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1 PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS 28º CPR 2 Sumário 1.a. Violação de direitos humanos e responsabilidade internacional do Estado. .............................................................................. 3 1.b. Relação entre violação de direitos humanos e crimes internacionais conexos: apartheid, tortura, desaparecimento forçado, genocídio, trabalho e comércio escravo, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. ............................................................. 5 1.c. Proteção internacional dos direitos humanos e a reserva de jurisdição interna do Estado: limites e aplicabilidade do art. 2º, para. (7), da Carta da ONU. Inteligência do art. 1°, para. (3), da Carta da ONU. ............................................................................. 6 2.a. Princípio da universalidade dos direitos humanos e o relativismo cultural. gramáticas diferenciadas de direitos. O ius cogens internacional em matéria de direitos humanos. ................................................................................................................................ 7 2.b. Princípio da indivisibilidade dos direitos humanos. A teoria das “gerações” de direitos. Diferenças entre obrigações decorrentes da garantia de direitos civis e políticos e obrigações decorrentes da garantia de direitos econômicos, sociais e culturais. 10 2.c. Direitos humanos e garantias constitucionais fundamentais: convergências e divergências conceituais. Tratamento diferenciado entre direitos fundamentais e direitos sociais na Constituição Federal. ..................................................................... 12 3.a. Relação entre o regime de proteção internacional de direitos humanos, o direito internacional humanitário, o direito de minorias, o direito de refugiados e o direito internacional penal. .................................................................................................... 13 3.b. Eficácia vertical e horizontal de direitos humanos ("Drittwirkung"). Obrigação de respeitar e de garantir respeito a direitos. .. 15 3.c. As Nações Unidas e a promoção universal dos direitos humanos: inteligência do art. 1º, para. (3), da Carta da ONU. Valor normativo da Declaração Universal dos Direitos Humanos. ........................................................................................................... 16 4.a. Procedimentos especiais no âmbito do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Os procedimentos das Resoluções ECOSOC 1235 e 1503. As relatorias especiais. O sistema de "peer review"........................................................ 17 4.b. Sistema de monitoramento multilateral de direitos: relatórios periódicos, comunicações interestatais, petições individuais e investigações motu proprio. ....................................................................................................................................... 19 4.c. Direitos humanos e obrigações erga partes e erga omnes. Direito de Estados interferirem em situações de graves violações de direitos. 20 5.a. Sistema interamericano de direitos humanos. A Declaração Americana dos Direitos e Deveres Humanos. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos: origem, composição e competências. A Corte Interamericana de Direitos Humanos: composição e competências. Medidas provisórias. Procedimento de fixação de reparações. Exequibilidade doméstica das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. .................................................................................................. 21 5.b. Carta Democrática Interamericana de 2001. Natureza jurídica. Direito à democracia e obrigação de sua promoção. Democracia e direitos humanos. .................................................................................................................................. 24 5.c. Protocolo de San Salvador. Monitoramento pelo Conselho Interamericano de Educação, Ciência e Cultura, pelo Conselho Interamericano Econômico e Social e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. ............................................................................................................................................ 26 6.a. Derrogações implícitas e derrogações explícitas de direitos humanos. Estado de emergência. Condições para suspensão de direitos. Direitos inderrogáveis. Conceitos de segurança e ordem pública, direitos de outros, saúde pública, moral pública como critério de delimitação do gozo de direitos. ......................................................................................................................... 27 6.b. Acesso à Justiça. Princípios de Brasília adotados pela Cúpula Judicial Ibero-americana. ...................................................... 29 6.c. "Tortura e penas ou tratos cruéis, desumanas ou degradantes" como conceito integral. Diferenciação entre os elementos do conceito na jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos (caso irlandês) e seus reflexos no art. 16 da Convenção da ONU contra a Tortura de 1984. .............................................................................................................................. 30 7.a. Direitos comunicativos. Conceito, limites e espécies. Formas de violação de direitos comunicativos. .................................... 31 7.b. Povos indígenas e comunidades tradicionais em face do DI. Convenção 169 da OIT. Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais de 2005. Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007. 33 7.c. Valor do tratado de Direitos Humanos na Constituição Federal. Hierarquia supralegal. Tratados "equivalentes a Emendas Constitucionais". 36 8.a. Pena de morte. Restrições no direito internacional e, em especial, na Convenção Americana de Direitos Humanos. .......... 37 8.b. História e evolução organizacional do regime internacional de proteção dos direitos humanos. ............................................. 38 8.c. Proteção dos direitos das pessoas portadoras de deficiência no direito internacional. A Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu protocolo facultativo. ............................................................................................ 39 9.a. Instituições e tratados de direitos humanos de que o Brasil é parte. ....................................................................................... 40 9.b. Anistias autoconcedidas no direito internacional. Colisão com o dever de perseguir. Diferenciação no tocante a perdão, graça e indulto. 42 9.c. Incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal: competência para processo e julgamento, hipóteses de cabimento atribuição do Procurador-Geral da República. Intervenção federal para garantia dos direitos humanos: condições para decretação e escopo da medida. ........................................................................................................................................... 43 10.a. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará de 1994): definição de violência contra a mulher, obrigações dos Estados-Parte e sistema de monitoramento. A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 ("Lei Maria da Penha"): origem e escopo. .................................................................................. 44 10.b. Política Nacional de Direitos Humanos. O 3º Plano Nacional de Direitos Humanos. O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana - CDDPH. O Ministério Público e a defesa dos direitos humanos. ................................................................. 46 10.c. Direito à autodeterminação dos povos (art. 1º comum aos dois Pactos Internacionais da ONU de 1966): conceito e convergênciacom o princípio de autodeterminação dos povos (art. 1º, para. (2) da Carta da ONU e Resolução 2625 (1970) da Assembleia Geral da ONU). 48 11.a. Adequação do arcabouço legal brasileiro aos compromissos assumidos com o regime de proteção internacional dos direitos humanos. 50 11. b. Experimentação humana. Limites bioéticos. Casos de convergência com o conceito de tortura. ......................................... 52 11.c. Os Pactos Internacionais da ONU de 1966. Direitos protegidos e sistemas de monitoramento. ........................................... 53 3 1.a. Violação de direitos humanos e responsabilidade internacional do Estado. De acordo com André Ramos de Carvalho (Revista CEJ, Brasília, n. 29, p. 53/63, abr./jun. 2005) as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos podem impor até mesmo a modificação da Constituição da República. Essa tese coloca por terra a ideia ainda presente nos manuais de Direito Constitucional de que o Poder Constituinte Originário é juridicamente ilimitado. A responsabilização do Estado é essencial para reafirmar a juridicidade das normas de proteção internacional dos direitos humanos. São elementos da responsabilidade internacional: 1) fato internacionalmente ilícito; 2) resultado lesivo; e 3) nexo causal entre o fato ilícito e o dano. Genericamente, de acordo com Francisco Rezek, o conceito de Responsabilidade Internacional é sintetizado da seguinte forma: “O Estado responsável pela prática de um ato ilícito segundo o direito internacional deve ao Estado a que tal ato tenha causado dano uma reparação adequada”. (REZEK, Direito Internacional Público, 2014, p. 321). Em resumo, os elementos da responsabilidade internacional podem ser conceituados nos seguintes termos: i) Fato ilícito: descumprimento dos deveres básicos de garantia e respeito aos direitos humanos consagrados em convenções internacionais. ii) Resultado lesivo: prejuízos materiais e morais causados à vítima e a seus familiares. iii) Nexo causal entre o fato e o resultado lesivo: imputabilidade consistente no vínculo entre a conduta do agente e o Estado responsável. A imputação da responsabilidade é antes de tudo uma operação jurídica. Assim, mesmo uma decisão com trânsito em julgado ou uma norma constitucional podem acarretar a responsabilização do Estado. Nesse contexto, vale ressaltar que o Chile foi condenado a alterar o art. 19 de sua Constituição, relativo à liberdade de expressão. Nesse sentido, para evitar a responsabilidade do Estado por ato do Legislativo é necessário implementar o controle de convencionalidade das leis e da Constituição. De acordo com André de Carvalho Ramos, o controle de convencionalidade consiste: “na análise da compatibilidade dos atos internos (comissivos ou omissivos) em face das normas internacionais (tratados, costumes internacionais, princípios gerais de direito, atos unilaterais, resoluções vinculantes de organizações internacionais)”. (Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional, 2014, p. 294). Conforme leciona o Prof. Cançado Trindade (ASIL Proceedings, 1998, p. 200-201) a Convenção Americana de Direitos Humanos estabelece o dever de prevenção a fim de impedir a repetição de violações dos direitos humanos, incluindo o dever de harmonizar a legislação nacional com as normas de proteção internacional. O caso Suárez Rosero é paradigmático no sistema de proteção interamericano por ter sido a primeira vez que uma decisão de um tribunal internacional de direitos humanos determinou a modificação de uma lei nacional. A obrigação convencional de proteção dos direitos humanos é o princípio fundamental da responsabilidade internacional do Estado, de modo que o argumento da separação de poderes não isenta o Estado da obrigação de reparar o dano, ainda que não possa desconstituir uma decisão judicial com trânsito em julgado. A responsabilização por atos pode ser classificada nos termos abaixo: i) Atos ultra vires: praticados por agentes públicos, mas extrapolando as competências legais. O Estado responde pelo dano decorrente da atuação ilegal (ultra vires) por ter selecionado tais agentes públicos. ii) Atos omissivos em face de condutas de particulares: o Estado responde por não adotar as medidas necessárias a coibir os abusos praticados pelos particulares. Exemplo: caso José Pereira resultou na condenação do Brasil por não evitar o trabalho escravo. iii) Ato judicial que acarreta responsabilização: decisão tardia ou inexistente, bem como decisão violadora das normas de Direitos Humanos. Exemplo: caso Maria da Penha que resultou na condenação pela normatização de casos de violência doméstica em razão da demora em punir o agressor. iv) Reparação: preferencialmente o retorno ao status quo ante. A reparação pecuniária tem utilizado o critério do "projeto de vida", diferenciando-se da ideia dos lucros cessantes. v) Cessação do ilícito: independente da reparação. Diante da violação, existem modalidades de satisfação: 1) reconhecimento da ilegalidade pelo Estado; 2) indenização punitiva em benefício da vítima; e 3) obrigações de fazer. Garantia de não-repetição: graves violações. Neste caso, implica dever de investigar, processar e punir. Sanções pela comunidade internacional. Questão controversa é a da sanção unilateral, pois pode dar margem à sanções seletivas. Casuística: Responsabilidade Internacional pela Conduta do Poder Executivo: Caso Velásquez Rodríguez: a CorteIDH decidiu que os atos ultra vires dos órgãos ou agentes são também imputáveis ao Estado, por sua injustificável omissão (v. Doutrina Osman). A Corte consignou também o dever de organizar o aparato do Estado para garantir os direitos previstos na ConvADH. Doutrina Velásquez Rodríguez: determina a obrigação de o Estado reprimir penalmente as violações de direitos humanos. O Estado, portanto, responde pela violação do direito à vida e também pela eventual impunidade dos autores das violações. Caso José Pereira: o Brasil reconheceu perante a Comissão IDH sua responsabilidade por ter-se omitido em prevenir o trabalho escravo e por não ter conseguido punir os responsável pelo assassinato de um trabalhador (e tentativa de homicídio de José Pereira). Caso Godinez Cruz: “Com efeito, um fato inicialmente não é imputável diretamente a um Estado, por exemplo, por ser obra de um particular..., pode acarretar a responsabilidade internacional do Estado, não por esse fato em si mesmo, mas por falta da devida diligência para prevenir a violação (...)”. “Essa devida diligência constitui um agir razoável para prevenir ou punir situações de violação de direitos humanos”. Caso Damião Ximenes: Damião Ximenes, portador de doença mental foi assassinado dentro de clínica de repouso. A Corte IDH decidiu no mesmo sentido do Caso Niños de la Calle, entendendo que não basta que os Estados se abstenham de violar os direitos, mas é essencial que implementem medidas positivas adotadas em função das necessidades particulares de proteção do indivíduo (no caso de tratamento assumido por entes privados, há o dever de regular e fiscalizar). Responsabilidade Internacional pela Conduta do Poder Legislativo: Segundo André Carvalho Ramos “nada impede 4 que uma lei aprovada pelo Parlamento local viole os direitos humanos. Portanto, mesmo se as leis tiverem sido adotadas de acordo com a Constituição, e em um Estado democrático, isso não as exime do confronto com os dispositivos internacionais de proteção aos direitos humanos.” Forma-se, então, o chamado “controle de convencionalidade de leis perante o Direito Internacional dos Direitos Humanos”. Caso Suárez Roseros vs. Equador: a CorteIDH estabeleceu que o art. 114 do CP do Equador, ao privar os acusados de tráfico de drogas da garantia judicial da duração razoável do processo, violou o art. 2º da ConvADH. De modo inovador a Corte decidiu que a violaçãoocorre mesmo sem a aplicação concreta do art. 144, ou seja, a Corte fez um juízo de convencionalidade da lei doméstica, estabelecendo que o Estado é responsável pelo ato do legislador (concretiza-se o dever de prevenção, previsto nos arts. 1º e 2ºda ConvADH). Caso La Ultima Tentacion de Cristo: a CorteIDH condenou o Chile pela censura prévia ao filme, por violar a liberdade de pensamento e expressão, bem como de consciência e religião. Foi determinada a adequação da legislação doméstica do Chile (que acarretou a reformada Constituição). Caso Loayza Tamayo, Caso Barrios Altos, Caso Bámaca Velázquez, Caso Gomes Lund: a CorteIDH condenou a edição de leis de anistia aos autores de violações de direitos humanos. Para a Corte, os Estados não podem justificar o inadimplemento de suas obrigações internacionais invocando dispositivos internos (reconheceu, assim, que para o direito internacional o direito interno é um mero fato). As leis de anistia violam, entre outros, o direito à verdade, o direito de acesso à justiça, o direito ao devido processo legal. Estabeleceu-se, portanto, o dever de os Estados investigarem e punirem os responsáveis por violações de direitos humanos1. No Caso Loayza Tamayo, em que ela foi ilegalmente detida, a Corte decidiu, ainda, pela sua libertação e pela reinserção no meio social, através do seu retorno às atividades de docente, com a anulação de qualquer antecedente penal da vítima. Responsabilidade Internacional pela Conduta do Poder Legislativo: Para o Direito Internacional, o ato judicial é um fato a ser analisado como qualquer outro fato. “A responsabilização internacional por violação de direitos humanos pela conduta do Poder Judiciário pode ocorreram duas hipóteses: quando a decisão judicial é tardia ou inexistente (no caso da ausência de remédio judicial) ou quando a decisão judicial é tida, no seu mérito, como violadora de direito protegido.” Caso Genie Lacayo: a CorteIDH reconheceu a responsabilidade internacional da Nicarágua pela conduta do Poder Judiciário, em razão da delonga injustificada na prolação de sentenças contra os responsáveis pelo desaparecimento e morte de Genie Lacayo. Caso Niños dela Calle (Villagrán Morales): a CorteIDH decidiu que o direito à proteção da vida abarca inclusive as condições materiais mínimas de existência de uma pessoa, cabendo ao Estado, na promoção da vida, garantir o acesso às condições que garantam uma existência digna. Assentou-se, assim, que o direito à vida não possui apenas uma faceta dita de defesa, mas é, também, além de um direito civil e político, um direito econômico e social (indivisibilidade dos direitos humanos). Assim, a Corte exigiu da Guatemala a adoção de ações sociais e da garantia do mínimo existencial. Além disso, o direito à vida alcança ainda o dever de o Estado restaurar o “projeto de vida” (algo semelhante com a perda de uma chance). Por fim, decidiu a Corte que não se poderia invocar a tese defensiva de que a violação teria sido ocasionada pelo Poder 1 Vale ressaltar, que ao contrário da decisão da CorteIDH, o STF decidiu pela constitucionalidade/recepção da Lei de Anistia no Brasil (Lei n. 6.683/79), no julgamento da ADPF n. 153. De acordo com o STF, trata-se de Lei “medida” (Massnahmegesetze): “(...) que disciplinam diretamente determinados interesses, mostrando-se imediatas e concretas, e consubstanciam, em si mesmas, um ato administrativo especial. No caso das leis-medida interpreta-se, em conjunto com o seu texto, a realidade no e do momento histórico no qual ela foi editada, não a realidade atual. É a realidade histórico-social da migração da ditadura para a democracia política, da transição conciliada de 1979, que há de ser ponderada para que possamos discernir o significado da expressão crimes conexos na Lei n. 6.683. É da anistia de então que estamos a cogitar, não da anistia tal e qual uns e outros hoje a concebem, senão qual foi na época conquistada”. 5 1.b. Relação entre violação de direitos humanos e crimes internacionais conexos: apartheid, tortura, desaparecimento forçado, genocídio, trabalho e comércio escravo, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. A Comissão de Direito Internacional da ONU define crime internacional como o descumprimento, pelo Estado, de uma obrigação essencial para a salvaguarda de interesses fundamentais da sociedade internacional e cuja transgressão é, por esse motivo, reconhecida como grave pelos membros dessa coletividade. Embora o conceito acima seja incompleto, por não levar em conta a personalidade internacional dos indivíduos, os deveres que estes devem cumprir na vida social – inclusive no âmbito internacional – e o princípio da responsabilidade individual, que é uma das marcas do Direito Penal com um todo, deixa ele entrever a íntima correlação que a ideia de crimes internacionais tem com a violação aos direitos humanos (valores e interesses fundamentais tutelados em favor da dignidade humana). O desenvolvimento da noção de crimes internacionais é fenômeno que remonta à segunda metade do século XIX, quando teve início um esforço internacional de humanização da guerra. Entretanto, a consolidação do conceito é fenômeno posterior ao final da II Guerra Mundial e decorre diretamente da formação de um sistema internacional de proteção dos direitos humanos e de um mecanismo internacional de segurança coletiva administrado pela ONU e exercido pelo Conselho de Segurança. Com efeito, a construção da ideia de crimes internacionais é também fenômeno típico de um mundo em que há certa convergência em relação a uma pauta mínima de valores e no qual há muitas questões que dizem respeito a mais de um Estado específico ou a toda a sociedade internacional. É a consciência comum em relação à necessidade de se deferir especial tutela a certos valores (v.g., igualdade de gênero, de raça, etnia; inviolabilidade de crenças e convicções religiosas; liberdade do ser humano e autodeterminação dos povos, etc) que conduziu o DIP à preocupação de tipificar como “criminosas” as condutas transgressoras dos valores/bens/direitos relacionados com a dignidade humana. Neste sentido, Flávia Piovesan anota que o Tribunal de Nuremberg (1945-1946) significou um poderoso impulso ao movimento de internacionalização dos direitos humanos. Ao final da II Guerra e após intensos debates sobre o modo pelo qual poderiam os alemães ser responsabilizados pela guerra e pelos bárbaros abusos do período, os aliados chegaram a um consenso, com o Acordo de Londres de 1945, pelo qual ficava convocado um Tribunal Militar Internacional para julgar os criminosos de guerra. Ainda como contribuições históricas para reprimir os crimes internacionais, vale citar o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia e o Tribunal Penal Internacional para Ruanda, criados na década de 90 do século passado para processar e julgar indivíduos por atos cometidos nos conflitos ocorridos nesses dois países, todos, Tribunais de Exceção. Ainda de acordo com Piovesan, a adoção da Convenção para a Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio, em 8 de dezembro de 1948, que afirmou ser o genocídio um crime contra a ordem internacional, iniciando-se, então, os esforços para a criação de um Tribunal Penal Internacional permanente. De acordo com o artigo 6º da Convenção, “as pessoas acusadas de genocídio serão julgadas pelos tribunais competentes do Estado em cujo território foi o ato cometido ou pela corte penal internacional competente com relação às Partes Contratantes que lhe tiverem reconhecido a jurisdição”. Importante anotar que, em abril de 2015, completou 100 anos o episódio conhecido como “Genocídio Armênio”, o qual representa significativo marco histórico de crimes notoriamente conhecidos “contra a humanidade e civilização”, de conotação humanitária e que contribuíram para a criaçãode Tribunais Internacionais que visavam a reprimir crimes, conforme acima mencionado. Todos esses eventos convergiram esforços internacionais para a criação de um organismo intergovernamental permanente, o Tribunal Penal Internacional (TPI), competente para examinar quatro tipos de ilícitos,desde que sejam de maior gravidade e que afetem a comunidade internacional em seu conjunto: crimes de guerra, crimes contra a humanidade, crimes de agressão e genocídio. Vale ressaltar que a comunidade internacional tece críticas ao âmbito de atuação do TPI, na medida em que referido Tribunal apenas julgou ou processa autoridades de países africanos, o que representaria uma forma de “imperialismo moderno”. Não há, efetivamente, autoridades de países desenvolvidos que tenham sido objeto de processo e julgamento perante o TPI. Com efeito, até a atualidade, o TPI proferiu duas condenações e uma absolvição em um total de seis casos analisados, sendo que as duas condenações se referem aos casos “Katanga” e “Lubanga”. Em relação a legalidade de seus crimes, destaca-se que o crime de agressão foi tipificado recentemente, mas a alteração do Estatuto de Roma sobre o assunto não foi internalizada pelo Brasil. No âmbito do Sistema Global de proteção de Direitos Humanos, cumpre ainda enumerar diversos tratados destinados a conferir especial proteção aos valores caros á Sociedade Internacional. É neste cenário que se apresentam: a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (ONU, 1965); a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (ONU, 1979); a Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989); a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006); a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros de suas Famílias (Resolução nº 45/158, AGda ONU, 1990); a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas cruéis, desumanos e degradantes (ONU, 1984), a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948). 6 1.c. Proteção internacional dos direitos humanos e a reserva de jurisdição interna do Estado: limites e aplicabilidade do art. 2º, para. (7), da Carta da ONU. Inteligência do art. 1°, para. (3), da Carta da ONU. Inteligência do art. 1°, para. (3), da Carta da ONU: O dispositivo estabelece que entre os objetivos da ONU está “realizar a cooperação internacional, resolvendo os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, promovendo e estimulando o respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. A inteligência do dispositivo desejada pelo examinador parece no sentido de que as questões econômicas sociais culturais e humanitárias estão intimamente ligadas ao respeito dos direitos humanos. Não há plenitude de direitos humanos sem a solução de tais problemas. O artigo também deixa claro que a questão dos direitos humanos deve ser objeto de cooperação internacional, não se limitando cada Estado a resolver internamente seus problemas, além não ser possível a discriminação na promoção dos mesmos. Limites e aplicabilidade do art. 2º, para. (7), da Carta da ONU: a inclusão da obrigação de se respeitarem os direitos humanos na Carta da ONU foi um marco histórico no Direito Internacional Público, pois pela primeira vez os Estados comprometiam-se perante outros Estados a adotar um comportamento determinado ante os não sujeitos do direito internacional, ou seja, seus habitantes desprovidos de direitos. Com efeito, a ONU criou um sistema universal de proteção dos direitos. humanos com o advento, em especial, do Conselho de Segurança. Em regra, não haverá intervenção da ONU em assuntos que dependam de jurisdição do Estado, salvo quando houver hipótese de ameaça à paz, ruptura da paz e atos de agressão, hipóteses em que o Conselho de Segurança empregará a força para o restabelecimento da normalidade. O problema proposto neste caso é identificar quais são os assuntos de domínio reservado dos Estados que não podem sofrer a interferência da Organização. Neste ponto, verifica-se que o respeito aos direitos humanos é um dos principais propósitos consagrados na Carta da ONU, e, além dela, vários outros documentos internacionais expressam a obrigação dos Estados em respeitar as disposições internacionais humanitárias. Ademais a expressão “ações incompatíveis com os propósitos das Nações Unidas”, inserta no artigo 2º, n. 4, reflete uma “abertura” nos termos da Carta, uma vez que o dispositivo permite incluir várias situações imprevistas e vindouras, que podem ser enquadradas na norma e permitir que a Organização atue em determinados casos. As ações incompatíveis com os propósitos das Nações Unidas são aquelas contrárias ao disposto no primeiro artigo da Carta, ou seja: a) atos contrários à paz e segurança internacionais; b) solução não-pacífica de controvérsias; c) ações contrárias à autodeterminação dos povos; d) ações contrárias à igualdade de direitos dos povos e e) violações aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. A inclusão destas expressões demonstra a preocupação de proibir a ameaça ou utilização da força não somente nos casos de integridade territorial ou independência política de qualquer Estado, mas, em qualquer ação militar que fosse contrária aos propósitos das Nações Unidas. Reitere-se que o disposto no art. 2º,§ 7º, da Carta da ONU, tende a ceder frente à constatação da existência de uma ameaça contra a paz, de uma ruptura da paz ou de um ato de agressão; casos em que as Nações Unidas, por meio da atuação do Conselho de Segurança, poderão empreender ações, armadas inclusive, em conformidade com o Capítulo VII da Carta, a fim de manter ou restabelecer a paz internacional em razão de situações de violações graves e sistemáticas de direitos humanos. Trata-se da teoria do “spill over effect”, por meio da qual é permitida a interferência do Conselho de Segurança da ONU em território de Estado Soberano. Anteriormente a aplicação de referida teoria, vigia a teoria “domaine rèservé”, conceito que impedia interveniência de órgãos internacionais em países soberanos violadores de direitos humanos. Valor normativo da Declaração Universal dos Direitos Humanos – Foi objeto da questão 57na fase objetiva em que o examinador considerou que a declaração “não é formalmente vinculante, mas é indicativo de amplo consenso internacional, integrando o chamado soft law”.O assunto é polêmico, pois há doutrinadores, como Valério Mazzuoli, que defendem a natureza de jus cogens de referida Declaração, embora ela seja, juridicamente, uma Resolução da ONU. Como esta questão gerou certa confusão, especialmente porque alguns autores simplesmente consideram a declaração universal sem fazer mais considerações, cabem alguns comentários. O conteúdo da Declaração é repetido e ampliado por inúmeros tratados de direitos humanos, gerais ou específicos, universais ou regionais. Tais tratados são formalmente vinculantes para os Estados que deles fazem parte. Por outro lado, muito do conteúdo da declaração é costume ou princípio de direito internacional. O fato de um determinado direito ou obrigação estar inserido na declaração é forte indicativo de que ele é vinculante por outros motivos (tratado, costume ou princípio), porém isto não faz da Declaração em si formalmente vinculante, ainda que a maior parte de seu conteúdo vincule os Estados por outros motivos. SHAW (93) traz uma explicação acerca da soft Law: Essa terminologia pretende indicar que o instrumento ou disposição de que se trata não é por si só uma "lei", mas sua importância dentro da estrutura geral do desenvolvimento jurídico internacional é tal que ele merece atenção particular. O "direito suave" não é direitoe não podemos nos esquecer disso; mas não é necessário, por exemplo, que um documento seja um tratado vinculante para que possa exercer influência na política internacional. A Ata Final de Helsinque, de 1975, é um exemplo de primeira ordem. Não era um acordo de cumprimento obrigatório, mas exerceu influência incalculável na Europa Central e Oriental, sublinhando o papel e a importância dos direitos humanos. Certas áreas do direito internacional geraram mais "direito suave" do que outras, na medida em que produziram instrumentos importantes, mas sem poder vinculante. Podemos citar aqui, particularmente, o direito econômico e o direito ambiental internacionais. O uso desses documentos, como quer que sejam chamados -recomendações, diretrizes, códigos de conduta ou padrões, por exemplo -, é significativo para assinalar a evolução e a fixação de diretrizes, que poderão a ser convertidas em normas legalmente obrigatórias. Tais diretrizes são importantes e influentes, mas, por si, não constituem normas jurídicas. 7 Ponto 2.a. Princípio da universalidade dos direitos humanos e o relativismo cultural. gramáticas diferenciadas de direitos. O ius cogens internacional em matéria de direitos humanos. Princípio da universalidade dos direitos humanos e o relativismo cultural: Conceito: A universalidade dos direitos humanos consiste na atribuição desses direitos a todos os seres humanos, não importando nenhuma outra qualidade adicional, como nacionalidade, opção política, orientação sexual, credo, etc. (ACR, Curso de Direitos Humanos, 2014, p. 89). A universidade dos direitos humanos pode ser entendida em três planos: a) titularidade – direitos humanos são universais porque seus titulares são os seres humanos; b) temporal – os direitos humanos são universais, pois os homens os possuem em qualquer época da história; c) cultural – os direitos humanos são universais porque permeiam todas as culturas humanas, em qualquer parte do globo (ACR, Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional, 2015, p. 206). Internacionalização (em sentido amplo, em sentido estrito e consagração), universalismo formal e universalismo em concreto: No caso dos direitos humanos, a internacionalização em sentido amplo apresenta-se incipiente, de forma fragmentada, voltada a direitos específicos ou a situações localizadas, desde o século XIX e o início do século XX (ex.: proibição da escravidão; regime de mandatos da Sociedade das Nações, que impôs obrigações de respeito aos direitos das populações de territórios sujeitos ao mandato; proteção aos trabalhadores com a criação da OIT em 1919; proteção das minorias na Europa Oriental no pós 1ª Guerra), tendo sido importante para a constituição da base que auxiliou, após a 2ª Guerra, a constituição de uma proteção internacional dos direitos humanos estruturada e coerente. A internacionalização em sentido estrito deu-se apenas com a Carta de São Francisco, tratado internacional que criou a ONU em 1945, que, além de mencionar expressamente o dever de promoção de direitos humanos por parte dos estados signatários, estabeleceu ser tal proteção um dos pilares da ONU. É a Carta de São Francisco o primeiro tratado de alcance universal que reconhece os direitos fundamentais dos seres humanos, impondo o dever dos estados de assegurar a dignidade e o valor de todos. A consagração da internacionalização dos direitos humanos no mundo pós-Guerra Fria ocorreu na Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena, em 1993 (marco na proteção de direitos humanos no mundo, resultando na elaboração de uma Declaração e um programa de ação para a promoção e proteção de direitos humanos, que contou com o reconhecimento claro do universalismo, da indivisibilidade e da interdependência dos direitos protegidos). Com a internacionalização dos direitos humanos, implantou-se formalmente o universalismo dos direitos humanos (universalismo formal), inoculado pela adoção dos estados do mesmo texto de direitos humanos imposto nos tratados ratificados. Contudo, não basta a adoção da mesma redação de um determinado direito para que o universalismo seja implementado: é necessário que haja também a mesma interpretação desse texto (universalismo em concreto). Assim, o DIDH é composto por duas partes indissociáveis: o rol dos direitos de um lado e os processos internacionais que interpretam o conteúdo desses direitos e zelam para que os estados cumpram suas obrigações (interpretação internacionalista). A manutenção e primazia dada aos estados pela interpretação nacionalista dos tratados de direitos humanos torna o regime jurídico do DIDH manco e incoerente: universal no texto, nacional na aplicação e intepretação das normas na vida cotidiana. Essa dicotomia (universalismo na ratificação x localismo na aplicação) representa o “truque de ilusionista” na ordem internacional: os estados ratificam os tratados, os descumprem cabalmente, mas alegam que os estão cumprindo (ACR, Processo Internacional de Direitos Humanos, 2015, p. 30/35). Universalismo e relativismo cultural – “ser universal na diferença”: o principal desafio do DIDH é o de ser universal na diversidade, ou seja, o de criar, por meio de tratados e costumes internacionais, um rol amplo de direitos e um grupo de órgãos judiciais ou quase judiciais que, por sua vez, determinarão as interpretações comuns dos mais importantes temas das heterogêneas sociedades humanas. Surge daí o conflito entre aqueles que defendem a universalidade e aplicação geral dos direitos humanos e aqueles que pregam a possibilidade de opção local ou particular para, assim, preservar determinadas condutas ou práticas. ACR destaca que, embora a declaração de Viena tenha admitido que as particularidades locais devem ser levadas em consideração, assim como os diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever do estado promover e proteger todos os direitos humanos, independentemente de seus sistemas políticos, econômicos e culturais. Logo, as peculiaridades locais ou ocasionais, segundo o autor, não podem justificar a violação ou amesquinhamento desses direitos. Apesar disso, parte da doutrina e estados, em várias situações, opõem-se à aplicação de determinados direitos por considerá-los ofensivos às práticas culturais ou às opções legislativas locais (ACR, Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional, 2015, p. 208/210). Objeções à universalização dos direitos humanos: a) argumento filosófico – funda-se na existência de diversas percepções valorativas de mundo, típicas da comunidade humana, na qual nada é universal; b) argumento da falta de adesão dos estados – questiona a pretensa adesão dos estados à defesa dos direitos humanos como prova inequívoca do universalismo dessa temática no direito internacional atual, pugnando ora a falta de adesão formal, ora, na existência de adesão formal, a falta de engajamento prático, servindo a adesão apenas para efeito publicitário externo; c) argumento geopolítico – destaca o uso do discurso de proteção dos direitos humanos como um elemento da política de relações exteriores de vários estados, em especial dos estados ocidentais, que se mostram incoerentes em vários casos, omitindo-se na defesa de direitos humanos na exata medida de seus interesses políticos e econômicos; d) argumento cultural – diz respeito a diferenças culturais, focadas na relação do homem e sua comunidade existente na cultural ocidental e na cultura africana e asiática (dicotomia indivíduo-comunidade); outra objeção cultural relaciona-se a específicos direitos que refletiriam um viés cultural ocidental e muitas vezes apenas de algumas regiões; e) argumento desenvolvimentista – sustenta que direitos humanos exigem um estágio ulterior de desenvolvimento para sua correta proteção e implementação (ACR, Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional, 2015, p. 210/215). Reafirmação da universalidadedos direitos humanos: em relação às objeções filosóficas ao caráter universal dos direitos humanos, destaca-se que a teoria geral dos direitos humanos não pretende ser uma cosmovisão ou abranger todas as facetas da vida social. Em relação ao pretenso caráter ocidental (e consequentemente não universal) dos direitos humanos, ACR observa que não se trata de buscar um denominador comum mínimo dos diversos valores culturais, que aceita diversas condutas humanas apenas por serem integrantes de tradições culturais, em sacrifício da dignidade da pessoa humana, mas de se afirmar que a pluralidade de culturas e orientações religiosas (ou de cosmovisões) deve ser respeitada 8 com o reconhecimento da liberdade e participação com direitos iguais para todos. A aceitação de justificativas culturais a condutas violatórias de direitos humanos carrega forte acento totalitário, na medida em que pode significar a coerção daqueles que, embora membros da comunidade, não mais se identificam com seus valores. O relativismo cultural da temática dos direitos humanos pode, à custa da liberdade, restringir os indivíduos a papéis pré-estabelecidos, o que mostra o caráter libertário e de ruptura da temática dos direitos humanos. Em relação à objeção geopolítica, ACR destaca que a mesma crítica pode ser feita em relação a qualquer tema do direito internacional. Por fim, aponta-se a falha do argumento desenvolvimentista por se basear na relação riqueza-proteção de direitos humanos, que é desmentida pela realidade (ACR, Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional, 2015, p. 215/220). Perspectivas interculturais no século XXI: há uma tendência de modificação na centralidade do debate entre universalismo e relativismo, visando construir as bases teóricas para um diálogo intercultural. É necessário estabelecer um duplo diálogo: primeiro, um diálogo interno no qual determinada cultura possa debater sua visão de dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos; após, um diálogo externo, igualitário e baseado na reciprocidade, no qual as diversas concepções possam convergir. Tal diálogo só é possível a partir das seguintes premissas: a) todas as culturas e religiões comungam dos ideais gerais de igualdade e liberdade encontrados na DUDH, mas divergem quanto à extensão e conteúdo dos direitos em concreto, o que exigirá a reinterpretação dos preceitos locais (interpretação iluminista); b) o diálogo interno é essencial para pôr em cheque determinados dogmas culturais, levando à releitura de concepções locais, agora à luz dos direitos humanos; c) o diálogo externo (com outras culturas) acarreta a revaloração dos próprios padrões de direitos humanos, usados anteriormente como marcos hermenêuticos do diálogo interno; ocorre o fenômeno na legitimação retrospectiva dos padrões universais, que, antes de rejeitar tais padrões, busca por meio desse diálogo multicultural revalidá-los. Além disso, o século XXI conta com um instrumento eficaz para a superação da antiga dicotomia universalismo-relativismo: os processos internacionais de direitos humanos perante os tribunais internacionais. A atividade das cortes europeia e interamericana permite avaliar as objeções locais à implementação de direitos humanos pela própria lógica dos direitos, graças ao reconhecimento de diversos direitos em conflito. Assim, aquilo que era visto como um conflito ente uma opção cultural local e um direito previsto em um tratado passa a ser entendido como um conflito de direitos, entre o direito cultural e outro direito essencial em tela (ACR, Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional, 2015, p. 220/223). Gramáticas diferenciadas de direitos. Conceito: No artigo “A Gramática dos Direitos Humanos”, do prof. Oscar Vilhena Vieira, publicado no Boletim Científico da ESMPU, julho/setembro 2002, a expressão “gramática dos direitos” é utilizada como sinônimo de linguagem dos direitos. PIOVESAN, também utiliza a expressão “gramática dos direitos humanos” como sinônimo de linguagem ou interpretação dos direitos humanos. A expressão “gramática dos direitos humanos” refere-se às diversas linguagens produzidas ao longo da história ou pelos diferentes povos acerca da concepção dos Direitos Humanos. Neste ponto, a Declaração de 1948 inovou a gramática dos direitos humanos, ao introduzir concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos e combinando o discurso liberal da cidadania com o discurso social, elencando tanto direitos civis e políticos (arts. 3 a 21), como direitos sociais, econômicos e culturais (arts. 22 a 28). O jus cogens internacional em matéria de direitos humanos. Normas imperativas em sentido amplo (jus cogens e obrigações erga omnes): as normas imperativas em sentido amplo são aquelas que contêm valores essenciais da comunidade internacional e que, por conseguinte, se impõem a cada estado isoladamente considerado. Logo, não é facultado ao estado o direito de violar normas imperativas ou de aquiescer com violações por parte de outrem dessas normas. Há duas espécies de normas imperativas em sentido amplo: o jus cogens e as obrigações erga omnes. O jus cogens (ou norma imperativa em sentido estrito ou norma cogente internacional) consiste no conjunto de normas que contém valores considerados essenciais para a comunidade internacional como um todo, sendo por isso dotado de superioridade normativa no choque com outras normas de direito internacional. Pertencer ao jus cogens não significa ser tal norma considerada como obrigatória, pois todas as normas internacionais o são: significa que, além de obrigatória, não podem os estados comportar-se de modo a derrogá-la, a não ser que a derrogação seja oriunda de norma de igual quilate. Já as obrigações erga omnes referem-se a obrigações internacionais cujo cumprimento interessa à comunidade internacional. Essas espécies não são estanques: normas pertencentes ao jus cogens são consideradas obrigações erga omnes. No entanto, o fato de uma norma pertencer ao conjunto de normas de obrigações erga omnes não implica no caráter cogente da mesma. O conceito de jus cogens implica o reconhecimento de uma qualidade do direito material (superioridade) e as obrigações erga omnes significam uma qualidade de implementação do direito material (todo estado tem interesse no cumprimento dessa norma) (ACR, Processo Internacional de Direitos Humanos, 2015, p. 49/50). O rol das normas imperativas: a Convenção Internacional sobre o Direito dos Tratados de Viena (CVDT, 1969) foi omissa na determinação do rol de normas pertencentes ao jus cogens, de modo que sua origem é o costume internacional. Dessa prática internacional fica evidente a existência de poucas normas de jus cogens reconhecidas, podendo ser apontadas como exemplos as seguintes: I) Proibição do uso ilegítimo da força, agressão e guerra de conquista: o desenvolvimento do direito internacional gerou a importante proibição do recurso à força como mecanismo de solução de controvérsias entre estados, sendo considerada a guerra e o recurso às represálias armadas ilegais. A CIJ consagrou tal entendimento no caso do Estreito de Corfu, considerando ilícita a chamada Operation Retail pela qual os navios de guerra do Reino Unido invadiram as águas territoriais da Albânia. Já no julgamento do litígio envolvendo Nicarágua versus Estados Unidos, a CIJ reconheceu a existência de obrigação internacional de proibição do uso da força para a solução de controvérsias entre estados. II) Princípio da autodeterminação dos povos: para ACR, autodeterminação dos povos é o direito à emancipação política de toda comunidade submetida à dominação estrangeira, jugo colonial e, recentemente, com base na experiência do Kosovo, grave situação de discriminação e violação dos direitos humanos (neste último caso o entendimento é minoritário). A CIJ reconheceu esse costumeinternacional no Caso do Timor Leste (Portugal versus Austrália, 1995), bem como nos Pareceres Consultivos sobre a Namíbia, 1971, e Saara Ocidental, 1975. No entanto, a consolidação consuetudinária direito à autodeterminação não eliminou a dúvida sobre quem pode invocá-lo. A prática tradicional dos estados indica que somente os povos sob dominação estrangeira ou jugo colonial é que estariam ao abrigo do jus cogens. Segundo ACR, o 9 caso do Kosovo sugere que as minorias existentes podem buscar a emancipação extraordinariamente – em face do direito à integridade territorial do antigo estado – caso haja discriminação e violação grave e sistemática dos direitos humanos, conforme consta do voto do Juiz Cançado Trindade no Parecer Consultivo da CIJ sobre a independência do Kosovo, de 2010 (tese, contudo, que não foi aceita pela maioria). A declaração de Viena de direitos humanos (1993) assinala uma conciliação entre proteção de direitos humanos e o direito à emancipação de agrupamentos não submetidos à dominação estrangeira ou jugo colonial, pugnando pela inexistência do direito de secessão no plano internacional desde que o estado possua governo representativo de toda a população pertencente ao seu território, sem distinções de qualquer natureza, ou seja, desde que não haja discriminação odiosa que leve o grupo discriminado a buscar a emancipação. As normas cogentes de direitos humanos: no âmbito da ONU, a CDI já considerou, em várias ocasiões, que violações a direitos de defesa (direitos de primeira geração) ofendem valores essenciais (ou seja, jus cogens) da sociedade internacional. Os tribunais internacionais caminham no mesmo sentido. A CorteIDH possui jurisprudência constante no sentido de reconhecer a qualidade de jus cogens de determinados direitos fundamentais (ex.: no parecer consultivo nº. 18 sobre a condição jurídica e direitos dos migrantes não documentados de 2003 a Corte considerou que o princípio da igualdade e não discriminação pertence ao jus cogens; no caso dos meninos de rua da Guatemala – Caso Villagrán Morales, Cançado Trindade sustentou que o desaparecimento forçado de pessoas viola direitos humanos inderrogáveis – liberdade, integridade física e psíquica e direito à vida – e, por isso, pertence ao rol do jus cogens). Em paralelo, houve inconteste esforço da comunidade internacional de prevenir violações graves de direitos humanos desde o final da 2ª Guerra Mundial, o que culminou com a redação do Estatuto de Roma (TPI). Hoje, os direitos humanos protegidos pela tutela internacional penal strictu sensu (crimes contra a humanidade, crimes de guerra, genocídio e agressão) são parte integrante do jus cogens, uma vez que a vontade de um estado ou de estados isolados não impedirão a ação punitiva dos tribunais penais internacionais. O que se espera dos estados: não basta que seja reconhecido o estatuto de jus cogens de determinada regra internacional. O conceito de jus cogens exige que o estado se comporte de modo a respeitar seu conteúdo, não o derrogando com sua conduta comissiva ou omissiva. É necessário que o conceito de jus cogens gere o seu desdobramento lógico: permitir que os estados possam pacificamente fazer valer seus conteúdos pelo acesso obrigatório aos tribunais internacionais, dispensando-se a anuência como requisito de acesso à jurisdição internacional. 10 Ponto 2.b. Princípio da indivisibilidade dos direitos humanos. A teoria das “gerações” de direitos. Diferenças entre obrigações decorrentes da garantia de direitos civis e políticos e obrigações decorrentes da garantia de direitos econômicos, sociais e culturais. Princípio da indivisibilidade dos direitos humanos Conceito: Para ACR, a indivisibilidade dos direitos humanos consiste no reconhecimento de que todos os diretos humanos devem ter a mesma proteção jurídica, uma vez que são essenciais para uma vida digna (Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional, 2015, p. 224). Para o autor, a indivisibilidade possui duas facetas: a) o direito protegido apresenta uma unidade incindível em si; b) não é possível proteger apenas alguns dos direitos humanos reconhecidos. Pela indivisibilidade dos DH, a classificação entre direitos civis e políticos, de um lado, e direitos econômicos, sociais e culturais, de outro, perde a importância. A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 adotou a indivisibilidade, consagrando a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, conjugando o valor liberdade ao valor igualdade na seara dos direitos humanos. A DUDH parificou os direitos civis e políticos e os direitos econômicos e sociais, afirmando, ainda, a interrelação, indivisibilidade e interdependência de todos estes direitos: “Sem a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos se reduzem a meras categorias formais, enquanto sem a realização dos direitos civis e políticos, os direitos econômicos, sociais e culturais carecem de verdadeira significação” (Piovesan, pag. 142). A indivisibilidade foi reafirmada na Resolução 32/130 da AG-ONU e na Declaração de Direitos humanos de Viena (1993). Teoria das “gerações” de direitos Conceito: A teoria das gerações de direitos decorre de uma incompreensão surgida a partir de uma metáfora usada por Karel Vasak, que, em Conferência proferida no Instituto Internacional de Direitos Humanos no ano de 1979, classificou os direitos humanos em três gerações, cada uma com características próprias. Parte-se do critério do momento histórico em que o direito foi concebido, não se tratando de sucessão geracional de direitos, mas de expansão, cumulação ou fortalecimento dos direitos humanos, todos essencialmente complementares. Gerações: Primeira geração: engloba os chamados direitos de liberdade, que são direitos às chamadas prestações negativas, nas quais o Estado deve proteger a esfera de autonomia do indivíduo; são direitos de defesa, possuindo o caráter de distribuição de competências (limitação) entre o Estado e o ser humano, sendo denominados direitos civis e políticos. Segunda geração: representa a modificação do papel do Estado, exigindo-lhe um vigoroso papel ativo, além do mero fiscal das regras jurídicas; sob a influência das doutrinas socialistas, constatou-se que a inserção formal de liberdade e igualdade em declarações de direitos não garantia a sua efetiva concretização, o que gerou movimentos sociais de reivindicação de um papel ativo do Estado para realizar aquilo que CELSO LAFER denominou “direito de participar do bem- estar social”; Terceira geração: fundamento na solidariedade – ou fraternidade –, são de titularidade coletiva e indivisíveis, não fracionáveis quanto aos seus destinatários; trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da figura do homem-indivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humanos (povo, nação), e caracterizando- se, consequentemente, como direitos de titularidade transindividual (coletiva ou difusa); dentre os direitos fundamentais de terceira dimensão mais citados, cumpre referir os direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e qualidade de vida, bem como o direito à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e o direito de comunicação. Alguns autores aventam a existência de direitos de quarta geração, ligados à democracia participativa (plebiscito, referendo, iniciativa popular, ação popular) e à democratização dos fóruns de deliberação internacional (ex. direito de representação de cidadãos de um determinado estado nos órgãos de deliberação em órgãos internacionais, como o Parlamento do Mercosul); para BONAVIDES, esta quarta dimensão é composta pelos direitos à democracia (no caso, à democracia direta) e à informação, assim como pelo direito ao pluralismo. Merece registro, ainda, a proposta de Bonavides, no sentidode que o direito à paz integra uma quinta geração de direitos humanos e fundamentais. Por fim, destaca-se ainda o posicionamento de JOSÉ ALCEBÍADES DE OLIVEIRA JÚNIOR, para quem, com base na dinâmica da sociedade tecnológica, a quarta geração incluiria os direitos relacionados ao domínio da biotecnologia e bioengenharia, os quais, por tratarem de questões ligadas à vida e à morte, requerem uma discussão ética prévia, ao passo que a quinta geração diz respeito ao campo da cibernética e da tecnologia da informação e comunicação de dados, que apresenta como característica comum a superação das fronteiras mediante o uso da internet e outras ferramentas. Críticas: a teoria geracional vista acima é criticada nos dias de hoje por transmitir, de forma errônea, o caráter de sucessão de uma geração por outra. Para BONAVIDES, no caso dos direitos humanos não há sucessão, mas sim acumulação de direitos; para o autor, a melhor expressão seria “dimensão”, que se justifica tanto pelo fato de não existir realmente uma sucessão ou desaparecimento de uma geração por outra, mas também quando novo direito é reconhecido, os anteriores assumem uma nova dimensão, de modo a melhor interpretá-los e realizá-los. Diferenças entre obrigações decorrentes da garantia de direitos civis e políticos e obrigações decorrentes da garantia de direitos econômicos, sociais e culturais: Diferente dos direitos civis e políticos, considerados absolutos no que tange a sua autoaplicabilidade, os direitos econômicos, sociais culturais consagrados no PIDESC têm como característica a realização progressiva, conforme os recursos de cada Estado. Além disso, a forma de acompanhamento da efetivação exclusivamente através de relatórios resulta em mera condenação política, o que confere baixa efetividade, razão pela qual na Declaração de Viena consta a recomendação para que seja aceita a petição individual como instrumento de cobrança da efetivação do PIDESC. Não obstante é assente a ideia de que é vedado o retrocesso social, ou seja, prevalece o efeito catraca em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais, constituindo condições materiais para a efetiva fruição dos direitos civis e políticos. A doutrina mais recente entende que os DESC são direitos subjetivos públicos, ainda que de efetivação complexa. Em consonância com o DIDH, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento, na ADPF 45, de que a cláusula da reserva do possível não pode resultar na nulificação ou aniquilação de direitos fundamentais, preservando assim o núcleo essencial dos direitos econômicos, sociais e culturais ao assegurar o mínimo existencial. Nesse sentido, Deborah Duprat, na ADPF em defesa da pessoa deficiente, argumenta que o mínimo existencial constitui um pressuposto para a liberdade, bem como para 11 a participação democrática na vida pública. Verifica-se ainda que os DCP caracterizam-se por impor ao Estado um dever de abstenção (não fazer), de não interferência no espaço de autodeterminação do indivíduo. Mas há hipóteses em que um direito de 1ª geração dá lugar a um direito à prestação positiva (ex. a propriedade privada pode revelar um dever prestacional do estado, como a segurança pública, de modo a evitar a usurpação da propriedade). Já os DESC demandam uma atuação estatal corretiva, gerando uma obrigação estatal de fazer ou de dar. Mas há hipóteses em que um direito de 2ª geração dá origem a direito de defesa (ex. direito de greve e direito à livre associação sindical, cuja dimensão preponderante é negativa, a exigir do estado a tolerância aos movimentos grevistas e às associações). 12 Ponto 2.c. Direitos humanos e garantias constitucionais fundamentais: convergências e divergências conceituais. Tratamento diferenciado entre direitos fundamentais e direitos sociais na Constituição Federal. Direitos humanos e garantias constitucionais fundamentais: convergências e divergências conceituais: Direitos humanos são “um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humana, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional” (CUNHA JR, 542). Embora ontologicamente ligados, tem-se reservado a expressão “direitos fundamentais” para designar os direitos humanos positivados em nível interno, assegurados pelos mecanismos constitucionais, enquanto “direitos humanos”, de alcance universal, no plano das declarações e convenções internacionais, assegurados por mecanismos internacionais de supervisão e controle e, indiretamente, por mecanismos internos. A “diferenciação [entre direitos humanos e direitos fundamentais] perde a importância em virtude do processo de aproximação e mútua relação entre o direito internacional e o direito interno na temática dos direitos humanos” (RAMOS, 2007, p. 128), como ocorre nos arts. 5º, §§ 2º e 3º, e 109, § 5º, da CR. Direitos humanos internacionais são “a soma dos direitos civis, políticos [1ª geração], econômicos, sociais [2ª], culturais e coletivos [3ª] estipulados pelos instrumentos internacionais e regionais e pelo costume internacional” (PETERKE, 2010, pp. 88 e 89). Direitos civis são “toda forma de garantia que protege a integridade física e psíquica”. Direitos políticos são “toda forma de garantia que protege a participação na vida política e social”. Direitos econômicos são “direitos humanos referentes à produção, ao desenvolvimento e à administração de materiais para as necessidades da vida”. Direitos sociais são “reclamações aos governos a fim de que propiciem o bem-estar a todos que residem em seus territórios”. Direitos culturais são “direito de preservar e gozar da identidade cultural e do desenvolvimento” (ARAGÃO, 2010, pp. 356 e 357). A expressão “direitos e garantias fundamentais” é gênero do qual são espécies, entre outros, os direitos e deveres individuais e coletivos e os direitos sociais. Não há dúvidas de que a CF-88 inseriu extenso (e esparso) rol de direitos sociais, sendo que o qualificativo “social” não está exclusivamente vinculado a uma atuação positiva do Estado na promoção e na garantia de proteção e segurança social, porquanto também são sociais direitos que asseguram e protegem um espaço de liberdade ou mesmo de proteção de determinados bens jurídicos para segmentos sociais, como o direito dos trabalhadores. A CR 88 incluiu os direitos sociais no título dos direitos e garantias fundamentais (art. 6º e ss., complementado pelo título da ordem social). Até então, esses direitos eram tratados como normas programáticas; após, afirmaram-se como autênticos direitos fundamentais. Os direitos sociais também têm dupla fundamentalidade: formal (ao se inserir positivamente em texto constitucional ou em tratados internacionais firmados e incorporados) e material (ao se mostrarem projeção da dignidade humana). No sistema brasileiro, os direitos sociais também se encontram sob o regime material de aplicabilidade imediata (art. 5º, §1º, CF), a despeito da posição topográfica desta norma (inserida dentro do capítulo dos direitos e deveres individuais). Por outro lado, para além de uma interpretação literal do art. 60, §4º, CF, entende-se que esta regra de imunização visa a impedir a destruição dos elementos essenciais da Constituição, no particular, os direitos projetados da dignidade humana. Ademais, não existe na CF/88 uma rígida separação entre os direitos de liberdade e os direitos sociais, de modo a excluir estes últimos do rol de cláusulas pétreas. Diversamente dos direitos fundamentais clássicos, cujo conteúdo é determinado pela CF/88, a maior parte das normas consagradoras de direitos sociais “não definem aquilo que o cidadão pode exigir em juízo a partir delas”. Os direitos sociais — de implantação sempre onerosa— podem, então, ser realizados de várias formas e demandam“que se reconheça um vasto espaço de liberdade de conformação do legislador”, em razão do princípio democrático e da escassez de recursos (SARMENTO, 2010, pp. 564, 565 e 567). Destaca-se que “a cláusula da reserva do possível [...] encontra insuperável limitação na garantia [...] do mínimo existencial [...]. A noção de “mínimo existencial”, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos [...]. [DUDH], de 1948 (Artigo XXV). A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTRAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. - O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive.” (ARE 639337 AgR / SP, 2 T, 08.2011, rel. Celso Mello). 13 3.a. Relação entre o regime de proteção internacional de direitos humanos, o direito internacional humanitário, o direito de minorias, o direito de refugiados e o direito internacional penal. Direitos Humanos: garantias fundamentais, particularmente de natureza civil e política, inicialmente reconhecidas no plano interno dos países e que, ao depois, foram consagrados, em tratados e convenções, no plano internacional; Direito Humanitário: regulação do tratamento destinado aos soldados feridos ou náufragos, aos prisioneiros, ao pessoal voltado aos serviços de socorros e aos não combatentes, i.e., às populações civis em tempos de conflitos armados; Direitos dos Refugiados: regulação do direito de asilo ou de refúgio. Direito das Minorias: parte dos direitos humanos que se destina a proteger os direitos de membros de minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, ainda que não nacionais do Estado em que se encontram, assegurando-lhes o usufruto de sua cultura, a prática de sua religião e o uso de sua língua. Direito Internacional penal: conjunto de normas que possibilita a punição de crimes, delitos e infrações internacionais. Embora constituam regimes formalmente distintos – cada qual com sua peculiar normatização substantiva e processual – interagem de modo a formar um sistema funcionalmente integrado. No plano substantivo, essa interação revela-se, por exemplo, no art. 3, comum às quatro Convenções de Genebra sobre Direito Internacional Humanitário, que consagra direitos humanos básicos, uma pauta mínima de humanidade, a serem respeitados tanto em tempos de paz como em tempos de conflitos armados. Em igual senda, determinadas garantias fundamentais da pessoa humana encontram-se consagradas nos dois Protocolos Adicionais de 1977 às Convenções de Genebra. Também as normas relativas aos direitos inderrogáveis – art. 4(2) do Pacto de Direitos Civis e Políticos, art. 27 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 15(2) da Convenção Européia de Direitos Humanos, bem como o já mencionado art. 3 das Convenções de Genebra sobre Direito Internacional Humanitário –, que são aplicáveis indistintamente tanto no âmbito dos Dir. Humanos como no do Dir. Humanitário. O mesmo se passa com o Direito dos Refugiados (cuja existência deve-se, em grande medida, à violação de direitos humanos, que, por sua vez, gera a fuga de nacionais de seus países) e os Direitos Humanos. Aplicam- se, assim, as disposições relativas ao sistema de proteção dos Direitos Humanos antes do processo de solicitação de asilou ou refúgio, durante o seu curso e depois de seu término (na fase final das soluções duráveis). Dada a inter-relação acima assinalada, em nada surpreende que muitos dos direitos humanos universalmente consagrados se apliquem diretamente aos refugiados, por exemplo, os arts. 9 e 13-15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e o art. 12 do Pacto de Direitos Civis e Políticos). Em via de mão dupla, também preceitos do Direito dos Refugiados aplicam-se ao domínio dos Direitos Humanos, como é o caso do princípio da não-devolução (vide art. 33 da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados, art. 3 da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, e o art. 22(8) e (9) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos). No plano operacional, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – ACNUR e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha – CICV trabalham em conjunto para enfrentar questões atinentes aos direitos humanos e ao direito humanitário, inclusive com a prestação de assistência, por parte do CICV, a detidos ou prisioneiros políticos em decorrência não de guerra, mas de repressão política interna. Também em matéria de Direito dos Refugiados nota-se essa operação conjunta. A partir da criação do ACNUR, passou o CICV a exercer papel complementar ao daquele, nas diversas crises humanitárias ocorridas em diferentes partes do mundo. Em verdade, um sem-número de cláusulas das Convenções de Genebra e de seus Protocolos Adicionais lida especificamente com refugiados (i.e. arts. 44 e 70(2) da Convenção IV e art. 73 do Protocolo I) ou a eles se relacionam indiretamente (arts. 25-26, 45 e 49 da Convenção IV; art. 33 do Protocolo I; e art. 17 do Protocolo II). Ademais, resoluções adotadas por sucessivas Conferências Internacionais da Cruz Vermelha vezeiramente dispõem sobre a assistência a refugiados e deslocados. A aplicação das normas relativas ao Direito dos Refugiados e ao Direito Humanitário não exclui a aplicação concorrente das normas relativas aos Direitos Humanos (dado seu caráter de generalidade), o que restou reconhecido na II Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, junho de 1993). A obrigação passa a ser incondicional e partilhada por todos. Princípios comuns ao Direito Internacional dos Direitos Humanos e ao Direito Internacional Humanitário: inviolabilidade da pessoa (englobando o direito à vida, à integridade física e mental e aos atributos da personalidade); não-discriminação (de qualquer tipo); segurança da pessoa (abarcando a proibição de represálias, de penas coletivas e de tomada de reféns; observância das garantias judiciais, da inalienabilidade dos direitos e da responsabilidade individual). O chamado Direito das Minorias serve como contraponto e mitigação do Direito dos Povos. Enquanto este último relaciona-se com o direito das populações de se autogerirem e de se autodeterminarem, formando um Estado nacional, aquele – o Direito das Minorias – relaciona-se com os deveres cometidos à nação assim constituída, o Estado, no sentido de respeitar as eventuais particularidades religiosas, culturais ou lingüísticas de determinada parcela da população desse mesmo Estado. Assim, o direito de autodeterminação e de autogestão (Direito dos Povos) encontra-se juridicamente limitado pelo dever correlato de respeitar a livre expressão de eventuais minorias (Direito das Minorias). A matéria, depois do fim da Primeira Guerra, passou a ser objeto de acordos internacionais específicos, no âmbito da Liga das Nações e da ONU. A vigente Resolução 47/135, de 18 de dezembro de 1992, da Assembléia Geral da ONU, adota a “Declaração dos Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Lingüísticas”. Nesse documento, às minorias, em regra, não é reconhecida capacidade jurídica coletiva, isto é, não lhes é reconhecida personalidade jurídica de direito público internacional. Os direitos proclamados dirigem-se, precipuamente, aos indivíduos pertencentes a essas minorias. Entretanto, há concessões importantes ao reconhecimento da existência de direitos coletivos das minorias, como, porexemplo, o de “criar e gerir suas próprias associações” (art. 2, parágrafo 4). Esse reconhecimento, ainda que eventual, de direitos coletivos, é a novidade histórica trazida pela mencionada Resolução da ONU, que sinaliza, talvez, nova tendência para o tratamento futuro da matéria. Importante notar que o Direito das Minorias não autoriza movimentos em favor de secessão. A uma, porque seria contraditório com a própria idéia da existência da minoria. A duas, porque implicitamente vedado pelo art. 8, parágrafo 4, da própria Resolução 14 (i.e. que garante o princípio à manutenção da integridade territorial dos países pactantes). Outro ponto importante da referida Resolução é a ausência de definição legal do termo “minoria”, cujo conteúdo é alvo de acirrada e histórica controvérsia tanto de natureza política quanto doutrinária. De se destacar ainda uma gama de normas protetoras dos direitos dos povos indígenas (categoria minoritária específica), sobretudo a Convenção nº 169 da OIT. A violação a direitos humanos garantidos em tratados internacionais, como o são aqueles previstos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, pelo Direito Humanitário e pelo Direito dos Refugiados, pode gerar responsabilização penal internacional, conforme determinam as regras de competência complementar (princípio da complementaridade) do Tribunal Penal Internacional Permanente – TPIP, criado pelo Estatuto de Roma. No caso de países que não tenham aderido ao TPIP, pode-se cogitar da responsabilização penal mediante a constituição de Tribunais ad hoc, segundo decisão específica do Conselho de Segurança da ONU. Neste último caso, diferentemente do que ocorre com o TPIP, a competência do Tribunal Internacional revela primazia sobre a competência dos Tribunais nacionais. 15 3.b. Eficácia vertical e horizontal de direitos humanos ("Drittwirkung"). Obrigação de respeitar e de garantir respeito a direitos. Não há divergência em relação à projeção de direitos fundamentais sobre as relações entre os cidadãos e os poderes públicos, a denominada eficácia vertical dos direitos fundamentais. A eficácia horizontal (privada ou externa) refere-se à projeção dos direitos fundamentais às relações entre particulares. Teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais na esfera privada: Esta teoria foi defendida inicialmente na Alemanha na década de 50. Os direitos fundamentais podem ser invocados diretamente nas relações privadas, independentemente de qualquer mediação por parte do legislador, ressalvando-se a necessidade de ponderar o direito fundamental em jogo com a autonomia privada dos particulares envolvidos no caso. Parâmetros para a ponderação de interesses: o fato de os particulares serem também titulares de direitos fundamentais, desfrutando de autonomia privada constitucionalmente protegida, impõe uma série de adaptações e especificidades na incidência dos direitos humanos no campo privado. Quanto maior a desigualdade, mais intensa será a proteção do direito fundamental em jogo e menor a tutela da autonomia privada, variando a ponderação de interesses também em função da natureza da questão constitucional. No Brasil predomina a teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais na esfera privada, com a vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais, aceita pela maioria da doutrina (José Adércio, Sarmento, Barroso) e na jurisprudência é a tese que o STF vem adotando, antes sem mencionar diretamente tal teoria, mas já constando em julgados mais recentes (STF, RE 201819/RJ, Rel. p/ Acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 11/10/2005). Sobre a eficácia horizontal existem ainda as seguintes teorias: • Na Alemanha prevalece a teoria da eficácia indireta (mediata) dos direitos fundamentais na esfera privada, que nega a possibilidade de aplicação direta nas relações privadas, segundo essa teoria, a Constituição não investe os particulares em direitos subjetivos privados, mas ela contém normas objetivas, cujos efeitos de irradiação levam à impregnação das leis civis por valores constitucionais.Ao Judiciário sobraria o papel de preencher as cláusulas indeterminadas criadas pelo legislador, levando em consideração os direitos fundamentais ou rejeitar, por inconstitucionalidade, a aplicação de normas privadas incompatíveis com tais direitos. Prevalece tal teoria na Áustria e na França. • Teoria dos deveres de proteção. Na Alemanha, autores (Canaris, Isensee) consideram que o Estado tem a obrigação não apenas de abster-se de violar os direitos fundamentais, mas também de protegê-los diante de lesões e ameaças provenientes de terceiros, inclusive particulares; • Teoria da convergência estatista, de Jurgen Schwabe (Alemanha-1971): é sempre o Estado o responsável último por lesões a direitos fundamentais que têm origem nas relações privadas; • Robert Alexy tentou conciliar as correntes, pois todas elas reconhecem que as gradações da eficácia dos direitos decorrem da ponderação de interesses, propondo um modelo de três níveis de efeitos: o nível dos deveres do Estado, o nível dos direitos frente ao Estado e o nível de relação entre os particulares. Obrigação de respeito aos direitos humanos, para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, caracteriza-se como dever de caráter eminentemente negativo, de abstenção de condutas violadoras dos direitos humanos; continua a Corte, na sentença do Caso Velasquez Rodriguez, que o exercício da função pública tem limites que derivam dos direitos humanos, atributos inerentes à dignidade humana e em conseqüência, superiores ao poder do Estado (RAMOS,2004:41). Obrigação de garantia se relaciona com uma obrigação de fazer. Para a Corte Interamericana, ainda no Caso Velasquez Rodriguez, essa obrigação manifesta-se de forma preponderantemente positiva, tendo por conteúdo o dever dos Estados Partes de organizarem o “aparato governamental e, em geral, todas as estruturas através das quais se manifesta o exercício do poder público, de maneira tal que sejam capazes de assegurar juridicamente o livre e pleno exercício dos direitos humanos” (RAMOS,2004:42). 16 3.c. As Nações Unidas e a promoção universal dos direitos humanos: inteligência do art. 1º, para. (3), da Carta da ONU. Valor normativo da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Os países aliados, em outubro de 1944, reuniram-se na cidade de Dumbarton Oaks para estabelecer as diretrizes de uma nova organização internacional em que se garantisse a paz e a segurança internacional após a guerra. Essas diretrizes ficaram conhecidas como Dumbarton Oaks Proposals e serviram de inspiração para elaboração da Carta da ONU. O Dumbarton Oaks Proposals fazia referência apenas em uma passagem ao termo “direitos humanos”. Já a Carta das Nações Unidas, desenvolvendo melhor o tema, fez referência a mencionada expressão em 5 passagens: art. 1.º, parágrafo (3); art. 13, parágrafo (1), alínea (b); art. 55, alínea (c); art. 60; art. 62, parágrafo (2). Embora ocorram as citadas referências, a Carta da ONU não definiu em que consistiam “os direitos humanos”. Por isso, a Comissão responsável pela organização inicial da ONU, já em setembro/1945, recomendou ao Conselho Econômico e Social instituir uma Comissão de Direitos Humanos com a finalidade de elaboração de um “Bill of Rights” internacional e assim foi feito resultando na DUDH. A DUDH foi adotada por unanimidade fato que reforça sua força política. Dos 56 países representados na sessão da Assembléia, 48 votaram a favor e houve oito abstenções. É composta de 30 artigos. Combinou, de forma inédita, o discurso liberal com o discurso
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