Buscar

Arte e Ciência. ARASSE, Daniel.

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 11 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 11 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 11 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

3. ARTE E CIÊNCIA: FUNÇÕES DO DESENHO EM LEONARDO DA VINCI 
 
 
Daniel Arasse 
Bem estabelecido durante sua vida, o prestígio de Leonardo da Vinci desenhista 
suscitou estudos especializados com frequência notável. Mas esse prestígio fez 
também negligenciar as profundas diferenças e, até, a aparente contradição que 
opõe, nele, a prática “científica” do desenho e sua prática “artística”, a do desenho 
preparatório para a obra da pintura. Na primeira, a linha, sua precisão e sua acuidade 
gráficas desempenham um papel decisivo na “demonstração” da verdade da 
observação. Em compensação, nos desenhos preparatórios para a obra artística, a 
revolução que introduz Leonardo na história do desenho se deve, como mostrou 
brilhantemente Ernest Gombrich, ao papel fundamental que ele confere ao 
componimento inculto ou “esboço informe”, para retomar a fórmula de André 
Chastel. A diferença manifesta entre esses dois tipos de desenho deve-se, sem 
dúvida, à sua finalidade diversificada: ilustração científica no caso do primeiro, obra 
de pintura no segundo.Entretanto, a afirmação, reiterada por Leonardo, do 
parentesco entre a arte e a ciência indica suficientemente que não se poderia ficar 
nisso. Três ordens de razões pelo menos nos levam a supor que existiria uma 
coerência íntima entre as diversas práticas gráficas de Leonardo: 
 Leonardo inventa simultaneamente esses dois tipos de desenho e inaugura 
assim uma prática conjunta que só arbitrariamente se poderia separar. Como 
sublinhou, por exemplo, Erwin Panofsky, diferentemente de seus colegas que 
colocavam a “anatomia a serviço da arte”, Leonardo, pittore anatomista, coloca “a 
arte a serviço da anatomia”. 
 As passagens de um tipo ao outro são frequentes nele. Não só o seu São 
Jerônimo se apresenta como estudo anatômico mais científico do que o de seus 
contemporâneos (os Pollaiuolo, entre outros), mas um desenho como o da Estrela de 
Belém, que poderia ser uma ilustração botânica propriamente científica, é de fato um 
estudo para o quadro de Leda, concebido como um ajuste de detalhe e, ao que tudo 
indica, desenhado segundo o esboço de conjunto. 
 O próprio Leonardo sugere tal unidade quando afirma, no verso do fólio 1 do 
Codex Urbinas, que o desenho é o “fundamento” (princípio) da pintura e que esta 
vem a será mestra (insegna) das artes e das ciências: ela inventou os caracteres das 
diferentes escritas, “deu os números aos aritméticos, ensinou aos geômetras o 
traçado das figuras e instruiu ópticos, astrônomos, desenhistas de máquinas e 
engenheiros”. 
Proclamando que a pintura é uma “ciência divina”, Leonardo não falava, sem 
dúvida, levianamente, e esse tipo de fórmula convida seu intérprete a tentar separar 
a articulação que relacionava intimamente uma à outra suas práticas contrastadas do 
desenho. É essa articulação que eu gostaria de definir ao ensejo deste colóquio sobre 
Imagination und Wirklichkeit [Imaginação e Realidade], tentando situá-la no seio das 
concepções que Leonardo tinha da forma das coisas e da sua dupla apreensão, 
científica e artística. 
Dois textos de Leonardo que tratam do contorno dos corpos permitem encetar a 
reflexão. Neles Leonardo afirma, ao mesmo tempo, que o contorno revela a forma 
exata dos corpos e que ele é pouco visível, ou até invisível. Ele parece assim 
contradizer-se: como uma linha invisível poderia revelar uma forma exata? Mas essa 
tensão nos situa de vez no cerne da ideia que Leonardo tem da forma – e das 
relações que ele estabelece entre a arte e a ciência. No Manuscrito E (fólio 80r), ele 
constata a dificuldade que temos para perceber o contorno exato dos corpos: “Se os 
contornos verdadeiros [grifo meu] dos corpos opacos se confundem de perto, eles 
serão ainda menos visíveis de longe; e, como é pelos contornos que se revela a forma 
exata de todo corpo opaco, toda vez que a distância nos impedir de perceber o 
conjunto, a percepção de suas partes e contornos nos faltará ainda mais”. Essa 
constatação leva, no Manuscrito G (fólio 37r), a um conselho prático dirigido ao 
pintor: “Os limites laterais desses corpos são constituídos pela linha da superfície, 
linha de uma espessura invisível. Portanto, ó pintor, não limite os seus corpos num 
traço, especialmente as coisas menores que a natureza, pois não só elas não podem 
mostrar seus contornos laterais, mas à distância, suas próprias partes são invisíveis”. 
A comparação desses dois textos convida a formular uma dupla questão: De que 
ordem é a “verdade” do contorno, já que é invisível na realidade? De que natureza 
pode ser essa forma, ao mesmo tempo exata e invisível? 
Para responder a isso, abordaremos de início os desenhos científicos, e mais 
precisamente os desenhos anatômicos. Os especialistas da disciplina estudaram-nos 
atentamente e, para eles, Leonardo inventou a ilustração anatômica moderna 
quando trabalhava em 1500-1511, ao lado de Marcantonio Della Torre, professor de 
anatomia na Universidade de Pavia. O desenho em que Leonardo representa os 
músculos do braço e os vasos superficiais é assim considerado “perfeito” pelo 
anatomista moderno – que nele sabe reconhecer o que o profano não vê: “Entre as 
veias, nota-se a veia torácica lateral, um pequeno plexo mamário, a anastomose 
toracoepigástriga, ramos perfurantes tributários das veias torácicas internas, a veia 
epigástriga inferior superficial e talvez a circunflexa ilíaca superficial. Nota-se um vago 
traçado que lembra a terminação da veia safena interna. É provavelmente a primeira 
dissecção exata desse vaso”. Esse comentário coloca em plena luz a novidade radical 
da prática gráfica de Leonardo, “saber é saber ver”, é preciso acrescentar que para 
ele fazer saber é saber fazer ver. (É essa atitude que faz dele um pioneiro e, sem 
dúvida, o maior representante das ciências descritivas da Renascença.) Leonardo, 
aliás, está bem consciente da novidade do seu trabalho, como indica a introdução ao 
Tratado de Anatomia que ele projetava escrever: “Esse plano que eu fiz do corpo 
humano lhe será exposto como se você tivesse o homem verdadeiro na sua frente 
[...] Você tomará conhecimento de cada parte e de cada todo, por meio de uma 
demonstração de cada parte [...] Serão postas à sua frente três ou quatro 
demonstrações de cada parte sob diferentes aspectos, de modo que você tenha um 
conhecimento pleno e completo de tudo o que quer saber sobre a configuração do 
homem” (Windsor, RL, 19061r). 
Para esse tipo de “demonstrações” científicas, Leonardo elabora técnicas 
gráficas novas, particularmente complexas. Assim sua representação da estrutura 
profunda do ombro, desenhada em 1510-1511, associa três técnicas que 
correspondem a três tipos de análises diferentes: 
 Nos dois desenhos situados no alto da folha, as partes são apresentadas 
separadas do conjunto para esclarecer as relações entre as estruturas 
profundas e superficiais. 
 Como o desenho de baixo mostra apenas as estruturas profundas, os 
músculos são cortados no ponto em que sua presença tornaria a 
“demonstração” pouco legível. 
 No desenho colocado no centro e à direita, os músculos são 
representados por meio de cordas para fazer perceber a estrutura 
espacial do conjunto. 
Como se sublinhou com frequência, essa prática do desenho de anatomia 
constitui uma novidade radical, em ruptura completa com as práticas 
contemporâneas dos manuais de anatomia. Convém, entretanto, matizar o seu 
caráter científico, no sentido atual desse termo. Esses desenhos comportam, com 
efeito, uma parte de ficção, e esta pode ir tão longe que algumas das 
“demonstrações” de Leonardo não correspondem a nada observado e nem sequer 
observável. Essa ficção pode ser, por vezes, legítima “cientificamente”,quando 
devida à preocupação pedagógica expressa na introdução do Tratado de Anatomia. 
Os desenhos científicos mais bem sucedidos de Leonardo constituem uma 
síntese de observações multiplicadas, e seu caráter de ilustração científica se deve 
precisamente a essa distância tomada em relação às singularidades próprias de cada 
objeto particular. A finalidade demonstrativa do desenho pode legitimar também 
ligeiras deformações que permitem mostrar melhor “numa única figura”. Assim, a 
célebre Visão Interna de Crânio, desenhada por volta de 1489, é constituída em 
função de dois pontos de vista diferentes, o que corresponde à base do crânio não se 
coadunando com o dos ossos da face. Para o anatomista, a imagem não permanece 
menos excepcionalmente “pertinente” – a ponto de ele se interrogar sobre a 
quantidade de dissecções que tiveram de ser sintetizadas para atingir esse desenho, 
no qual a descrição das estruturas é “essencialmente correta”. 
Essa folha, entretanto, merece toda atenção porque o “irrealismo” de seu 
aspecto é também uma consequência da concepção científica que informa o 
desenho. Como indica o texto que acompanha a imagem, Leonardo quer demonstrar 
aqui que o sensus communis está localizado no ventrículo anterior do cérebro, 
situado por sua vez no centro geométrico da cabeça: apoiado na representação dos 
eixos geométricos, essa “demonstração” se inspira na tradição que atribuía a cada 
faculdade mental uma cella ou cellula cerebral. Sem dúvida, essa visão interna do 
crânio faz parte dos primeiros estudos anatômicos de Leonardo, e, mais que seu 
“irrealismo”, importa sublinhar sua extraordinária modernidade de aspecto. Mas a 
vontade “demonstrativa” de Leonardo continua por muito tempo a suscitar 
anatomias fictícias. A célebre folha que representa Os Órgãos da Mulher data de 
cerca de 1509, e se para o historiador da arte ela constituiu “o apogeu dos estudos de 
vísceras do Manuscrito Anatômico B”, nela o anatomista destaca erros múltiplos e 
grosseiros; reconhece ai “os piores aspectos dos começos da ciência médica” e a 
imagem lhe causa o efeito de uma “criatura quase mística”. Nos anos 1510-1511, 
quando Leonardo trabalha com Marcantonio della Torre o “irrealismo” de seus 
desenhos se atenua. Longe de desaparecer, contudo, ele permanece um instrumento 
eficaz a serviço do que se poderia chamar a “persuasão demonstrativa” procurada 
pelo pittore anatomista, e reaparece com força após a morte de Marcantonio della 
Torre. Realizado por volta de 1511-1513, o desenho que representa O Feto e a Parede 
Interna do Útero é de excepcional modernidade em relação às representações 
contemporâneas equivalentes. Mas ele comporta pelo menos uma falsificação 
fundamental – que apenas um especialista atento, é verdade, pode detectar. 
Notavelmente observado, o feto humano é instalado numa placenta de tipo bovino, 
“cotiledôneo” e não “discoide”. Apesar de sua força persuasiva, a “demonstração” 
proposta, é, portanto, rigorosamente impossível e até cientificamente monstruosa. É 
que ela se baseia na teoria que Leonardo elabora contemporaneamente sobre a 
analogia entre todos os mamíferos, e, não tendo procurado dissecar uma placenta 
humana post partum, ele não resistiu ao desejo de representar “cientificamente” o 
que não tinha visto e que lhe era até impossível de ver “na realidade”. Em sua 
intenção e em suas motivações, esse desenho foi feito no mesmo espírito da famosa 
folha dita “do coito”, realizada por volta de 1492 (Windsor, RL 19097v) – cujo título 
científico (Acoplamento de um Hemicorpo Masculino e um Hemicorpo Feminino) 
basta para indicar até que ponto o que se mostra é inobservável na natureza, 
evidentemente fictício. 
 Não se poderia, entretanto, basear a diferença entre desenho científico e 
desenho artístico em Leonardo na simples oposição, justa de todo modo, entre a 
abordagem científica, fundada na observação objetiva e a abordagem artística, 
baseada na fantasia e na invenção criativa. Há ainda algo que leva mais perto da 
unidade íntima, sempre proclamada por Leonardo, entre a arte e a ciência. Com 
efeito, nele a observação “objetiva” da natureza se traduz frequentemente pelo 
destaque dado a uma configuração típica, a forma espiralada do movimento, que se 
encontra igualmente na representação dos turbilhões de água, dos caracóis de 
cabelos, do movimento do pássaro em voo ou de certas formas vegetais. Os 
desenhos de dilúvio que Leonardo multiplica depois de 1513 manifestam muito 
claramente, aliás, a unidade indissolúvel da invenção criadora e da observação 
objetiva. Essa constatação levou Ernst Gombrich a considerar que os estudos de 
turbilhões de água não seriam apenas o resultado de uma observação, por mais 
atenta e minuciosa que fosse; eles representariam também “um esquema que figura 
as proposições teóricas de Leonardo mais do que uma espécie de instantaneidade 
executada por um par de olhos milagroso”. 
A observação procede: Leonardo ficou fascinado pela forma espiralada e viu nela 
uma espécie de configuração universal do movimento dinâmico da natureza. Essa 
fascinação, aliás, teve resultado, por volta de 1490-1492, num esboço do Codex 
Atlanticus que representa uma forma espiralada abstrata, em processo de formação. 
Lido da direita para a esquerda, no sentido segundo o qual ele foi desenhado, esse 
esboço mostra um movimento no processo de constituir uma forma, para se fixar 
finalmente numa espécie de mazzochio* espiralado. Ora, esse esboço, tão rápido 
quanto íntimo, é acompanhado de um comentário revelador: “Corpo nascido da 
perspectiva de Leonardo Vinci (sic), discípulo da experiência. Que esse corpo seja 
feito sem o exemplo de nenhum corpo, mas apenas com linhas simples”. Enquanto a 
primeira frase afirma (com orgulho) a submissão de Leonardo à experiência e à 
observação, a segunda dá a entender que foi inventado sem nenhum modelo. 
Incontestavelmente, a espiral constitui um “esquema teórico” fundamental da 
“experiência” que Leonardo tem do mundo. 
Porém, a fórmula de Gombrich não deixa de ser também demasiado sumária e 
simplificadora. Como mostrou David Rosand, os desenhos de turbilhões aquáticos de 
Leonard não aplicam um esquema teórico abstrato; é “desenhando que Leonardo 
consegue compreender, que sua visão é mais clara”. Com efeito, existe nele uma 
relação intrínseca entre a atividade do olhar, o ato gráfico e a revelação de uma 
forma pouco visível ou invisível na realidade. Longe de ser ume esquema teórico, a 
configuração dinâmica da espiral organiza conjuntamente a percepção do olho que 
olha e o movimento da mão que desenha: ela estrutura a visão cuja análise e síntese 
é produzida ao mesmo tempo pelo ato gráfico. Nesse sentido, o desenho não faz 
apenas chegar à inteligibilidade o real olhando; ele dá figura a uma configuração que 
estrutura e informa o olhar no processo de interrogar as aparências. 
Chega-se aqui àquilo que garante a coerência mais profunda entre desenho 
científico e desenho artístico em Leonardo. Na preparação para a obra de pintura, 
com efeito, o processo do componimento inculto faz igualmente chegar à figura uma 
forma vista imprecisamente, latente, à espera de ser libertada pela ação conjunta do 
olho e da mão. Como bem mostrou Gombrich, a revolução introduzida por Leonardo 
na técnica do desenho preparatório, se deve ao fato de que este já não consiste 
apenas em ajustar a ideia da obra antes de sua execução; em sua primeira fase, ele se 
torna em si mesmo, sob o olhar do desenhista, uma fonte de inspiração formal. O 
exemplo mais célebre dessa prática que chegou até nós é o desenho preparatório 
realizado por volta de 1499 para a primeira versão de Santa Ana, a Virgem e o 
Menino. O gesto entrecruzado,entrelaçado, repetido da mão produziu uma mancha 
ilegível, quase informe, um magma, um caos gráfico. A busca da forma acumulou e 
sedimentou a matéria gráfica. Mas esse caos é habitado pela forma procurada e, num 
dado momento, Leonardo marcou à ponta essa forma enterrada e depois, virando a 
folha, desenhou-a no verso, podia de novo trabalhar para alcançar o desenho final, o 
“cartão” hoje conservado na National Gallery de Londres. 
Nessa prática, o desenho constitui uma verdadeira matriz formal, evocando as 
famosas manchas nas paredes que Leonardo aconselha ao pintor olhar para ali 
encontrar inspiração: A última fórmula, que evoca a “forma nítida” que o pintor extrai 
do que ele vê, indica claramente o parentesco entre a prática do componimento 
inculto e a do pintor, que tendo a “ideia de imaginar alguma cena”, observa uma 
mancha informe numa parede. Uma diferença profunda, radical, distingue, contudo, 
essas duas práticas. A mancha na parede constitui uma matriz “natural”, exterior ao 
espírito do pintor; o componimento inculto é, em sua própria origem, produzido pela 
mão – e pelo espírito – do artista. Ele é “obsecado” pela forma que o desenhista 
busca ali. Radical, com efeito, essa diferença dá todo o seu sentido às fórmulas em 
que Leonardo exalta o caráter divino, a deita, da “ciência nítida” e completa, o pintor 
desempenha, em relação à sua obra, um papel equivalente àquele Deus na primeira 
fase da Criação. Longe de ser uma metáfora vaga ou uma comparação audaciosa, 
esse paralelo está de acordo com a descrição da primeira fase da Criação, tal como a 
concebe Pico della Mirandola em 1489 no seu comentário do Heptalus, e dos dois 
termos hebraicos, thohu e bohu, que designam esta primeira fase da Criação divina. 
Antes que Deus começasse a lhe dar forma, a matéria era, segundo São Jerônimo, 
“vaga e vazia”; segundo a Bíblia dos Setenta, ela era “não-visível e não-composta”. 
Para Pico, a primeira fase da Criação consiste em passar do thohu ao bohu, isto é, de 
uma “coisa bruta, surpreendente e espantosa” a um “esboço ou desbastamento da 
forma”. Após essa fase, durante a qual “o sopro do Senhor [...] gira e [...] põe em ação 
[...] as qualidades e disposições acidentais da matéria”, a Criação se realiza quando, 
“subitamente ao comando de Deus, tendo o demiurgo, o espírito [...] determinado o 
tema, se expandiu ‘a luz’, que é a beleza e o esplendor da forma”. Ora, como a 
primeira matéria informe, o thohu, já foi criada por Deus, essa concepção das fases 
iniciais da Criação divina evoca fortemente a prática de Leonardo quando ele passa 
do componimento inculto à forma “nítida”. Compreende-se, nesse contexto, que 
Leonardo possa ter pensado que “o caráter divino da pintura faz com que o espírito 
do pintor se transforme numa imagem do espírito de Deus”. 
Desenhos científicos e artísticos têm, portanto, em comum “inventar”, no 
sentido arqueológico do termo, uma forma no real: nos dois casos, a linha gráfica tem 
por função fazer chegar à figura uma forma, um contorno pouco visível (ou até 
invisível) na realidade, latente no fluxo das aparências. Mas o desenho preparatório 
para a obra de arte não se detém nessa linha pura. Após ter extraído do caos criado 
por sua mão a forma que ali procurava, Leonardo faz desaparecer a linha de seu 
contorno, pois, como ele próprio escreve, ela é de uma espessura imaterial e não é 
vista na natureza. Em três fases, portanto, criando primeiro o componimento inculto, 
extraindo em seguida a linha pura da forma, depois, nos últimos desenhos 
preparatórios e na obra final, apagando essa mesma linha para obter o efeito visual 
do sfumato, em que o contorno esfumado mergulha a figura na continuidade 
luminosa do campo e suscita, segundo a fórmula de André Chastel, um “efeito difuso 
de emergência”, a “ciência da pintura” representa a própria visibilidade da natureza 
tal como ele se dá a ver, uma visibilidade fundada não nas linhas, mas no jogo sempre 
cambiante das sombras e das luzes, pois, como escreve ademais Leonardo, é a 
sombra que “manifesta a forma dos corpos” e essas formas “não mostrariam suas 
particularidades sem a sombra” (B. N. 2038, 22a). 
No desenho científico, ao contrário, a verdade que procura a representação é a 
da “forma exata” dos objetos, embora ela não seja discernível na natureza. A linha 
gráfica isola e recorta, portanto, mesmo invisível na continuidade das sombras e das 
luzes, o contorno das coisas. Essa linha nem por isso é falsa: ficção para o olhar do 
que se vê, é um sinal convencional, uma construção que inventa a objetividade fixa 
do objeto – e sua eficácia demonstrativa se deve precisamente ao fato de ela colocar 
diante dos olhos o que não é visível na realidade. Por isso mesmo, entretanto, a 
“demonstração” que propõe o desenho científico e de ordem retórica e persuasiva. 
Colocando diante dos olhos o que não é visível na realidade, o desenho científico 
realiza, mutatis mutandis, o que fazem as imagens no discurso do orador em que, 
segundo Quintiliano, elas permitem essa “enargeia, o que Cícero chama ilustrativo ou 
evidentia, que parece menos dizer do que mostrar e que nos afeta como se 
estivéssemos no meio das coisas”. Quer se refiram à anatomia humana ou animal, 
aos movimentos da água ou às máquinas do engenheiro, os desenhos científicos e 
técnicos de Leonardo visam esse destinatário ser o próprio Leonardo, como bem 
demonstram seus diversos desenhos de máquinas voadoras. 
No domínio da “ciência da pintura”, no fim de seu longo processo criado, a 
prática artística do desenho tem também como objetivo demonstrar retoricamente 
sua ciência – em sua capacidade, dessa vez, de fazer emergir a figura do fundo no 
qual ela se inscreve (do “campo”, como escreve Leonardo) e de sua continuidade 
luminosa para lhe dar a aparência convincente da vida. Pintado por volta de 1508-
1509, obra “paradigmática” segundo Carlo Pedretti, o São João Batista do Louvre 
mostra com uma clareza especial as vantagens dessa prática: um movimento 
espiralado anima interiormente a figura, que surge, viva, do fundo obscuro sem que 
nenhuma linha de contorno a distinga nem a destaque dele. Dando a suas figuras 
“um terribil movenzia [...] per uma certa oscurità di ombre ben intese”, Leonardo 
cumpre aquilo que é desde Plínio, o Velho, o próprio objetivo da pintura e sua “mais 
extrema sutileza”, no que se sobressaía Parrásio: a capacidade para fazer com que “o 
contorno [extremitas] se envolva a si mesmo e termine de tal modo que prometa 
outra coisa por trás dele e mostre até mesmo o que ele oculta”. 
A intenção retórica que anima essa prática do desenho a relaciona com o 
contexto geral da teoria artística contemporânea que, de Alberti a Gauricus, tende a 
fazer cada vez mais da retórica um modelo da arte da pintura. Se, para Leonardo, a 
arte é, com efeito, uma ciência, a ciência é também, aos seus olhos, uma arte – o que 
não poderia surpreender, pois as ciências da Renascença são, antes de mais nada, 
descritivas, e nesse sentido os artistas desempenham ali um papel importante. Mas 
há mais: a qualidade retórica que aproxima os diversos tipos de desenhos praticados 
por Leonardo esclarece também a concepção conjunta que ele tinha da forma das 
coisas tais como aparecem no mundo e do conhecimento que se pode, através dela, 
adquirir do real. Leonardo não explicitou verbalmente essa concepção, mas lhe deu, 
desenhando, figura – e essa figura evoca, de modo muito notável, ao mesmo tempo a 
teoria da linguagem dos sofistas gregos e a da realidade em Heráclito (e, numa 
medida menor, Demócrito). Não se trata aqui, evidentemente, de fazer de Leonardo 
um discípulo dos pensadores gregos. Trata-se, antes, de perceber como, na linha do 
parentescoque outrora realçou Giorgio de Santillana entre o pensamento ou a 
escrita de Leonardo e as dos filósofos jônicos, sua prática do desenho olustra u 
pensamento do real (e de seu conhecimento) semelhante ao que eles tinham 
formulado. Para os sofistas, Protágoras e Górgias em particular, “só os nomes dão 
coisas suas consistência própria, recortando-as de algum modo na matéria amorfa e 
indeterminada”, e “é por seu poder de conceder sentido às palavras e de recortar 
assim o fixo no movente que o homem é o órgão de determinação do real”. Ora, da 
linha segura do desenho científico à busca do sfumato que orienta sua prática 
artística desse mesmo desenho, encontra-se em Leonardo o mesmo sentimento do 
real, de sua fluidez essencial e de sua determinação “objetiva”. Em outros termos, do 
mesmo modo que, para os sofistas, o homem se apropria das aparências flutuantes 
submetendo-se às ordens do discurso, assim também o ato gráfico de Leonardo em 
sua prática científica se apropria do fluxo das aparências e organiza na ordem da 
linha. 
Por outro lado, ao se pensar que, como as palavras para os sofistas, a linha 
gráfica tem como função, em Leonardo, “recortar o fixo no movente”, fica esclarecida 
a concepção, coerente e contrastada, da forma que se revela em sua prática do 
desenho. Esta concordo, de novo, com o que exprimiam, entre os pré-socráticos, os 
dois termos ruthmos e schèma. Como mostrou Emile Beneviste, antes que Platão 
desse ao ruthmos seu sentido moderno de “forma do movimento” determinada por 
uma medida submetida a uma ordem, o termo designava um certo tipo de forma. 
Enquanto o schèma designava uma forma “fixa, realizada, colocada como um objeto”, 
o ruthmos significava a “forma no instante em que ela é assumida pelo que é 
movente, móvel, fluido”. Leonardo não conhecia, evidentemente, o pensamento de 
Heráclito ou o vocabulário de Demócrito, mas essa apreensão contrastada da forma 
não está sendo no cerne de sua dupla prática do desenho. Ela explica sua coerência 
dialética profunda, ao mesmo tempo que atribui a cada uma delas sua função 
específica: o desenho científico extrai o schèma das coisas, sua forma “fixa, realizada, 
colocada como um objeto”: o desenho artístico, cujo processo criador se realiza na 
obra pintada, procura fazer perceber o ruthmos no visível, fazer emergir a forma 
como aquilo é assumido pela mobilidade infinita do mundo. 
Poder-se-ia, para apoiar essa interpretação, evocar as diversas páginas nas quais 
Leonardo volta à ideia de que os corpos “nascem do movimento” na medida em que 
a linha é engendrada pelo movimento do ponto, a superfície pelo movimento da linha 
e o corpo pelo movimento das superfícies (Codex Arundel, 159v). Poder-se-ia também 
evocar as Metamorfoses de Ovídio (que Leonardo conhecia bem)e, em particular, o 
grande discurso que, no Livro XV, o poeta latino empresta a Pitágoras – para o qual 
“toda forma é uma imagem errante” (omnis vagans formatur imago). Mas aqui 
bastará evocar o duplo retrato de Heráclito e de Demócrito pintado por Bramante em 
Milão por volta de 1485-1490: como mostrou Carlo Pedretti, é bastante provável que, 
sob os traços dos dois filósofos jônicos, Bramante pintara seu autorretrato em 
Demócrito, dando ao mesmo tempo a Heráclito os traços de Leonardo. Assim, melhor 
que uma análise de texto – e numa época em que a cultura e sua transmissão eram 
em grande parte orais –, o afresco de Bramante mostra que Leonardo, novo Apeles e 
Parrásio moderno, podia também passar, aos olhos de alguns de seus 
contemporâneos, por um Heráclito redivivus.

Outros materiais