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1 A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS: O CONTRATO EM UMA PERSPECTIVA CIVIL-CONSTITUCIONAL1 Camila Victor Franz RESUMO O presente estudo propõe uma reflexão acerca da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, demonstrando a sua possibilidade e forma de aplicação no direito brasileiro. A partir da análise da constitucionalização do Direito Privado, busca-se abordar a reestruturação pela qual passou a teoria contratual contemporânea, demonstrando que a nova roupagem conferida ao contrato, impregnada de princípios de cunho eminentemente social, possibilitou a incidência dos direitos fundamentais no plano horizontal, sem, contudo, mitigar a autonomia privada. Palavras-chaves Direitos fundamentais. Relações privadas. Autonomia privada. Constitucionalização. Contrato. Princípio da dignidade da pessoa humana. INTRODUÇÃO O presente trabalho visa abordar a problemática dos direitos fundamentais nas relações privadas, especificadamente no âmbito contratual, através do estudo sob a perspectiva civil- constitucional. Sem embargo, para bem entender a tendência do dirigismo contratual vigente, se faz necessário tecer breves comentários acerca do contexto histórico do Estado Social, o qual superou o individualismo proposto pelo Estado Liberal, cujos dogmas foram pautados pelos ideais da Revolução Francesa, consistentes no minimalismo intervencionista do Estado, devido à máxima de liberdade proposta. Todavia, as inspirações francesas não foram suficientes para suprir as exigências, porquanto se reconheceu que a igualdade e liberdade propostas eram meramente formais, nada havendo para que elas fossem realmente efetivadas. 1 Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, apresentado à banca examinadora composta pela Profª. orientadora Kadja Menezes da Costa, Prof. Mauro Fiterman e Profª Maria Regina Fay de Azambuja, em 04 de novembro de 2008. 2 Assim, inicia-se a exposição trazendo à baila a constitucionalização do Direito Privado, abordando o processo de reestruturação pelo qual passou o contrato, o que ocasionou a repersonalização do Direito Civil, trazendo o indivíduo para o cerne do ordenamento jurídico, e de que forma os princípios antes absolutos, como a autonomia privada e o pacta sunt servanda, foram implementados por novos valores, pautados pela solidariedade social e pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Feitos estes esclarecimentos essenciais para o embasamento do trabalho, entra-se no ponto cerne da questão, quais sejam, os direitos fundamentais e a possibilidade da vinculação de particulares a estes direitos. A questão trás inúmeras controvérsias, pois os direitos fundamentais foram instituídos pelas Constituições justamente para serem aplicados frente ao Estado, considerando a sua finalidade precípua de assegurar e limitar a atividade estatal. Todavia, imperioso reconhecer que as agressões aos direitos fundamentais não são exclusivas do Estado, sendo, não raras vezes, provenientes de particulares que, ao exercerem sua autonomia, malferem direitos garantidos constitucionalmente. Assim, apresenta-se a problemática acerca da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, onde se propõe tecer breves esclarecimentos acerca das principais teorias existentes, apontando referências no direito comparado, para então referir a posição doutrinária e jurisprudencial brasileira. Por conseguinte, demonstrar-se-á o reflexo da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, considerando a autonomia privada como um bem constitucionalmente protegido, reconhecendo, desta forma, o contrato como ponto de encontro entre direitos fundamentais de diferentes titulares. Outrossim, para bem esclarecer a questão, busca-se em Robert Alexy2 a resolução do conflito, através da ponderação de interesses, demonstrando que é possível conciliar os direitos fundamentais a autonomia privada. De outra banda, importante salientar a importância e relevância dos direitos fundamentais na ordem jurídica vigente, considerando que aceitação da eficácia destes direitos no plano horizontal representa a afirmação da supremacia da Constituição Federal, bem como de seus princípios fundantes. 1 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO E A RENOVAÇÃO DO DIREITO CONTRATUAL 2 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1993. 3 1.1 O DIREITO PRIVADO SOB A PERSPECTIVA DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO SOCIAL A premissa básica para a concepção de uma teoria acerca da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares encontra delineamento teórico a partir da caracterização do modelo de Estado, porquanto são as variações concernentes aos ideais e características que viabilizam a possibilidade de vinculação de particulares aos direitos fundamentais. Pois bem, foi no Estado Liberal onde se consolidou a idéia de que para ser livre é necessário limitar a autoridade estatal, surgindo, então, a concepção de direitos subjetivos públicos3, os quais deveriam ser exercidos exclusivamente em face do Estado que, ao seu turno, não poderia adentrar na esfera de liberdade individual assegurada a cada cidadão. De tal modo, facilmente se chega à conclusão de que neste momento histórico não existia nenhum interesse em conceber uma teoria dos direitos fundamentais que permitisse a extensão de sua eficácia às relações particulares, pois, conforme referido, o Estado era todo como único opressor de direitos e garantias individuais4. Ainda, na lógica do Estado Liberal, o Estado deveria reduzir ao mínimo a sua ação, para que a sociedade pudesse de desenvolver de forma harmoniosa, no sentindo de que a sociedade e o Estado eram dois universos distintos, regidos por lógicas próprias e incomunicáveis, aos quais corresponderiam, reciprocamente, os domínios do Direito Público e do Direito Privado. No âmbito do Direito Público, vigoravam os direitos fundamentais, com o fito de proteção do indivíduo, enquanto no plano privado, o princípio fundamental era o da autonomia da vontade.5 Neste modelo de Estado, a autonomia privada6 assumiu um extraordinário alcance, tendo em vista que a vontade humana era erguida à condição de condição central, fonte da própria dignificação do homem, sendo, por conseguinte, a fonte de legitimação dos vínculos contratuais. (...) o contrato consubstancia, no período de vigência do liberalismo, o instrumento jurídico e de canalização da autonomia privada e atuação/concretização e 3representando nas palavras de Norberto Bobbio: não só subordinação dos poderes públicos de qualquer grau às leis gerais do país, limite que é puramente formal, mas também subordinação das leis ao limite material do reconhecimento de alguns direitos fundamentais considerados constitucionalmente, e portanto em linha de princípio invioláveis.. BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. Trad. brasileira de Marco Aurélio Nogueira. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 19. 4 SOMBRA, Thiago Luís Santos. Op.cit. 2004, p. 33. 5 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2.ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 13. 6 A diferenciação entre a autonomia privada e a autonomia da vontade, bem como a exposição acerca de sua tutela constitucional, serão feitos em momentos oportunos no presente trabalho.4 tutela/defesa de interesses privados. Em verdade, a teoria dos contratos – assim côo a proteção da propriedade – funciona côo verdadeiro barômetro da realidade social, o que significa reconhecer que os contratos refletem de forma inequívoca a prevalência de determinada corrente ideológica no seio da sociedade. Dessarte, a partir da premissa de que a concepção clássica de contrato está impreterivelmente vinculada à doutrina da autonomia privada, ao Estado Liberal competia tão- somente assegurar a proteção da vontade criadora das partes, bem como conferir guarida aos efeitos jurídicos por elas desejados, sem a intenção de investigação da real situação econômica e social de cada contratante.7 Contudo, este modelo de Estado mostrou-se insuficiente para suprir os novos interesses sociais emergentes, decorrentes de uma postulada justiça social, o que ensejou uma reestruturação no modelo clássico de contrato. Além disto, a excessiva proteção conferida a autonomia privada malferia, por mais paradoxo que pareça, o próprio ideal de liberdade, porquanto a condição de débil decorrente da desigualdade existente impossibilitava o gozo da liberdade proposta, sendo esta exclusiva dos contratantes mais fortes. Neste contexto, surge o Estado Social com o intuito de prover a proteção dos interesses sociais, distanciando-se o poder público de sua posição anterior, caracterizada pelo abstenísmo na esfera econômica, passando a assumir um papel mais ativo, convertendo-se, mesmo no regime capitalista, no grande centro da cena econômica. Toda esta nova cena refletiu em uma nova vertente do Direito Contratual e, por conseqüência, da autonomia privada, pois foi percebido que não basta a afirmação de igualdade sem que ela venha de fato acontecer, considerando que as desigualdades existentes acabam por impossibilitar um exercício justo de liberdade, sendo necessário agir para assegurar certas condições mínimas a fim de que os contratantes desfrutem dos direitos constitucionais que lhe são garantidos8. Assim, o Estado Social consubstancia-se na tentativa de composição e conciliação entre as liberdades individuais os direitos sociais, buscando sempre a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana. Partindo desta premissa, pode-se afirmar que o Estado Social representou significativa mudança no que concerne à eficácia dos direitos fundamentais no âmbito privado, pois foi possível, a partir da reestruturação do Direito Contratual, a admissão de novos valores e princípios, agora voltados para a justiça social. 1.2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO 7 SOMBRA, Thiago Luís Santos. Op.cit. 2004, p. 51. 8 MARQUES, Cláudia Lima. Contrato no Código de Defesa do Consumidor. O Novo Regime das Relações Contratuais. 4.ed. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2002, p. 153. 5 Todas as alterações no perfil do Estado refletiram nas constituições. Enquanto no liberalismo, a Constituição se limitava a traçar uma estrutura básica do Estado e a garantir direitos individuais, a partir do Estado Social, as constituições adquiriram funções de direção das instâncias políticas e da própria sociedade, passando a cuidar também da ordem econômica e das relações privadas. O Direito Constitucional penetrou em novos campos, inserindo-nos os seus princípios fundamentais.9 Assim, os novos textos constitucionais começam a incorporar e definir princípios atinentes às matérias antes abordadas apenas pelo Código civil, passando as mesmas a apresentar um caráter constitucional. A Constituição garantista das liberdades formais converte-se na Constituição dirigente, para a promoção da justiça social. Além das funções de organização do Estado, delimitando o poder político e da garantia das liberdades individuais decorrentes, a Constituição do Estado Social incorpora outra função que a identificará: a de reguladora da ordem econômica e social. 10 Com a fragmentação do sistema de Direito Privado, a Constituição passou também a disciplinar as relações econômicas e privadas, convertendo-se em centro unificador do ordenamento civil.11 De tal modo, em decorrência da constitucionalização, o Direito Civil, antes visto como um direito patrimonialista, passou a ser visto como uma regulação de interesses do homem que convive em sociedade, que deve ter um lugar apto a propiciar seu desenvolvimento com dignidade; na chamada despatrimonialização ou repersonalização do Direito Civil. Para Maria Celina Bodin de Moraes, o Direito Civil constitucionalizado é o Direito Civil transformado pela normativa constitucional, cujos fundamentos são pautados pela superação da lógica patrimonial (proprietária, produtivista, empresarial) pelos valores existenciais da pessoa humana, que se tornam prioritários no âmbito privado, porque privilegiados pela Constituição.12 O desafio que se coloca aos civilistas, segundo Paulo Neto Lobo é : A capacidade de ver as pessoas em toda a sua dimensão ontológica e, por meio dela, seu patrimônio. Impõe-se a materialização dos sujeitos de direitos, que são mais que apenas titulares de bens. A restauração da primazia da pessoa humana, nas relações civis, é a condição primeira de adequação do direito à realidade e aos fundamentos constitucionais 13 . 9 SARMENTO, Daniel. Op.cit. 2006c, p.193. 10 LÔBO, Paulo Luiz Neto. Contrato e Mudança Social. Revistas dos Tribunais v.722, 1995, p. 40. 11SARMENTO, Daniel. Op.cit. 2006c, p.153 12 MORAES, Maria Celina Bodin. Op.cit. 1993, p. 28-29. 13 LÔBO. Paulo Luiz Neto. Op.cit. 1999, p. 103. 6 No Brasil, coube à vigente Constituição Federal, promulgada em 1988, o papel de referência legislativa desta corrente deste pensamento, que tem como um de seus principais vetores a constitucionalização do dos diversos setores do ordenamento jurídico, impregnando todas as normas infraconstitucionais com o teor de normas constitucionais14. 1.3 FONTES CONSTITUCIONAIS APLICADAS AO DIREITO CONTRATUAL Diante da releitura do Código Civil, a partir da Constituição de 1988, a teoria contratual também foi albergada pelas mudanças ocorridas no sistema jurídico pátrio, no qual foram incorporados preceitos constitucionais, ao fim de que as relações civis estabelecidas também fossem protegidas pela Constituição. Todavia, na perspectiva contemporânea o fetiche de igualdade entre as partes, no sentido de que os indivíduos inseridos em uma relação privada são detentores de auto capacidade e discernimento suficiente a estabelecer deveres e obrigações justas, foi substituído pela real vontade de se atingir esta igualdade materialmente, reconhecendo-se a hipossuficiencia de um dos contratantes, se caso for, possibilitando a tutela estatal sob as relações interpariculares estabelecidas. Ainda, sobre a principiologia do novo Direito Contratual, Antonio Junqueira de Azevedo afirma que se vive um momento de “hipercomplexidade”, no sentido de coexistência de princípios e paradigmas aprioristicamente conflitantes.15 Portanto, devido à constitucionalização, passam a fazer partes das relações contratuais noções e ideais como justiça social, solidariedade, proteção ao consumidor, para, enfim, a dignidade da pessoa humana se posicionar como o cerne das relações obrigacionais estabelecidas. Nesse passo, o grande passo do Novo Código Civil, impulsionado pela Constituição de 1988, foi condicionar a validade do contrato à sua função social, instituto que iremos abordar no próximo capítulo do presente trabalho. 1.4 O MODELO CLÁSSICO DO CONTRATO E A RENOVAÇÃO DO DIREITO CONTRATUAL14 MARTINS, Samir José Caetano. O Neoconstitucionalismo e seus Reflexos Nas Relações Jurídicas Privadas. Revista CEJ, Brasília: CEJ, v. 11, n. 36, p. 59-71, mar. 2007, p.65. 15 AZEVEDO, Antônio Junqueira. Princípios do Novo Direito Contratual e Desregulamentação do Mercado, Direito de Exclusividade nas Relações Contratuais de Fornecimentos, Função Social do Contrato e 7 Com efeito, o contrato se fez presente em toda a história da humanidade, confundindo- se com o surgimento da própria sociedade humana, desde os grupos sociais mais primitivos, tendo se apresentado das mais diversas formas. De tal modo, o contrato desempenha importante papel na vida econômica, uma vez que as relações civis, não raras vezes, se desdobram através de imensa rede de contratos que a ordem jurídica oferece aos sujeitos de direito para que regulem com segurança seus interesses. Aliás, a majoritária doutrina vem afirmando que o contrato encontra a sua causa na função econômica, conforme assinala Enzo Roppo: de facto, falar de contrato significa sempre remeter – explícita ou implicitamente, directa ou mediatamente – para a idéia de operação econômica. 16 Nestes contornos, o contrato no liberalismo consistia a afirmação dos ideais burgueses, refletindo os princípios que regiam o liberalismo vigente. Neste diapasão, o contato segundo o modelo clássico repousa sobre os seguintes princípios: 1) da autonomia da vontade; 2) o do consensualismo; 3) o da força obrigatória. O Princípio da autonomia da vontade17, conforme já se viu, constituiu outrora no mais importante princípio da teoria contratual, no qual a vontade dos indivíduos era inviolável e elevada ao grau máximo. A autonomia da vontade significa o poder dos indivíduos de suscitar, mediante declaração de vontade, efeitos reconhecidos e tutelados pela ordem jurídica. No exercício desse poder toda pessoa capaz tem aptidão para provocar o nascimento de um direito, ou para se obrigar. Neste particular, dada a importância do tema, abordaremos enfaticamente o assunto no tópico subseqüente deste capítulo. Já no que tange ao princípio do consensualismo, este teve sensíveis avanços no Direito Contratual moderno, à medida que para os antigos, o contrato somente se tornava válido e eficaz quando respeitado o formalismo que lhe era obrigado, enquanto para os liberais, a simples manifestação de vontade e o acordo era o suficiente para a validação do contrato. No direito hodierno, admite-se que o acordo de vontades é suficiente à perfeição do contrato, sendo prescindível determinada forma especial.18 O princípio da força obrigatória, também conhecido por pacta sunt servanda, consubstancia-se, basicamente, na regra de que o contrato é lei entre as partes. Uma vez Responsabilidade Aquiliana do Terceiro que Contribui para o Inadimplemento Contratual. Revista dos Tribunais, n. 750. São Paulo, abr. 1998, p. 116. 16 ROPPO, Enzo. O Contrato. Trad. Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Livraria Almedina, 1988, p. 08. 17 SOMBRA, Thiago Luís Santos. Op.cit. 2004, p. 51. 8 celebrado o contrato com observância de todos os pressupostos e requisitos necessários à sua validade, deve ser executado pelas partes como se cláusulas fossem preceitos legais imperativos. O contrato obriga os contratantes, sejam quais forem as circunstâncias em que tenha de ser cumprido19. Como já referido, a transformação ocorrida com o Direito Civil, a partir da mudança do Estado Liberal para o Estado Social, fez com que fossem revisadas as bases de institutos jurídicos, incluindo aí, o Direito Contratual. Assim, se antes o contrato era o reduto clássico do voluntarismo, agora, com a incidência de princípios constitucionais, houve significativa mudança de mentalidade para que as relações jurídicas se assentem também sobre o princípio da solidariedade, no sentido de exigir dos contratantes que sejam solidários entre si, respeitando a dignidade da pessoa humana acima de tudo, repersonalizando aquilo que outrora era meramente patrimonial.20 Portanto, podemos dizer que o contrato se transformou profundamente, se adequando, pois, ao novo modelo jurídico-social vigente. Nesse sentido, aponta Enzo Roppo: O contrato, portanto, transforma-se, para adequar-se ao tipo de mercado, ao tipo de organização econômica em cada época prevalecente. Mas justamente, transformando-se e adequando-se do modo que disse, o contrato pode continuar a desempenhar aquela que é – e continua a ser – a sua função fundamental na âmbito das economias capitalistas de mercado: isto é, a função de instrumento da liberdade de iniciativa econômica. Está agora claro que as transformações do instituto contratual, que designamos em termos da sua objectivação, não contrariam, mas antes secundam, o princípio da autonomia privada, desde que se queira ter deste princípio uma noção realista e correcta. 21 Houve uma mudança em relação aos dogmas que regem o instituto, com a adoção de novos princípios: o princípio da boa-fé objetiva, do equilíbrio contratual, com a tutela do 19 Contudo, Orlando Gomes ressalta que: Esse princípio mantém-se no Direito atual dos contratos com atenuações que lhe não mutilam a substância. As exceções preconizadas, e já admitidas, com hesitação, em poucas legislações, revelam forte tendência para lhe emprestar significado menos rígido, mas não indicam que venha a ser abandonado, até porque sua função de segurança lhe garante a sobrevivência. O que não se admite é o sentido absoluto que possuía. Atribui-se-lhe, hoje, relatividade que a doutrina do individualismo recusava. O intransigente respeito à liberdade individual que gerara intolerância para com a intervenção do Estado cedeu antes novos fatos da realidade social, cessando, em conseqüência, a repugnância a toda limitação dessa ordem. Passou-se a aceitar em caráter excepcional, a possibilidade de intervenção estatal do conteúdo de certos contratos, admitindo-se exceções ao princípio da intangibilidade. Em determinadas circunstâncias, a força obrigatória dos contratos pode ser contida pela autoridade do juiz. Conquanto essa atitude representa alteração radical nas bases do Direito dos contratos, como parece a alguns entusiastas do poder pretoriano dos juízes, a verdade é que, no particular, houve sensível modificação do pensamento jurídico. GOMES, Orlando. Op.cit. 1999, p. 35 20 NEGREIROS, Teresa. Op.cit. 2006, p. 28. 21 ROPPO, Enzo. Op.cit. 1988, p. 310. 9 hipossuficiente, dando azo para a concretização da função social do contrato, que surge como condição para a validação e reconhecimento do contrato no ordenamento jurídico pátrio. Aqui, em apertada síntese, o princípio da boa-fé representa, no modelo atual de contrato, o valor da ética, lealdade, correção e veracidade, no sentido de respeitar os direitos e interesses legítimos do outro contratante, agindo sem abuso e obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações.22 No que tange ao princípio do equilíbrio23 econômico importante salientar que o que se busca, através de sua aplicação, é a noção de justiça material, e não formal. Consoante Fernando Noronha, o princípio do equilíbrio que regula as relações negociais é “a relação de paridade, ou equivalência que se estabelece nas relações de troca, de forma que nenhuma das partes dê mais nem menos do valor que recebeu”.24 Por outro lado, Teresa Negreiros afirmaque a função social, quando concebida como princípio, significa “que o contrato não deve ser concebido como uma relação jurídica que só interessa as partes contratantes, impermeável as condicionantes sociais que o cercam e que são por ele próprio afetas”.25 Conclui-se, portanto, que a função social do contrato, em geral, trás, intrinsecamente a idéia de supremacia do interesse público sobre o privado e, alem disso, do interesse social em detrimento do meramente individual. 1.5 A AUTONOMIA PRIVADA E AUTONOMIA DA VONTADE: BREVES PRECISÕES CONCEPTUAIS Como já se viu, a autonomia da vontade e a autonomia privada eram dogmas muito em voga no liberalismo, no qual tinha a vontade das partes o único elemento essencial para a conclusão do contrato e para a determinação das cláusulas contratuais. 22 MARQUES, Cláudia Lima. Op.cit. 2002, p. 107. 23 Com efeito, o princípio do equilíbrio econômico está imprescindivelmente aliado à teoria da imprevisão e a cláusula rebus sic stantibus23, as quais consistem, apesar do princípio da obrigatoriedade dos contratos, na possibilidade de desfazimento ou revisão forçada do contrato, quando, no curso da execução de um contrato ocorrer um fato imprevisível e extraordinário que afete a possibilidade de seu cumprimento, tornando o seu adimplemento excessivamente oneroso. NORONHA. Fernando. Direitos dos Contratos e seus Princípios Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 219. A cláusula rebus sic stanibus corresponde a “estando assim as coisas”, sendo uma abreviação da fórmula contractus qui habent tractum sucessivum er dependentiam de futuro rebus sic stantibus intelliguntur (nos contratos de trato sucessivo ou a termo, o vínculo obrigatório entende-se subordinado à continuação daquele de fato vigente ao tempo da estipulação). DONNINI, Rogério Ferraz. A Revisão dos Contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 9-10 25 NEGREIROS, Teresa. Op.cit. 2006, p. 208. 10 Todavia, em que pese a importância dos referidos princípios, a conceituação não guarda afinidade e consenso entre a doutrina contratualista, havendo, ainda na atualidade, certa confusão entre esses dois institutos. Contudo, importante salientar que a concepção, seja da autonomia privada, seja da autonomia da vontade, não corresponde à teoria geral do contrato, porquanto, ainda que não se olvide da importância da matéria, superou-se o dogma da inviolabilidade para aliar aos contratos princípios de cunho social que pudessem, inclusive, exercer uma limitação em tais institutos. Aqui, adota-se a concepção de autonomia privada como o poder dos indivíduos de regularem as suas relações mútuas, privadas ou não, no âmbito de criação de normas com força jurídica, dentro dos limites das normas gerais fornecidos pelo Estado. Ao seu turno, a autonomia da vontade é faculdade dos indivíduos de suscitar, mediante declaração de vontade, efeitos reconhecidos e tutelados pela ordem jurídica. A produção destes efeitos pode ser determinada pela vontade unilateral, bem como pelo concurso de vontades. Qualquer indivíduo capaz pode, por íntima vontade, criar direitos e obrigações. Portanto, conclui-se que enquanto a autonomia da vontade se relaciona ao agir livre do sujeito, ligando-se à vontade interna e psíquica, sendo a manifestação da vontade livre, a autonomia privada constitui o poder de criar normas para si, dentro daqueles limites fornecidos pelo ordenamento jurídico. 26 Autonomia da vontade é, portanto, o princípio de Direito Privado pelo o qual o agente tem a possibilidade de praticar um ato jurídico, determinando-lhe o conteúdo, a forma e os efeitos. Seu campo de aplicação é, por excelência, o Direito Obrigacional, aquele em que o agente pode dispor como lhe aprouver, salvo disposição cogente em contrário. E quando nos referimos especificamente ao poder que o particular tem de estabelecer as regras jurídicas de seu próprio comportamento, dizemos, em vez de autonomia da vontade, autonomia privada. Autonomia da vontade, como manifestação de liberdade individual no campo do Direito, psicológica, autonomia privada, poder de criar, nos limites da lei, normas jurídicas. Se quisermos tornar mais específico o tema, podemos dizer que subjetivamente, autonomia privada é o poder de alguém de dar a si próprio um ordenamento jurídico e, objetivamente, o caráter próprio desse ordenamento, constituído pelo agente, em oposição ao caráter dos ordenamentos constituídos por outros. 27 26 AMARAL NETO. Direito Civil: introdução. 4.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 335. 27 AMARAL NETO. Op.cit.2002, p. 113. 11 Não obstante, Fernando de Noronha assinala que o princípio da autonomia privado está vinculado a três “subprincípios”: o princípio da liberdade contratual, o princípio do consensualismo e princípio do efeito relativo dos contratos.28 Outrossim, consoante iremos abordar neste estudo, a autonomia privada vem sofrendo constantes restrições decorrente do crescente dirigismo contratual exercido pelo Estado, possibilitando uma releitura do contrato à luz do princípio da solidariedade social. 2 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A SUA EFICÁCIA NAS RELAÇÕES PRIVADAS 2.1 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO Conforme referido anteriormente, os direitos fundamentais de primeira geração tiveram a sua grande impulsão a partir da Revolução Francesa, a qual foi a percussora dos direitos dos homens, das liberdades e garantias individuais. Estas idéias encontravam um ponto fundamental em comum, a necessidade de limitação e controle dos abusos do poder do próprio Estado e de suas autoridades constituídas e a consagração dos princípios básicos da igualdade e da legalidade como regentes do Estado moderno e contemporâneo. 29 Portanto, os direitos fundamentais concentram a necessidade de limitação do controle dos abusos do poder do próprio Estado e de suas autoridades constituídas e a consagração dos princípios básicos da igualdade e da legalidade como regentes do Estado moderno e contemporâneo.30 Já na seara pátria, a Constituição Federal de 1988 trouxe em seu Título II os direitos fundamentais, subdividindo-os em cinco capítulos: direitos individuais e coletivos; direitos sociais; nacionalidade; direitos políticos e partidos políticos. 2.2 A VINCULAÇÃO DOS PARTICULARES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Partindo da premissa que os direitos fundamentais carregam em seu bojo os valores mais nobres de um Estado Democrático de direito, devendo reger todos os âmbitos do direito, coloca-se a questão acerca da existência de outros destinatários das normas de direito 28 NORONHA. Fernando. Op.cit. 1994, p. 117. 29 MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 19. 30 MORAES, Alexandre de. Op.cit. 2000, p. 19. 12 fundamental, ou seja, se estas vinculam também os particulares, saindo do plano vertical para então chegar em um plano horizontal. O debate sobre tal questão desenvolveu-se primeiramente, ao menos em maior grau, na Alemanha, a partir da década de cinqüenta, quando surgiu o célebre termo drittewirkung der grundrechte 31. Neste particular, importante marco concernente à vinculação de particulares aos direitos fundamentais foi o julgamento do caso Lüth32, em 1958, por parte da Corte Constitucional Alemã, o qual representou significativo avanço no tema, tendo servindo de parâmetro para a construção doutrinária e jurisprudencial não só para a Alemanha, mas também em outros países da Europa Ocidental,a exemplo de Portugal, que afirmou em seu artigo 18º -1, da Carta Constitucional: “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”. Todavia, surgiu também a teoria state action, construção norte-americana a respeito da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, que invoca para si o pioneirismo da doutrina. Porém, as semelhanças das referidas doutrinas param no que diz respeito à época do surgimento, porquanto se revelam integralmente antagônicas entre si.33 Enquanto a jurisprudência americana adotou uma posição negativa, no sentindo de que os direitos em questão não vinculam os particulares, reafirmando a premissa legal do direito liberal, a Corte 31 Em português: a eficácia dos direitos fundamentais na ordem jurídica civil. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Civilização do Direito Constitucional ou Constitucionalização do direito civil? A Eficácia dos Direitos Fundamentais na Ordem Jurídico-civil no Contexto do Direito Pós-moderno. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (org.). Direito Constitucional estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 109. 32 Uma sentença do Tribunal Constitucional Federal, que versou sobre uma colisão entre o direito delitivo (da responsabilidade por atos ilícitos e a liberdade de opinião, passou a ter fundamental importância para tratamento da relação entre direitos fundamentais e Direito Privado na Alemanha. No caso em exame, um cidadão de nome Lüth apelara, em 1950, aos proprietários e freqüentadores de salas de cinema ao boicote de um novo filem, argumentando que o direitos do mesmo rodara um filme anti-semita durante o período nacional- socialista. Os tribunais cíveis consideraram o apelo um ato ilícito, por ofensivo aos bons costumes no sentido do estabelecido pelo § 856 do BGB (Código Civil Alemão) condenando, por conseguinte, o Sr. Lüth a não repeti-lo. Em resposta ao recurso constitucional impetrado pelo Sr,. Lüth, o Tribunal Constitucional Federal cassou a sentença do tribunal cível, pois este teria, na aplicação do § 826 do BGB, violado o direito fundamental à liberdade de opinião do Sr. Lüth, assegurada pelo artigo 5º,, inciso I, da LF. Assim, o Tribunal Constitucional Federal utilizou-se, pela primeira vez, da formulação entrementes célebre, de que a lei fundamental “erigiu na seção referente aos direitos fundamentais um ordem objetiva de valores (..), que deve valer enquanto decisão fundamental de âmbito constitucional para todas as áreas do Direito. CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. in SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006a, p. 229- 230. 33 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Apontamentos sobre a Aplicação das Normas de Direito Fundamental das Relações Jurídicas Privadas entre Particulares. in BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova Interpretação Constitucional Ponderações, direitos fundamentais e relações privadas. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 133. 13 Alemã explorou o tema, tendo avançado e adotado posições mais radicais no que tange à validade destes mesmos direitos. De outra banda, em relação à doutrina que admite a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas – drittwikung der grundrechte – seja em menor ou maior grau, a questão será abordada com maior ênfase no próximo capítulo devido a sua importância e o seu desdobramento em outras teorias. Nessa senda, importante destacar que o presente estudo versa sobre os direitos e garantias individuais de cunho negativos, os chamados de primeira geração, ainda que não se olvide da tímida doutrina que defende a validade dos direitos prestacionais econômicos e sociais também frente à particulares. 34 A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais tem como óbice a ausência de texto expresso na Constituição Federal. A sua admissão se dá por hermenêutica constitucional, a partir da premissa que todos, em alguma medida, estão vinculados aos direitos fundamentais. Não obstante, mesmo nos países em que há menção expressa de vinculação de particulares aos direitos fundamentais – Constituição da República Portuguesa de 1976 (art. 18.1), Constituição da Federação Russa de 1993 (art. 17.3) e Constituição da Suíça (artigo 35), a questão reside quanto ao alcance destas normas e como elas incidem nas relações privadas. A fundamentação para a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, segundo Wilson Steimnentz, encontra respaldo, primeiramente, no princípio da supremacia da Constituição, pois a Carta Magna, por ser a fonte direta e imediata de direitos fundamentais, vincula diretamente todos os entes, sejam públicos ou privados. Ainda, deste raciocínio, surge o postulado da unidade material do ordenamento jurídico, o qual dispõe que os direitos fundamentais fazem parte do núcleo material da Constituição, atuando dessa forma, como elementos de unificação material do ordenamento jurídico.35 A teoria da dupla dimensão dos direitos fundamentais – subjetiva e objetiva – também se apresenta como importante fundamento para a vinculação de particulares. Conforme alhures referido, a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que teve como nascimento o 34 Veja-se neste sentido: NAVARRETE, Cláudio Molina. “Poderes Del empresário e derechos de la persona Del trabalhador: el paradigma de la drittwikung laboral a propósito de la reciente jurisprudencia constitucional” , Revista de Trbajo y Seguridad Social, n. 3, 1991, pp. 64-82, SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais, “mínimo existencial” e direito privado: breves notas sobre alguns aspectos da possível eficácia dos direitos sociais nas relações entre particulares. pp. 551-603. In SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (org.). Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006b. 35 STEIMNETZ, Wilson. A vinculação de particulares aos direitos fundamentais. p. 104. 14 caso Lüth36 de 15 de janeiro de 1958, representou significativo avanço para a tutela dos direitos fundamentais a partir do segundo pós-guerra. A partir dela admitiu-se a eficácia irradiante dos direitos fundamentais, os tendo como direitos à proteção dos indivíduos e deveres de proteção do Estado.37 Não obstante, a vinculação de particulares aos direitos fundamentais encontra importante fundamentação nos princípio da dignidade da pessoa humana e no princípio da solidariedade social, na medida em que o primeiro assumiu papel de eixo central da Constituição, acabando por ser o próprio fundamento para o Estado Democrático de Direito38, enquanto o segundo constitui a própria finalidade de sociedade, ou seja, constituir uma sociedade livre, justa e solidária 39. Neste contexto, ao fim de ilustrar a densidade do problema, é possível cogitar de uma série de hipóteses envolvendo lesões aos direitos fundamentais por particulares. Canotilho aponta para a determinada hipótese na seara do Direito Contratual: (i) num contrato privado de compra e venda de imóveis, incluiu-se uma cláusula resolutória, que condicionava a compra ou arrendamento à titularidade exclusivas de humanos brancos. O referido autor questiona se há espaço para a intervenção estatal diante da segregação racial ocorrida no negócio jurídico-privado. Ainda, há outras hipóteses que exemplificam o problema: (ii) se o proprietário do imóvel pode despejar um inquilino por não pagamento de renda quando tolera o não pagamentode outro que também não paga, em clara ofensa ao princípio da igualdade. (iii) até que ponto os contratantes podem deliberar acerca de liberdades individuais (integridade física, moral, imagem e intimidade) em um contrato, o que poderia acarretar possível violação ao princípio da dignidade da pessoa humana. Sem embargo, o rol acima descrito não é taxativo, podendo ser multiplicado em muitos outros exemplos, o que demonstra a importância e abrangência do assunto. Desta feita, diante da complexidade do tema, surgiram inúmeras teorias sobre as possíveis formas de se estruturar os efeitos dos direitos fundamentais nas relações que extrapolam a do indivíduo-Estado, as quais serão analisadas no tópico subseqüente. 2.3 TEORIAS RELATIVAS À APLICAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS 36 vide nota de rodapé nº 99 deste trabalho. 37 STEIMENTZ, Wilson. A vinculação de particulares aos direitos fundamentais. p.109. 38 Dignidade da Pessoa Humana o princípio dos princípios constitucionais. p. 114. 15 2.3.1 Teoria da eficácia mediata A teoria da eficácia horizontal mediata ou indireta dos direitos fundamentais – mittelbare dritwikung – foi desenvolvida originariamente na doutrina alemã por Günter Düriz, e tornou-se a concepção dominante no direito germânico, sendo até hoje adotada pela maioria dos juristas e pela Corte Constitucional Alemã. Esta tese, ainda que tenha o mesmo ponto de partida da teoria da eficácia imediata, de que os direitos fundamentais, além de estabelecerem direitos subjetivos públicos oponíveis ao Estado, também são uma ordem de valores que irradia efeitos em todas as esferas do direito, trata-se de uma construção intermediária entre a que simplesmente nega a vinculação dos particulares e aquela que sustenta a incidência direta e imediata destes direitos na esfera privada40. A dimensão objetiva e valorativa dos direitos fundamentais, segundo esta teoria, não acarreta a incidência direta nas relações privadas, mas implica a necessidade de que sejam levadas em conta pelo Estado na criação legislativa ou na interpretação do Direito Privado41. Nessa linha, os direitos fundamentais não incidem como direitos subjetivos constitucionais, mas como normas objetivas de princípios. Nesta perspectiva, dentre as várias soluções possíveis no conflito entre direitos fundamentais e a autonomia privada, competiria à lei a tarefa de fixar o grau de cedência recíproca entre cada um dos bens jurídicos confrontantes. Esta primazia do legislador em detrimento do juiz na conformação dos direitos fundamentais no âmbito privado conferiria, por um lado, maior segurança jurídica ao tráfico jurídico, e por outro, conciliar-se-ia melhor com os princípios da democracia e da separação de poderes 42 . Assim, se fazem necessárias portas de conexão pelas quais o direitos fundamentais ingressariam na esfera privada, através de cláusulas gerais inerentes da Constituição, cujos efeitos de irradiação alcançam o poder legislativo, que deve legislar as normas privadas à luz dos valores constitucionais. Contudo, Daniel Sarmento salienta que a adoção da teoria da eficácia indireta torna a proteção dos direitos fundamentais refém da vontade incerta do legislador ordinário, fazendo 39 Artigo 3º, Constituição Federal. 40 SARMENTO, Daniel. Op.cit. 2006b, p. 198 41 BARROSO, Luiz Roberto. Op.cit. 2003, p. 161. 42 SARMENTO, Daniel. A vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais no Direito Comparado e no Brasil. in BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova interpretação constitucional ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006a, p. 214. 16 com o que estes direitos não tenham uma proteção adequada, compatível com o seu status e fundamentalidade.43 2.3.2 Teoria da aplicação imediata A aplicação direta dos direitos fundamentais quer dize-se, em síntese, que da mesma forma que na mesma forma como são aplicados nas relações entre o Estado e os cidadãos, são aplicados também nas relações interparticulares, ou seja, sem intermediação legislativa. A idéia de vinculação direta de particulares aos direitos fundamentais teve na obra de Hans Carl Nipperdey o seu marco inicial, na qual o autor defendeu a tese de que os direitos fundamentais têm efeitos absolutos e, por isso, não carecem mediação legislativa para serem aplicados às relações entre privados.44. Não obstante, o autor justifica a sua idéia com base na opção constitucional pelo Estado Social, o qual importa no reconhecimento de que as violações aos direitos fundamentais não prevêem apenas do Estado, mas também de terceiros em geral, pelo o que impende a incidência deles nas relações privadas para a busca da justiça social material.45 O referido autor salienta que não é necessário nenhum instrumento para infiltrá-los, como as cláusulas gerais, porquanto possuem natureza de direitos subjetivos dos cidadãos, podendo ser oponíveis tanto aos poderes públicos como aos particulares. 46 Nessa linha, ainda que a teoria da eficácia imediata não tenha prevalecido na Alemanha, a qual até hoje adotou o entendimento do caso Lüth, optando pela teoria mediata, tornou-se dominante em vários países, como Espanha, Portugal, Itália, Argentina e, no Brasil, tendo como autores aliados Daniel Sarmento, Ingo Sarlet e Wilson Steinmetz. 2.3.3 Teorias alternativas Surgiram também variações, de certa forma, da teorias da eficácia mediata e imediata, consistentes na teoria dos deveres de proteção e na teoria da convergência estadista. A teoria dos deveres de proteção tem como precursor do tema o autor alemão Claus- Wilhelm Canaris, o qual afirma que os sujeitos de Direito Privado não são destinatários de 43 Idem, p 220. 44 SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005, p.87. 45 SARMENTO, Daniel. Op.cit. 2006b, p. 205 46 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Op.cit. 2006. p. 162 17 normas dos direitos fundamentais, afirmando, contudo, que o Estado não está apenas orbigado a abster-se de violar os direitos fundamentais, como também de protegê-los diante das lesões provenientes de particulares. Portanto, os deveres de proteção consubstanciam-se na obrigação, tanto do legislador ao fazer as leis reguladoras das relações jurídico-privadas, quanto ao juiz, ao resolver o conflito entre particulares, de proteger os indivíduos inseridos em uma relação de violações de natureza fundamental, seja quem for o ofensor.47 Para os seus defensores, a aludida teoria é preferível em relação às outras porquanto, ao direcionar os direitos fundamentais apenas para o estado, evita uma interferência à autonomia privada e, por conseqüência, no esvaziamento do Direito Privado, além de impedir a outorga demasiada de poder ao Judiciário. Por outro lado, argumenta-se não se pode simplesmente excluir os particulares como destinatários de direitos fundamentais nas relações que estabelecem entre si, o que configuraria clara contrariedade à disposição constitucional da eficácia imediata dos direitos fundamentais, além de que auferir ao Estado o dever de proteção acabaria por lhe conferir atribuições excessivas que, por vezes, não seriam desincumbidas. Por sua vez, a teoria da convergência estadista imputa as violações aos direitos fundamentais diretamente ao Estado, ou seja, não há uma equiparação entre o atopraticado pelo privado ou pelo público, mas o entendimento de que a responsabilidade de qualquer ato violador de direitos fundamentais é estatal.48 Jürgen Schwabe apresentou a teoria da convergência estadista, sob o argumento de que toda lesão de direitos fundamental entre particulares deve ser imputada ao Estado, porque a lesão, em última análise, resulta de uma permissão estatal, ou ainda, de uma não-proibição estatal. A aludida teoria descola-se novamente o problema da vinculação de particulares aos direitos fundamentais para o plano vertical, ou seja, indivíduo-Estado.49 Para a dominante doutrina, a teoria da convergência estadista encontra inúmeros óbices para a sua aplicação. Wilson Steimnetz afirma que, em primeiro lugar, atribuir ao Estado a responsabilidade pelas lesões praticadas aos direitos fundamentais por particulares acaba sendo uma ficção, porquanto as violações destes direitos acontecem em uma universalidade inalcançável pelo Estado, além de ser uma conseqüência da vida em sociedade. 47 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos, liberdades e garantias no âmbito das relações entre particulares. in SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2003, p. 278. 48 SILVA. Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito. Direitos fundamentais e relações entre particulares. p. 104 18 Em segundo lugar, afirma Steimnetz que a teoria de Schawabe conduziria à irresponsabilidade privada de violações aos direitos fundamentais uma vez que a imputação sempre recairia sobre o Estado, gerando, por vezes, uma autorização para a ocorrência das lesões. 2.4 A POSIÇÃO DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL BRASILEIRA Sem embargo, pode-se afirmar que a doutrina pátria dominante admite, pelo menos em alguma medida, a vinculação de particulares aos direitos fundamentais. Tal raciocínio encontra guarita na Constituição Federal de 1988, de cunho eminentemente intervencionista e social, que em seu artigo 3º, I, CF50, delimitou como objetivo “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, fazendo com o que o intérprete tome como norte não só o Estado como destinatário de obrigações e deveres, mas também os atores particulares. Partindo desta premissa, a Constituição brasileira é incompatível com a doutrina state action, adota pelos Estados Unidos, que simplesmente negou aos direitos fundamentais a eficácia nas relações privadas. Também parece ser incompatível com a teoria de eficácia mediata nas relações horizontais, tal como se aceita plenamente na Alemanha, na medida em que, enquanto da Lei Fundamental de Bonn não anuncia nenhum direito social e econômico, a Carta Magna de 1988, está impregnada de deveres e obrigações de natureza social.51 Na doutrina brasileira, a par do pouco número de autores que se manifestaram sobre a questão, as obras que ilustraram o tema mostram-se exaustivas e bem elucidativas. Ingo Wolfgang Sarlet, Daniel Sarmento, Wilson Steinmetz, Gustavo Tepedino, entre outros, manifestaram-se no sentido do reconhecimento da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas, ressaltando, todavia, que a resolução de cada situação que envolva direitos fundamentais na esfera privada depende de uma ponderação entre o direito tutelado e a autonomia privada do particular.52 49 STEINMETZ, Wilson. Op.cit. 2004, p. 176. 50 Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 51 SARMENTO, Daniel. Op.cit. 2006c, p. 275. 52 Destoando da posição adota pelos autores alhures referidos, Gilmar Mendes, referindo-se a julgados da Corte Constitucional alemã sobre a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, inclinou-se pela tese da eficácia mediata e indireta. MENDES, Gilmar. Direitos Fundamentais: Eficácia das Garantias Constitucionais 19 Já no que tange à jurisprudência brasileira, ainda que não sejam poucos os julgados envolvendo direitos fundamentais e o Direito Privado, a Corte Constitucional Brasileira não se filiou à determina doutrina e/ou teoria, tendo se limitado a resolução dos conflitos, sem mencionar a questão complexa envolvendo a aplicação de preceitos constitucionais ao litígio de particulares. Em relação ao Direito Contratual, objeto do presente estudo, há poucos julgados que mencionam expressamente a questão de direitos fundamentais, embora se reconheça que os Tribunais, ao julgar uma questão envolvendo principalmente o Código de Defesa do Consumidor, para afastar a onerosidade excessiva de determinado contrato, ou ainda, julgar nula determinada cláusula, ainda que indiretamente, utiliza preceitos constitucionais no caso concreto, vinculando particulares aos direitos fundamentais. 3 AUTONOMIA PRIVADA E DIREITOS FUNDAMENTAIS: PONDERAÇÃO DE INTERESSES 3.1 A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA Conforme visto no primeiro capítulo do presente estudo, o contrato, no eixo do Estado Liberal, tornou-se o ponto de concretização da autonomia privada, onde se absorveu o entendimento de que as partes são livres para firmar o contrato, escolher com quem contratar e também para firmar os termos em que o contrato será celebrado53. Referiu-se também que com a passagem para o Estado Social tais disposições foram flexibilizadas, na medida em que se reconheceu que a igualdade – premissa que assegurava a autonomia individual plena – era apenas no plano formal, carecendo de real efetivação, urgindo, desta forma, a intervenção estatal para assegurar o equilíbrio negocial almejado. Todavia, em que pese tenha havido esta importante reestruturação no sistema pátrio jurídico, em especial no âmbito privado, devido à respersonalização que sofreu o contrato, a autonomia privada se manteve hígida, sendo, inclusive, protegida constitucionalmente. No que diz com a seara pátria, é possível afirmar que a tutela da autonomia privada foi significativamente fortalecida pela Constituição Federal de 1988, porquanto, além dos inúmeros remédios judiciais e garantias materiais existentes para a sua defesa, é imperioso o nas Relações Privadas – Análise da Jurisprudência da Corte-Constitucional Alemã. In: Direitos fundamentais e Controle de Constitucionalidade. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998. 53 ANDRADE, Ronaldo Alves. Curso de Direito do Consumidor. São Paulo: Manole, 2006, p. 273. 20 reconhecimento de sua “superconstitucionalidade”, decorrente da elevação de tal direito à condição de cláusulas pétreas. Por outro lado, em que pese não exista previsão expressa acerca da proteção constitucional da autonomia privada, tal conclusão se extrai a partir do raciocínio de que no direito brasileiro foi adotado pela ordem jurídica o regime dos princípios, o qual consagrou a existência de direitos fundamentais não escritos, mas que podem ser deduzidos pela via interpretativa, com base no rol dos direitos fundamentais gerais, na medida em que se reconhece o conceito materialmente aberto do artigo 5º, da CF54. Nesta linha, a autonomia privada adquirestatus constitucional na medida em que a livre iniciativa é consagrada como fundamento da ordem econômica, sendo a liberdade de empresa assegurada e a propriedade privada protegida como direito fundamental. Na República Federativa do Brasil também é possível fundamentar a tutela constitucional da autonomia privada. A afirmação dessa tutela resulta do argumento cujas premissas são o direito geral de liberdade (cf, ART 5º, caput), o princípio de livre iniciativa (CF, art. 1º, IV e art. 170, caput), o direito ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (CF, art. 5º, XIII), o direito de propriedade (CF, art. 5º, caput e XXII), o direito de herança (CF, artigo 7º, XXVI), o princípio da proteção da família, do casamento e da união estável (CF, art. 226, caput, § de 1º a 4º) e cuja conclusão é o poder geral de autodeterminação e autivinculação das pessoas tutelado pela Constituição. Se todos esses princípios e direitos constitucionais mencionados contêm um conteúdo básico de autodeterminação e autovinculação da pessoa, então a autonomia privada – que é um poder geral de autodeterminação e de autovinculação – também é constitucionalmente protegida ou tutelada. Dizendo, ainda, de outro modo, a tutela constitucional da autonomia privada deflui desses princípios e direitos expressos no texto constitucional 55. Todavia, é possível verificar flagrante preocupação constitucional com a concretização e efetivação desta liberdade, o que só é viável através de garantias materiais indispensáveis, inclinando desta forma a Constituição novamente para o cunho social. Assim, ao contrário das constituições eminentemente liberais, que foram acometidas por uma cegueira que as impediu de enxergar as desigualdades materiais existentes, a Constituição brasileira, embora tenha adotado um regime capitalista de produção, não abandonou o lado social, propondo proteger o hipossuficiente e assegurando condições mínimas para todos, sob pena daquela liberdade garantida tornar-se apenas uma retórica vazia56. 54 MOR, Stracke Fernanda. liberdade contratual como direito fundamental e seus limites. Revista de Informação Legislativa. Brasília, n. 152 out./dez. 2001, p. 289. 55 STEINMETZ, Wilson. Op.cit. 2004, p. 201. 56 SARMENTO, Daniel. Op.cit. 2006c, p.175. 21 3.2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O CONTRATO Sem embargo, com a transição para o solidarismo, advindo do Estado Social delineou- se um novo quadro, inspirados em novos valores, sendo o mundo jurídico influenciado por estas transformações sociais, o que também refletiu no Direito Contratual, que vem sofrendo significativas mudanças57. A constitucionalização do Direito Privado, instituindo a dignidade da pessoa humana como valor a ser resguardado em qualquer relação social e jurídica, repercutiu também no Direito Contratual, alterando o modo de ver o contratante, na medida em que o conceito abstrato e impessoal, calcado no patrimonialismo. deu lugar a um conceito que ganha concretude, que põe a mostra o caráter desigual e injusto de determinadas relações contratuais58. De outra banda, Wilson Steimnetz afirma que a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais encontra fundamentação no próprio princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, por seu turno, representa especial relevância no presente estudo, tendo em vista que é a partir dele que de desdobram tantos outros princípios, além de ser a diretriz para a harmonização dos demais princípios constitucionais59. Na atualidade, a tendência dos ordenamentos jurídicos é reconhecer o ser humano como centro e o fim do direito60. Tal prerrogativa, no Brasil, decorre da disposição do inciso III, artigo 1º, da Constituição Federal61, o qual deixou claro que o Estado Democrático de Direito brasileiro instituiu a dignidade da pessoa humana como fundamento. Ingo Sarlet afirma que o dispositivo constitucional no qual se encontra disposto a dignidade da pessoa humana contém para além de uma norma, a definição de direitos, garantias e deveres fundamentais62. 3.3 O CONFLITO ENTRE BENS CONSTITUCIONALMENTE PROTEGIDOS: PONDERAÇÃO DE INTERESSES 57 NOVAIS LEITE, Aline Arquette. Op.cit., 2000, p. 19. 58 NEGREIROS, Teresa. Op.cit. 2006, p. 507. 59 ANDRADE, Ronaldo Alves. Op.cit. 2006, p. 07. 60 NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O direito brasileiro e princípio da dignidade da pessoa humana. Revista de informação legislativa. Brasília a.37, n. 145, jan./mar. 2000. p. 185. 61 A República Federativa do Brasil, formulada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III – a dignidade da pessoa humana; 62 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002a, p. 72. 22 A eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas acaba por criar a situação de conflito entre bens constitucionalmente protegidos, eis que, conforme visto neste estudo, a autonomia privada também possui status constitucional, fazendo com que exista uma colisão entre princípios quando os direitos fundamentais são deslocados para o plano horizontal. Pode-se afirmar que haverá colisão entre direitos fundamentais sempre quando a Constituição proteger simultaneamente dois valores que são aplicáveis à mesma situação, sendo a colisão é justificada pelo fato de as normas de direito fundamental serem abertas e móveis, não tendo limites previamente fixados. Aqui adota-se a teoria dos princípios de Robert Alexy63 como premissa para resolução de direitos fundamentais por estar em maior consonância com os preceitos deste trabalho. Para o aludido autor, os princípios são como um mandado de otimização: (...) los princípios son madatos de optimizacion, que estan caracterizados por el hecho de que puedem ser cumplidos em diferente grado y medida debida de su cumplimiento no sólo de de las possibilidades reales sino también de las jurídicas. El ámbito de las possibilidades jurídicas es determinado por los principios y reglas opuestos.” 64 Nesta linha, importante reprisar o caso Lüth65 que conforme visto constituiu importante marco na vinculação de particulares aos direitos fundamentais, onde foi possível concluir que estes direitos possuem uma eficácia irradiante, pois não vincularam somente o Estado, mas também os indivíduos particulares, sendo, desta forma, direitos onipresentes. Não obstante, no caso também houve colisão entre princípios, sendo necessário para a solução da questão, segundo Alexy, um balanceamento de interesses. O que vai determinar qual princípio que deve ceder são as circunstâncias, isto é, no caso concreto os princípios tem diferentes pesos e deve prevalecer aquele que apresentar maior importância e compatibilidade com a situação.66 Para bem descrever e propor uma solução para o conflito entre direitos fundamentais, Alexy formulou a lei de colisão, a qual resulta na ponderação dos valores em jogos67. Segundo a referida lei, as condições e circunstâncias informam sobre o peso relativo dos princípios e permitem, no caso concreto, a decisão de prevalência sobre a aplicação de determinado direito. 63 ALEXY, Robert. Op.cit. 1993. 64 ALEXY, Robert. Op.cit. 1993, p.86. 65 Vide nota de rodapé nº 99 deste trabalho. 66 AMORIN, Letícia Balsamão. Op.cit. 2005, p. 127. 23 Lá solución de la colisión más bien en que, teniendo em cuenta las circustancias del caso, se estabelece entre los principios unarelación de precedencia condicionada. Lá determinación de lá relación de precedencia condicionada consiste en que, tomando en cuenta el caso, se indican las condiciones bajo las cuales un principio procede al otro. Bajo otras condiciones, la cuestión de la precedencia puede ser solucionada inversamente. 68 Sem embargo, a metodologia proposta por Alexy demonstra que os princípios não são absolutos, não se enquadrando na lógica tudo-ou-nada, mas sim na dimensão de peso, mediante a ponderações de bens através do princípio da proporcionalidade. A majoritária doutrina69 entende que a ponderação de interesses se instrumentaliza mediante a aplicação do princípio da proporcionalidade, o qual, por sua vez, possui uma tríplice dimensão, composta em três subprincípios: adequação, necessidade ou exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito. Historicamente o princípio da proporcionalidade era dirigido como técnica para limitar determinados atos provenientes do Poder Público, conforme podemos extrair do conceito acima citado. Todavia, hodiernamente, este princípio transgrediu o limite estatal, passando a ser utilizado como técnica de controle dos limites aos direitos fundamentais, aplicando-o nas relações privadas, como balizador da proibição de excesso70. 3.4 O DIRIGISMO CONTRATUAL Devido à passagem para o Estado Social, o poder público passou a ter maior ingerência sobre a vida privada e econômica dos cidadãos, na medida em que se reconheceu que a plena liberdade das partes contratantes não era suficiente para garantir a justiça contratual, bem como para alcançar a relação sinalagmática almejada, ensejando, dessa forma, a crescente tutela estatal aos hipossuficientes. Assim, o Estado passou a intervir diretamente nas relações negociais da vida privada, seja por intermédio legislativo, administrativo, ou através do poder judiciário, ao fim de que o contrato atinja, além de sua finalidade precípua de circulação de riquezas e instrumento gestor da economia, um meio pra a concretização da justiça social material, no chamado dirigismo contratual. 67 ALEXY, Robert. Op.cit. 1993, p.90. 68 ALEXY, Robert. Op.cit. 1993, p.91-92. 69 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op.cit., 1993. 70 STEINMETZ, Wilson. Op.cit. 2001, p. 147. 24 Como referido, o intervencionismo estatal nos contratos se traduz através da função legislativa, administrativa e judiciária. A função legislativa se reveste de maior importância no dirigismo contratual, uma vez que por ela o Estado sanciona Leis protetoras71, impondo normas cogentes, inafastáveis pela vontade das partes, versando sobre direitos indisponíveis, portanto. De outra banda, o dirigismo contratual judicial ocorre quando o juiz efetua a revisão de determinado contrato, decorrente do rompimento do equilíbrio contratual, seja devido a fatores externos que o tornam excessivamente oneroso – teoria da imprevisão -, ou seja por cláusulas abusivas.72 Esta forma de intervenção se dá através da jurisprudência, na qual têm- se visto grande esforço em busca da justiça contratual. Neste particular, Carlos Alberto Bittar afirma que: o fundamento da intervenção estatal está, exatamente, na consecução da justiça às relações privadas, para que o restabelecimento da comutatividade entre as posições em desajuste.73 Portanto, seja através da forma judicial, legislativa ou administrativa, o Estado exerce o seu intervencionismo nos contratos, objetivando a prevalência do interesse coletivo em detrimento ao interesse individual, minimizando a desparidade econômica, possibilitado a realização do princípio da igualdade substancial entre as partes, no sentido de tratar de maneira igual os iguais e de forma desigual os desiguais. Em suma, mesmo quando o legislador ordinário permanecer inerte devem o Juiz e o Jurista adequar a legislação civil aos preceitos constitucionais, sempre tendo como norte o princípio da dignidade da pessoa humana, intervindo, se caso for, nas relações privadas para que a justiça e a igualdade material sejam alcançadas.74 CONCLUSÃO A Constituição Federal de 1988 trouxe em seu bojo a essência dos direitos humanos fundamentais e a busca pela justiça social no país, abandonando por vez os resíduos do individualismo e do patrimonialismo que adotados foram outrora. Não obstante, a promulgação da Carta Magna representou expressivas mudanças no ordenamento jurídico pátrio, na medida em que, além da função reguladora estatal, adquiriu também a incumbência 71 SANTOS, Jeová Santos. Op.cit. 2004, p. 91. 72 SANTOS, Jeová Santos. Op.cit. 2004, p. 41. 73 BITTAR FILHO, Carlos Alberto. A intervenção estatal na economia contratual e a teoria da imprevisão. In: BITTAR, Carlos Alberto. Contornos atuais da teoria dos contratos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 40. 25 de tutelar a ordem econômica e as relações privadas, passando a incidir em todos os campos do direito, inserindo-lhes, por conseqüência, os seus princípios fundamentais impregnados de um colorido humanista. Diante do novo contexto, a malha infraconstitucional mostrou-se obsoleta, em dissonância com os preceitos institucionalizados, pois os diplomas reguladores da vida civil tiveram as suas raízes calcadas no patrimonialismo, sendo necessário uma reestruturação para, além de haver compatibilidade entre a Carta Magna e a legislação ordinária, fosse respeitada a hierarquia das fontes normativas da Constituição. Assim, se antes institutos como da autonomia privada e do pacta sunt servanda se encontravam em uma espécie de couraça, o que impossibilitava a sua limitação e mitigação, hodiernamente a realidade é diversa, considerando que os princípios da boa-fé objetiva e do equilíbrio econômico provocaram uma reformulação, condicionando o cumprimento do contrato à realização de sua função social. Portanto, devido à constitucionalização do Direito Privado, passam a fazer parte das relações contratuais noções e ideais como justiça social, solidariedade, proteção ao hipossuficiente, para, enfim, a dignidade da pessoa humana se posicionar como o cerne das relações obrigacionais estabelecidas, trazendo a idéia de supremacia do interesse coletivo sobre o individual, sendo superada a dicotomia entre o publico e o privado. Outrossim, partindo da premissa de que os direitos fundamentais carregam em seu núcleo os valores mais nobres de um Estado Democrático de Direito, devendo, por esta ótica, reger todos os campos jurídicos, coloca-se a questão acerca da existência de outros destinatários que não o Estado, mormente considerando que as violações aos direitos fundamentais não são exclusivas do poder estatal, sendo os particulares também capazes de oprimir ou restringir estes direitos, seja por desequilíbrio de forças ou por outro motivo desconhecido. Sem olvidar de doutrina divergente, a admissão dos direitos fundamentais no plano horizontal se mostra imperioso, encontrando argumentação para tanto no próprio fundamento do Estado Democrático de Direito, disposto no artigo 3º, da Lei Maior75, onde instituiu a sociedade livre justa e solidária, sendo imprescindível a atuação estatal no plano privado para que tais ideais sejam alcançados, a fim de que seja superado o fetiche formal para se chegar à justiça efetiva. Além disto, a Constituição Federal, com cunho eminentemente 74 TEPEDINO, MariaCelina Bodin Moraes. Op.cit.1993, p. 32. 75Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – constituir uma sociedade livre, justa e solidária; (...). 26 intervencionista, não só autorizou, como também instituiu como dever a tutela estatal nas relações privadas, sendo os direitos fundamentais um importante instrumento para a realização da justiça social almejada. Ainda, nesta linha, dentre as teorias existentes, inclina-se no sentindo de admissão da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas, na medida em que não admitir tal forma representaria condicionar os direitos mais nobres da Constituição Federal à vontade incerta do legislador, negando a eficácia e validade que lhe são devidos. Não obstante, o princípio da dignidade da pessoa humana, além de ser o próprio fundamento do Estado Democrático de Direito, deve também ser considerado como norma cogente de aplicação imediata, tal como está disposto no artigo 5º, §1º, da Constituição Federal76. Contudo, não é negada a necessidade de ponderar o direito fundamental em jogo com a autonomia privada dos particulares envolvidos no caso, não se tratando, portanto, de uma doutrina radical que possa levar à discricionariedade, com o esvaziamento da liberdade individual, conforme alegam seus opositores. Além disto, a autonomia privada não poderia restar mitigada ou reduzida sem a devida perquirição, pois a considera-se como um bem constitucionalmente protegido, visto que, embora não haja previsão expressa na Constituição, a ordem jurídica brasileira adotou o regime dos princípios, o qual consagrou a existência de direitos fundamentais não escritos, mas que podem ser deduzidos pela via interpretativa. Assim, considerando que a livre iniciativa é consagrada como fundamento da ordem econômica, sendo a liberdade de empresa assegurada e a propriedade privada protegida como direito fundamental, pode-se afirmar que o poder de autodeterminação atribuído pela ordem jurídica aos particulares para que atuem nas relações civis está protegido pela Constituição Federal de 1988, tendo, desta forma, a autonomia privada status constitucional. Partindo desta premissa, é possível concluir que o contrato tornou-se um ponto de encontro entre bens e valores constitucionalmente protegidos, figurando de um lado a autonomia privada e de outro os direitos fundamentais, ocorrendo uma colisão entre princípios. Portanto, revela-se consenso doutrinário que, ao contrário do plano vertical, os direitos fundamentais não vinculam de forma absoluta os particulares, sob pena de afixar a autonomia privada, razão pela qual a mediação do conflito deverá ocorrer mediante ponderação de 76 (...) As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. 27 interesses, permeada pelo princípio da proporcionalidade, onde determinado princípio terá que ceder perante a outro. De tal modo, os efeitos da eficácia deveram ser aferidos casuisticamente, considerando as circunstâncias e condições do caso concreto, prevalecendo o princípio que apresentar maior peso (razões) e compatibilidade com a situação. Além disto, a ponderação de interesses deverá buscar a conciliação entre os bens colidentes para então, casa não seja possível, auferir maior peso em relação a determinado direito, sem olvidar, contudo, do princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista que o intérprete deve sempre buscar a solução com maior consonância com os valores humanitários que este princípio promove. Outrossim, pode-se afirmar que através eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, o Estado exerce a função diretora que lhe fora outorgada, inclusive pela Constituição Federal, intervindo nas relações interparticulares a fim de tutelar direitos constitucionalmente protegidos. Destarte, conclui-se que a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas pode servir como importante meio para a construção de uma sociedade igualitária, mormente considerando as assimetrias fáticas existentes no nosso país, representando, ademais, a busca pelo verdadeiro ideal de justiça. 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