedade do conhecimento, em que a própria informação científica especializada está disponível, para docentes e discentes, na Internet. A função que a Universidade assumiu durante séculos, de repositório privilegiado do conhecimento e de instância por excelência da sua transmissão, vê-se agora confrontada com novos desafios. Estes exigem a substituição do paradigma da transmissão e absorção passiva do conhecimento, por um novo paradigma de aprendizagem, no qual o aluno detém autonomia para construir a sua própria aprendizagem. Parte-se do pressuposto basilar que o saber transmitido na sala de aula não é a fonte única de informação que determina o esforço pedido ao aluno. Neste contexto, o que se exige ao docente é sobretudo a capacidade de poder agir como um guia no processo de aprendizagem, criando situações que valorizem o trabalho autónomo do aluno e que reconheçam a pluralidade das fontes de conhecimento no contexto do actual ambiente tecnológico e social. Nos moldes exigidos pelas reformas conducentes à construção de um espaço europeu de ensino superior, leva-se mais longe o imperativo de adequar os métodos de ensino teórico e prático ao paradigma emergente da aprendizagem guiada mas autónoma por parte do aluno, em que este é um construtor da própria aprendizagem. O manual está estruturado em onze capítulos, que correspondem a distintas unidades de aprendizagem. O primeiro capítulo apresenta uma proposta de programa de uma unidade curricular em Sociologia do Crime, apontando uma planificação das sessões de trabalho e das principais orientações pedagógicas, de ensino, de aprendizagem e de avaliação. O segundo capítulo inaugura a exposição de conteúdos programáticos, incide sobre o problema da definição e construção do crime como objecto da Sociologia e da sua relação com os diferentes modos como este é definido noutras áreas do conhecimento, tais como as ciências jurídicas, as ciências biológicas e as ciências psicológicas e psiquiátricas. Discute-se o que pode ser o contributo específico da Sociologia para a abordagem do crime, começando pela própria definição do conceito, procedendo-se a uma diferenciação entre a viii definição jurídico-legal de crime e a definição sociológica e salientando-se a complexidade inerente a este passo introdutório ao nível dos estudos sociais do fenómeno criminal. Por fim, formulam-se as principais questões dirigidas à realidade social que a Sociologia do Crime suscita. O terceiro capítulo explana as principais metodologias e técnicas de investigação social no domínio do crime, apontando as respectivas potencialidades e lacunas. Remete-se ainda os leitores para as principais fontes de informação sobre criminalidade, nos planos nacionais e internacionais, sublinhando a necessidade de adoptar uma atitude crítica face às mesmas. O quarto capítulo expõe as principais características do pensamento sobre o crime – a sua natureza e causas – em diferentes períodos históricos. Remete-se ainda para as possíveis implicações político-criminais subjacentes a uma postura de acentuação das responsabilidades da sociedade perante o criminoso, por um lado, contraposta a uma posição de defesa face ao crime, sentido como ameaça, por outro lado. O quinto capítulo enuncia as principais teorias sociológicas do crime que poderão ser abordadas no âmbito de uma unidade curricular de Sociologia do Crime e discute principalmente os contributos dos Clássicos da Sociologia para o estudo do crime, em particular a obra de Karl Marx e Émile Durkheim. Apresentam-se ainda, as principais coordenadas de diferenciação das diversas teorias sociológicas do crime, a saber: (i) a distinção entre teorias etiológico- explicativas e teorias da reacção social; (ii) a demarcação entre teorias do consenso e do conflito. O sexto capítulo centra-se na teoria da anomia e nas modalidades de adaptação à sociedade, desenvolvidas por Robert Merton. A contradição entre a estrutura cultural e a estrutura social é apresentada como o factor desencadeador de comportamentos desviantes, nomeadamente do crime. Autores como Cloward e Ohlin conferem continuidade a essa perspectiva, apontando os factores que diferenciam a posição dos indivíduos no contexto das subculturas delinquentes, nomeadamente a existência de uma estrutura social de oportunidades ilegítimas, produtora de desigualdades sociais, tal como ocorre na estrutura social legítima. ix O sétimo capítulo expõe-se as principais coordenadas filosóficas, teóricas e metodológicas da abordagem do crime desenvolvida pela Escola de Chicago. Apresenta-se a visão da cidade desenvolvida pelos vários autores e os desenvolvimentos conferidos, em particular, à teoria da ecologia humana e das zonas concêntricas. Referem-se ainda as principais críticas a apontar a esta corrente de pensamento. O oitavo capítulo apresenta algumas perspectivas sobre o conceito de subcultura delinquente, tendo-se procurado definir o conceito, percebendo o seu conteúdo, génese, funções e tipo de relações desenvolvidas com a cultura dominante. O nono capítulo desenvolve a teoria da rotulagem. Apresentam-se os pressupostos gerais da abordagem do desvio,explicitam-se os contributos específicos de alguns teóricos mais representativos desta corrente de pensamento e sintetizaram-se os principais conceitos utilizados pelas teorias interaccionistas do desvio. O décimo capítulo centra-se na abordagem feminista da criminalidade. Aponta-se a necessidade de considerar as relações sociais de género na abordagem da criminalidade e do sistema de justiça criminal. Explicitam-se os contributos específicos para a Sociologia do crime produzidos pelas distintas correntes feministas e apontam-se pistas de análise para a explicação das diferenças entre homens e mulheres nas relações estabelecidas com o crime. Por fim, o décimo primeiro capítulo privilegia a componente de auto- aprendizagem dos estudantes, exigindo níveis e competências de autonomia na recolha e organização de informação, com vista à construção do conhecimento sobre as seguintes temáticas: (i) tendências evolutivas da criminalidade, em termos macro e micro; (ii) dimensões de análise privilegiadas nos estudos prisionais; (iii) diversidade de políticas criminais e articulação com os distintos legados científicos das teorias sociológicas do crime. Este manual foi construído tendo em atenção que é imperativo adequar os contextos de aprendizagem ao duplo constrangimento de, por um lado, as actividades de docência se realizarem maioritariamente no espaço da sala de aula e, por outro lado, a necessidade desta ter um perfil motivador que convide os x estudantes à procura autónoma de informação complementar para a resolução dos casos práticos apresentados. Não obstante a ênfase colocada para a acção e relação pedagógicas, a exposição que se segue reflecte ainda outras preocupações que passam, nomeadamente, pelo desenvolvimento de um conjunto seleccionado de conteúdos científicos e pela projecção de uma reflexão e incentivo a uma prática situada, da parte de docentes e estudantes, que vá de encontro aos desafios que nos apresentam as sociedades actuais, crescentemente confrontadas com o fenómeno criminal nas suas mais diversas vertentes. I. ORIENTAÇÕES GERAIS DA UNIDADE CURRICULAR E MÉTODOS DE ENSINO TEÓRICO E PRÁTICO CAPÍTULO 1 - OBJECTIVOS, PROGRAMA, APRENDIZAGEM E AVALIAÇÃO 13 SUMÁRIO 1.1. Resultados esperados de aprendizagem 1.2 Objectivos e orientação geral 1.3. Apresentação genérica do programa 1.4. Estruturação das sessões de trabalho 1.5. Métodos de ensino teórico e prático 1.6. Sistema de avaliação 1.7. Recomendações para o planeamento e organização da aprendizagem 1.8. Referências bibliográficas 14 1.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM No final do processo de aprendizagem desta unidade programática, o estudante deverá estar apto a: ▪ identificar os objectivos gerais da unidade curricular; ▪ reconhecer a importância científica e social do estudo sociológico do crime; ▪ enunciar os principais pontos do programa; ▪ explicitar o método de ensino teórico e prático; ▪ explanar os distintos momentos de avaliação e respectivos requisitos; ▪ reconhecer os diversos procedimentos destinados a melhorar a qualidade da aprendizagem. 15 1.2. OBJECTIVOS E ORIENTAÇÃO GERAL A aprendizagem das principais abordagens realizadas ao nível dos estudos sociológicos do crime justifica-se desde logo pela relevância social que ocupa o fenómeno da criminalidade nas sociedades actuais. De facto, a preocupação com a evolução da criminalidade ocupa hoje, no conjunto dos países desenvolvidos, um lugar central nos discursos social, político, mediático e quotidiano. Nas últimas décadas, e na generalidade dos países desenvolvidos e em vias de desenvolvimento, o desmesurado crescimento dos centros urbanos tem-se feito acompanhar de efeitos de exclusão e de marginalização de importantes segmentos da sua população. A cidade aparece, assim, como o espaço para o qual todas as crises, todas as conflitualidades da sociedade parecem convergir, embora não sejam desprezíveis os sinais destas conflitualidades em zonas com características mais rurais e junto de populações mais isoladas. A compreensão do fenómeno criminal exige no entanto, que a sua leitura seja feita no quadro de uma problemática social e política mais vasta do que a da criminalidade, situando-a no campo da análise da insegurança e violência que caracteriza as sociedades actuais, assim como no quadro das políticas públicas de prevenção da criminalidade, que por força das características da governança actual têm sobretudo canalizado esforços para o acréscimo da eficácia da acção policial e outras medidas de carácter repressivo. Com efeito, a questão da insegurança e, em particular, da insegurança urbana - expressão utilizada para designar quer o medo do crime, quer a falta de adesão ao sistema normativo da sociedade, isto é, a manutenção da ordem social - ascendeu à categoria de preocupação nacional em todos os países desenvolvidos. Diversos autores referem mesmo uma obsessão pública com o crime, que se terá iniciado nos anos 80 do século XX e evolui nas décadas seguintes, podendo- se dizer que neste início do século XXI, temas como o crime, a delinquência juvenil e a justiça criminal se encontram entre as preocupações mais salientes dos cidadãos e governantes (Flanagan e Longmire, 1996), podendo-se mesmo falar de uma visão dramatizada do crime e insegurança, projectada sobretudo pelo poder político, assumindo-se hoje estes temas como importantes questões de preocupação e debate públicos (Machado, 2004). 16 A unidade curricular de Sociologia do Crime almeja dotar os alunos de instrumentos teóricos e metodológicos básicos que lhes permitam uma autonomia crescente no seu processo de aprendizagem e de aplicação prática dos conhecimentos. Esta necessidade é sobretudo premente ao nível da realização do estágio curricular ou seminário de investigação, geralmente realizado no último semestre dos cursos de ensino superior. Destaque-se, deste modo, a vocação específica desta unidade curricular para o processo de formação dos estudantes que desejem realizar estágio curricular ou desenvolver actividade profissional em contextos prisionais, gabinetes de atendimento e apoio a vítimas de crime, tribunais, institutos de reinserção social, instituições policiais, escolas e centros de acolhimento e reinserção social de delinquentes. O programa da unidade curricular de Sociologia do Crime está organizado em três blocos através dos quais se procurará facultar os elementos necessários para um processo de aprendizagem que atinja o objectivo geral de permitir aos estudantes adquirir as noções teóricas e metodológicas básicas necessárias à análise sociológica do crime, como alicerce fundamental ou para a prática de investigação científica nesse domínio, ou para a intervenção social em contexto profissional. Para que seja atingido o objectivo geral, o estudante deverá atingir os seguintes objectivos específicos: ▪ No final do primeiro bloco programático, o aluno está familiarizado com os conceitos básicos, técnicas de investigação principais e fontes de informação no domínio da Sociologia do Crime, assim como consegue identificar as principais etapas da evolução histórica do pensamento social sobre o crime e a especificidade da Sociologia nesta área do social; ▪ No final do segundo bloco programático, o aluno conhece as principais correntes teórico-metodológicas da análise sociológica do crime, adquirindo competências de discussão crítica comparativa das diferentes opçõesteóricas e metodológicas e de compreensão das condições sociais e teóricas que estão na base da emergência das distintas correntes ou escolas de pensamento, podendo perspectivar as respectivas implicações político-criminais; 17 ▪ No final do terceiro bloco programático, o aluno adquire conhecimento sobre as problemáticas, orientações e debates actuais no domínio do crime, estando habilitado a desenvolver uma abordagem crítica dos usos sociais e políticos dos discursos e práticas desenvolvidos em torno da criminalidade, insegurança e violência. 18 1.3. APRESENTAÇÃO GENÉRICA DO PROGRAMA O programa da unidade curricular de “Sociologia do Crime” está organizado em três blocos programáticos, por sua vez sub-divididos em unidades ou módulos de aprendizagem: (i) o crime como objecto da Sociologia; (ii) teorias sociológicas do crime e (iii) problemáticas, orientações e debates actuais na Sociologia do crime. O primeiro ponto programático incide sobre o problema da definição e construção do crime como objecto da sociologia e da sua relação com os diferentes modos como este é definido noutras áreas do conhecimento, como as ciências jurídicas, as ciências biológicas e as ciências psicológicas; assim como em diferentes contextos e domínios da vida social. Procura-se, nesta parte, explorar e definir o que pode ser o contributo específico da Sociologia para a abordagem do crime, começando pela própria definição do conceito: neste âmbito, procede-se a uma diferenciação entre a definição jurídico-legal de crime e a definição sociológica, salientando-se a complexidade inerente a este passo introdutório ao nível dos estudos sociais do fenómeno criminal. Na prossecução lógica da definição sociológica do conceito de crime, procede-se a uma explicitação das principais metodologias e técnicas de investigação social neste domínio, remetendo-se, de igual modo, para as principais fontes de informação sobre criminalidade, nos planos nacionais e internacionais. Com o intuito de destacar o que pode ser a especificidade da abordagem sociológica do crime, procede-se ainda a uma tipificação de outros modos científicos de análise e estudo do fenómeno criminal, nomeadamente apontando as características das denominadas abordagens biológicas e psicológicas. De seguida e para encerrar o primeiro bloco programático, que tem como objectivo principal proporcionar uma introdução global à abordagem sociológica do crime, procede-se a um esboço histórico de distintas abordagens do fenómeno criminal, desde a Antiguidade, passando pela Idade Média, Renascimento, Iluminismo e culminando nas amplas repercussões do positivismo do Séc. XIX. Com isto, procura-se traçar um panorama das distintas abordagens do crime e de que modo estas têm variado consoante as épocas históricas e o manancial de conhecimentos teóricos e empíricos disponíveis. 19 O seguinte bloco programático confere amplo desenvolvimento e discussão ao que se optou por denominar como “teorias sociológicas do crime”, expondo as principais coordenadas do tratamento do crime nos clássicos da Sociologia e em abordagens mais recentes. A exposição de diferentes perspectivas teóricas e metodológicas do fenómeno criminal aqui apresentada, não segue sempre uma sequência cronológica, antes se privilegia o desenvolvimento da argumentação de acordo com as continuidades e descontinuidades dos legados teóricos e dos temas privilegiados pelos distintos autores e escolas de pensamento. O último ponto do programa da unidade curricular de “Sociologia do Crime” debruça-se sobre as problemáticas, orientações e debates actuais no contexto desta área da vida em sociedade. Num primeiro momento, apontam-se as principais tendências evolutivas da criminalidade nos países europeus, mormente em Portugal, apresentando-se ocasionalmente uma perspectiva comparativa com alguns países cujos altos índices de criminalidade necessariamente despertam a atenção dos analistas sociais do crime, nomeadamente os E.U.A. e o Brasil. O aparelho de controlo social é igualmente objecto de análise e problematização, destacando-se a abordagem sociológica do sistema prisional, privilegiando-se a análise de situações empíricas concretas que envolvem relações sociais passíveis não só de estudo científico, mas também de intervenção social. Por fim, expõem- se alguns dos rumos actuais das políticas criminais, discutindo-se as distintas abordagens da criminalidade que lhe estão subjacentes e apontando-se os factores que interferem ou condicionam os processos de tomada de decisão no âmbito das políticas públicas nesta área do social. Antes da apresentação e desenvolvimento de cada um dos conteúdos, formulam-se os resultados esperados de aprendizagem em relação a cada um dos pontos do programa. Após a explicitação dos conteúdos de cada unidade de aprendizagem, apresenta-se uma síntese, propõe-se actividades formativas, um teste formativo e indicam-se leituras obrigatórias e leituras e fontes de informação complementares. Apresenta-se a seguir o enunciado dos tópicos do programa da unidade curricular de Sociologia do Crime: 20 Programa da Unidade Curricular de Sociologia do Crime 1.O crime como objecto da Sociologia 1.1. A definição sociológica de crime 1.1.1. O problema do objecto de estudo 1.1.2. O conceito jurídico e sociológico de crime 1.1.3. A relação entre crime e desvio 1.2. As bases das explicações científicas do crime 1.2.1. As diferentes ciências criminais: Biologia, Psicologia, Psiquiatria e Sociologia. 1.2.2. A especificidade da abordagem sociológica do crime. 1.3. Métodos e técnicas de investigação em Sociologia do Crime 1.3.1. Métodos quantitativos e qualitativos na Sociologia do Crime 1.3.2. Técnicas de investigação na Sociologia do Crime 1.3.2.1. Inquéritos sociais 1.3.2.2. Estudos de caso 1.3.2.3. Observação participante 1.3.2.4. Estudos de follow-up 1.4. Fontes de informação sobre o crime 1.4.1. Estatísticas criminais 1.4.2. Estatísticas da associação de apoio à vítima (APAV) 1.4.3. Relatórios de segurança interna 1.4.4. Inquéritos de vitimação 2. Teorias sociológicas do crime 2.1. Sociogénese da Sociologia do crime 2.1.1. A antiguidade 2.1.2. A idade média 2.1.3. O renascimento 2.1.4. O Iluminismo 2.1.5. O positivismo criminal 2.2. Os clássicos 2.2.1. A abordagem marxista 2.2.2. O legado de Durkheim 2.3. As teorias funcionalistas 2.3.1. A teoria da anomia 2.3.2. A teoria da estrutura de oportunidades ilegítima 2.4. A Escola de Chicago: 2.4.1. Espaço urbano e criminalidade 2.4.2. A teoria da ecologia humana 2.4.3. A teoria das zonas concêntricas 2.4.4. O controlo social secundário 2.5. Teorias da subcultura delinquente 2.5.1. O conceito de sub-cultura 2.5.2. Subcultura e cultura dominante 21 2.5.3. Grupos de referência e efeitos de status 2.6. Teorias da rotulagem 2.6.1. O desvio como acção colectiva 2.6.2. A acção criminosa e a reacção social 2.6.3. As instâncias de controlo e as audiências 2.6.4. O pluralismo axiológico e o relativismo 3. Temas e debates actuais na sociologia do crime 3.1. Configurações e dinâmicas da criminalidade nas sociedades actuais 3.1.1. O imaginário actual da criminalidade 3.1.2. Incidência de crimes e variações 3.1.3. Abordagens macro e micro 3.2. As abordagens sociológicas do sistema prisional 3.2.1. Os estudos clássicos e contemporâneos 3.2.2. Dimensões de análise do meio prisional 3.2.3. Caracterização do sistema prisional: tendências nacionais e europeias 3.3. Rumos actuais das políticas criminais 3.3.1. As políticas repressivas e preventivas 3.3.2. A descriminalizaçãoe neocriminalização 3.3.3. Implicações político-criminais das teorias sociológicas do crime 22 1.4. ESTRUTURAÇÃO DAS SESSÕES DE TRABALHO Existe uma planificação prévia e estruturada das sessões de trabalho de contacto directo entre o docente e os alunos, indicando-se a semana lectiva, sessão, o módulo de aprendizagem e respectivos conteúdos programáticos e actividades formativas. Quadro 1 – Planificação das Sessões de Trabalho Semanas Sessões Módulos Conteúdos 1. Aula 1 --- Apresentação. Programa. Bibliografia. Regras de funcionamento e avaliação. 1. Aula 2 1 A definição sociológica de crime. Actividade formativa 1 2. Aula 3 1 As bases das explicações científicas do crime. 2. Aula 4 1 Actividade formativa 2 3. Aula 5 2 Métodos e técnicas de investigação em Sociologia do Crime 3. Aula 6 2 Actividade formativa 3 4. Aula 7 2 Fontes de informação 4. Aula 8 2 Actividade formativa 4 5. Aula 9 3 Sociogénese da Sociologia do crime 5. Aula 10 3 Actividade formativa 5 e 6 6. Aula 11 4 A abordagem marxista 6. Aula 12 4 Actividade formativa 7 7. Aula 13 5 A teoria da anomia de Durkheim 7. Aula 14 5 Actividade formativa 8 8. Aula 15 6 As teorias funcionalistas 8. Aula 16 6 Actividade formativa 9 e 10 9. Aula 17 7 A Escola de Chicago 9. Aula 18 7 Actividade formativa 11 10. Aula 19 7 Teorias da subcultura delinquente 10. Aula 20 7 Actividade formativa 12 11. Aula 21 8 Teorias da rotulagem 11. Aula 22 8 Actividade formativa 13 12. Aula 23 9 Organização e planificação das actividades formativas relativas a problemáticas, orientações e debates actuais sobre o crime 12. Aula 24 9 Tendências actuais da criminalidade: Actividade formativa 14 13. Aula 25 9 A abordagem sociológica do sistema prisional: Actividade formativa15 13. Aula 26 9 Rumos actuais das políticas criminais: Actividade formativa 16 14. Aula 27 9 Colóquio – Actividade formativa 17 14. Aula 28 9 Seminário – Actividade formativa 18 23 1.5. MÉTODOS DE ENSINO TEÓRICO E PRÁTICO Factores de natureza sócio-institucional influenciaram as opções pedagógico-didácticas da unidade curricular de Sociologia do Crime, a saber: (i) exigências criadas à docência pela emergência da sociedade do conhecimento e disseminação crescente das novas tecnologias de informação e comunicação em diferentes esferas da vida em sociedade; (ii) imperativos de adopção de novas metodologias de ensino e aprendizagem que permitam ultrapassar o tradicional e ainda dominante paradigma da transmissão passiva e absorção do saber, e pôr em prática um paradigma de aprendizagem guiada mas autónoma e activa, que requer um elevado envolvimentos dos estudantes, como sujeitos construtores do próprio processo de aprendizagem; (iii) coexistência de práticas e pedagogias tradicionais, alimentadas por um sistema que (ainda) privilegia ou quase que exclusivamente contabiliza as horas de trabalho por referência às horas de contacto. O método de ensino adoptado resultou da tentativa de equilibrar vários elementos: não só os mencionados constrangimentos sócio-institucionais, a que não são alheias imposições administrativas quanto a regime de aulas e dimensão da equipa docente, como de igual modo a tomada em consideração das aspirações sócio-profissionais e perfis de procura de saberes na população de estudantes do ensino superior. Adoptou-se sobretudo a estratégia de combinar procedimentos diversificados, ainda que antecipadamente organizados e dados a conhecer aos alunos, no sentido proposto por Madureira Pinto (1997), quando afirma que “São constrangimentos de natureza muito variada e eminentemente mutáveis, que, portanto, desaconselham quaisquer tentativas para encontrar soluções universais ou fórmulas mágicas no plano didáctico.” (Pinto, 1997: 50). Para um período lectivo de catorze semanas decorrem 28 horas de sessões teóricas e 28 horas de sessões teórico-práticas. As aulas teóricas são predominantemente expositivas, de acordo com os conteúdos contemplados no programa da unidade curricular. No entanto, os estudantes são convocados a intervir sempre que julgarem oportuno, sendo 24 disponibilizados os materiais necessários para que essa interpelação seja fundamentada e produtiva para todos os intervenientes e elementos presentes na sala de aula. Antes de cada sessão teórica e semanalmente, o docente disponibiliza um documento que contém os seguintes elementos: enunciação e explicitação sumária dos principais conceitos e problemáticas a abordar na sala de aula, indicação de bibliografia específica e complementar referente a um ponto específico do programa e apresentação da actividade formativa a desenvolver na aula téorico-prática. As sessões teórico-práticas destinam-se à execução de actividades formativas previamente definidas e que se realizam em grupos de três ou quatro alunos. Os grupos reúnem na primeira hora da sessão teórico-prática e o porta- voz do grupo apresenta oralmente as conclusões do trabalho na segunda hora, proporcionando-se contextos para debate e troca de ideias relacionadas com a situação concreta proposta para análise. O tempo reservado à exposição oral do trabalho de grupo é antecipadamente definido em função do número de grupos e da necessidade de reservar os últimos vinte minutos da sessão teórico-prática para o debate geral. Uma semana após a sessão teórico-prática e apresentação oral do trabalho de grupo, deverá ser entregue à docente o respectivo relatório escrito, que não deverá exceder as cinco páginas dactilografadas a espaço e meio. Resta assinalar que uma das sessões teórico-práticas relativas ao último bloco programático – Temas e debates actuais na sociologia do crime – é sempre reservada à organização de um seminário ou colóquio científico, que conta com a participação de especialistas convidados. No início do ano lectivo, o docente dá a conhecer aos alunos o tema seleccionado e os oradores envolvidos. Os estudantes são incentivados a preparar o debate com antecedência, através da pesquisa de materiais relacionados com a temática que vai ser apresentada nesse encontro científico. A actividade formativa relacionada com este elemento específico da metodologia de ensino consiste no envolvimento e participação activa no debate decorrente do evento científico e produção de um relatório escrito relativo aos assuntos apresentados e problematizados nesse contexto. 25 O objectivo da organização deste tipo de encontros e incorporação dos mesmos na metodologia de ensino em Sociologia do Crime é, por um lado, facultar aos alunos o contacto com a realidade exterior por via dos discursos e práticas de especialistas, e por outro lado, incentivar a responsabilização e envolvimento activo da parte dos estudantes, confrontando-os com as tarefas específicas associadas à organização de eventos científicos e preparação de debates. 26 1.6. SISTEMA DE AVALIAÇÃO A avaliação constitui um elemento regulador do processo de ensino/aprendizagem. No sentido de contemplar o objectivo de integrar metodologias de ensino/aprendizagem de natureza diversa e orientadas para a intervenção activa do aluno, o tipo de avaliação adoptado na unidade curricular de Sociologia do Crime é a avaliação contínua. Os momentos de avaliação são dois: a realização de um teste individual no final do semestre, com uma ponderação de 50%; e a realização das actividades formativas em grupo, com apresentação oral nas aulas teórico-práticas (10%) e produção de relatório (40%) que não deverá ultrapassar a cinco páginas dactilografadas a espaço e meio. Os critérios de avaliação do teste individual serão os seguintes: (i) qualidadeda escrita e organização da argumentação (0-3 valores); (iii) capacidade de apreciação e relacionação dos diversos conceitos e elementos solicitados no enunciado das questões (0-7 valores). Os critérios de avaliação dos trabalhos de grupo serão os seguintes: (i) qualidade da apresentação oral das conclusões do grupo (0-2 valores); (ii) clareza e organização do relatório (0-2 valores); (iii) capacidade de apreciação e avaliação das diversas vertentes do tema em causa (0-6 valores). A nota final deste momento de avaliação produz-se pela média aritmética de todos os relatórios das sessões teórico-práticas. 27 1.7. RECOMENDAÇÕES PARA O PLANEAMENTO E ORGANIZAÇÃO DA APRENDIZAGEM O sucesso do processo de aprendizagem depende da adopção de algumas práticas de planeamento e organização de tarefas da parte dos alunos. Recomenda-se a preparação semanal de um calendário de actividades, conjugando as tarefas individuais com as tarefas de grupo. Além das aulas, os alunos deverão contar com tempo necessário à realização das seguintes tarefas: Tarefas de carácter individual Na segunda semana de aulas o aluno deverá estar inserido num grupo de trabalho de 3 a 4 alunos; No início das aulas é facultado um conjunto de bibliografia obrigatória, que o aluno deverá adquirir e organizar o mais cedo possível; No final de cada unidade de aprendizagem o aluno deve responder aos testes formativos e corrigi-los; Semanalmente o aluno deverá consultar os documentos fornecidos pelo docente, fazendo-se munir dos elementos necessários para estar habilitado por um lado, a colocar dúvidas e questões relativas à exposição teórica e, por outro lado, a desenvolver adequadamente a actividade formativa proposta em grupo; O aluno deverá participar assídua e activamente nas reuniões de grupo de trabalho, lembrando-se que o grupo é mais importante que os membros individuais e que todos os elementos são responsabilizados pelos resultados; O aluno deverá consultar o docente sempre que tenha necessidade de tirar dúvidas, no horário de atendimento. 28 Tarefas de grupo O grupo de trabalho deverá reunir semanalmente para elaborar o relatório escrito da actividade formativa desenvolvida na aula teórico-prática, decidindo com antecedência o local, horário e duração da reunião; A distribuição dos diferentes papéis dos membros do grupo deverá ser feita de modo rotativo e ser antecipadamente programada para todo o semestre. Há que contar com o papel de porta-voz das conclusões do grupo, a desempenhar oralmente na parte final das aulas teórico-práticas e de relator (elemento do grupo encarregue de redigir por escrito o relatório da actividade formativa e de entregar o trabalho à docente, por email ou em suporte de papel, dentro do prazo estipulado). O contacto com o docente deve ser regular no sentido do grupo ser informado sobre o andamento da avaliação das actividades formativas; 1.8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Flanagan, Timothy; Longmire, Dennis (1996) (eds.), American view crime and justice: a national public opinion survey, Thousand Oaks, Sage. Machado, Carla (2004), Crime e insegurança. Discursos do medo e imagens do outro, Lisboa, Editorial Notícias. Pinto, José Madureira (1997) Propostas para o ensino das ciências sociais, Porto: Afrontamento. II. APRESENTAÇÃO E JUSTIFICAÇÃO DO PROGRAMA E DOS SEUS CONTEÚDOS CAPÍTULO 2 – O CRIME COMO OBJECTO DA SOCIOLOGIA 31 SUMÁRIO: 2.1. Resultados esperados de aprendizagem 2.2. A definição sociológica de crime 2.3. Actividade formativa 1 2.4. A especificidade da abordagem da Sociologia do Crime 2.5. Actividade formativa 2 2.6. As interrogações da Sociologia do Crime 2.7. Síntese 2.8. Teste formativo 2.9. Leituras e informação complementar 2.10. Referências bibliográficas 32 2.1. RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM No final do processo de aprendizagem desta unidade programática, o estudante deverá estar apto a: definir o conceito de crime, distinguindo a conceptualização júridico-legal da abordagem sociológica; entender as diferenças entre os conceitos de crime e de desvio, captando o seu carácter complexo e relativo, do ponto de vista cultural e histórico; identificar algumas das mais importantes abordagens do crime na óptica da biologia e da psicologia, sendo capaz de caracterizar a especificidade do pensamento sociológico; expor as principais questões que orientam a investigação e reflexão sobre o crime. 33 2.2. A DEFINIÇÃO SOCIOLÓGICA DE CRIME O problema do objecto de estudo Desde tempos imemoriais que o crime tem sido objecto de reflexão e especulação, embora possamos situar no século XIX o início da abordagem científica do crime. O termo criminologia (entendido como ciência que estuda o crime) terá sido utilizado pela primeira vez pelo antropólogo francês Topinard, em 1879 (Dias e Andrade, 1997:7). Não existe consenso em relação à utilização da designação de Criminologia, de Sociologia do Crime ou ainda de Sociologia Criminal, ao nível da abordagem sociológica do crime: enquanto para alguns autores a Criminologia como ciência que estuda o crime deve convocar saberes provenientes de diversas áreas do conhecimento (Psicologia, Psiquiatria, Biologia e Sociologia); outros autores defendem que a denominação de Criminologia pode servir para referenciar a especialização da Sociologia que se debruça sobre o crime. Parte das reflexões e pesquisas sobre o que podemos designar como comportamentos criminosos, desviantes ou delinquentes, consoantes as perspectivas teóricas, centram-se na explicação das causas do crime, procurando perceber os motivos porque determinados indivíduos parecem mais vulneráveis ou predispostos a cometer delitos do que outros (Ferreira, 2004). Neste âmbito, a questão fundamental para os estudiosos do crime será porque é que as pessoas (ou algumas pessoas) cometem crimes? As respostas a esta questão nuclear têm sido diversas e geralmente pouco consensuais e ainda hoje inconclusivas, variando não só consoante as épocas históricas, mas também de acordo com as perspectivas das diferentes ciências que se têm debruçado sobre o fenómeno criminal, desde a Biologia, ao Direito, à Filosofia, à Ética, à Psicologia, à Antropologia e à Sociologia. Num primeiro momento histórico, a explicação das causas do crime remetia para factores sobrenaturais, ou para supostas características intrínsecas dos indivíduos, que os conduziriam a um estado mais ou menos acentuado de incapacidade de integração na sociedade, predispondo-se para a prática do “mal”. O século XIX assistiu ao nascimento das primeiras abordagens científicas 34 do crime, que passam a preocupar-se em identificar e medir as variáveis que poderão estar na origem do comportamento criminoso e que poderão ser encontradas em causas biológicas, psicológicas e sociais. Contudo, a premência da procura das causas da ocorrência do crime manteve-se praticamente inalterável até aos dias de hoje nas principais correntes criminológicas. Abordagens recentes, nomeadamente provenientes da área da Sociologia, têm vindo a reconfigurar a formulação dessa questão, defendendo que outros prismas de análise do fenómeno criminal são possíveis e mesmo desejáveis e invocando a necessidade de reconfigurar o sentido e as vias da explicação criminológica. Podemos assim confrontar uma criminologia tradicional, que busca as causas do crime e se integra desse modo num paradigma «etiológico-explicativo»,com uma criminologia crítica de raiz interaccionista, que combate o alegado determinismo da primeira, centrando-se antes no domínio da «reacção social» ao crime e, deste modo, alarga o elenco de actores sociais envolvidos na construção social do crime, desde o criminoso tout court, aos processos de selecção e de estigmatização dos criminosos desenvolvidos e consolidados pelas instâncias formais e informais de controlo social. Nesta última perspectiva, em vez da questão clássica sobre as causas do crime, outras questões podem ser enunciadas, tais como sobre quais os critérios que ancoram a selecção e a estigmatização de certas pessoas e quais as consequências dessa rotulagem (Dias e Andrade, 1997: 160). Sintetizando, podemos supor que o que distingue no essencial as diferentes perspectivas sociológicas do crime é a formulação da questão de partida dirigida à realidade criminal: a sociedade tem os criminosos que «merece» (criminologia tradicional) ou os criminosos que «quer» (nova criminologia ou criminologia crítica)? Os modos de formulação das interrogações à realidade criminal remetem indubitavelmente para a própria definição do conceito de crime, na medida em que as próprias divergências no conceito de crime reflectem modos diversificados de pensar, teorizar e agir em relação a esta problemática. De facto, a definição do objecto de estudo – neste caso, o crime – resulta do que se quer saber sobre o 35 fenómeno em análise. Neste sentido, o crime constitui um conglomerado histórico de elementos sociológicos, jurídicos, éticos e de senso comum ou estereótipos, embora a definição jurídico-legal, por razões históricas e culturais, tenda a ser a dominante. O conceito de crime A definição jurídico-legal de crime define-o como todo o comportamento – e só esse – que a lei tipifica como tal. Paul Tappan (1947), eminente criminologista, sociólogo e jurista, levou a cabo uma defesa extremada dessa conceptualização do crime, por considerar que se tratava de um conceito objectivo, preciso e operacional, defendendo que só se deveria considerar crime aqueles comportamentos que resultassem de condenações judiciais. A operacionalidade do conceito puramente legalista de crime é evidente, tanto mais que as estatísticas criminais oficiais reflectem essa perspectiva. Contudo, aceitar acriticamente a definição jurídico-legal de crime, implicaria em última instância supor que a criminalidade oficial corresponde integralmente à criminalidade efectivamente cometida. Do mesmo modo, aceitar a posição defendida por Tapplan de que o crime corresponde ao que é condenado como tal nas instâncias judiciais significa pressupor, por exemplo, que a aplicação da lei é sempre objectiva e neutra, havendo uma correspondência total e absoluta entre a denominada law in books (legislação) e a law in action (aplicação da lei). Não sendo a definição de crime algo auto-evidente e unitário, torna-se importante perceber a diversidade de elementos que podem estar associados a este conceito, assim como o relativismo cultural e histórico que lhe está subjacente. Pode-se considerar que existem três elementos básicos a considerar na definição de crime: (1) os danos, que remetem para a natureza, dimensão e severidade dos prejuízos e males causados e que tipo de vítimas foram atingidas; (2) o consenso social sobre os impactos criados pela ocorrência do crime; (3) as respostas oficiais, que implicam a existência de legislação criminal que especifica as circunstâncias em que um acto danoso pode ser classificado como crime e quais as sanções a dirigir a quem o cometeu. 36 A definição de crime de Durkheim Émile Durkheim, um dos clássicos da Sociologia que marcou decisivamente os primórdios da análise sociológica do crime, apresenta na obra De la division du travail social (1895), uma definição de crime como sendo “Todo o acto que, num qualquer grau, determina contra o seu autor essa reacção característica a que se chama pena” (Durkheim, 1977: 87). Esta focagem na dimensão da resposta oficial surge articulada com questão do consenso social, na medida em que o autor não só define a pena como sendo uma “reacção passional, de intensidade graduada, que a sociedade exerce por intermédio de um corpo constituído sobre aqueles dos seus membros que violaram certas normas de conduta” (id. ibid.: 116), como acrescenta que “um acto é criminoso quando ofende os estados fortes e definidos da consciência colectiva” (id. ibid.: 99) pelo que “não se deve dizer que um acto ofende a consciência comum porque é criminoso, mas que é criminoso porque ofende a consciência comum.” (id. ibid.: 100). A definição durkheimiana de crime remete para o comportamento que é definido como tal pela lei e que recebe a respectiva sanção jurídico-penal. Nesta perspectiva, não há crime sem lei, do mesmo modo, que não há lei criminal sem existência de dano ou prejuízo. Em suma, para Durkheim o crime consiste numa transgressão em relação ao que é definido ao nível de estados fortes e definidos da consciência colectiva, suscitando como tal reacções intensas que se projectam pelas sanções previstas no direito criminal. Na perspectiva deste autor, a característica comum aos crimes residiria no facto de constituírem actos universalmente reprovados pelos membros de cada sociedade. A definição de crime de Sellin Thorsten Sellin, criminologista Americano e especialista em estatísticas criminais, distinguiu-se por pretender libertar o conceito de crime da perspectiva jurídico-legal, advogando a necessidade de uma “definição sociológica” do conceito, na sua obra Culture Conflict and Crime publicada pela primeira vez em 1938. De acordo com o autor, as exigências metodológicas e epistemológicas da criminologia (ciência que tem como objecto de estudo o crime) e a diversidade cultural a que assistimos nas sociedades modernas, remetem para uma 37 perspectiva multicultural do crime, que pode ser definido como sendo a transgressão a dois tipos de normas: as normas de conduta e as categorias universais. As normas de conduta são criadas pela sociedade e podem variar de grupo para grupo social. Já as categorias universais de crime (como por exemplo, o homicídio) assumem um significado similar em diferentes sociedades. Na perspectiva de Sellin, a criminologia deveria ter um objecto de estudo com uma natureza objectiva e universal, valorativamente neutro e que não estivesse sujeito ao relativismo espácio-temporal, de modo a ser possível isolar e classificar as normas de conduta segundo categorias universais. Segundo este autor, as normas jurídico-penais apenas projectam a estrutura normativa dos grupos culturalmente dominantes, reflectindo deste modo os valores e interesses dos grupos sociais que controlam o aparelho legislativo. Isto faz com que possa haver conflitos culturais entre os «fazedores de leis» e as normas de conduta que regulam as vivências e situações sociais específicas dos grupos desfavorecidos, que tendem a aumentar com o processo de modernização da sociedade, na medida em que este potencia a heterogeneidade cultural. Os críticos de Sellin consideram que este falhou o objectivo de apresentar uma definição unívoca de categoria universal de crime e que não elabora propriamente um conceito sociológico de crime, mas apenas contrapõe dois universos normativos: as normas de conduta em gera e as normas jurídico-penais, convertendo as primeiras em objecto de estudo da criminologia. A relação entre crime e desvio Ainda hoje se assiste a tentativas de definir o crime em termos sociológicos, distinguindo-o da definição jurídico-penal. A generalidade dosautores pretende que o conceito de desvio é mais adequado à abordagem sociológica, embora as definições existentes não sejam coincidentes. Pode-se afirmar que o conceito de desvio assenta em dois pressupostos básicos: (i) engloba comportamentos que violam as expectativas da maioria dos membros da sociedade; (ii) suscita reacções negativas, considerando-se que é um acto que deve estar sujeito a sanções. 38 A abordagem do fenómeno criminal como um desvio implica entrar em ruptura com o conceito jurídico de «crime» e a perspectiva positivista que lhe é inerente, em função da qual se estudava o crime essencialmente ou mesmo exclusivamente pelo criminoso e pela perspectivação das causas que conduziriam à prática do crime. A opção por encarar o crime como um acto desviante remete para um alargamento da focagem de análise que exige estudar as condições sócio-históricas da produção social dos desvios, o funcionamento dos mecanismos informais de regulação social, as interacções entre os desviantes e os aparelhos de controlo social e os impactos da reacção social sobre o sujeito definido como desviante. Para uma clarificação da distinção entre os conceitos de «crime» e de «desvio» parece-nos fundamental reter a seguinte ideia de Herbert Blumer: “é o processo social em grupo que cria e suporta as normas e não as normas que criam e suportam a vida em grupo” (Blumer, 1969: 19). Ou seja, uma abordagem sociológica do crime deve ultrapassar a visão estritamente jurídica, devendo ser abordada como uma construção social que nunca deixará de estar associada à lei e ao controlo social formal e informal. Temos assim que o conceito de desvio se aplica às condutas que transgridem as normas de uma dada sociedade, remetendo por isso a análise para as operações de classificação e definição social, que variam em termos espácio-temporais. Subjacente ao conceito de desvio, encontramos o conceito de controlo social, que envolve mecanismos de socialização e internalização de normas e valores, mas também de aplicação de sanções a quem transgride as regras. Se nem todo o desvio é crime e nem todo o crime representa desvio, a conceptualização sociológica do crime como desvio apresenta a vantagem de se demarcar de uma visão puramente legalística da problemática criminal. De facto, a perspectivação do crime como desvio exige a compreensão das estruturas sociais mais amplas em que este se insere. Implica, de igual modo, encarar o crime como sendo simultaneamente um problema social enquanto constituindo um desvio às expectativas socialmente criadas, que provoca reacções negativas; 39 e um problema sociológico por implicar um estudo científico das relações sociais envolvidas. 2.3. ACTIVIDADE FORMATIVA 1 “Nem todo o desvio é crime, nem todo o crime implica desvio” Considerem esta ideia e desenvolvam a seguinte actividade em grupo, elaborando uma descrição em tópicos, não ocupando mais do que uma página A4: 1. Listem exemplos de a) comportamentos que são desviantes, mas não constituem crimes; b) comportamentos que em períodos históricos passados foram considerados desviantes, mas que não o são actualmente; c) comportamentos criminosos que, em determinados contextos, podem não ser considerados negativos ou “merecedores” de punição. 2. Listem três comportamentos que consideram “crimes graves” e três comportamentos que avaliam como “crimes pouco graves”. Fundamentem a vossa escolha. 40 2.4. A ESPECIFICIDADE DA ABORDAGEM DA SOCIOLOGIA DO CRIME As diferentes ciências criminais São diversas as ciências que se têm debruçado sobre o fenómeno criminal, pretendendo-se neste âmbito, sintetizar os principais traços de cada uma das perspectivas dominantes, com o objectivo último de apontar a especificidade da abordagem sociológica. O século XIX assistiu ao nascimento do denominado positivismo criminológico, que ao postular a neutralidade axiológica e a separação entre a ciência e a moral, advoga que os comportamentos criminosos podem ser explicados por factores biológicos, psicológicos e sociais específicos, susceptíveis de observação e medição. No campo da Biologia, até sensivelmente meados do séc. XX, com base em estudos genéticos e evolutivos, foi dominante a perspectiva de que o comportamento criminoso resultava de atavismos físicos e intelectuais de tipo hereditário, reminiscente de estágios mais primitivos da evolução humana. Já no âmbito da Psicologia e Psiquiatria a abordagem do crime remeteu para traços da personalidade individual, o que sustentou estudos e programas de tratamento e de adaptação mais ou menos forçada da personalidade do criminoso às exigências da vida em sociedade. Por fim, a Sociologia do séc. XIX, nomeadamente por via dos trabalhos de Émile Durkheim (1895, 1897) e Gabriel Tarde (1886, 1890), advoga que as causas da ocorrência do crime se encontram na própria sociedade, nomeadamente em resultado de pressões e tensões sociais que acompanham a evolução das sociedades. Ainda hoje persistem diferenças entre as perspectivas teóricas e metodológicas associadas a cada área científica, pese ainda que dentro do mesmo campo disciplinar podemos igualmente encontrar distintos posicionamentos. Podemos sintetizar os principais pressupostos de cada uma das abordagens científico-explicativas do crime, distinguindo entre: (i) teorias bioantropológicas; (ii) teorias psicodinâmicas e psico-sociológicas ; (iii) teorias sociológicas. 41 A perspectiva da Biologia As teorias bioantropológicas do crime centram-se em factores de cariz individual que se considera pertencerem ou serem características do organismo. Procura-se atingir a compreensão das determinantes biológicas do crime, nomeadamente o papel da genética. Mas enquanto as teorias clássicas afirmavam a exclusividade e definitividade das características físicas, as versões mais recentes sustentam que os factores bioantropológicos interagem continuamente com variáveis de índole sociológica e ambiental. A perspectiva da Psicologia e Psiquiatria No campo das teorias psicodinâmicas dá-se continuidade ao estudos das variáveis individuais que explicam a prática do crime, mas em vez de focarem a constituição biológica, centram-se nos percursos biográficos dos indivíduos, que remetem para processos dinâmicos de formação da personalidade, procurando identificar os níveis de sucesso e insucesso na sua formação, aprendizagem e socialização. Estes estudos partem de um postulado básico da existência de impulsos naturais, que podem entrar em conflito com as resistências criadas pelo processo de socialização e decorrentes mecanismos de indução de comportamentos normais (a sociedade repressiva e punitiva). As teorias psicodinâmicas englobam uma vasta diversidade de perspectivas, sendo que as teorias psicanalíticas do crime e as teorias do condicionamento são das mais conhecidas e aplicadas ao nível das práticas de tratamento e reabilitação de delinquentes. As teorias psico-sociológicas centram-se sobretudo no comportamento considerado normal e que surge conforme as prescrições previstas na lei e nas normas de conduta da sociedade. Só após o estudo da «conformidade», isto é, da indagação da natureza e força dos vínculos que unem o indivíduo à sociedade, e que o conduzem a superar os impulsos naturais e obedecer às regras, é que se procede ao estudo do comportamento desviante e delinquente. 42 A perspectiva da Sociologia Não obstante a heterogeneidade e diversidade apresentada pelas teorias sociológicas do crime, importa apontar e compreender a especificidade desta áreado saber. A abordagem sociológica do crime tende a ser globalizante, preocupando-se não só em explicar porque se cometem crimes, mas também em problematizar a própria ordem social, compreender as implicações político- criminais e delinear moldes, conteúdos e alcances de práticas de associação entre a teoria e a prática, nomeadamente, ao nível da reinserção social e prevenção da delinquência. Aceitando a proposta apresentada por Edwin Sutherland (1939), criminologista e sociólogo integrado na corrente de pensamento do interaccionismo simbólico, considerado por muitos o pai fundador da Criminologia Americana, a abordagem sociológica do crime pode ser realizada em três dimensões de análise: (i) pelo estudo da produção e feitura de leis, mormente ao nível do que se tem vindo a designar como “Sociologia do Direito”; (ii) pelo estudo da violação das leis e das suas causas, sendo esta uma área que tem convocado o interesse de diversos saberes e especializações, provenientes não só do campo da Sociologia, como também da Antropologia, Psicologia, Psiquiatria, Economia e Ciência Política; (iii) pelo estudo da reacção social ao crime, sendo esta uma dimensão de análise marcadamente sociológica, e que pode englobar diferentes aspectos da realidade social, desde a observação das consequências e fontes de legitimidade das reacções ao crime, à pesquisa dos determinantes sociais da criação das normas de conduta ou perspectivação da opinião pública relativamente a determinados actos criminosos. 2.5. AS INTERROGAÇÕES DA SOCIOLOGIA DO CRIME Principais questões de partida Todos os paradigmas teóricos têm em comum algumas questões de partida (interrogações dirigidas à realidade empírica, que servirão de fio condutor ao processo de pesquisa) dirigidas ao fenómeno criminal, e que podem ser formuladas do seguinte modo: 43 Que visão da natureza humana suscita o fenómeno do crime? De que modo o crime representa um desafio ou uma transgressão à ordem social? O crime é um fenómeno natural, social ou legal? Qual a extensão e distribuição social do crime? Trata-se de um fenómeno geral e normal em qualquer sociedade ou de uma actividade marginal e excepcional? Toda a gente comete crimes ou os crimes são praticados por grupos ou indivíduos específicos? Quais são as causas do crime? Quais as implicações político-criminais das diferentes visões do crime? As respostas a estas questões de partida direccionadas para o fenómeno do crime têm implícitas determinadas dicotomias, que aliás têm estado presente em todo o pensamento sociológico e teorização do social, desde a modernidade. As dicotomias das teorias do social Podemos sintetizar as principais dicotomias que têm trespassado as diversas teorias do social, aplicando-as à temática do crime, do seguinte modo: Natureza humana: voluntarismo versus determinismo O envolvimento na prática do crime resulta de um acto de livre vontade (voluntarismo) ou é primordialmente condicionado/guiado por forças que escapam ao controlo do criminoso/a ou de que ele/ela não têm consciência (determinismo)? Ordem social: consenso versus conflito Todas as teorias sociológicas do crime remetem para o conceito «contrário» de ordem social. Esta tanto pode ser encarada como estando baseada no consenso da maioria da sociedade (embora uma minoria possa ser coagida), ou com base no conflito – latente ou manifesto – pelo qual uma minoria privilegiada impõe pela coerção os seus interesses e valores. Definição do crime: legal versus social O crime tanto pode ser encarado como a transgressão à lei (definição legal), como a transgressão aos códigos normativos de uma determinada sociedade 44 (definição social). Estas definições tanto podem ser complementares e mesmo coincidentes, como descoincidentes: por exemplo, a fuga aos impostos pode ser crime do ponto de vista legal, mas pode ser um acto que não sofre reprovação da parte da maioria da população. Extensão e distribuição do crime: limitada versus extensiva Um dos problemas fulcrais da Sociologia do Crime reside na dificuldade em usar e interpretar as estatísticas oficiais da criminalidade. Estas reportam que apenas um grupo restrito de grupos ou indivíduos cometem crimes. Mas será que nos transmitem a realidade? A actividade criminal estará limitada a um grupo restrito ou, pelo contrário, envolverá uma extensa parte da população? Causas do crime: individuais versus sociais As causas do crime podem ser procuradas no indivíduo (personalidade, características biológicas, biografia) ou na sociedade e meio social envolvente. Por exemplo, a prática de violação pode ser percepcionada como um comportamento que resulta de uma desordem biopsíquica ou mesmo genética, enquanto que um sociólogo afecto às correntes feministas do crime explicará a ocorrência como resultado da sociedade patriarcal que incentiva ou desculpabiliza a violência sexual exercida sobre a mulher. Implicações político-criminais: punição versus tratamento ou reinserção A perspectivação teórico-metodológica do crime e do criminoso acarreta implicações de ordem político-criminal. Por exemplo, se o crime é encarado como resultado de um acto voluntário, a tónica será direccionada para o castigo/punição. Se pelo contrário, se entender que o acto criminoso resulta essencialmente da força das estruturas sociais, a orientação político-criminal guiar-se-á pelos princípios do tratamento (campo da psicologia e psiquiatria) ou da reinserção social (sociologia e serviço social). 45 2.6. ACTIVIDADE FORMATIVA 2 Desenvolvam a seguinte actividade em grupo, elaborando uma descrição em tópicos, não ocupando mais do que uma página A4: Após terem visionado o filme “Laranja mecânica” do realizador Stanley Kubrick (1971), baseado na obra homónima de Anthony Burgess (1962), apontem as principais representações veiculadas da “personalidade criminal”. De que modo a tipificação de criminoso exposta no crime se afasta dos princípios subjacentes a uma abordagem sociológica do crime? Que perspectivas de política criminal subjazem à história relatada? 46 2.7. SÍNTESE O primeiro ponto programático incide sobre o problema da definição e construção do crime como objecto da Sociologia e da sua relação com os diferentes modos como este é definido noutras áreas do conhecimento, tais como as ciências jurídicas, as ciências biológicas e as ciências psicológicas e psiquiátricas. Discute-se o que pode ser o contributo específico da Sociologia para a abordagem do crime, começando pela própria definição do conceito, procedendo-se a uma diferenciação entre a definição jurídico-legal de crime e a definição sociológica e salientando-se a complexidade inerente a este passo introdutório ao nível dos estudos sociais do fenómeno criminal. Por fim, formulam- se as principais questões dirigidas à realidade social que a Sociologia do Crime suscita. 2.8. TESTE FORMATIVO Destina-se à auto-avaliação do aluno, tendo como objectivo proporcionar os elementos necessários para que o aluno possa aferir o progresso dos seus conhecimentos em cada unidade de aprendizagem. 1. Que significa afirmar que o crime constitui um conglomerado histórico de elementos sociológicos, jurídicos, éticos e de senso comum ou estereótipos? 2. Em que consiste a definição jurídico-legal de crime? 3. Quais os três elementos básicos a considerar na definição de crime? 4. Qual a importância do consenso social na definição de crime que Durkheim apresenta? 5. O que distingue o conceito de desvio do conceito de crime? 6. Aponte as principais características da abordagem
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