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3. ARTE E CIÊNCIA: FUNÇÕES DO DESENHO EM LEONARDO DA VINCI Daniel Arasse Bem estabelecido durante sua vida, o prestígio de Leonardo da Vinci desenhista suscitou estudos especializados com frequência notável. Mas esse prestígio fez também negligenciar as profundas diferenças e, até, a aparente contradição que opõe, nele, a prática “científica” do desenho e sua prática “artística”, a do desenho preparatório para a obra da pintura. Na primeira, a linha, sua precisão e sua acuidade gráficas desempenham um papel decisivo na “demonstração” da verdade da observação. Em compensação, nos desenhos preparatórios para a obra artística, a revolução que introduz Leonardo na história do desenho se deve, como mostrou brilhantemente Ernest Gombrich, ao papel fundamental que ele confere ao componimento inculto ou “esboço informe”, para retomar a fórmula de André Chastel. A diferença manifesta entre esses dois tipos de desenho deve-se, sem dúvida, à sua finalidade diversificada: ilustração científica no caso do primeiro, obra de pintura no segundo.Entretanto, a afirmação, reiterada por Leonardo, do parentesco entre a arte e a ciência indica suficientemente que não se poderia ficar nisso. Três ordens de razões pelo menos nos levam a supor que existiria uma coerência íntima entre as diversas práticas gráficas de Leonardo: Leonardo inventa simultaneamente esses dois tipos de desenho e inaugura assim uma prática conjunta que só arbitrariamente se poderia separar. Como sublinhou, por exemplo, Erwin Panofsky, diferentemente de seus colegas que colocavam a “anatomia a serviço da arte”, Leonardo, pittore anatomista, coloca “a arte a serviço da anatomia”. As passagens de um tipo ao outro são frequentes nele. Não só o seu São Jerônimo se apresenta como estudo anatômico mais científico do que o de seus contemporâneos (os Pollaiuolo, entre outros), mas um desenho como o da Estrela de Belém, que poderia ser uma ilustração botânica propriamente científica, é de fato um estudo para o quadro de Leda, concebido como um ajuste de detalhe e, ao que tudo indica, desenhado segundo o esboço de conjunto. O próprio Leonardo sugere tal unidade quando afirma, no verso do fólio 1 do Codex Urbinas, que o desenho é o “fundamento” (princípio) da pintura e que esta vem a será mestra (insegna) das artes e das ciências: ela inventou os caracteres das diferentes escritas, “deu os números aos aritméticos, ensinou aos geômetras o traçado das figuras e instruiu ópticos, astrônomos, desenhistas de máquinas e engenheiros”. Proclamando que a pintura é uma “ciência divina”, Leonardo não falava, sem dúvida, levianamente, e esse tipo de fórmula convida seu intérprete a tentar separar a articulação que relacionava intimamente uma à outra suas práticas contrastadas do desenho. É essa articulação que eu gostaria de definir ao ensejo deste colóquio sobre Imagination und Wirklichkeit [Imaginação e Realidade], tentando situá-la no seio das concepções que Leonardo tinha da forma das coisas e da sua dupla apreensão, científica e artística. Dois textos de Leonardo que tratam do contorno dos corpos permitem encetar a reflexão. Neles Leonardo afirma, ao mesmo tempo, que o contorno revela a forma exata dos corpos e que ele é pouco visível, ou até invisível. Ele parece assim contradizer-se: como uma linha invisível poderia revelar uma forma exata? Mas essa tensão nos situa de vez no cerne da ideia que Leonardo tem da forma – e das relações que ele estabelece entre a arte e a ciência. No Manuscrito E (fólio 80r), ele constata a dificuldade que temos para perceber o contorno exato dos corpos: “Se os contornos verdadeiros [grifo meu] dos corpos opacos se confundem de perto, eles serão ainda menos visíveis de longe; e, como é pelos contornos que se revela a forma exata de todo corpo opaco, toda vez que a distância nos impedir de perceber o conjunto, a percepção de suas partes e contornos nos faltará ainda mais”. Essa constatação leva, no Manuscrito G (fólio 37r), a um conselho prático dirigido ao pintor: “Os limites laterais desses corpos são constituídos pela linha da superfície, linha de uma espessura invisível. Portanto, ó pintor, não limite os seus corpos num traço, especialmente as coisas menores que a natureza, pois não só elas não podem mostrar seus contornos laterais, mas à distância, suas próprias partes são invisíveis”. A comparação desses dois textos convida a formular uma dupla questão: De que ordem é a “verdade” do contorno, já que é invisível na realidade? De que natureza pode ser essa forma, ao mesmo tempo exata e invisível? Para responder a isso, abordaremos de início os desenhos científicos, e mais precisamente os desenhos anatômicos. Os especialistas da disciplina estudaram-nos atentamente e, para eles, Leonardo inventou a ilustração anatômica moderna quando trabalhava em 1500-1511, ao lado de Marcantonio Della Torre, professor de anatomia na Universidade de Pavia. O desenho em que Leonardo representa os músculos do braço e os vasos superficiais é assim considerado “perfeito” pelo anatomista moderno – que nele sabe reconhecer o que o profano não vê: “Entre as veias, nota-se a veia torácica lateral, um pequeno plexo mamário, a anastomose toracoepigástriga, ramos perfurantes tributários das veias torácicas internas, a veia epigástriga inferior superficial e talvez a circunflexa ilíaca superficial. Nota-se um vago traçado que lembra a terminação da veia safena interna. É provavelmente a primeira dissecção exata desse vaso”. Esse comentário coloca em plena luz a novidade radical da prática gráfica de Leonardo, “saber é saber ver”, é preciso acrescentar que para ele fazer saber é saber fazer ver. (É essa atitude que faz dele um pioneiro e, sem dúvida, o maior representante das ciências descritivas da Renascença.) Leonardo, aliás, está bem consciente da novidade do seu trabalho, como indica a introdução ao Tratado de Anatomia que ele projetava escrever: “Esse plano que eu fiz do corpo humano lhe será exposto como se você tivesse o homem verdadeiro na sua frente [...] Você tomará conhecimento de cada parte e de cada todo, por meio de uma demonstração de cada parte [...] Serão postas à sua frente três ou quatro demonstrações de cada parte sob diferentes aspectos, de modo que você tenha um conhecimento pleno e completo de tudo o que quer saber sobre a configuração do homem” (Windsor, RL, 19061r). Para esse tipo de “demonstrações” científicas, Leonardo elabora técnicas gráficas novas, particularmente complexas. Assim sua representação da estrutura profunda do ombro, desenhada em 1510-1511, associa três técnicas que correspondem a três tipos de análises diferentes: Nos dois desenhos situados no alto da folha, as partes são apresentadas separadas do conjunto para esclarecer as relações entre as estruturas profundas e superficiais. Como o desenho de baixo mostra apenas as estruturas profundas, os músculos são cortados no ponto em que sua presença tornaria a “demonstração” pouco legível. No desenho colocado no centro e à direita, os músculos são representados por meio de cordas para fazer perceber a estrutura espacial do conjunto. Como se sublinhou com frequência, essa prática do desenho de anatomia constitui uma novidade radical, em ruptura completa com as práticas contemporâneas dos manuais de anatomia. Convém, entretanto, matizar o seu caráter científico, no sentido atual desse termo. Esses desenhos comportam, com efeito, uma parte de ficção, e esta pode ir tão longe que algumas das “demonstrações” de Leonardo não correspondem a nada observado e nem sequer observável. Essa ficção pode ser, por vezes, legítima “cientificamente”,quando devida à preocupação pedagógica expressa na introdução do Tratado de Anatomia. Os desenhos científicos mais bem sucedidos de Leonardo constituem uma síntese de observações multiplicadas, e seu caráter de ilustração científica se deve precisamente a essa distância tomada em relação às singularidades próprias de cada objeto particular. A finalidade demonstrativa do desenho pode legitimar também ligeiras deformações que permitem mostrar melhor “numa única figura”. Assim, a célebre Visão Interna de Crânio, desenhada por volta de 1489, é constituída em função de dois pontos de vista diferentes, o que corresponde à base do crânio não se coadunando com o dos ossos da face. Para o anatomista, a imagem não permanece menos excepcionalmente “pertinente” – a ponto de ele se interrogar sobre a quantidade de dissecções que tiveram de ser sintetizadas para atingir esse desenho, no qual a descrição das estruturas é “essencialmente correta”. Essa folha, entretanto, merece toda atenção porque o “irrealismo” de seu aspecto é também uma consequência da concepção científica que informa o desenho. Como indica o texto que acompanha a imagem, Leonardo quer demonstrar aqui que o sensus communis está localizado no ventrículo anterior do cérebro, situado por sua vez no centro geométrico da cabeça: apoiado na representação dos eixos geométricos, essa “demonstração” se inspira na tradição que atribuía a cada faculdade mental uma cella ou cellula cerebral. Sem dúvida, essa visão interna do crânio faz parte dos primeiros estudos anatômicos de Leonardo, e, mais que seu “irrealismo”, importa sublinhar sua extraordinária modernidade de aspecto. Mas a vontade “demonstrativa” de Leonardo continua por muito tempo a suscitar anatomias fictícias. A célebre folha que representa Os Órgãos da Mulher data de cerca de 1509, e se para o historiador da arte ela constituiu “o apogeu dos estudos de vísceras do Manuscrito Anatômico B”, nela o anatomista destaca erros múltiplos e grosseiros; reconhece ai “os piores aspectos dos começos da ciência médica” e a imagem lhe causa o efeito de uma “criatura quase mística”. Nos anos 1510-1511, quando Leonardo trabalha com Marcantonio della Torre o “irrealismo” de seus desenhos se atenua. Longe de desaparecer, contudo, ele permanece um instrumento eficaz a serviço do que se poderia chamar a “persuasão demonstrativa” procurada pelo pittore anatomista, e reaparece com força após a morte de Marcantonio della Torre. Realizado por volta de 1511-1513, o desenho que representa O Feto e a Parede Interna do Útero é de excepcional modernidade em relação às representações contemporâneas equivalentes. Mas ele comporta pelo menos uma falsificação fundamental – que apenas um especialista atento, é verdade, pode detectar. Notavelmente observado, o feto humano é instalado numa placenta de tipo bovino, “cotiledôneo” e não “discoide”. Apesar de sua força persuasiva, a “demonstração” proposta, é, portanto, rigorosamente impossível e até cientificamente monstruosa. É que ela se baseia na teoria que Leonardo elabora contemporaneamente sobre a analogia entre todos os mamíferos, e, não tendo procurado dissecar uma placenta humana post partum, ele não resistiu ao desejo de representar “cientificamente” o que não tinha visto e que lhe era até impossível de ver “na realidade”. Em sua intenção e em suas motivações, esse desenho foi feito no mesmo espírito da famosa folha dita “do coito”, realizada por volta de 1492 (Windsor, RL 19097v) – cujo título científico (Acoplamento de um Hemicorpo Masculino e um Hemicorpo Feminino) basta para indicar até que ponto o que se mostra é inobservável na natureza, evidentemente fictício. Não se poderia, entretanto, basear a diferença entre desenho científico e desenho artístico em Leonardo na simples oposição, justa de todo modo, entre a abordagem científica, fundada na observação objetiva e a abordagem artística, baseada na fantasia e na invenção criativa. Há ainda algo que leva mais perto da unidade íntima, sempre proclamada por Leonardo, entre a arte e a ciência. Com efeito, nele a observação “objetiva” da natureza se traduz frequentemente pelo destaque dado a uma configuração típica, a forma espiralada do movimento, que se encontra igualmente na representação dos turbilhões de água, dos caracóis de cabelos, do movimento do pássaro em voo ou de certas formas vegetais. Os desenhos de dilúvio que Leonardo multiplica depois de 1513 manifestam muito claramente, aliás, a unidade indissolúvel da invenção criadora e da observação objetiva. Essa constatação levou Ernst Gombrich a considerar que os estudos de turbilhões de água não seriam apenas o resultado de uma observação, por mais atenta e minuciosa que fosse; eles representariam também “um esquema que figura as proposições teóricas de Leonardo mais do que uma espécie de instantaneidade executada por um par de olhos milagroso”. A observação procede: Leonardo ficou fascinado pela forma espiralada e viu nela uma espécie de configuração universal do movimento dinâmico da natureza. Essa fascinação, aliás, teve resultado, por volta de 1490-1492, num esboço do Codex Atlanticus que representa uma forma espiralada abstrata, em processo de formação. Lido da direita para a esquerda, no sentido segundo o qual ele foi desenhado, esse esboço mostra um movimento no processo de constituir uma forma, para se fixar finalmente numa espécie de mazzochio* espiralado. Ora, esse esboço, tão rápido quanto íntimo, é acompanhado de um comentário revelador: “Corpo nascido da perspectiva de Leonardo Vinci (sic), discípulo da experiência. Que esse corpo seja feito sem o exemplo de nenhum corpo, mas apenas com linhas simples”. Enquanto a primeira frase afirma (com orgulho) a submissão de Leonardo à experiência e à observação, a segunda dá a entender que foi inventado sem nenhum modelo. Incontestavelmente, a espiral constitui um “esquema teórico” fundamental da “experiência” que Leonardo tem do mundo. Porém, a fórmula de Gombrich não deixa de ser também demasiado sumária e simplificadora. Como mostrou David Rosand, os desenhos de turbilhões aquáticos de Leonard não aplicam um esquema teórico abstrato; é “desenhando que Leonardo consegue compreender, que sua visão é mais clara”. Com efeito, existe nele uma relação intrínseca entre a atividade do olhar, o ato gráfico e a revelação de uma forma pouco visível ou invisível na realidade. Longe de ser ume esquema teórico, a configuração dinâmica da espiral organiza conjuntamente a percepção do olho que olha e o movimento da mão que desenha: ela estrutura a visão cuja análise e síntese é produzida ao mesmo tempo pelo ato gráfico. Nesse sentido, o desenho não faz apenas chegar à inteligibilidade o real olhando; ele dá figura a uma configuração que estrutura e informa o olhar no processo de interrogar as aparências. Chega-se aqui àquilo que garante a coerência mais profunda entre desenho científico e desenho artístico em Leonardo. Na preparação para a obra de pintura, com efeito, o processo do componimento inculto faz igualmente chegar à figura uma forma vista imprecisamente, latente, à espera de ser libertada pela ação conjunta do olho e da mão. Como bem mostrou Gombrich, a revolução introduzida por Leonardo na técnica do desenho preparatório, se deve ao fato de que este já não consiste apenas em ajustar a ideia da obra antes de sua execução; em sua primeira fase, ele se torna em si mesmo, sob o olhar do desenhista, uma fonte de inspiração formal. O exemplo mais célebre dessa prática que chegou até nós é o desenho preparatório realizado por volta de 1499 para a primeira versão de Santa Ana, a Virgem e o Menino. O gesto entrecruzado,entrelaçado, repetido da mão produziu uma mancha ilegível, quase informe, um magma, um caos gráfico. A busca da forma acumulou e sedimentou a matéria gráfica. Mas esse caos é habitado pela forma procurada e, num dado momento, Leonardo marcou à ponta essa forma enterrada e depois, virando a folha, desenhou-a no verso, podia de novo trabalhar para alcançar o desenho final, o “cartão” hoje conservado na National Gallery de Londres. Nessa prática, o desenho constitui uma verdadeira matriz formal, evocando as famosas manchas nas paredes que Leonardo aconselha ao pintor olhar para ali encontrar inspiração: A última fórmula, que evoca a “forma nítida” que o pintor extrai do que ele vê, indica claramente o parentesco entre a prática do componimento inculto e a do pintor, que tendo a “ideia de imaginar alguma cena”, observa uma mancha informe numa parede. Uma diferença profunda, radical, distingue, contudo, essas duas práticas. A mancha na parede constitui uma matriz “natural”, exterior ao espírito do pintor; o componimento inculto é, em sua própria origem, produzido pela mão – e pelo espírito – do artista. Ele é “obsecado” pela forma que o desenhista busca ali. Radical, com efeito, essa diferença dá todo o seu sentido às fórmulas em que Leonardo exalta o caráter divino, a deita, da “ciência nítida” e completa, o pintor desempenha, em relação à sua obra, um papel equivalente àquele Deus na primeira fase da Criação. Longe de ser uma metáfora vaga ou uma comparação audaciosa, esse paralelo está de acordo com a descrição da primeira fase da Criação, tal como a concebe Pico della Mirandola em 1489 no seu comentário do Heptalus, e dos dois termos hebraicos, thohu e bohu, que designam esta primeira fase da Criação divina. Antes que Deus começasse a lhe dar forma, a matéria era, segundo São Jerônimo, “vaga e vazia”; segundo a Bíblia dos Setenta, ela era “não-visível e não-composta”. Para Pico, a primeira fase da Criação consiste em passar do thohu ao bohu, isto é, de uma “coisa bruta, surpreendente e espantosa” a um “esboço ou desbastamento da forma”. Após essa fase, durante a qual “o sopro do Senhor [...] gira e [...] põe em ação [...] as qualidades e disposições acidentais da matéria”, a Criação se realiza quando, “subitamente ao comando de Deus, tendo o demiurgo, o espírito [...] determinado o tema, se expandiu ‘a luz’, que é a beleza e o esplendor da forma”. Ora, como a primeira matéria informe, o thohu, já foi criada por Deus, essa concepção das fases iniciais da Criação divina evoca fortemente a prática de Leonardo quando ele passa do componimento inculto à forma “nítida”. Compreende-se, nesse contexto, que Leonardo possa ter pensado que “o caráter divino da pintura faz com que o espírito do pintor se transforme numa imagem do espírito de Deus”. Desenhos científicos e artísticos têm, portanto, em comum “inventar”, no sentido arqueológico do termo, uma forma no real: nos dois casos, a linha gráfica tem por função fazer chegar à figura uma forma, um contorno pouco visível (ou até invisível) na realidade, latente no fluxo das aparências. Mas o desenho preparatório para a obra de arte não se detém nessa linha pura. Após ter extraído do caos criado por sua mão a forma que ali procurava, Leonardo faz desaparecer a linha de seu contorno, pois, como ele próprio escreve, ela é de uma espessura imaterial e não é vista na natureza. Em três fases, portanto, criando primeiro o componimento inculto, extraindo em seguida a linha pura da forma, depois, nos últimos desenhos preparatórios e na obra final, apagando essa mesma linha para obter o efeito visual do sfumato, em que o contorno esfumado mergulha a figura na continuidade luminosa do campo e suscita, segundo a fórmula de André Chastel, um “efeito difuso de emergência”, a “ciência da pintura” representa a própria visibilidade da natureza tal como ele se dá a ver, uma visibilidade fundada não nas linhas, mas no jogo sempre cambiante das sombras e das luzes, pois, como escreve ademais Leonardo, é a sombra que “manifesta a forma dos corpos” e essas formas “não mostrariam suas particularidades sem a sombra” (B. N. 2038, 22a). No desenho científico, ao contrário, a verdade que procura a representação é a da “forma exata” dos objetos, embora ela não seja discernível na natureza. A linha gráfica isola e recorta, portanto, mesmo invisível na continuidade das sombras e das luzes, o contorno das coisas. Essa linha nem por isso é falsa: ficção para o olhar do que se vê, é um sinal convencional, uma construção que inventa a objetividade fixa do objeto – e sua eficácia demonstrativa se deve precisamente ao fato de ela colocar diante dos olhos o que não é visível na realidade. Por isso mesmo, entretanto, a “demonstração” que propõe o desenho científico e de ordem retórica e persuasiva. Colocando diante dos olhos o que não é visível na realidade, o desenho científico realiza, mutatis mutandis, o que fazem as imagens no discurso do orador em que, segundo Quintiliano, elas permitem essa “enargeia, o que Cícero chama ilustrativo ou evidentia, que parece menos dizer do que mostrar e que nos afeta como se estivéssemos no meio das coisas”. Quer se refiram à anatomia humana ou animal, aos movimentos da água ou às máquinas do engenheiro, os desenhos científicos e técnicos de Leonardo visam esse destinatário ser o próprio Leonardo, como bem demonstram seus diversos desenhos de máquinas voadoras. No domínio da “ciência da pintura”, no fim de seu longo processo criado, a prática artística do desenho tem também como objetivo demonstrar retoricamente sua ciência – em sua capacidade, dessa vez, de fazer emergir a figura do fundo no qual ela se inscreve (do “campo”, como escreve Leonardo) e de sua continuidade luminosa para lhe dar a aparência convincente da vida. Pintado por volta de 1508- 1509, obra “paradigmática” segundo Carlo Pedretti, o São João Batista do Louvre mostra com uma clareza especial as vantagens dessa prática: um movimento espiralado anima interiormente a figura, que surge, viva, do fundo obscuro sem que nenhuma linha de contorno a distinga nem a destaque dele. Dando a suas figuras “um terribil movenzia [...] per uma certa oscurità di ombre ben intese”, Leonardo cumpre aquilo que é desde Plínio, o Velho, o próprio objetivo da pintura e sua “mais extrema sutileza”, no que se sobressaía Parrásio: a capacidade para fazer com que “o contorno [extremitas] se envolva a si mesmo e termine de tal modo que prometa outra coisa por trás dele e mostre até mesmo o que ele oculta”. A intenção retórica que anima essa prática do desenho a relaciona com o contexto geral da teoria artística contemporânea que, de Alberti a Gauricus, tende a fazer cada vez mais da retórica um modelo da arte da pintura. Se, para Leonardo, a arte é, com efeito, uma ciência, a ciência é também, aos seus olhos, uma arte – o que não poderia surpreender, pois as ciências da Renascença são, antes de mais nada, descritivas, e nesse sentido os artistas desempenham ali um papel importante. Mas há mais: a qualidade retórica que aproxima os diversos tipos de desenhos praticados por Leonardo esclarece também a concepção conjunta que ele tinha da forma das coisas tais como aparecem no mundo e do conhecimento que se pode, através dela, adquirir do real. Leonardo não explicitou verbalmente essa concepção, mas lhe deu, desenhando, figura – e essa figura evoca, de modo muito notável, ao mesmo tempo a teoria da linguagem dos sofistas gregos e a da realidade em Heráclito (e, numa medida menor, Demócrito). Não se trata aqui, evidentemente, de fazer de Leonardo um discípulo dos pensadores gregos. Trata-se, antes, de perceber como, na linha do parentescoque outrora realçou Giorgio de Santillana entre o pensamento ou a escrita de Leonardo e as dos filósofos jônicos, sua prática do desenho olustra u pensamento do real (e de seu conhecimento) semelhante ao que eles tinham formulado. Para os sofistas, Protágoras e Górgias em particular, “só os nomes dão coisas suas consistência própria, recortando-as de algum modo na matéria amorfa e indeterminada”, e “é por seu poder de conceder sentido às palavras e de recortar assim o fixo no movente que o homem é o órgão de determinação do real”. Ora, da linha segura do desenho científico à busca do sfumato que orienta sua prática artística desse mesmo desenho, encontra-se em Leonardo o mesmo sentimento do real, de sua fluidez essencial e de sua determinação “objetiva”. Em outros termos, do mesmo modo que, para os sofistas, o homem se apropria das aparências flutuantes submetendo-se às ordens do discurso, assim também o ato gráfico de Leonardo em sua prática científica se apropria do fluxo das aparências e organiza na ordem da linha. Por outro lado, ao se pensar que, como as palavras para os sofistas, a linha gráfica tem como função, em Leonardo, “recortar o fixo no movente”, fica esclarecida a concepção, coerente e contrastada, da forma que se revela em sua prática do desenho. Esta concordo, de novo, com o que exprimiam, entre os pré-socráticos, os dois termos ruthmos e schèma. Como mostrou Emile Beneviste, antes que Platão desse ao ruthmos seu sentido moderno de “forma do movimento” determinada por uma medida submetida a uma ordem, o termo designava um certo tipo de forma. Enquanto o schèma designava uma forma “fixa, realizada, colocada como um objeto”, o ruthmos significava a “forma no instante em que ela é assumida pelo que é movente, móvel, fluido”. Leonardo não conhecia, evidentemente, o pensamento de Heráclito ou o vocabulário de Demócrito, mas essa apreensão contrastada da forma não está sendo no cerne de sua dupla prática do desenho. Ela explica sua coerência dialética profunda, ao mesmo tempo que atribui a cada uma delas sua função específica: o desenho científico extrai o schèma das coisas, sua forma “fixa, realizada, colocada como um objeto”: o desenho artístico, cujo processo criador se realiza na obra pintada, procura fazer perceber o ruthmos no visível, fazer emergir a forma como aquilo é assumido pela mobilidade infinita do mundo. Poder-se-ia, para apoiar essa interpretação, evocar as diversas páginas nas quais Leonardo volta à ideia de que os corpos “nascem do movimento” na medida em que a linha é engendrada pelo movimento do ponto, a superfície pelo movimento da linha e o corpo pelo movimento das superfícies (Codex Arundel, 159v). Poder-se-ia também evocar as Metamorfoses de Ovídio (que Leonardo conhecia bem)e, em particular, o grande discurso que, no Livro XV, o poeta latino empresta a Pitágoras – para o qual “toda forma é uma imagem errante” (omnis vagans formatur imago). Mas aqui bastará evocar o duplo retrato de Heráclito e de Demócrito pintado por Bramante em Milão por volta de 1485-1490: como mostrou Carlo Pedretti, é bastante provável que, sob os traços dos dois filósofos jônicos, Bramante pintara seu autorretrato em Demócrito, dando ao mesmo tempo a Heráclito os traços de Leonardo. Assim, melhor que uma análise de texto – e numa época em que a cultura e sua transmissão eram em grande parte orais –, o afresco de Bramante mostra que Leonardo, novo Apeles e Parrásio moderno, podia também passar, aos olhos de alguns de seus contemporâneos, por um Heráclito redivivus.
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