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Direitos Humanos e Suas Conexões com as Diversas Áreas de Psicologia Lygia Santa Maria Ayres1 Inicialmente agradeço o convite da equipe de organização do Congresso Norte Nordeste de Psicologia (CONPSI) para juntos pensarmos questões referentes a praticas psicológicas comprometidas com os direitos humanos e a ética profissional, em suas interfaces com a saúde, a educação, com o sistema de justiça, tanto na esfera da criança e do adolescente quanto no sistema prisional. Falo aqui com vocês, enquanto psicóloga, doutora em psicologia social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisadora e coordenadora do Programa de Intervenção voltado às Engrenagens e Territórios de Exclusão Social (Pivetes) desenvolvido na Universidade Federal Fluminense (UFF) e Conselheira-Presidente do XIII Plenário do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRPRJ). Ressalto ainda que compartilho das idéias de Bakthin (1997) que nos afirma que todo discurso é polifônico. Isto é muitas são as vozes que nos compõem. Portanto, esse texto é, como todo texto, coletivo. Cecília Coimbra. Esther Arantes, Michael Foucault, a equipe do CRPRJ e pesquisadores do Pivetes são autores e co-autores. Ressalto a importância de espaços como esse, pois, é através da discussão coletiva, da transdisciplinaridade e da transparência que avançamos na construção de uma psicologia realmente comprometida com a potência da vida, com os direitos humanos – vetor central da pratica hoje e, desde 2004, do CRPRJ. Problematizar tal questão num Congresso como esse revela o real empenho dos profissionais psicólogos inseridos na rede social em descortinar os múltiplos atravessamentos que constituem as praticas psicológicas em diferentes universos de trabalho. Talvez pela minha idade e pelo percurso profissional/acadêmico, a tecnologia ainda não é o meu forte, por isso vou ler um texto disparador de análises. Psicologia, Direitos Humanos, Ética e Políticas Públicas ... Encontros Possíveis 1 Psicóloga clínica, doutora em psicologia social pela UERJ, pesquisadora do PIVETES /UFF, professora adjunta da Unicarioca e conselheira presidente do Conselho Regional de Psicologia Rio de Janeiro 1 A Declaração Universal dos Direitos Humanos data de 1948. No Brasil os Direitos Humanos foram implementados na Constituição da República Federativa promulgada em 1988, a qual, em comparação com as anteriores, contém a mais ampla carta de Direitos Civis, Políticos, Sociais, Econômicos e Culturais da nossa história, o que não significa afirmar que as Constituições anteriores não tenham tratado do assunto, mesmo que de forma um tanto quanto tímida. Em decorrência do estabelecido nesta Constituição, o Brasil aderiu aos Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos, de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificados em 1992, à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e em 1989 à Convenção Contra a Tortura e Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, os quais são os documentos internacionais, entre outros, de maior importância, resgatando e valorizando a dignidade humana e colocando-a como valor fundamental quando se refere à inviolabilidade do direito a vida, à liberdade, à segurança e à igualdade. De acordo com seu artigo 5º, os direitos e garantias fundamentais – vida, liberdade, igualdade, propriedade e segurança - são considerados de aplicação imediata, além de serem assegurados como cláusulas pétreas constitucionais, ou seja, não podem ser modificadas nem mesmo por emendas à Constituição. Há, portanto, que se perguntar, em relação aos direitos humanos, não somente quais (ou o que) são esses direitos, mas também o que é o humano, tarefa à qual a Psicologia não pode se esquivar, por mais embaraçoso que seja considerado seu objeto (Canguilhem, 1972). Não cabe, aqui, dizer do que realmente se trata, mas sinalizar que o modo pelo qual vem sendo tratado não corresponde a uma ‘natureza verdadeira’ do humano, mas à construção de um modelo possível, a partir de tecnologias de controle social, advindas de um contexto e uma concepção hegemônica e burguesa do que é (ou o que é possível ser) o mundo no qual vivemos. Retomando a pergunta de Canguilhem (1972) em “O que é a Psicologia?”, podemos tentar responder: depende das forças que se apoderam dela. Como nos lembra com propriedade Coimbra (2010), quando falamos em Psicologia e Direitos Humanos, queremos pensar uma psicologia que não se desvincule de política, que não se coloque como afastada da realidade. Queremos falar sobre uma psicologia preocupada com o mundo no qual está 2 inserido. Nesse sentido, Direitos Humanos não são uma especialidade dentro da psicologia, mas sim uma pratica que deve atravessar toda e qualquer atuação profissional. Afirma nosso Código de Ética Profissional: “O psicólogo baseará seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos direitos humanos”. “(...) devemos interpelar todos aqueles que ocupam uma posição de ensino nas ciências sociais e psicológicas, ou no campo do trabalho social- todos aqueles, enfim, cuja profissão consiste em se interessar pelo discurso do outro. Eles se encontram numa encruzilhada política e micropolítica fundamental. Ou vão fazer o jogo dessa reprodução de modelos que não nos permitem criar saídas para processos de singularização, ou, ao contrário vão estar trabalhando para o funcionamento desses processos na medida de suas possibilidades e dos agenciamentos que consigam pôr para funcionar. Isso quer dizer que não há objetividade científica alguma nesse campo, nem uma suposta neutralidade na relação”.(Guattari & Rolnik, 1986) Da formação do psicólogo ao homem na psicologia. Moraes (2004) com base em Foucault, lembra-nos que a psicologia do século XIX herdou do iluminismo a preocupação de encontrar no homem as mesmas leis que regem os fenômenos naturais. A psicologia então se ergueu como um esforço metodológico tomado de empréstimo das ciências da natureza e se assentou sobre dois postulados principais: em primeiro lugar, que a verdade do homem se esgotava em seu ser natural e, em segundo lugar, que o caminho de todo conhecimento científico devia passar pela determinação de relações quantitativas, pela construção de hipóteses e pela verificação experimental. 3 Assim, ao final do séc. XIX, a psicologia surge no contexto de uma crise ainda não superada: permaneceria ela como um braço da filosofia ou se tornaria autônoma e independente, seguindo para isso o modelo das ciências naturais? A formação tradicional do psicólogo aponta para os paradigmas que emergiram dessa indefinição, desse posicionar-se muitas vezes ambíguo da psicologia como ciência. Podemos dizer que esta formação é marcada por algumas características que acompanham esse campo do saber desde meados da era vitoriana, quando se deu a institucionalização da psicologia como disciplina. Positivismo e experimentalismo são os fundamentos epistemo- metodológicos dessa nova disciplina, aos quais se mesclam mais tarde as diversas matrizes psicanalíticas e também variadas abordagens chamadas psicossociais. Por outro lado, a convicção de uma unidade intrínseca à psicologia resultou na institucionalização de cursos - divididos em territórios bem demarcados como trabalho,hospital, escola e clínica - apresentando-se por demais recortados e delimitados, propiciando perspectivas que negligenciam a multiplicidade do campo psi. Nesse instante cabe uma indagação: quem é o homem na psicologia? Esse homem é definido como dotado de capacidades e potencialidades que lhe são naturais. Um homem pensado a partir da idéia da existência de uma natureza humana que caracterizaria todos os seres da espécie. A partir daí, a psicologia define estruturas, processos e até mesmo conteúdos que seriam naturais. Pensa o desenvolvimento do homem de forma apriorística, isto é, concebe um percurso linear e evolutivo, um destino para o desenvolvimento das capacidades psíquicas e acompanha esse trajeto, verificando se as condições sociais e ambientais dadas estão facilitando ou não o "desabrochar" de algo que é natural. Há um homem "pronto" dentro de cada um de nós, como uma semente que tem seu desenvolvimento já potencialmente determinado. Por ser concebido como natural, o homem é pensado também como universal. As sociedades humanas têm assim que buscar condições adequadas para o desenvolvimento pleno de uma humanidade contida em cada um de nós. Essa condição ideal envolve obrigatoriamente a possibilidade da liberdade do homem. Ser livre para ser capaz de desenvolver plenamente suas vocações e potencialidades. Assim, o esforço individual torna-se fator 4 decisivo, fundamental, deixando ao homem a incumbência de ser ele o único responsável pelo seu próprio desenvolvimento e destino. A concepção de fenômeno psicológico, decorrente dessa concepção de homem, é de algo que se refere à intimidade, ao privado, à essência do que é humano. O fenômeno psicológico é pensado como algo enclausurado em cada um de nós, que sofre influências do meio, mas que existe independente dele. O homem seria portador de algo que lhe é próprio, essencial e, conseqüentemente, algo bom ou mau, que seria identificado com um "verdadeiro eu", mas que nem sempre pode se manifestar, pois o contexto social, físico e cultural poderia estar impedindo/dificultando ou propiciando essa expressão. Assim, a psicologia historicamente se forja como apolítica, neutra, científica e objetiva, onde as questões sociais são extremamente psicologizadas, ou seja, reduzidas em sua "essência" a um plano psíquico. Essa psicologização do cotidiano é intimamente acompanhada pela questão do familiarismo, em que toda e qualquer problemática é simplesmente reduzida à questão familiar. Por último, temos a questão do intimismo, intrinsecamente ligada às outras duas, que forja e fortalece um sujeito voltado para dentro de si mesmo, para dentro de seus horizontes internos, num movimento de supervalorização do espaço privado em detrimento dos espaços coletivos, que passam a ser inferiorizados e desqualificados enquanto corresponsáveis pelas produções que são protagonizadas por indivíduos específicos. Desta forma, a prática psicológica decorrente dessas concepções tem sua ênfase na doença, na falta, nas dificuldades, nos desequilíbrios e nos desajustes. Portanto, se definirá como uma intervenção sempre ortopédica2, dita terapêutica, na direção de uma possível e desejável "cura", que é, em última análise, uma intervenção que busca contribuir para que o que há de "verdadeiro" no homem se manifeste, para que as potencialidades humanas possam ter expressão e para que conheçamos essa essência que nos constitui e é desconhecida, inclusive pelo próprio sujeito. O psicólogo aparece, então, como alguém com condições para ajudar o outro na busca daquilo que lhe é desconhecido e que denominamos felicidade, equilíbrio ou algo parecido, sendo ele capaz de acompanhar os destinos do outro, converter muitas vezes 2 A respeito ver Foucault (2001). 5 suas percepções e "consciências"; estruturar e transformar personalidades. Enfim, supostamente "humanizar". Na contra-mão da grande maioria dos teóricos da psicologia, nasce a noção do sujeito coletivo afirmando a multiplicidade e a heterogeneidade do humano. São inúmeras as vozes que compõem o mundo. Essa multiplicidade de vozes e posições que dialogam entre si assujeitam a pessoa, mas, ao mesmo tempo, preservam a abertura para a inovação e para a construção de novos posicionamentos e processos de significação acerca do mundo, do outro e de si mesmo. Esse entendimento do ser humano pauta-se na idéia de que nos constituímos sujeitos na relação com o outro e com o mundo. Nesse sentido, o meio não é considerado como pano de fundo para o desenvolvimento do humano, ele é um dos fios que tecem as redes de produção de subjetividade. A noção de subjetividade é entendida como produção sócio-histórica que institui, para além do sujeito individualizado, modos de pensar, sentir e comportar-se. Essa concepção transpõe as barreiras do reduto psi e incorpora conhecimentos de sociologia, de economia, de história, de antropologia, da medicina e de tantas disciplinas quantas forem necessárias para a compreensão da produção de subjetividade contemporânea. Para Guattari e Rolnik (1996), “(...) quando vivemos nossa própria existência, nós a vivemos com as palavras de uma língua que pertence a cem milhões de pessoas; nós a vivemos com um sistema de trocas econômicas que pertence a todo um campo social; nós a vivemos com representações de modos de produção totalmente serializados (...)”. (p. 69) Dentre as ferramentas utilizadas pela psicologia no seu campo de trabalho, destacamos aqui a entrevista psicológica como dispositivo. Historicamente, as técnicas de entrevista têm a gênese na medicina, no campo da psicologia foram disseminadas no contexto da psicoterapia e da psicometria. A partir de então, tornou-se importante ferramenta de que dispõe o psicólogo, para obter informações a respeito do individuo a ser avaliado. Assim, 6 vem sendo utilizada nos diferentes espaços onde o psicólogo é chamado a intervir, ou seja, o contexto escolar, hospitalar, organizacional, clinico e jurídico, dentre outros. Entretanto, a entrevista por não possuir essência, ganha a configuração do decalque que nela for colado. O que é privilegiado no processo de escuta, o que é desprezado, silenciado ou acolhido, diz respeito às implicações e aos encontros que se efetuam entre os sujeitos em questão. No processo de escuta se expressa tanto o que se deseja escutar, o que se pede para falar e o que é falado, o que se oferta e o que se demanda. Nessa ótica, dentre milhares de possibilidades de construção de uma entrevista, duas delas nos interessam particularmente: a escuta-surda e a escuta-experimentação. A primeira, tomada como retrato e dispositivo da norma avalia apenas o entrevistado e tem o poder de julgar, determinar e punir que se estende para além do comportamento do sujeito, por acreditar que tal sujeito possui uma natureza humana, um caráter a ser revelado. O foco deixa de ser o fato em si para centrar-se nas condutas ditas irregulares do individuo investigado. Muitas vezes, tal indivíduo é avaliado por terceiros, sem nunca ter tido a oportunidade de apresentar-se. A escolha por essa metodologia nos leva a procedimentos definidos por Luis Antonio Baptista (2000) de “escuta surda”. Por escuta surda entendemos práticas que ouvem sem escutar. Uma escuta surda se constitui quando no lugar de indagar as evidências que nos constituem como sujeitos, nos deixamos conduzir porestas, reificando-as. Produz-se aí uma psicologia das evidências. Uma escuta que acaba sendo reduzida a um ato protocolar, uma técnica de coleta de evidências, de sinais ou, ainda, a um jogo interpretativo. A escuta surda produz como efeito a tutela e a culpabilização dos sujeitos. Poderíamos dizer que essa escuta permanece no campo de uma escuta moral, prescritora de modos de vida, julgadora de práticas, deixando-se conduzir por valores instituídos sem a correspondente indagação destes mesmos valores. Na segunda, a entrevista assume potência de dispositivo, que abre múltiplas possibilidades de intervenção, ao ser conduzida por profissional que não aposta nem na sua neutralidade, nem numa essência de seu entrevistado a ser atribuída e desvendada. Essa pode ser arquitetada como um encontro. Segundo Deleuze, um encontro é uma experiência intensiva com afetamentos, 7 que pode suscitar manifestação derivada, um efeito, a produção de um sentido para essa experiência: uma ficção com a realidade. A opção por essa diretriz nos leva a uma “escuta-experimentação”. No contexto da escuta- experimentação não se visa apreender uma realidade, uma verdade do sujeito, mas sim abrir espaço para criação de modos de existência compatíveis com uma vida solidária e generosa; visa acompanhar os movimentos que criam paisagens por vezes suaves, por vezes endurecidas, por vezes mortificadoras. Afirmar a escuta como experimentação significa indicar que as necessidades do outro precisam ser incluídas não por uma operação humanista e piedosa, mas como elemento perturbador e analisador dos modos de vida naturalizados. Uma escuta sensível (experimentação) implica, necessariamente, ouvir os vestígios, ver os movimentos. Envolve uma disponibilidade subjetiva de afetar e ser afetado pelo outro, colocar em análise nossos preconceitos, endurecimentos e indiferenças. Requer a escuta do outro, das vozes e dos silêncios do mundo., como nos aponta Ana Heckert (2007) Optando por um caminho ou por outro, nossas entrevistas, transformam- se em relatórios que, se não tem poder decisório por eles mesmos, podem, em muitos casos, orientar a decisão do médico, do juiz, do professor... As palavras escolhidas à confecção, os fatos privilegiados, os entrevistados a serem chamados ou não, a impressão do psicólogo em cada caso, tudo deve ser problematizado e pensado, não com o psicólogo como perito neutro a dizer no relatório a verdade sobre os envolvidos, mas vendo nele um instrumento político, que afetará historias de vidas diversas, já que incide não apenas sobre a vida daquele que se apresenta, mas também sobre a dos que com ele convivem e, não com menor importância, sobre a pratica do psicólogo nos espaços ocupados. Em síntese, a opção por uma dessas concepções marca o caminho traçado pelos psicólogos frente às demandas que lhes são endereçadas. Nessa ótica, a escuta, ferramenta do psicólogo, pode funcionar como um potente dispositivo de intervenção, na aposta por uma prática engajada na potência da vida ou no aprisionamento em verdades instituídas, mas se constitui, sempre, em um ato político. Algumas Práticas Psi em análise 8 Praticas como o depoimento sem dano, o exame criminológico, os atendimentos na rede de saúde mental, as promessas de cura no âmbito das psicoterapias, algumas políticas de abrigamento (de crianças e idosos) e de adoção (de crianças ou adolescentes), certos laudos psicológicos, dentre outras merece nosso olhar na medida em que ferem o código de ética do profissional psicólogo e os direitos humanos. Nesse sentido, cabe um pequeno esclarecimento sobre o Sistema Conselhos de Psicologia. Esse criado pela Lei 5766/71 é constituído pelo Conselho Federal de Psicologia e 20 Conselhos Regionais de Psicologia. O Sistema Conselhos de Psicologia tem por função garantir o pleno exercício da profissão de psicólogo, zelando por um atendimento ético à população que se utiliza de seus serviços bem como das condições que atravessam o cotidiano da prática psicológica. O CRP RJ é constituído pelo 2º maior colégio de psicólogos do país, contando com mais de 40.000 psicólogos inscritos. Depoimento “Sem Dano”. Do juiz e seus duplos. A questão envolvendo o psicólogo nos programas denominados “Depoimento sem Dano” parece apresentar certa diferença em relação às outras modalidades de seu exercício no âmbito judiciário, à medida que, nesses programas, o psicólogo não é chamado a desenvolver uma prática “psi” propriamente falando, mas a ter uma função de “duplo”, ou seja, o olhar humanizado do juiz. Esse procedimento no qual o psicólogo é convocado a participar não o legitima como “prática psi”. Todos os termos são próprios da prática judiciária: a “vítima” presta “depoimento”, sendo a “inquirição” feita pelo “magistrado” por intermédio do psicólogo ou assistente social; simultaneamente é realizada a gravação da “audiência” em CD, e este anexado aos “autos do processo judicial”. Neste exemplo, o psicólogo parece ser mero instrumento e se encontra nesse lugar, apenas, como uma duplicação do magistrado para colher o 9 depoimento de uma vítima-criança sem supostamente lhe causar danos. As perguntas feitas à criança são orientadas pela necessidade do processo e obedecem à tecnicalidade jurídica. Diz-se tratar-se, nessa prática, de evitar que a criança seja revitimizada ao contar a sua história a vários profissionais e em diferentes momentos. Assim, todas as perguntas serão feitas em audiência única, evitando-se o sofrimento que a repetição traz para a criança. Busca-se ainda que a criança modifique o seu depoimento, de acordo com diferentes modos de inquirição. O psicólogo, supostamente, é capaz de atender aos requisitos para uma adequada inquirição e, por isso, o depoimento da criança seria “sem dano”: o psicólogo é uma figura acolhedora, que não ameaça, que possui habilidades para se relacionar e, ao mesmo tempo, para não se deixar enganar, de modo que o depoimento da criança seja confiável, não sendo mera fantasia ou resposta dada apenas para agradar ao adulto. Que lugar/ papel o psicólogo aí desempenha? Convenhamos, uma audiência jurídica não é exatamente o mesmo que uma entrevista ou atendimento psicológico, em que a escuta do psicólogo é orientada pelas demandas e desejos da criança e não pelas necessidades do processo, sendo resguardado o sigilo profissional. Ademais, eventuais perguntas feitas pelo psicólogo à criança não podem ser qualificadas como inquirições, não pretendendo esclarecer a “verdade real” ou a “verdade verdadeira dos fatos” - mesmo porque, nas práticas psi, as fantasias, erros, lapsos, esquecimentos, sonhos, pausas, silêncios e contradições não são entendidos como sendo opostos à verdade. A Criminalização da pobreza A precariedade de serviços públicos de qualidade à população mais pobre leva a ocuparem locais de alto índice de periculosidade, tornando-as mais vulneráveis às situações de desastres. O inicio de ano de 2011, na Região Serrana do Rio de Janeiro, foi marcado por uma terrível realidade. Cerca de 1000 pessoas, em sua maioria, pobres, perderam a vida. Os sobreviventes foram obrigados a abandonaram seus pertences, seus sonhos e suas historias de vida, pois tiveram suas casas destruídas pela força das águas e, notadamente do descaso das políticas públicas estatais. 10 E nós profissionaisda saúde o que temos com isso? Nós psicólogos devemos atuar para além do acolhimento do sofrimento psíquico dos sujeitos envolvidos. Ou seja, devemos atuar na identificação de estratégias que favoreçam e fortaleçam as redes sociais. Outras expressões da criminalizaçao da pobreza referem-se a certas práticas ditas em defesa dos direitos de crianças e adolescentes e tomadas como políticas publicas, a exemplo dos abrigamentos indiscriminados e adoções que não esgotam as possibilidades de manutenção das crianças e jovens em suas famílias naturais ou mesmo extensas e ampliadas. Entendemos por Políticas Públicas ações coordenadas, com objetivo público, isto é, coletivo. Deveriam ser políticas de Estado e não de governo e, pressupõe uma capacidade de impacto no sentido da construção da cidadania. Deveriam as políticas públicas estarem a serviço das garantias dos direitos humanos, não da mera fiscalização e punição do Estado. Em sociedades desiguais, como a nossa, as políticas públicas deveriam promover transformações sociais que trabalhem diretamente com promoção de cidadania e provoquem a participação ativa da sociedade com execução e efetividade. Para Graffigna (1999), políticas públicas diferem subsatncialmente de praticas de repercussão pública. Para o autor, atualmente as políticas públicas ainda são marcadas por ações compensatórias, enfrentando superficialmente algumas das demandas mais urgentes de amplas camadas da população, as quais se encontram incluídas no contexto social de modo perverso, não tendo acesso a bens e serviços. O abrigamento e a construção do processo de autonomia de crianças e adolescentes O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) Lei Federal de 1990 emergiu a partir da força dos movimentos sociais presentes no processo de democratização nacional, após longo período de ditadura militar. Tal instrumento jurídico veio em substituição ao Código de Menores de 1927, derrubando a concepção de situação irregular de crianças e jovens como condição individualizada e centrada na família pobre e propondo a tese da garantia de direitos da população infanto-juvenil, ao afirmá-los enquanto 11 sujeitos de direitos. Tal concepção retira da família a responsabilidade de acolher e proteger seus filhos, convocando o estado e a sociedade civil a assumirem seus papeis nessa empreitada. O ECA preconiza a necessidade de manutenção dos vínculos familiares como premissa a ser perseguida, entendendo o abrigo como condição excepcional. Ou seja utilizada apenas após todas as tentativas de manutenção da criança na família de origem ou mesmo em lares substitutos. A Triste Realidade dos Abrigos Estudos e pesquisas têm revelado que em sua maioria as crianças e jovens que hoje se encontram abrigadas possuem famílias. Diferentemente do que poderia se esperar não são as crianças e jovens órfãos aqueles que compõem a população abrigada. O universo desses estabelecimentos é constituído, em sua maioria absoluta, pela população infanto-juvenil oriunda da classe pauperizada de nosso país. Isto é os filhos da pobreza.Que relações são produzidas nesses espaços? Autonomia? Tutela? De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em seu artigo 17, “o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”. Embora essa lógica devesse permear os abrigos, em alguns momentos vemos tomarem corpo práticas massificadas, como nos antigos internatos. No artigo 92, destacamos que o abrigamento deve prezar pelo princípio de “preparação gradativa para o desligamento da instituição” e através do parágrafo único do art. 101 encontramos a referência ao abrigo como “(...) medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade.” Um dos momentos em que essa questão do processo de autonomia ganha maior visibilidade é no desligamento do jovem. Apesar do abrigamento se constituir enquanto medida provisória, na maioria das vezes as crianças permanecem na instituição até atingir a maioridade, se vendo sem ferramentas para gerir suas vidas, até então tuteladas por outros. 12 Mesmo a tutela sendo prática dominante, constatamos que em alguns abrigos são exercidas atividades criativas para lidar com a questão das escolhas e com o direito a voz das crianças e jovens que ali se encontram, dando oportunidade a estes de exercitarem sua capacidade de escolha e auxiliando-os na construção de um processo de autonomia. De um modo geral, autonomia é entendida como auto-determinação, “dar-se as próprias leis”, sendo, portanto, o contrário da heteronomia, estado em que alguém se submete a leis ou regras formuladas por outros. Na contracorrente deste pensamento, apontamos, juntamente com Eirado e Passos (2004), que tal definição de autonomia se mostra contraditória, pois o pensamento que subjaz a ela estaria calcado na lógica da heteronomia, visto que tal modo de se entender este conceito supõe a divisão do sujeito em dois pólos, um que legisla e outro que obedece. Desse modo, a autonomia seria, por assim dizer, uma "heteronomia disfarçada", na qual o sujeito se divide em dois lados, um que obedece regras e outro que constrói regras a serem obedecidas. Entretanto, pretendemos pensar essa questão de modo diferente, no qual a heteronomia não seja primeira em relação à autonomia, embasando o modo como se entende este conceito. Para tanto, é necessário quebrar a dicotomia que fundamenta esse entendimento, pensando o ato de dar a lei e de se conformar a ela como um só ato, um ato criador. Nesse contexto, sai de foco a noção de lei, comumente utilizada para definir autonomia e entra em cena a noção de criação. Assim autonomia significaria, antes de mais nada, autocriação, criar-se, construir-se a si mesmo, entendendo criação fora do perigo de uma outra dicotomia, a que separa criador/criatura. Nesse processo de autocriação que constitui a autonomia, os pólos que poderíamos denominar de criador e criatura, não são fixos, estáticos, delimitados e além disso, surgem conjuntamente, na própria processualidade do criar. Um não antecede ao outro, um não é primeiro ou mais fundamental que o outro, ao contrário, ambos estão imersos numa relação de co-dependência onde um só faz sentido face ao outro. Ao contrário do que encontramos em alguns textos, não há como pensar a construção do processo de autonomia de um modo isolado, entendendo-a como um "atributo" ou característica atrelada ao desenvolvimento individual de um sujeito. De acordo com Uziel (2008) a construção de autonomia no abrigo não se refere apenas às crianças e 13 adolescentes, mas também aos educadores e ao próprio abrigo. Em síntese, parece-nos que o abrigo produtor de tutela perde sua função, deixa de ser um local de passagem, pois não viabiliza ao jovem, criança ou adolescente sair dali e “tocar” sua vida. Ao invés disso torna-se mera medida assistencialista, que captura os corpos que passam por lá, os quais têm diminuída sua potência de ação e bloqueadas as possibilidades de tornarem-se independentes. A pergunta que se faz é: Na instituição abrigo é possível produzir autonomia? Com relação à atuação do psicólogo frente à avaliaçãoda perda do poder familiar e a conseqüente colocação de crianças em lares substitutos na modalidade da adoção. Premente colocar em análise o que se prioriza no momento de se avaliar um processo judicial que culminará na colocação de uma criança ou adolescente em família substituta na modalidade de adoção. Cabe salientar que como o próprio ECA preconiza, a pobreza não é causa suficiente para se destituir alguém do poder familiar. Assim, cabe interrogar o que seria motivador para se destinar infantes à adoção. Parece ser necessário considerar que os laços de consanguinidade não sejam suficientes para que se estabeleça uma relação parental-filial. Faz necessário projeto de parentalidade para que alguém se torne mãe/pai de alguém, mesmo frente ao próprio rebento. Todavia, não podemos deixar de considerar que a esmagadora maioria das infantes destinados à adoção sejam originários de famílias empobrecidas, no mais das vezes, de contextos de extrema pobreza. Não se pode ainda deixar de se atentar para o fato de que a maioria tenha origem africana. Deste modo, talvez se possa balizar que, independente o desfecho da avaliação, se faz necessário que o profissional psicólogo coloque em análise os engendramentos que atravessam a história das famílias que têm seus filhos encaminhados à adoção, sob o risco de não se ater a premissas basilares da devesa dos direitos humanos, norte que deveria pautar toda e qualquer avaliação psicológica, independente do contexto no qual ela se forja. Psicoterapia: Um dispositivo de transformação 14 Pensar em psicoterapias passa, necessariamente, por pensarmos a lógica de construção dessa prática na contemporaneidade. Nos cursos de graduação em psicologia, no Rio de Janeiro, a opção pelo viés da clínica parece ser uma constante. Tratar, curar e aconselhar são verbos que aparecem e circulam nos corredores das salas dos primeiros semestres do curso. Podemos afirmar, ainda que empiricamente, que psicologia e clínica caminham juntas. Hegemonicamente, a clínica psicológica acompanha o modelo médico de tratamento, no qual o terapeuta volta-se para o paciente, incentivando no imaginário social a idéia de um atendimento individual ao mesmo. Nesse sentido, a escuta do psicoterapeuta (psicólogo, psicanalista, psiquiatra) é direcionada ao sujeito, pois, geralmente, é ele quem opera a demanda por psicoterapia. Trabalhamos aqui com a noção de sujeito coletivo, na medida em que somos constituídos no atravessamento de múltiplas vozes. Vozes e posições que dialogam entre si, as sujeitando a pessoa, mas ao mesmo tempo preservando a abertura para a inovação e para a construção de novos posicionamentos e processos de resignificação acerca do mundo, do outro e de si mesmo. Entende-se por psicoterapia o espaço no qual o paciente vai em busca de recursos para lidar com as dificuldades que ele identifica em sua vida. A interação que se instala a partir dessa procura/desejo provoca uma troca entre parceiros, cliente e psicoterapeuta, caracterizando um espaço de reflexão. Esse lugar que se configura enquanto um dispositivo de transformação do sujeito transcende os muros das clínicas, dos consultórios, dos Serviços de Psicologia Aplicada e de outros serviços de atendimento psicoterápico. Logo, também deve ser encarado como uma práxis fundamental no campo da ação social. A prática da psicoterapia, escapando à escuta surda, deve acolher a demanda sem julgamentos de ordens morais, religiosas, ideológicas, respeitando as diversidades da vida humana, não direcionando e, nem mesmo estabelecendo promessas de cura no decorrer do processo de tratamento do indivíduo. Calligaris (2004) afirma “Você pode ser religioso, acreditar em Deus, numa revelação e mesmo numa Ordem do mundo. No entanto, se essa fé 15 comportar para você uma noção do bem e do mal que lhe permite saber de antemão quais condutas humanas são louváveis e quais são condenáveis, por favor, abstenha-se: seu trabalho de psicoterapeuta será desastroso [além de passível de processo ético]” (p.12). Outras práticas são possíveis? Para Canguilhem (1990) o que define a vida é a incessante capacidade de questionar as normas e instituir outras normas, sempre locais, provisórias e parciais. Segundo Michel Foucault (1995), não se trata propriamente de ser “contra” ou a “favor” do indivíduo, mas contra o governo da individualização, contra as formas de poder que se marcam pela identidade, atando o indivíduo a essa identidade. Segundo ele, a força dos estados ocidentais modernos decorre, justamente de terem eles se desenvolvido como estruturas sofisticadas, nas quais os indivíduos podem se integrar, apenas, sob a condição de que suas individualidades sejam moldadas de acordo com certos padrões. Assim, pode-se entender o estado moderno como uma matriz de produção de subjetividade. Pensar dentro dessas referências implica não adotar uma teoria geral do sujeito, uma vez que não existe, propriamente falando, “o” sujeito como objeto natural, a partir do qual tal teoria pudesse ser construída. Pensar dentro dessas referências também não significa postular uma sociedade sem cerceamentos. Historicamente, como nos lembra Foucault (1979), não existem sociedades sem algum tipo de repressão. O importante não é que não existam regras, limites ou cerceamentos, mas a possibilidade, para as pessoas e grupos por eles afetados, de mudá-los. Não é fácil, para o psicólogo, posicionar-se diante da complexidade dessas questões, principalmente quando se tem a pressioná-lo um mercado de trabalho restrito e precário, e o predomínio, nas atividades científicas, de uma razão instrumental. Por outro lado, a não ser que se defina como uma disciplina irrelevante ou apenas adaptativa, a psicologia não pode ignorar as questões ensejadas pelo tempo presente, nem reduzir a realidade subjetiva às condições de sua gestão. 16 Acreditando que quanto mais encararmos os diferentes espaços e conhecimentos (da psicologia, da medicina, da fonoaudiologia, da fisioterapia, da enfermagem, etc.) enquanto saberes parceiros, complementares e horizontais mais nos aproximamos do sujeito enquanto potência de vida. Romper as barreiras do especialismo significa acolher o individuo como um todo indivisível, tratá-lo em sua subjetividade, na sua diferença e, em ultima instância enquanto sujeito de direitos. Ou seja, quanto mais nos conduzimos pela vertente dos Direitos Humanos, mais nos aproximarmos de uma conduta ética que respalda o humano a partir da afirmação da diferença. O sujeito ético assume postura ativa e dinâmica, uma vez que questiona, problematiza, flexibiliza e coloca em análise sua própria intervenção e implicação, não se limitando apenas ao atendimento às demandas que lhes são endereçadas. Analisar as demandas e por vezes recusá-las é dever e papel do psicólogo. O comprometimento ético leva o psicólogo a encarar o paciente como uma pessoa singular em permanente relação com o mundo. Assim, como Psicólogos da Saúde, não é possível refletir sobre os preceitos éticos que envolvem a especialidade, não é possível participar de uma instituição ou de uma sociedade ou ainda exprimir valores sem estar atento às demandas, às dinâmicas, às descobertas e construções do contexto institucional onde o psicólogo está inserido. Além disso, é impossível pensar em ética, discutir a ordem psicológica e aordem médica, educacional, jurídica respaldada em visão individualista e estática. Finalizando acreditamos que qualquer intervenção por parte do psicólogo exige uma postura ética a priori, não qualquer ética, mas a ética que afirma a vida em sua diversidade: Para além do profissional, um cidadão implicado. Obrigada!!! . 17 Referências Bibliográficas BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal, São Paulo: Martins Fontes, 1997 BAPTISTA, Luis Antonio, A Fábrica de Interiores a formação psi em questão, Niterói: EDUFF, 2000 BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Federal 8069 de 13/07/1990 CALLIGARIS, Contardo, Cartas a um jovem terapeuta: reflexões para psicoterapeutas, aspirantes e curiosos, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004 COIMBRA, Cecília Maria Bouças , Jornal do CRPRJ no.29 , julho/agosto de 2010 CANGUILHEM, G. O que é a Psicologia? Epistemologia 2. Revista Tempo Brasileiro, nº 30 /31, 1972 CANGUILHEM, G. O Normal e o Patológico. 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