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COMENTÁRIOS SOBRE O PROJETO DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO SÉRIE CADERNOS DO CEJ, VOLUME 20 BRASÍLIA 2002 EDITORAÇÃO Secretaria de Pesquisa e Informação Jurídicas do Centro de Estudos Judiciários – SPI/CEJ Neide Alves Dias De Sordi – Secretária Milra de Lucena Machado Amorim – Subsecretária da Subsecretaria de Divulgação e Editoração da SPI/CEJ Lucinda Siqueira Chaves Freire – Diretora da Divisão de Editoração da SPI/CEJ Sônia Rosana Gomes de Moraes e Menezes - Chefe da Seção de Edição de Textos da SPI/ CEJ Antônio César do Vale - Chefe da Seção de Revisão de Textos da SPI/CEJ Rute Maria Barreto Rezende – Servidora da Divisão de Editoração da SPI/CEJ DIAGRAMAÇÃO E ARTE-FINAL Anelize Lenzi Ruas - Servidora da Divisão de Divulgação Institucional da SPI/CEJ CAPA Anelize Lenzi Ruas - Servidora da Divisão de Divulgação Institucional da SPI/CEJ ILUSTRAÇÃO Enivaldo Sizino dos Santos - Chefe da Seção de Programação Visual da SPI/CEJ NOTAS TAQUIGRÁFICAS Subsecretaria de Taquigrafia do Superior Tribunal de Justiça IMPRESSÃO Divisão de Serviços Gráficos da Secretaria de Administração do Conselho da Justiça Federal Luiz Alberto Dantas de Carvalho – Diretor SUMÁRIO Apresentação As diretrizes fundamentais do Projeto do Código Civil Miguel Reale Direito de Família Luiz Edson Fachin Capacidade civil e capacidade empresarial: poderes de exercício no Projeto do Novo Código Civil João Baptista Villela Direitos das Coisas Rui Geraldo Camargo Viana Atividade negocial Newton de Lucca Autonomia privada Francisco dos Santos Amaral Neto Alimentos Francisco José Cahali União estável: legislação e projetos Álvaro Villaça Azevedo Vícios de consentimento: fraude Humberto Theodoro Júnior O princípio da boa-fé nos contratos Antonio Junqueira de Azevedo Direito Civil e Constituição. Relações do Projeto com a Constituição. Roberto Rosas Judith Martins Costa APRESENTAÇÃO O Conselho da Justiça Federal, por meio do seu Centro de Estudos Judiciá- rios, publica, a partir de notas taquigráficas, os anais do Encontro sobre o Projeto de Código Civil Brasileiro, neste volume da Série Cadernos do CEJ. Não obstante a realização do evento ter sido em abril de 2000 – antes da promulgação da Lei n. 10.406, em 10 de janeiro de 2002, a qual entrará em vigor um ano após a sua publicação –, tal fato não descarta a importância das conferên- cias nele proferidas. Encontrará o leitor, nas páginas que permeiam este fascículo, opiniões diversas de ilustres personalidades da área jurídica do nosso País, com críticas tanto a favor como contra o Projeto, o que o levará às suas próprias reflexões e conclusões. Pontos polêmicos nas áreas do Direito de Família, Direito Civil, Direito Constitucional, Direito das Coisas, Direito Comercial, dentre outros, foram realça- dos, o que instigou a capacidade intelectiva dos participantes e aguçará o senso crítico daqueles que folhearem as próximas páginas. AS DIRETRIZES FUNDAMENTAIS DO PROJETO DO CÓDIGO CIVIL MIGUEL REALE TRAMITAÇÃO DO PROJETO O Projeto do Código Civil foiaprovado pela Câmara dosDeputados em 1984, após cuidadoso estudo e debate de 1.063 emendas, o que não deve causar es- tranheza por tratar-se de uma lei com cerca de 2.100 artigos. Além de haver muitas emendas repetidas, a maioria delas não foi aceita pelo plenário. Foi relevante a contribuição da Câmara dos Deputados, graças ao mag- nífico trabalho dos relatores de cada uma das seis partes do Projeto, sendo, afinal, Relator-Geral o saudoso Depu- tado Ernani Satyro, cujo trabalho não posso deixar de enaltecer. Não menos relevante foi a con- tribuição do Senado Federal que, em novembro de 1997, aprovou o Projeto com 332 emendas propostas pela Co- missão Especial, com base no magnífi- co parecer final de autoria do eminen- te Relator-Geral, Senador Josaphat Ma- rinho, a quem a Nação fica a dever, bem como ao preclaro Presidente An- tônio Carlos Magalhães, decisão de tão grande alcance para a sociedade bra- sileira. Sinto-me à vontade para pro- nunciar-me sobre o Projeto, pois, este, embora preservado em sua estrutura e valores iniciais, ultrapassou a pes- soa de seus elaboradores, os eminen- tes jurisconsultos José Carlos Moreira Alves (Parte Geral); Agostinho de Arruda Alvim (Direito das Obrigações); Sylvio Marcondes (Direito de Empresa); Ebert Vianna Chamoum (Direito das Coisas); Clóvis do Couto e Silva (Direi- to de Família); Torquato Castro (Direito das Sucessões), quatro dos quais já fa- lecidos. A mim me coube o papel de coordenador-geral, propondo a estru- tura ou sistemática do Projeto, que foi aceita pelos colaboradores, sem pre- juízo, é claro, de elaborar os textos que considerasse necessário acrescentar ou substituir, como de fato ocorreu. Cabe-me esclarecer que a gran- de demora na manifestação do Sena- do Federal se deve às profundas alte- rações políticas que caracterizaram a passagem do sistema militar para o re- gime democrático. Sobreveio depois, a Assembléia Nacional Constituinte, entendendo os senadores que era ne- cessário aguardar a nova Constituição, que poderia alterar as bases da legisla- ção privada. A bem ver, porém, a nova Car- ta Magna, no concernente à Parte Ge- ral, Obrigações, Direito de Empresa, Direitos Reais e Sucessões, não fez se- não confirmar o “sentido social” que presidiu a feitura do projeto, pouco ou nada havendo a modificar. Foi apenas no campo do Direito de Família que Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro sobrevieram mudanças essenciais, que por sinal vieram corresponder às emendas oferecidas no Senado pelo pranteado Senador Nelson Carneiro e outros. Desse modo foi possível adap- tar facilmente o projeto ao texto cons- titucional, conforme já previra ao ma- nifestar-me sobre elas, em estudo que fiz a pedido do Relator-Geral na Câma- ra Alta, o Senador Josaphat Marinho. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES Em um país há duas leis funda- mentais: a Constituição e o Código Ci- vil. A primeira estabelece a estrutura e as atribuições do Estado em função do ser humano e da sociedade civil; a se- gunda se refere à pessoa humana e à sociedade civil como tais, abrangendo suas atividades essenciais. É claro que nas nações anglo-americanas, de tra- dição costumeira-jurisprudencial, não há códigos privados, mas não deixam de haver normas civis básicas no sis- tema do common law. É a razão pela qual costumo declarar que o Código Civil é “a Consti- tuição do homem comum”, devendo cuidar de preferência das normas ge- rais consagradas ao longo do tempo, ou então, das regras novas dotadas de plausível certeza e segurança, não podendo dar guarida, incontinenti, a todas as inovações correntes. Por tais motivos não há como conceber o Có- digo Civil como se fosse a legislação toda de caráter privado, pondo-se ele antes como a “legislação matriz”, a partir da qual se constituem “ordenamentos normativos especiais” de maior ou de menor alcance, como, por exemplo, a Lei das Sociedades Anônimas e as que regem as coopera- tivas, mesmo porque elas transcendem o campo estrito do Direito Civil, com- preendendo objetivos e normas de na- tureza econômica ou técnica, quando não conhecimentos e exigências espe- cíficas. É esse o motivo pelo qual, des- de o início, fixei como uma das nor- mas orientadoras da codificação que me fora confiada a de destinar à legis- lação especial aditiva todos os assun- tos que ultrapassassem os lindes da área civil ou implicassem problemas de alta especificidade técnica. Nessa ordem de idéias, não te- ria sentido inserirem-se no Projeto dis- positivos sobre inseminaçãoartificial, desde as mais variadas formas de ge- ração extra-uterina até a chamada con- cepção in vitro, pois tais processos envolvem questões que transbordam o campo jurídico, alargando-se pelos domínios da medicina e da engenha- ria genética, implicando problemas tan- to de bioética quanto de Direito Admi- nistrativo e de Direito Processual, a fim de atenderem as exigências de segu- Série Cadernos do CEJ, 20 rança e certeza no concernente à ma- ternidade ou à paternidade. Eis aí uma esfera onde a legislação especial se põe como a única apropriada. A análogas conclusões chega- ríamos no que se refere a múltiplas ino- vações de ordem tecnológica ou eco- nômica, que, ou encontram solução nas matrizes mesmas do Código Civil, à luz de seus princípios e de seus insti- tutos ou figuras, ou, então, somente poderão ser adequadamente resolvidas mediante leis especiais. ESTRUTURA DO CÓDIGO A iniciativa de um novo Código Civil não surgiu de repente. Foi, ao con- trário, conseqüência de duas tentativas anteriores que já demarcaram as con- dições que deveriam ser evitadas ou, então, complementadas. Em primeiro lugar, abandonou- se a idéia de dividir o Código Civil, ela- borando-se, em separado, um Código das Obrigações. A quase unanimidade de nossos juristas repudiou a propos- ta de um Código Civil decepado e sem sentido de unidade, condenando a eli- minação da Parte Geral, tradicional em nosso Direito, desde a Consolidação das Leis Civis, graças ao gênio criador de Teixeira de Freitas. Como responsável pela codificação, não vacilei no sentido de preferir uma sistematização ampla, embora partindo do Código em vigor. Como já disse, foi fixado o critério de preservar, sempre que possível, as dis- posições do Código atual, porquanto, de certa forma, cada texto legal repre- senta um patrimônio de pesquisa, de estudos, de pronunciamentos de um universo de juristas. Há, por conse- guinte, todo um saber jurídico acumu- lado ao longo do tempo, que aconse- lha a manutenção do válido e eficaz, ainda que em novos termos. Por outro lado, é inegável que o Código atual obe- deceu, repito, como era natural, ao es- pírito de sua época, quando o indivi- dual prevalecia sobre o social. É, por isso, próprio de uma cultura fundamen- talmente agrária, onde predominava a população rural e não a urbana. A mu- dança do Brasil no presente século foi de tal ordem que o Código não pode- ria deixar de refletir essas alterações básicas, uma vez que o Código Civil não é senão a “Constituição da socie- dade civil”. Como costumo dizer, e re- pito, o “Código Civil é a Constituição do homem comum”. É preciso, porém, corrigir, des- de logo, um equívoco que consiste em dizer que tentamos estabelecer a uni- dade do Direito Privado. Esse não foi o objetivo visado. O que na realidade se fez foi consolidar e aperfeiçoar o que já estava sendo seguido no País, que Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro era a unidade do direito das obriga- ções. Como o Código Comercial de 1850 se tornara completamente supe- rado, não havia mais questões comer- ciais resolvidas à luz do Código de Co- mércio, mas sim em função do Código Civil. Na prática jurisprudencial, essa unidade das obrigações já era um fato consagrado, o que se refletiu na idéia rejeitada de um código só para reger as obrigações, consoante projeto ela- borado por jurisconsultos da estatura de Orozimbo Nonato, Hahnemamm Guimarães e Philadelpho de Azevedo. Não vingou também a tentativa de, a um só tempo, elaborar um Código das Obrigações, de que foi relator Caio Mário da Silva Pereira, ao lado de um Código Civil, com a matéria restante, conforme projeto de Orlando Gomes. Depois dessas duas malogradas expe- riências, só restava manter a unidade da codificação, enriquecendo-a de no- vos elementos, levando em conta tam- bém as contribuições desses dois ilus- tres jurisconsultos. A opção pela unidade das obri- gações nos levou a alterar a ordem da matéria. O Código atual, como é pró- prio da sociedade de natureza agrária, começa com o Direito de Família, pas- sando pelo Direito de Propriedade e das Obrigações, até chegar ao das Suces- sões. Nosso Projeto, após a Parte Ge- ral – na qual se enunciam os direitos e deveres gerais da pessoa humana como tal, e se estabelecem pressupos- tos gerais da vida civil –, começa, na Parte Especial, a disciplinar as obriga- ções que emergem dos direitos pesso- ais. Pode-se dizer que, enunciados os direitos e deveres dos indivíduos, pas- sa-se a tratar de sua projeção natural que são as obrigações e os contratos. É extensa essa disciplina das obrigações, dado o tratamento unifica- do das obrigações civis com as obriga- ções e os contratos. É extensa essa disciplina das obrigações, dado o tratamento unifica- do das obrigações civis com as obriga- ções empresariais, termo que preferi- mos adotar, pois a atividade econômi- ca não se assinala mais, hoje em dia, por atos de comércio, tendo uma pro- jeção muito mais ampla, sendo igual- mente relevantes os de natureza indus- trial ou financeira. Em seguida ao Direito das Obri- gações, passamos a contar com uma parte nova, que é o Direito de Empre- sa. Este diz respeito a situações em que as pessoas se associam e se organi- zam a fim de, em conjunto, dar eficá- cia e realidade ao que pactuam. O Di- reito de Empresa não figura, como tal, em nenhuma codificação contemporâ- nea, constituindo, pois, uma inovação. Série Cadernos do CEJ, 20 Daí se passa ao Direito das Coi- sas, sendo o Direito Real visto em ra- zão do novo conceito de propriedade, com base no princípio constitucional de que a função da propriedade é so- cial, superando-se a compreensão ro- mana quiritária em função do interes- se exclusivo do indivíduo, do proprie- tário ou do possuidor. Em seguida ao Direito das Coisas é que vem o Direito de Família e, posteriormente, o Direito das Sucessões. Houve, por conseguin- te, uma alteração relevante na estrutu- ra do Código, a qual não encontra símile na codificação dos demais paí- ses. Quando começamos nosso tra- balho, tínhamos idéias de conservar, quando possível, consoante já foi dito, as disposições do Código atual. Mas, à medida que os trabalhos foram se de- senvolvendo, foi-se revelando a possi- bilidade de nos mantermos inteiramen- te fiéis a essa diretriz inicial. Problemas novos exigem formulação nova, sen- do a linguagem inseparável do concei- to. Preferiu-se uma linguagem nova, mais operacional e adequada à preci- sa interpretação das normas referen- tes aos problemas atuais. Há, portan- to, um sentido de atualidade ou de contemporaneidade ínsito no projeto, inclusive no tocante à linguagem, eli- minados que foram arcaísmos e supe- rados modos de dizer. O PRINCÍPIO DA SOCIALIDADE O “sentido social” é uma das características mais marcantes do Pro- jeto, em contraste com o sentido indi- vidualista que condiciona o Código Ci- vil ainda em vigor. Seria absurdo ne- gar os altos méritos da obra do insigne Clóvis Beviláqua, mas é preciso lem- brar que ele redigiu sua proposta em fins do século passado, não sendo se- gredo para ninguém que o mundo nun- ca mudou como no decorrer do pre- sente século, assolado por profundos conflitos sociais e similares. Se não houve a vitória do socia- lismo, houve o triunfo da “socialidade”, fazendo prevalecer os valores coletivos sobre os individuais, sem perda, po- rém, do valor fundante da pessoa hu- mana. Por outro lado, o Projeto se dis- tinguepela maior aderência à realida- de contemporânea, com a necessária revisão dos direitos e deveres dos cin- co principais personagens do Direito Privado tradicional: o proprietário, o contratante, o empresário, o pai de fa- mília e o testador. Nosso empenho foi no sentido de situar tais direitos e deveres no con- texto da nova sociedade que emergiu de duas guerras universais, bem como da revolução tecnológica e da emanci- pação plena da mulher. É por isso, por Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro exemplo, que acabei propondo que o “pátrio poder” passasse a denominar- se “poder familiar”, exercido em con- junto por ambos os cônjuges em ra- zão do casal e da prole. Em virtude do princípio da socialidade, surgiu também um novo conceito de posse, a posse-trabalho, ou posse pro labore, em virtude da qual o prazo de usucapião de um imóvel é reduzido, conforme o caso, se os pos- suidores nele houverem estabelecido a sua morada, ou realizado investimen- tos de interesse social e econômico. Por outro lado, foi revisto e atualizado o antigo conceito de posse, em conso- nância com os fins sociais da proprie- dade. O PRINCÍPIO DA ETICIDADE O Código atual peca pelo rigorismo formal, no sentido de que tudo se deve resolver mediante precei- tos normativos expressos, sendo pouquíssimas as referências à eqüida- de, à boa-fé, à justa causa e aos de- mais critérios éticos. Esse espírito dogmático-formalista levou um grande mestre do porte de Pontes de Miranda a qualificar a boa-fé e a eqüidade como “aberrações jurídicas”, entendendo ele que, no Direito Positivo, tudo deve ser resolvido técnica e cientificamente, por meio de normas expressas, sem apelo a princípios considerados metajurídicos. Não acreditamos na ge- ral plenitude da norma jurídica positi- va, sendo preferível, em certos casos, prever o recurso a critérios ético-jurídi- cos que permitam chegar-se à “concreção jurídica”, conferindo-se maior poder ao juiz para encontrar-se a solução mais justa ou eqüitativa. O novo Código, por conseguin- te, confere ao juiz não só poder para suprir lacunas, mas também para re- solver, onde e quando previsto, de con- formidade com valores éticos, ou se a regra jurídica for deficiente ou inajustável à especificidade do caso concreto. Como se vê, ao elaborar o Pro- jeto, não nos apegamos ao rigorismo normativo, pretendendo tudo prever de- talhada e obrigatoriamente, como se na experiência jurídica imperasse o princípio de causalidade próprio das ciências naturais, nas quais, aliás, se reconhece cada vez mais o valor do problemático e o do conjetural. O que importa em uma codificação é o seu espírito; é um con- junto de idéias fundamentais em tor- no das quais as normas se entrelaçam, se ordenam e se sistematizam. Em nosso projeto não prevale- ce a crença na plenitude hermética do Direito Positivo, sendo reconhecida a Série Cadernos do CEJ, 20 imprescindível eticidade do ordenamento. O código é um sistema, um conjunto harmônico de preceitos que exige a todo instante recurso à analogia e aos princípios gerais deven- do ser valorizadas todas as conseqü- ências da cláusula rebus sic stantibus. Nesse sentido, é posto o princípio do equilíbrio econômico dos contratos como base ética de todo o Direito obrigacional. Nesse contexto, abre-se campo a uma nova figura, que é a da resolu- ção do contrato como um dos meios de preservar o equilíbrio contratual. Hoje em dia, praticamente só se pode rescindir um contrato em razão de atos ilícitos. O direito de resolução obede- ce a uma nova concepção, porque o contrato desempenha uma função so- cial, tanto como a propriedade. Reco- nhece-se, assim, a possibilidade de se resolver um contrato em virtude de adventos de situações imprevisíveis que inesperadamente venham alterar os dados do problema, tornando a posição de um dos contratantes exces- sivamente onerosa. Tal reconhecimento vem esta- belecer uma função mais criadora por parte da Justiça em consonância com o princípio da eticidade, cujo fulcro fundamental é o valor da pessoa hu- mana como fonte de todos os valores. Como se vê, o novo Código abando- nou o formalismo técnico-jurídico pró- prio do individualismo da metade des- te século, para assumir um sentido mais aberto e compreensivo, sobretudo numa época em que o desenvolvimen- to dos meios de informação vem am- pliar os vínculos entre os indivíduos e a comunidade. O PRINCÍPIO DA OPERABILIDADE O terceiro princípio que norteou a feitura deste nosso Projeto – e va- mos nos limitar a apenas três, não por um vício de amar o trino, mas porque não há tempo para tratar de outros, que estão de certa maneira implícitos nos que estou analisando – é o princípio da operabilidade. Ou seja, toda vez que tivemos de examinar uma norma jurí- dica, e havia divergência entre ser enunciada de uma forma ou de outra, pensamos no ensinamento de Jhering, que diz que é da essência do Direito a sua realizabilidade: o Direito é feito para ser executado; Direito que não se exe- cuta – já dizia Jhering na sua imagina- ção criadora – é como chama que não aquece, luz que não ilumina. O Direito é feito para ser realizado; é para ser operado. No fundo, o que é que nós somos – nós advogados? Somos ope- radores do Direito: operamos o Códi- go e as leis, para fazer uma petição ini- cial, e levamos o resultado de nossa operação ao juiz, que verifica a legiti- midade, a certeza, a procedência ou Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro não da nossa operação – o juiz tam- bém é um operador do Direito; e a sen- tença é uma renovação da operação do advogado, segundo o critério pelo qual julga. Então, é indispensável que a norma tenha operabilidade, a fim de evitar uma série de equívocos e de di- ficuldades que hoje entravam a vida do Código Civil. Darei apenas um exemplo. Quem é que, no Direito Civil brasileiro ou estrangeiro, até hoje, soube fazer uma distinção nítida e fora de dúvida, entre a prescrição e a decadência? Há as teorias mais cerebrinas e bizantinas para se distinguir uma coisa da outra. Devido a esse contraste de idéias, as- sisti, uma vez, perplexo, num mesmo mês, a um Tribunal de São Paulo ne- gar uma apelação interposta por mim e outros advogados, porque entendia que o nosso direito estava extinto por força da decadência; e, poucas sema- nas depois, ganhávamos, numa outra Câmara, por entender-se que o prazo era o da prescrição, que havia sido in- terrompido! Por isso, o homem comum olha o Tribunal e fica perplexo. Ora, quisemos pôr um termo a essa perple- xidade, de maneira prática, porque o simples é o sinal da verdade, e não o bizantino e o complicado. Preferimos, por tais motivos, reunir as normas prescricionais, todas elas, enumerando-as na Parte Geral do Código. Não haverá dúvida nenhuma: ou figura no artigo que rege as prescri- ções, ou então se trata da decadência. Casos de decadência não figuram na Parte Geral, a não ser em cinco ou seis hipóteses em que cabia prevê-la, logo após, ou melhor, como complemento do artigo em que era, especificamen- te, aplicável. Qual é o tratamento dado à de- cadência? Há, por exemplo, o direito do doador de revogar a doação feita, por ingratidão. Aí, o prazo é tipicamen- te de decadência. E então a norma vem acoplada à outra: a norma de operabilidade está jungida ao direito material. Como se vê, cada norma de decadência está acoplada ao preceito cuja decadência deve ser decretada. De tal maneira que, com isso, nãohá mais possibilidade de alarmantes con- tradições jurisprudenciais. O critério da operabilidade leva- nos, às vezes, a forçarmos um pouco, digamos assim, os aspectos teoréticos. Vou dar um exemplo, para mostrar que prevalece, às vezes, o elemento de operabilidade sobre o elemento pura- mente teorético-formal. Qual é o prazo de responsabilidade de um construtor, pela obra que entregou, numa emprei- tada de material e de valor, ou seja, de mão-de-obra e com fornecimento de material? É um prazo de cinco anos – um prazo extenso. Porém estabelece- Série Cadernos do CEJ, 20 mos que, não obstante a aparência de uma norma prescritiva, ela devia ser colocada como norma de decadência, para que não houvesse dúvida na ju- risprudência, nem dúvida na respon- sabilidade de fazer face àquilo que as- sumiu como obrigação contratual. Isso posto, o princípio da operabilidade leva, também, a redigir certas normas jurídicas que são nor- mas abertas, e não normas cerradas, para que a atividade social mesma, na sua evolução, venha alterar seu con- teúdo mediante aquilo que denomino “estrutura hermenêutica”. Porque, para mim, a estrutura hermenêutica é um complemento natural da estrutura normativa. E é por isso que a doutrina é fundamental, porque ela é aquele modelo dogmático e teórico que diz o que os demais modelos jurídicos sig- nificam. Estão verificando que tivemos em vista esses três princípios e outros também, que levam em conta a concreção humana. Poderia acrescen- tar, aqui, o princípio da concretitude, que, de certo modo, está implícito no de operabilidade. Concretitude, o que é? É a obri- gação que tem o legislador de não le- gislar em abstrato, para um indivíduo perdido na estratosfera, mas, quanto possível, legislar para o indivíduo situa- do: legislar para o homem como mari- do; para a mulher como esposa; para o filho como um ser subordinado ao poder familiar. Quer dizer, atender às situações sociais, à vivência plena do Código, do direito subjetivo como uma situação individual; não um direito sub- jetivo abstrato, mas uma situação sub- jetiva concreta. Em mais de uma opor- tunidade ter-se-á ocasião de verificar que o Código preferiu, sempre, essa concreção para a disciplina da maté- ria. Fixadas essas linhas gerais, ago- ra desejo focalizar alguns exemplos de confronto entre o Código atual e o Pro- jeto do novo Código, que já foi apro- vado pelo Senado. INOVAÇÕES IMPRESCINDÍVEIS Já fiz referência ao caráter ex- cessivamente individualista do Código atual, mas, se procuramos corrigir sua vinculação aos valores de uma supe- rada sociedade agrária, nem por isso deixamos de salvaguardar, sempre que possível, como já salientado, as suas disposições ainda válidas, especialmen- te com a conservação da Parte Geral, a qual foi mantida de acordo com a grande lição que nos vem de Teixeira de Freitas. Houve, porém, necessidade de atender às novas contribuições da Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro civilística contemporânea no que se refere, por exemplo, à disciplina dos negócios jurídicos, à necessidade de regrar unitariamente as obrigações ci- vis e as mercantis, com mais precisa distinção entre associação civil e soci- edade empresária, cuidando de várias novas figuras contratuais que vieram enriquecer o Direto das Obrigações, sem deixar de dar a devida atenção à preservação do equilíbrio econômico do contrato, nos casos de onerosidade excessiva para uma das partes, bem como às cautelas que devem presidir os contratos de adesão para salvaguar- dar os interesses do consumidor. Além disso, foram estabelecidas as normas gerais dos tí- tulos de crédito, mantendo-se a legis- lação especial para disciplina de suas diversas figuras; assim como fixadas regras mais adequadas em matéria de responsabilidade civil, que o Código atual ainda subordina à idéia de culpa, sem reconhecer plena e claramente os casos em que a responsabilidade deve ser objetiva, atendendo-se às con- seqüências inerentes à natureza e à es- trutura dos atos e negócios jurídicos como tais. É difícil enumerar todas as ino- vações trazidas pelo projeto, desde uma rigorosa separação entre prescri- ção e decadência, aquela disciplinada na Parte Geral, e esta prevista em cada caso ocorrente – em conexão com o artigo que lhe diz respeito. Desse modo, fica superada de vez a interminável dúvida sobre se determinada disposi- ção é de prescrição ou de caducida- de. Por outro lado, merece especial menção a distinção fundamental entre Direito Pessoal e Direito Real de Famí- lia, ou, então, as disposições sobre condomínio edifício (denominação em princípio criticada, e que já é de uso corrente) ou a restauração do antigo Direito de Superfície sob novas vestes, o que demonstra que não nos domi- nou o desejo de só oferecer novida- des. Cumpre também salientar que o projeto não abrange matérias que en- volvam questões que vão além dos lindes jurídicos, como é o caso das sociedades por ações, objeto de lei especial. Por outro lado, é próprio de um código albergar somente questões que se revistam de certa estabilidade, de certa perspectiva de duração, sen- do incompatível com novidades ainda pendentes de maiores estudos, abran- gendo problemas de ordem científica, como é o caso já lembrado da fecun- dação artificial. O projeto limita-se, por conseguinte, àquilo que é da esfera ci- vil, deixando para a legislação especi- al a disciplina de assuntos que dela extrapolem, como é o caso da “incor- poração de condomínios edifícios”. Série Cadernos do CEJ, 20 Eis aí algumas diretrizes de um Projeto que, repito, não mais nos per- tence, pois ele foi publicado por três vezes, recebendo sempre sugestões que, após o devido estudo, deram lu- gar a alterações que, progressivamen- te, vieram aperfeiçoando e atualizan- do nossa proposta inicial, até as últi- mas mudanças feitas no Senado. É uma tolice, por conseguinte, afirmar-se que o projeto estaria superado por ter sido proposto à Câmara dos Deputados em 1975. O curioso é que quem apoda o projeto com a velhice, pleiteia a manu- tenção do atual Código Civil que é de 1916! CRÍTICAS APRESSADAS OU INOPORTUNAS Outra crítica apressada e abso- lutamente sem sentido diz respeito ao fato de o Código não ter cuidado da união estável de pessoas do mesmo sexo. Essa matéria não é de Direito Ci- vil, mas sim de Direito Constitucional, porque a Constituição criou a união estável entre um homem e uma mu- lher. De maneira que, para cunhar-se aquilo que estão querendo, a união estável dos homossexuais, em primei- ro lugar seria preciso mudar a Consti- tuição, o que não era a nossa tarefa e muito menos a do Senado. Certas críticas são frutos ape- nas da ignorância dos textos constitu- cionais vigentes. O Código só abrange aquilo que já está, de certa maneira, consolidado à luz da experiência. É o motivo pelo qual concordamos com aqueles que, em determinado momen- to, entenderam que não deveria fazer parte do Código a Lei da Sociedade por Ações. Não apenas em razão das mu- tações a que ela está continuamente sujeita – como ainda agora o demons- tra a recente lei que está dando cam- po para tantas discussões –, mas tam- bém porque a lei que rege as socieda- des anônimas está diretamente vincu- lada ao mercado de capitais, o que transcende os lindes da lei civil. Não se compreende que, ten- do o Senado Federal aprovado o pro- jeto com emendas, só podendo estas ser objeto de apreciação pela Câmara dos Deputados,certos críticos, que se mantiveram todos estes anos calados, vêm, agora, apontar pretensos erros ou omissões, que, se porventura existen- tes, somente poderiam ser objeto de leis autônomas ou posteriores ao novo Código Civil. Isso tudo apenas demons- tra que não se tem em vista aperfeiço- ar a legislação do País, mas tão-somente mostrar tardio e irrelevante cuidado, sob o qual não raro se ocultam pre- conceitos e prevenções. Por outro lado, críticas surgiram em flagrante conflito com o texto da proposta, evidenciando, assim, que nem sequer houve preocupação de lei- Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro tura com a atenção e a serenidade que exigem os estudos jurídicos, servindo o Projeto apenas de pretexto para pro- moção pessoal. Quanto à alegação de que o princípio da socialidade acaba geran- do a massificação e sacrificando a in- dividualidade, componente essencial de um Código Civil, trata-se de tolice tão evidente que não merece nem com- porta discussão. Esclarecidas essas questões, não é demais recordar que os assun- tos fundamentais da nova codificação foram por mim explanados, assim como pelos demais co-autores do pro- jeto, nas respectivas exposições de motivos. No que me toca, permito-me lembrar que publiquei, em 1986, pela Editora Saraiva, a primeira edição do presente livro, na qual os interessados puderam encontrar as diretrizes funda- mentais a que estou fazendo referên- cia. A mesma coisa poder-se-á dizer com relação ao ilustre Ministro Moreira Alves, que, na mesma época, tratou também do Projeto, em volume perti- nente à Parte Geral. De modo que já há bibliografia auxiliar, além das publi- cações feitas pelo Congresso Nacional, que são parte componente essencial do Projeto, sobretudo depois que ele foi aprovado pela Câmara dos Deputa- dos e em seguida pelo Senado Fede- ral, com o douto e minucioso parecer de autoria do Senador Josaphat Mari- nho, incluído na presente edição. A TRAMITAÇÃO NO SENADO FEDE- RAL No Senado Federal logo nos defrontamos com várias dificuldades. A obra de codificação coincidiu com o retorno do País à ordem constitucio- nal e, por conseguinte, com a idéia de uma Assembléia Nacional Constituinte, que era apresentada, consoante já sa- lientei, como uma fonte de possíveis alterações profundas que iriam se re- fletir sobre o Projeto. Isso teve como conseqüência estancar o processo de sua apreciação, até que fosse feita a nova Constituição. A situação não im- pediu, no entanto, que no Senado fos- sem apresentadas, no prazo regimen- tal, 366 emendas, cuja apreciação iria demandar mais de doze anos. Isso não obstante, o trabalho no Senado é merecedor de justa admira- ção, merecendo referência especial a decisiva resolução do Relator-Geral, Senador Josaphat Marinho de chamar a si a responsabilidade de apreciação das emendas, submetendo, a posteriori, as suas propostas à consi- deração dos Relatores Especiais. Vê, assim, o leitor, que o Proje- to não é fruto de improvisação e nem tampouco representa um trabalho des- Série Cadernos do CEJ, 20 de logo solidificado e definitivo. Mas, ao contrário, veio sendo corrigido e completado ao longo do tempo, de tal maneira que novas emendas e novas sugestões foram sempre bem recebi- das e, objetos de nossa análise. Ape- sar da morte da maior parte dos mem- bros da comissão, o Ministro Moreira Alves e eu, como remanescentes mais ativos dela, continuamos a dar nossa colaboração, emitindo pareceres e for- mulando novas propostas no Senado Federal, que serviam de base à propos- ta finalmente apreciada pela Câmara Alta, após o parecer do mencionado Relator-Geral *. O NOVO DIREITO DE FAMÍLIA E O DE SUCESSÕES Já havíamos dado grande pas- so à frente no sentido da igualdade dos cônjuges. Isso ficou ainda mais acen- tuado na Constituição, sobretudo no que se refere à situação dos filhos, por- quanto a Carta Política de 1988 elimi- nou toda e qualquer diferença entre fi- lhos legítimos, naturais, adulterinos, espúrios ou adotivos. Essa opção constitucional im- plicou evidentemente o reexame das emendas oferecidas por Nelson Carnei- ro, de tal maneira que foi feita plena atualização da matéria em consonân- cia com as novas diretrizes da Carta Magna vigente, também, no que se re- fere à “união estável”, a nova entidade familiar que surge ao lado do matrimô- nio civil, corrigindo-se o erro da legis- lação em vigor que a confunde com o concubinato. Nota-se que, na Parte Geral, atende-se, outrossim, às circunstânci- as da vida contemporânea, adotando- se novos critérios para estabelecer a maioridade, que baixou de 21 para 18 anos. É sabido que, em virtude da Informática e da expansão cultural, as pessoas amadurecem mais cedo do que antes. Essa mudança fundamen- tal refletiu-se também no campo da res- ponsabilidade relativa: quem passou de 16 anos é até eleitor em todos os pla- nos da política nacional, desde o mu- nicípio até a União. Os exemplos ora dados já são mais do que suficientes para demons- trar que houve grande preocupação no sentido de aproveitar as emendas do Senado para a atualização do Projeto. E isso se repetiu nos poderes conferi- dos aos cônjuges em absoluta igual- dade, razão pela qual, como já foi dito, propus, e foi aceito pelo Senador Josaphat Marinho, que, em vez de pátrio poder, se falasse em “poder fa- miliar”, que é uma expressão mais jus- ta e adequada, porquanto os pais exer- cem esse poder em função dos inte- resses do casal e da prole. No que se refere à igualdade dos Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro cônjuges, é preciso atentar ao fato de que houve alteração radical no tocan- te ao regime de bens, sendo desneces- sário recordar que anteriormente pre- valecia o regime da comunhão univer- sal, de tal maneira que cada cônjuge era meeiro, não havendo razão algu- ma para ser herdeiro. Tendo já a meta- de do patrimônio, ficava excluída a idéia de herança. Mas, desde o momen- to em que passamos do regime da co- munhão universal para o regime parci- al de bens com comunhão de aqüestos, a situação mudou completamente. Se- ria injusto que o cônjuge somente par- ticipasse daquilo que é produto co- mum do trabalho, quando outros bens podem vir a integrar o patrimônio e ser objeto de sucessão. Nesse caso, o côn- juge, quando casado no regime da se- paração parcial de bens (note-se), con- corre com os descendentes e com os ascendentes até a quarta parte da he- rança. De maneira que são duas as ra- zões que justificam esse entendimen- to: de um lado, uma razão de ordem jurídica, que é a mudança do regime de bens do casamento; de outro, a absoluta equiparação do homem e da mulher, pois a grande beneficiada com tal dispositivo é, no fundo, mais a mu- lher do que o homem. Por outro lado, em matéria sucessória, não é mais lícito ao testa- dor vincular bens da legítima a seu bel- prazer. Ele deve explicar o motivo que o leva a estabelecer a cláusula limitadora do exercício de direitos pelo seu herdeiro, podendo o juiz, em cer- tas circunstâncias, apreciar a matéria para verificar se procede a justa causa invocada. ADEQUAÇÃO A EXIGÊNCIAS TÉCNI- CAS Há, além disso, necessidade de levar em conta as alterações profun- das ocorridas no plano técnico e operacional. Por essas razões, por exemplo, toda a matéria de escritura- ção empresarial passa por uma trans- formação fundamental para que tudo possa ser feito por meio de processos eletrônicos, superando-se os entraves formalistasem matérias de contabili- dade e de gestão da empresa. O mesmo espírito pragmático preside a outros aspectos da vida em- presarial, notadamente no que se refe- re às questões disciplinadas na nova parte especial inserida no projeto, re- lacionada ao Direito de Empresa – em- pregada a palavra “empresa” no senti- do de atividade desenvolvida pelos in- divíduos ou pelas sociedades a fim de promover a produção e a circulação das riquezas, dos bens e dos serviços. É esse o objetivo fundamental que rege os diversos tipos de socieda- des empresariais, não sendo demais Série Cadernos do CEJ, 20 realçar que, consoante a terminologia adotada pelo Projeto, as associações são sempre de natureza civil. Parece uma distinção somenos, mas de gran- des conseqüências práticas, porquan- to cada uma delas é governada por princípios distintos. Uma exigência básica de operabilidade norteia, portanto, toda a matéria de Direito de Empresa, ade- quando-o aos imperativos da técnica contemporânea no campo econômico- financeiro, sendo estabelecidos precei- tos que atendem tanto à livre iniciativa como aos interesses do consumidor. OUTRAS ATUALIZAÇÕES É inegável a urgente necessida- de de se atualizar o Código atual em várias outras questões. Sendo, por exemplo, as sociedades por ações es- truturas complexas que exigem amplos e custosos quadros funcionais, a disci- plina normativa das cotas de respon- sabilidade limitada passou a ter uma importância cada vez mais acentuada. De início, as sociedades por cotas eram relativas a pequenas empresas e ainda exercem essa função, mas, hoje em dia, esse tipo de sociedade abrange um número imenso de agremiações, até chegarmos às holdings ou controladoras das grandes estruturas empresariais. Na verdade vemos socie- dades anônimas que se entrelaçam para formar complexos econômicos sujeitos a uma sociedade por cotas de responsabilidade limitada. Por todas essas razões foi dada uma nova estrutura, bem mais ampla e diversificada, ao instituto da socieda- de por cotas de responsabilidade limi- tada, sendo certo que a lei especial em vigor está completamente ultrapassa- da, achando-se a matéria regida se- gundo princípios de doutrina e à luz de decisões jurisprudenciais. A propó- sito desse assunto, para mostrar o cui- dado que tivemos em atender à Cons- tituição, lembro que a lei atual sobre sociedades por cotas de responsabili- dade limitada permite que se expulse um sócio que esteja causando danos à empresa, bastando para tanto mera decisão majoritária. Fui dos primeiros juristas a exigir que se respeitasse o princípio da justa causa, entendendo que a faculdade de expulsar o sócio nocivo devia estar prevista no contra- to, sem o que haveria mero predomí- nio da maioria. Ora, a Constituição atual declara no art. 5º que ninguém pode ser privado de sua liberdade e de seus bens sem o devido processo legal e sem o devido contraditório. Em razão desses dois princípios constitucionais, mantivemos a possibilidade da elimi- nação do sócio prejudicial, que esteja causando dano à sociedade, locuple- tando-se, às vezes, à custa do patrimônio social, mas lhe assegura- �������� �� ��� ��� ��� �� ����������������� ����� ������ �� ������� ���� ������������� ��� �� �������������������� ������� ������� �� ���� �������������� �� ������������ �� ������ � ��!������ �������� ��������� "��#��$ ���������������������������� ������ � ���� ��� ����������� �� ��������� ����� ������� �����������������%���� ���� ��&��"�����#��� ����� �������� ��'� ����������� �"����������������������� �� � ��� ����� ��� ��� (������ ����#������ #���� � �������� � �� �)�������������������� � �����������������"�������$ ������������� � ���� �*���� �������������*�"+ ����������� ���� � ������������� ��� ���� �"����� ������������������������� � ���#�� ����� �� ���������������� ��� #��%!����� ������������������"�� �� � ������ ���� ��$ ������������� � � �,�������� ����������� ��!�������������� ��������� �������� ��!������� �"� ��-��#������ ������������� ��������� �� ����������� ��������� �� �"����#�������� ����� ��������� �� �������� � ������ ��� ��+� ������� %������������������������ ���#��� �� �������������������� �� ���������.�������/����� ���� � � ���������+������ ������� ��� � ������� %����*��� ���������$ ����� � �� �����������������"��������� ����� ���������������������� ��� ������� ��������� 0(12� 3�4�� ��� ������ � ����� ��� ��5�� ������������������5�������2��������� ������� �����6�������� ����������#� ������������� � ��7� ������������$���� ��������� ��8�,����������������� � 9 ������ � �� ���#��,�������5����� ��2�� �����:���������� ��;����� DIREITO DE FAMÍLIA LUIZ EDSON FACHIN Lembro-me de uma recente con-ferência, no ano passado, pro-ferida por José Saramago na Fa- culdade de Direito da Universidade de Coimbra, designada “O Direito e os Si- nos”. Contou Saramago que, ao final do século XIII, numa pequena aldeia ao redor de Florença, numa certa ma- nhã, um camponês pôs-se, desespera- damente, a tocar o sino da igreja e isso, usualmente, representava o nascimen- to ou o falecimento de alguém, assim não se sabia a razão pela qual aquele sino dobrava-se insistentemente: se al- guém havia nascido ou morrido. Os si- nos tocaram tanto que o povo acorreu para a igreja, para saber, de fato, o que se passava. Quando toda a população daquela aldeia se encontrava à frente da porta de entrada da pequena igre- ja, o camponês parou de tocar e, per- guntado por que o fazia com tanta in- sistência, ele respondeu: estou tocan- do sinos, porque o Direito morreu. As pessoas questionavam que sentença tão dura era essa vinda de uma pes- soa tão humilde. O camponês narrou um episódio que havia, ao final, redun- dado na perda de seus bens, de sua família e um conjunto de fatalidades e tragédias, que o levaram a concluir que o Direito havia morrido. Recupero essa pequena passa- gem para dizer que, se hoje, no Brasil, mutatis mutandis deste pequeno exem- plo figurativo, olharmos o Direito de Família do início e final do século XX, posso-lhes atestar que, se os sinos do- bram, fazem-no para anunciar não a morte do Direito, mas, sim, o nasci- mento de um novo, expressivo e signi- ficativo Direito de Família, consentâneo com as perplexidades e os paradoxos que a sociedade brasileira vive neste momento. Tivemos uma transformação fundamental, ao lado do Código Civil brasileiro, à margem do sistema famili- ar codificado, que foi gradativamente construída na legislação esparsa, às vezes, com cistos, diáteses e alguns desvios próprios da produção legislativa dispersa e, sobretudo, por uma jurisprudência expressiva, que, na seara do Direito de Família, trouxe ao Brasil uma contribuição fundamental para erigir um conjunto novo de prin- cípios e regras, como, também, por uma produção doutrinária, uma ativi- dade intelectual expressiva, que assim se realizou. Basta assinalar que, no come- ço deste século, no momento em que entrou em vigor o Código Civil brasilei- ro – ainda vigente –, tínhamos um mo- delo de família regulado juridicamen- te, assentado em quatro pontos funda- mentais, que, no final deste século, sofreu uma transformação sensível. Tínhamos o governo jurídico de uma família exclusivamente Série Cadernos do CEJ, 20 matrimonializada, hierarquizada, transpessoal e de natureza patriarcal como o modelo da grande família com um número expressivo de filhos. Esse modelo,oitenta, noventa anos depois, cede espaço a um texto constitucional que mantém o casamento, seguramen- te, como fonte das relações familiares, mas retira-lhe a exclusividade, para re- conhecer que também há família quan- do não há casamento, que o direito de casar corresponde também ao direito de não casar ou não permanecer ca- sado, e para recuperar as relações fa- miliares ex maritalis, dando sentido à família como uma comunhão de vida, uma história que se escreve a quatro mãos e tem, na sua dimensão sócio- afetiva, uma relação que transcende o vínculo formal. O aspecto hierarquizado, à luz dos valores deste início de século, fa- zia fundar a estrutura familiar na lei da desigualdade, porque desiguais eram os papéis e as funções dentro da famí- lia: os papéis e as funções do marido, da mulher e dos filhos tidos dentro e fora do casamento. Para os filhos tidos fora do casamento, o art. 358 do Códi- go Civil, em verdade, criava uma lei de interdição, não permitindo que, embo- ra filhos fossem, do ponto de vista bio- lógico, consangüíneos, não podiam realizar o direito de declarar a sua pa- ternidade, porque o pai estava casado com outra mulher, que não era a mãe daquela criança. Essa desigualdade injustificada cede espaço à lei de igual- dade. A direção unitária da família cede espaço à direção diárquica, aberta e compartilhada. Além disso, os outros aspectos do patriarcalismo e da visão transpessoal da família levaram alguns juristas a sustentarem com muita ênfa- se tratar a família de uma pessoa jurí- dica, o que dá margem a uma visão eudemonista da família. Há muito tem- po Andrey Michelle disse: A família não é uma instituição que se explica por si só, mas se explica à medida que se realizam as aspirações de cada um dos membros que dela participam, com a realização mínima da felicidade possí- vel. Essa visão, que se designa de eudemonista, compreende também esse aspecto sócio-afetivo, aliás, mui- to bem tratado em um trabalho pionei- ro e exemplar do Prof. João Baptista Villela, designado “A Desbiologização da Filiação no Brasil”. Por isso, quando lhes pergun- tei, no início, se os sinos hão de do- brar, respondo-lhes que sim, quer quei- ramos ou não, para o nascimento de um novo Direito de Família, que ainda não se instalou por completo, que ain- da faz surtir perplexidades e também paradoxos de um conjunto de fatos Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro que nesta seara mexe com alguns va- lores fundamentais desse microcosmo estrutural da nossa sociedade, que, sem dúvida nenhuma, é a família. Para posicionarmos essa evo- lução, há de se formular uma pergun- ta introdutória e a ela procuraremos dirigir alguma resposta. Para suportar essa evolução ao largo da codificação civil, na Constituição, na legislação esparsa, na jurisprudência e na doutri- na, para se dar conta desta configura- ção jurídica, a resposta está em ado- tarmos uma nova codificação? Ou a resposta está em reconhecer-se que, neste momento, antes de pensarmos em uma nova codificação, será neces- sário verificar, com efeito, para que e para quem essa codificação está sen- do realizada? Quiçá, na virada deste século, também estejamos na dobra da constituição de um novo desenho jurí- dico da família no Brasil, desenho este cujos contornos e conteúdo não fize- ram ainda emergir uma disciplina jurí- dica clara e efetiva que reclame e me- reça estabilidade. Será, portanto, que, nessa quadra de valores em transfor- mação, a resposta de uma codificação é a resposta que soa mais adequada a tanto? Essa é a pergunta que vamos procurar responder; mas, para tanto, é necessário antes aprofundá-la, para não encontrarmos uma resposta mui- to simples, porque estamos entre aque- les que não vêem, no debate sobre a codificação, uma percepção maniqueísta entre o sim e o não, mas uma questão anterior, que antecede à dimensão própria da codificação, co- locando em questão a possibilidade de se aprofundar o momento histórico e cultural em que vivemos, e, a partir desse aprofundamento, verificarmos se é o momento de codificar ou não as relações jurídico-familiares. É preci- so, talvez, apontar cinco aspectos que se nos afiguram como fundamentais, para revelar a passagem do tradicional ao contemporâneo, da família do Có- digo à família da Constituição, para que possamos, aí, em face desses cinco as- pectos, dessa passagem, enfrentarmos a pergunta formulada. O primeiro desses aspectos é a transformação que houve e que desig- namos como uma espécie de virada de Copérnico, em termos da lei funda- mental da família: o Código Civil vigen- te, ao tempo em que entrou em vigor, constitui-se indubitavelmente na lei fun- damental reguladora das relações jurí- dico-familiares. Esse lugar central ocu- pado pelo Código está hoje indisfarçavelmente ocupado pela Cons- tituição. O Direito de Família brasileiro contemporâneo é um Direito constitucionalizado, quer nas regras, quer nos princípios, porque princípios e regras compõem a categoria das nor- mas. Por isso, o princípio constitucio- nal é norma vinculante, portanto, não Série Cadernos do CEJ, 20 necessitando, em nosso modo de ver, da mediação do legislador ordinário para a aplicação direta e imediata nas relações interprivadas. Daí porque, com base nessa perspectiva da eficá- cia direta e imediata do texto constitu- cional principiológico ou regulamentar, entendemos que houve uma mudan- ça no núcleo da regulação jurídica da família, antes ocupado pelo Código Ci- vil e hoje ocupado pela Constituição, que, de algum modo fez uma espécie de macrocodificação, porque detalhou alguns aspectos, como prazo para a conversão da separação em divórcio, o que poderíamos dizer que são aspec- tos próprios da legislação infraconstitucional. De qualquer sorte, constitucionalizou-se um conjunto ex- pressivo de princípios e regras, a partir do art. 226 da Constituição Federal, atinentes à família. É por isso que fala- mos em virada de Copérnico, porque precisamente nessa órbita celeste dos astros jurídicos o que estava ao centro fica à margem, e o centro é o culpado pela Constituição Federal. Ao contrá- rio do que se dizia, no início do sécu- lo, que a Constituição deveria ser lida à luz do Código, diz-se hoje que o Có- digo Civil há de ser lido à luz da Consti- tuição. Esse é o primeiro aspecto de uma transformação que nos parece relevante. A segunda dimensão a pontuar nessa mudança é a alteração atinente à estrutura jurídica da família. Eviden- temente que, do ponto de vista do modelo jurídico da família, à luz da partida dessa travessia e do Código Ci- vil, tínhamos seguramente um modelo unitário, um modelo exclusivamente matrimonial. Os filhos eram os tidos dentro do casamento, e, portanto, o regime jurídico do Código associava ao casamento essa legitimidade. Por essa razão, o Código negava a possibilida- de do reconhecimento dos filhos adulterinos, preceito felizmente derru- bado pela legislação posterior e pela jurisprudência, que foi decidindo de modo diverso. De qualquer sorte, as- sociando a legitimidade dos filhos ao casamento, o Código instituiu uma proi- bição que, não obstante discriminatória e injusta, constituindo, a rigor, um pre- ceito de exclusão, não admitia o reco- nhecimento dos filhos ilegítimos. A alteração que se deu com a mudança dos valores da cultura e da história sai dessa razão unitária da fa- mília e alcança, hoje, um modelo plu- ral. Seguramente o legislador constitu- cional noDireito Constitucional de Fa- mília deu um lugar central à família matrimonializada, deu um lugar central ao casamento, mas não lhe deu um lugar de fonte exclusiva das relações familiares. Daí por que saímos de uma visão unitária para uma dimensão plu- ral da família; saímos daquela percep- ção transpessoal, em que os interes- ses da instituição estavam acima do in- teresse dos membros que a compu- Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro nham, para uma visão eudemonista em que o que conta na família é, funda- mentalmente, o conjunto dos interes- ses dos membros que a compõem e o direito de cada um deles de realização pessoal e afetiva. Aliás, isso não se tra- ta apenas de uma formulação teórica, mas é por isso que, em uma contribui- ção exemplar, o Superior Tribunal de Justiça, logo após a sua criação, co- meça a admitir o ajuizamento da ação de investigação de paternidade, inde- pendentemente do estado civil do genitor, porque começou a considerar menos o estado civil do genitor que poderia estar casado com outra mu- lher que não a mãe da criança, levan- do menos em conta, portanto, o que dizia em 1929, na sua tese de cátedra, em Recife, Soreano Neto, que era fun- damental a paz da família, ainda que para isso fosse necessária uma menti- ra jurídica. Ao contrário disso, verifi- cou-se que a paz da família também deve, antes de mais nada, atender ao direito legítimo, fundamental, que é o direito de revelar a paternidade. Nesse sentido, operou-se essa mudança de estrutura da família unitária para uma família de natureza plural. No terceiro aspecto, que tam- bém nos soa relevante – no segundo mencionei uma alteração estrutural –, observo uma alteração de natureza fun- cional. A função básica da família co- dificada, moldada no desenho jurídico de um País agrário, da grande família, numerosa, concentrada na necessida- de até mesmo de mão-de-obra, que representava uma unidade econômica, esse modelo originário, que era a rigor uma unidade de produção, ao final deste século perde essa característica. Hoje, do ponto de vista econômico, a família é quase praticamente uma uni- dade de consumo. Mais importante do que isso, o que acentua o conjunto dos laços familiares ao final deste século é a possibilidade de salientar nas rela- ções familiares a valorização socioafetiva, ou seja, o que dá sentido à unidade familiar é precisamente cons- tituir um mínimo de refúgio afetivo, de intercâmbio afetivo que, mais além do que a verdade de sangue, embora não a desconsidere, mais além do que a consangüinidade, funde uma razão de ser que une homem e mulher, que une os pais e os filhos e estes entre si. Nes- sa medida, portanto, a família perde sua dimensão econômica como unidade, mas ganha, por meio do redimensionamento da afectio, uma nova função. No quarto aspecto há uma mu- dança estrutural no sistema da filiação. O sistema originário da filiação é, como disse Guilherme de Oliveira, professor da Faculdade de Direito da Universida- de de Coimbra, em um belo trabalho sobre essa matéria: O critério originá- rio do nosso Código, que era, também, Série Cadernos do CEJ, 20 o critério originário do antigo Código Civil Português, era nupcial; filhos eram os filhos tidos dentro do casamento. Os filhos tidos fora do casamento, do ponto de vista jurídico, não eram filhos. Aliás, esse é um dos maiores exemplos, na área da filosofia, tomado por Karl Engisch na sua obra Introdução ao Pen- samento Jurídico para dizer como o Direito e a vida, às vezes, podem an- dar apartados. Nessa dimensão origi- nária, o critério nupcial da filiação correspondia, portanto, a uma frontei- ra que estabelecia limites na possibili- dade do reconhecimento forçado ou voluntário da filiação. Esse critério nupcial, no trans- curso do tradicional ao contemporâ- neo, cede passos a alguns problemas de grandes paradoxos, mas, de qual- quer sorte, ao que se designa de crité- rio biologista da filiação. Hoje, pratica- mente não há limites para a determi- nação da verdade biológica. Talvez, aí, estejamos diante de um dos pontos in- teressantes para pensarmos se de fato é esse o modelo adequado. Há exemplos significativos na ju- risprudência do Supremo Tribunal Fe- deral, antes de 1988, sobre essa maté- ria, especificamente na parte em que se revela a necessidade de o Brasil de- bater e a comunidade jurídica aprofundar o valor jurídico da posse do estado do filho como um elemento de equilíbrio entre a exacerbação da verdade de sangue e a valorização da dimensão sócio-afetiva da filiação. Há de se considerar um caso paradigmático julgado no meu Estado, Paraná, e depois apreciado em última instância, à época, pelo Supremo Tri- bunal Federal que, em determinada hipótese, marido e mulher, em face de uma desavença que tiveram, separam- se transitoriamente por três a quatro meses; passado esse período, a mu- lher retorna ao lar, e o casal reconcilia- se, vivendo juntos por mais 25 anos; nasce uma criança, que, obviamente, recebe o patronímico do marido, seu pressuposto pai que não apenas dá- lhe o nome, como, também, o trata- mento que normalmente os pais pro- curam dar aos filhos: a educação, o afeto, a formação moral. Vinte e cinco anos depois o pai falece, e a mãe reve- la para aquela criança – já adulta e com plena capacidade jurídica para decidir o que fazer, inclusive ajuizar uma in- vestigação de paternidade – que o pai biológico não era o seu marido, mas um terceiro, curiosamente detentor de largas posses patrimoniais. Seguramen- te, a questão acaba em uma investiga- ção de paternidade, que o juiz de pri- meiro grau de uma das Varas de Curitiba julgou carecedora de ação, porque levou em conta, nesse caso, o sistema do Código Civil, que previa a legitimidade exclusiva do marido para impugnar os filhos tidos pela mulher Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro casada, hoje derrubada pela jurispru- dência e também pela legislação pos- terior ao Código. O juiz, vinculado ao Código Civil, julga preliminarmente pela carência da ação, e o Tribunal de Jus- tiça do Paraná reforma a decisão, de- terminando a realização da perícia para comprovar se há ou não descendên- cia consangüínea em relação ao outro homem. A matéria vai ao Supremo Tri- bunal Federal que confirma a decisão do Tribunal. Faz-se a perícia e consta- ta-se o óbvio: que o pai biológico des- sa pessoa, ainda vivo, era esse tercei- ro, e não o marido da mãe. Determina- se a nulidade do registro como que se passando uma borracha durante os 25 anos, e, em seguida, torna-se, do pon- to de vista patrimonial, um herdeiro e, do ponto de vista do estado da pes- soa, filho de outro que não o marido da mãe. Esse é um exemplo que se colhe da jurisprudência para colocar- nos a pensar sobre o valor jurídico da declaração biológica e que, em algu- mas hipóteses, talvez deva ser equili- brado com a noção de posse de esta- do de filho, para saber se o biologismo dos dias correntes – que torna, na in- vestigação de paternidade, praticamen- te os filhos como filhos do laudo, que constata pelos modernos exames a descendência – é um caminho a pros- seguir ou que mereça um aprofundamento. Sem embargos, o avanço dos exames médicos foi de uma importân- cia transcendental, especialmente para as mães solteiras que buscavam a in- vestigação de paternidade, porque co- locou por terra um argumento veicula- do exceptio plurium concumbentium que, ao invés de debater a origem ou não da filiação, acabavacolocando em questão a suposta honorabilidade da conduta da mulher em uma orientação discriminatória, injustificável em rela- ção à condição feminina. Nisso os exa- mes trouxeram uma contribuição exemplar. De qualquer modo, para resu- mir este quarto aspecto, saímos de uma visão nupcial – em que a filiação extramatrimonial não poderia ser reco- nhecida – para um critério biologista, em relação ao qual, nesta quadra em que vive o Brasil, praticamente, não há limites, embora haja também um gran- de debate sobre a condução compul- sória ou não para a extração do mate- rial e a realização do respectivo exa- me. De qualquer sorte, estamos sain- do de um sistema rígido, marchando para um outro que se está edificando, pela força construtiva da jurisprudên- cia, pela produção doutrinária e por alguma legislação que, neste aspecto específico, não tem trazido relevante contribuição. O quinto e último aspecto a mencionar nesta travessia que estou a referir-me é uma mudança do ponto de vista dos conceitos nucleares no Série Cadernos do CEJ, 20 Direito de Família. Em outras palavras, à luz do sistema do Código Civil brasi- leiro, ao designarmos pai e mãe, o Có- digo sabe com segurança a quem estamos nos referindo. Nos dias correntes, ao afirmar- mos o brocardo mater semper certa est, um ponto de interrogação já cabe ao final, porque, diante dos mecanis- mos da engenharia genética e da ges- tação em favor de outrem, a vulgar- mente designada barriga de aluguel, a gravidez não é, por si só, mais uma prova visível da maternidade. Aliás, essa é uma das circunstâncias que no Brasil tem passado à margem de um rigoroso controle público; o Judiciário já tem recebido demandas que colo- cam em xeque todos os direitos personalíssimos, como a cessão des- sa parte do corpo, o útero da mulher, para a gestação em favor de outro. Esse é também um dos para- doxos que leva da univocidade conceitual de maternidade a uma equivocidade ou seja, uma possibilida- de de uma fragmentação dessas defi- nições que não representam mais de uma maneira monolítica, unitária, uma verdade segura e clara, tal como é. No tocante à paternidade, tam- bém assim se passa. Menciono, rapi- damente, um caso exemplar – o Bra- sil, talvez, ainda não tenha tido um caso tão paradoxal como o que foi julgado em uma Corte ao sul da França, não faz muito tempo: uma criança poderia ter, simultaneamente, três pais. O fato se passou, em síntese, da seguinte maneira: marido e mulher separados de fato; a mulher passa a viver com outro homem, que é estéril. Desejan- do ser mãe, ela vai a um banco de material genético – como se sabe, na França, ao contrário do Brasil, o con- trole do Estado sobre o material gené- tico é efetivo –, e é inseminada artifici- almente com o material genético de outro homem. Durante o período de gravidez, o companheiro promove em juízo uma ação declaratória de inexistência de vínculo paternal para dizer o seguinte: “O meu relacionamen- to com esta mulher acabou, e o pai da criança que vai nascer não sou eu.” Ou o pai é o marido, porque ainda es- tão formalmente casados, e incide a presunção pater is est, ou o pai é aque- le que deu o material genético, porque biologicamente a criança descende dele. Como a criança ainda não nas- ceu, não se forma o trinômio: nomine, intractatus e fama, que seria, em tese, necessário para configurar o efeito constitutivo da posse de estado de fi- lho e atribuir-lhe a paternidade. O tribunal colocou-se, portan- to, diante desse dilema, em tese. Aque- le nascituro, que mal sabia, no confor- to do útero materno, o que lhe espera- Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro va em vida, poderia, em tese, ter três pais. Se fosse possível configurar a posse de estado de filho desde a con- cepção e não desde o nascimento, quiçá o companheiro poderia ser ele- vado à condição de pai socioafetivo, especialmente, se fosse demonstrado que ele houvera previamente consen- tido com a inseminação artificial. Esse consentimento prévio é uma declara- ção prévia da assunção da paternida- de, o que, no caso, não ficou clara- mente comprovado. Se assim fosse, poderia ele ser o pai socioafetivo da mesma forma que essa criança terá, ou teria, ou teve um pai biológico, cuja paternidade não pode ser declarada, porque, nas legislações que já se pro- nunciaram sobre esse tema, França, Suíça e Portugal, não é possível a in- vestigação de paternidade quando se trata do doador de material genético, havendo uma interdição a essa revela- ção. No Brasil, já há quem sustente a possibilidade da declaração da ascen- dência biológica mesmo quando se tra- tar do doador de material genético, não apenas para efeito de verificação de questões atinentes à saúde, mas para a realização de um direito fundamen- tal: o direito de conhecer o seu ascen- dente genético, sem que isso traga vín- culo patrimonial ou sucessório de na- tureza alguma. De qualquer sorte, na França tal não seria possível. Portanto, se o companheiro não pode ser pai socioafetivo, porque não se provou os elementos da posse do estado, se o doador do material gené- tico não pode ser declarado pai bioló- gico, restaria atribuir paternidade ao marido com o qual a mulher ainda es- tava casada formalmente, porém sepa- rada de fato. Acontece que, na Fran- ça, pela reforma da legislação france- sa da filiação, de 1973, tomba, auto- maticamente, a presunção pater is est quando a filiação não é verossímil. Não era verossímil que o marido fosse o pai, porque, certamente, pelas circunstân- cias dos fatos notórios ali existentes, não conviviam à época da concepção e, portanto, ausente a presunção de coabitação, o que faz tombar, cair, au- tomaticamente, a presunção de pater- nidade. Resultado: a criança nasceu e não tem pai, mas, em tese, poderia ter tido três pais nessa dimensão. Este exemplo, publicado no re- pertório de jurisprudência francesa no final do ano de 1998, é apenas para significar o último aspecto que menci- onei: a mudança dos conceitos da univocidade para a equivocidade. Se hoje perguntamos quem é a mãe, tam- bém há lugar para perguntarmos quem é o pai. Essa pergunta não tem mais uma resposta fácil e simples, não por- que o queiramos, mas porque assim os fatos contemporâneos, com essa Série Cadernos do CEJ, 20 velocidade extraordinária, estão a ge- rar. Esses cinco aspectos, dentre tantos outros, são suficientes para nos revelar as repercussões que toda esta matéria teve e está tendo na doutrina, no ensino e na jurisprudência. Em matéria de jurisprudência, cito como exemplo um acórdão, já de algum tempo, que mostra a orientação que o Superior Tribunal de Justiça deu a esse tema em setembro de 1991, no Recurso Especial n. 7.631, Relator o Ministro Sálvio de Figueiredo: Em face da nova ordem constitucional que abri- ga o princípio da igualdade jurídica dos filhos, possível é o ajuizamento de ação investigatória contra genitor casado. Naquele momento, deixou-se à margem o sistema originário do Códi- go Civil brasileiro. Aplicava-se o texto constitucional do princípio da igualda- de entre todos os filhos. O acórdão di- zia mais: Em se tratando de direitos fun- damentais de proteção à família e à filiação, os preceitos constitucionais devem merecer exegese construtiva que repudie discriminações incompa- tíveis com o desenvolvimento social e a evolução jurídica. A evolução da jurisprudência, os paradoxos dos fatos, toda essa rea- lidade que estamos a viver,encontram, agora, como proposta de sua regulação, o Projeto do Código Civil. A pergunta é se tal Projeto suporta tanta complexidade. A resposta, no meu sen- tir, que se pode sustentar, é que, à luz dessas questões, o Projeto não conse- gue suportar todos os aspectos aqui suscitados. É bem verdade que, em maté- ria de família, o Senado Federal – e é notável o esforço do Senador Josaphat Marinho – deu um largo, expressivo e positivo passo quando o Projeto lá es- teve e foi aprovado em novembro de 1997. Basta ver o conjunto de altera- ções introduzidas no Senado Federal como, por exemplo, o estabelecimen- to da igualdade de direitos entre o ho- mem e a mulher, que está no Projeto; a substituição do instituto do pátrio poder pelo assim chamado “poder ma- rital”; o reconhecimento da união está- vel, acabando-se, segundo sustenta o Senador Josaphat Marinho, com a dis- tinção entre todos os filhos; a obriga- ção dos ascendentes do adotante re- conhecerem o adotado, que tem iguais parentes; o dever de alimentos que é mais elastecido; o aumento da idade para a imposição do regime legal da separação de bens, evitando a distin- ção injustificável entre o homem e a mulher existente atualmente no Códi- go Civil brasileiro. Essas alterações estão no Livro IV, a partir do art. 1.510 do Projeto, Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro que, com a redação que saiu do Sena- do Federal, encontra-se, agora, tal como foi publicado no Diário da Câ- mara dos Deputados em 05 de feverei- ro de 1998, sendo examinado por uma Comissão Especial. O Relator da parte de família é o Deputado Antônio Carlos Biscaia, ex-Procurador da República, que trata desse tema e que procura evidenciar alguns desses paradoxos, os quais completam o estudo desse capí- tulo do Livro de Direito de Família, com- posto por 285 artigos. A estrutura básica do Projeto está em dividir o Direito de Família em Direito Pessoal e, depois, em Direito Patrimonial. O Direito Pessoal cuida, evidentemente, das relações familiares de base, e o Direito Patrimonial, do re- gime de bens e de um conjunto espe- cífico de questões atinentes ao Direito de Família. Para exemplificar as dificulda- des que tem o Projeto, cito, rapidamen- te, sem embargo desses elogios que fiz – e o Projeto no Senado assim o merece –, alguns aspectos que susci- tam alguma perplexidade: O art. 1.626 diz: Não se permi- te a investigação de maternidade quan- do tenha por fim atribuir à mulher ca- sada filho havido fora da sociedade conjugal. Se, de um lado, temos a pro- clamação de que houve nesse Projeto um reconhecimento do princípio da igualdade dos filhos, esse dispositivo, referindo-se à maternidade, cria uma diferença com a possibilidade dos fi- lhos do marido serem reconhecidos, porquanto tal propabilidade não se atri- bui aos filhos tidos fora do casamento pela mulher. Acrescentando, diz o parágra- fo único: Admite-se a investigação de- pois de dissolvida a sociedade conju- gal ou depois de um ano de separação ininterrupta do casal devidamente com- provada. Parece-nos que esse é um dis- positivo que arrosta o princípio funcio- nal da igualdade. Do art. 1.588, pinçarei, rapida- mente alguns exemplos: Sendo judici- al a separação, ficarão os filhos me- nores com o cônjuge inocente. Traduz o Projeto o grande de- bate fincado na superação da dimen- são subjetiva das separações e no di- vórcio. Cada vez se leva menos em conta essa inferência da culpa, da res- ponsabilidade para o efeito da separa- ção. O Projeto se mantém nessa medi- da, até porque, como sabemos, origi- nariamente, foi realizado pela Comis- são no começo dos anos 70 – na parte de família, teve a brilhante participação do Prof. Clóvis do Couto e Silva, da Fa- Série Cadernos do CEJ, 20 culdade de Direito da Universidade Fe- deral do Rio Grande do Sul –, à luz de um conjunto de valores anteriores à Constituição e ao próprio desenvolvi- mento jurisprudencial que se deu ex- pressivamente com a criação do Su- perior Tribunal de Justiça. Ademais, em um outro disposi- tivo, cita: Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nas- cidos de sua mulher. Até a expressão “contestar” já é uma demonstração daquilo que os processualistas civis de algum tempo, e com alguma razão, suscitam: a im- propriedade técnica, mas o problema está na impropriedade substancial, embora se tenha retirado o vocábulo “legitimidade exclusiva”. Não há a in- trodução da posse do estado de filho; substitui a expressão “pátrio poder” pela expressão “poder familiar”; des- conhece a evolução do pátrio poder para o dever familiar e que a expres- são adotada na moderna teoria de fa- mília é “autoridade parental”. De fato, os pais, no exercício das suas funções, inclusive a de colocar limites aos seus filhos, deverão sempre exercer a auto- ridade parental. Quando os pais, os adultos – há muito já se diz –, educam os filhos, também se educam. Nesse sentido, portanto, não há um pátrio poder; há, na verdade, um pátrio de- ver, ou uma autoridade parental que constrói uma via de mão dupla. Enfim, um conjunto de circuns- tâncias que nos leva a pensar se, de fato, há resposta para esses paradoxos que apontamos e se essas mudanças estão neste Projeto. Há quem entenda que não se deve cogitar sequer da codificação. O tempo das codificações já encontrou o seu ocaso. Há, assim, já na Itália, todo o trabalho de Natalino Irte e, mais tarde, de Pedro Barccelloni e de tantos outros autores que susci- tam a criação dos microssistemas e a decodificação do Direito, um dos fe- nômenos pelos quais estamos a pas- sar. Além disso, se há essa discussão geral, própria do Código impugnado – e dentre nós, há um trabalho expressi- vo nesse sentido do Prof. Francisco Amaral, criticando a própria idéia de uma nova codificação –, a questão está em saber se, vencida essa etapa, este Projeto daria conta da realidade. La- mentavelmente, no nosso sentimento, se algumas alterações expressivas não forem introduzidas, teremos um Proje- to aquém da Constituição de 1988. Por isso, neste momento, a Co- missão Especial na Câmara dos Depu- tados cuida da possibilidade regimen- tal de se ampliar a cognição restrita que o Poder Legislativo tem quando retorna do Senado Federal matéria não altera- da por ele e que já houvera sido previ- amente aprovada pela Câmara. Se isso Comentários sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro ocorrer, quiçá, poder-se-á colocar algu- ma mudança expressiva nessa parte do Direito de Família. Porém, a pergunta que se nos afigura mais relevante talvez seja a de saber para que e para quem se pensa uma codificação. Qual é a sua finalida- de e quais são os seus destinatários? Para qual família? Para qual desenho jurídico, ao final deste século, deseja- mos realizar um desenho que perceba essa dimensão sócio-afetiva, que man- tenha a família e a sua razão de ser, mas que desamarre os nós, como dis- se a historiadora francesa Michelle Pierrot, que mantenha o ninho, mas que desate alguns nós, permitindo à família, que, obviamente, não deve es- tar em decadência, manter-se em um novo modelo e em uma dimensão fortificada. Para isso, talvez, quando os si- nos da virada deste século dobrarem, poderemos nos perguntar se, com efei- to, nessas expressivas mudanças, quer concordemos com elas ou não, há uma possibilidade de mantermos um desen- volvimento jurisprudencial e doutriná- rio antes e, só depois, alcançar uma estabilidade e uma perenidade
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