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119 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Unidade III 5 LITERATURA DESSACRALIZADORA Se no Romantismo os poetas lutaram por uma literatura sacralizante, para a firmação de uma literatura de caráter nacional, os poetas do começo do século XX, do Modernismo, conceberam a identidade nacional no sentido de sua dessacralização, correspondendo a um pensamento politizado, com abertura contínua para o diverso, em que uma cultura pudesse estabelecer relações com outras culturas. A literatura dessacralizante corresponde à desmontagem do sistema vigente. Essa literatura leva à emergência de uma consciência crítica e à inclusão sistemática de temas e processos retirados da cultura popular oral. Conforme Bernd (2011), os poetas modernistas tentaram captar o discurso excluído, escutar as vozes até então mantidas marginalizadas. 5.1 Consonâncias e dissonâncias: o ritmo do Modernismo A existência da nacionalidade sempre foi, no Brasil, uma indagação a exigir resposta. O ano 1922 é tido como marco de início do Modernismo e nele se comemorou o centenário de nossa independência política. Não foi por acaso que os idealizadores da Semana de Arte Moderna escolheram essa data, pois tinham como intenção simbolizar, após 100 anos, finalmente, o início de nossa independência cultural. Acompanhar o desenvolvimento de nossa literatura é olhar com atenção um processo de desalienação. Um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922 foi Oswald de Andrade (1890-1953). Seu poema, Canto de regresso à pátria, inverte o sentido do texto de Gonçalves Dias, Canção do exílio, contrapondo a nova estética modernista à estética romântica: Canto de regresso à patria Minha terra tem palmares Onde gorjeia o mar Os passarinhos daqui Não cantam como os de lá Minha terra tem mais rosas E quase que mais amores Minha terra tem mais ouro Minha terra tem mais terra 120 Unidade III LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Ouro terra amor e rosas Eu quero tudo de lá Não permita Deus que eu morra Sem que volte para lá Não permita Deus que eu morra Sem que volte pra São Paulo Sem que veja a Rua 15 (ANDRADE, 2008, p. 118). Temos um texto de paródia, na tomada de consciência crítica à terra natal, que não havia no texto que hoje chamamos de matriz. O que Oswald de Andrade buscava não eram as semelhanças do seu exílio com o de Gonçalves Dias, mas sim as diferenças. Lembrete O poema Canção do exílio, de Gonçalves Dias, foi escrito em 1843 e tornou-se símbolo de nacionalismo e ufanismo do nosso país, tendo versos copiados do Hino Nacional e sendo, a partir de sua criação, referenciado, reverenciado e intertextualizado em outros textos poéticos (e não poéticos também). A paródia, nesse caso, age como um espelho invertido ou uma lente que exagera os detalhes, que podem inverter uma parte dos elementos focados num elemento dominante. Portanto, a parte é pelo todo, como se faz na caricatura. A identidade nacional não está apenas no indianismo, ou seja, na busca da figura idealizada do primeiro povo americano. Como diz Oswald de Andrade, “Minha terra tem palmares / onde gorjeia o mar”. O Brasil passou a ser constituído também por outro grupo social: os africanos, que ao chegarem às terras brasileiras – por mar – tiveram o status de escravo. Na luta contra a escravidão, formaram local de fuga e proteção: os palmares. O que houve de continuidade romântica no Modernismo, conforme Gelado (2006), foi a preocupação com a definição de uma identidade nacional, bem como a consideração de que essa identidade estaria depositada no fundo do popular. Foi, em parte, no início de definição desse fundo que o Modernismo, na década de 1930, passou a dedicar seus esforços, sendo seguido pelos estudos etnográficos, o ensaio histórico e sociológico e a narrativa regionalista. Essa ampliação da identidade nacional por parte dos modernistas leva em conta outros grupos sociais: o indígena, com outra configuração fora do indianismo, o negro africano, na condição de ex- escravo, e os brasileiros de forma geral, na condição do popular. Um novo e amplo quadro se forma no Modernismo, sintetizado no poema a seguir: 121 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Pronominais Dê-me um cigarro Diz a gramática Do professor e do aluno E do mulato sabido Mas o bom negro e o bom branco Da Nação Brasileira Dizem todos os dias Deixa disso camarada Me dá um cigarro (ANDRADE, 2008, p. 117). O poema inclui os grupos sociais formadores do povo brasileiro: o negro, o branco e a junção desses dois: o mulato. Além disso, seguindo a preocupação da época com o aspecto popular, o poeta mostra a manifestação da língua da maioria brasileira “Me dá um cigarro”, cuja sintaxe contraria a regra da norma gramatical culta. A ação modernista no cenário brasileiro, de forma bem-humorada, inclusive, valoriza o português brasileiro e a oralidade, questionando o cânone literário brasileiro, que prezava a língua de um grupo social dominante ou que ainda seguia o modelo camoniano de escrita. Outro poeta modernista que tiraria a poesia brasileira de uma série de maneirismos, dando-lhe liberdade formal e linguística, bem como concretizou antológicos poemas com temática popular, foi Manuel Bandeira (1886-1968). Na sua vasta produção, temos: Vou-me embora para Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura De tal modo inconsequente Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que nunca tive E como farei ginástica Andarei de bicicleta 122 Unidade III LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-d’água Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcaloide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar — Lá sou amigo do rei — Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada (BANDEIRA, 1986, p. 90). O poema recupera, de maneira mítica, a vida que poderia ter sido e que não foi. Além disso, abandona quase integralmente a pontuação, libertando o texto de tudo aquilo que chamaríamos hoje de politicamente correto. A indagação sobre a identidade nacional envolve o próprio papel da literatura brasileira e sua identidade. Afinal, mesmo com o Brasil independente de Portugal, a mentalidade das elites continuou ainda colonizada, correspondendo a um prolongamento do pensamento europeu. Os integrantes dessa elite letrada, incluindo a intelectualidade institucionalizada, consideravam-se europeus transplantados. Na literatura, o modelo europeu foi satirizado e rompido pelos poetas modernistas. Um notório exemplo é o poema de Manuel Bandeira: 123 LE T - Re vi são: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Poética Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor. Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo. Abaixo os puristas. Todas as palavras, sobretudo os barbarismos universais Todas as construções, sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos, sobretudo os inumeráveis Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo. De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc. Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbados O lirismo difícil e pungente dos bêbados O lirismo dos clowns de Shakespeare. – “Não quero saber do lirismo que não é libertação” (BANDEIRA, 2008, p. 66). A destruição tinha como objetivo, em um primeiro momento, o rompimento com estéticas passadas, especialmente a parnasiana. A figura do poeta parnasiano, comparado a uma “máquina de fazer versos” no Manifesto Antropófago (1928) de Oswald de Andrade, foi ridicularizada e atacada em inúmeros artigos e poemas, como Os sapos, de Manuel Bandeira, recitado por Ronald de Carvalho na segunda noite da Semana de Arte Moderna. Em oposição ao rigor gramatical e ao preciosismo linguístico parnasiano, os poetas modernistas valorizaram a incorporação de gírias e de sintaxe irregular e a aproximação da linguagem oral de vários segmentos da sociedade brasileira, como podemos observar no poema Pronominais, de Oswald de Andrade. Ainda no plano formal, o verso livre, a concisão e a objetividade são características marcantes do movimento. No poema de Manuel Bandeira, Poética, estão expressas as principais palavras de ordem da estética modernista. 124 Unidade III LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 A poesia apresenta uma revolução literária: • novas ideias e novas temáticas; • fuga das fórmulas e dos preconceitos estabelecidos; • ruptura do tradicional; • destruição do espírito conservador; • atualização de uma consciência criadora. Bandeira desperta o cidadão que, às vezes, se deixa levar por uma anestesia que adormece o senso de crítica e luta. O funcionário público representa a burocratização, desse modo, a poesia também se torna burocrática. Ela o é quando a forma supera a inspiração, quando as regras se sobrepõem ao lirismo, quando a estatização ganha da flexibilidade do pensar e do sonhar. Encontramos em Poética uma crítica social, uma vez que o que Bandeira combate não são somente as formas poéticas, mas as sociais. A lírica dos sonhadores é muito mais bonita do que a dos burocráticos e tecnocráticos. O lirismo tem como pressuposto a liberdade, a alegria, a flexibilidade. O autor nos conclama a deixar as amarras da sociedade e da poesia formais. O lirismo, como vimos, é a mais antiga expressão poética e acompanhou (e ainda acompanha) os versos dos poetas. O confronto ao lirismo não vem somente nas palavras, mas sim na quebra dos padrões formais da poesia rítmica. Se Platão acreditava que a poesia deveria se afastar da realidade, esse traço vem sendo esquecido pelos autores ao longo do século. Vimos em Poética que a crítica e a realidade se somam ao discurso poético e formam uma linda harmonia. Por fim, para exemplificar melhor a preocupação dos poetas em incluir a cultura popular, temos o poema Na rua do sabão: Na rua do sabão Cai, cai balão Cai, cai balão Na Rua do Sabão! O que custou arranjar aquele balãozinho de papel! Quem fez foi o filho da lavadeira. Um que trabalha na composição do jornal e tosse muito. Comprou o papel de seda, cortou-o com amor, compôs os gomos oblongos... Depois ajustou o morrão de pez ao bocal de arame. Ei-lo agora que sobe – pequena coisa tocante na escuridão do céu. 125 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Levou tempo para criar fôlego. Bambeava, tremia todo e mudava de cor. A molecada da Rua do Sabão Gritava com maldade: Cai cai balão! Subitamente, porém, entesou, enfunou-se e arrancou das mãos que o tenteavam. E foi subindo... para longe... serenamente... Como se o enchesse o soprinho tísico do José. Cai cai balão! A molecada salteou-o com atiradeiras assobios apupos pedradas. Cai cai balão! Um senhor advertiu que os balões são proibidos pelas posturas municipais. Ele foi subindo... muito serenamente... para muito longe... Não caiu na Rua do Sabão. Caiu muito longe... Caiu no mar – nas águas puras do mar alto (BANDEIRA, 1986, p. 70). Dois importantes aspectos desse poema, representante do pensamento modernista, precisam ser destacados. Um deles é o aspecto formal. Mazzari (2002) ressalta o uso de versos livres, cuja técnica foi apurada na produção de Manuel Bandeira. Outro aspecto é o motivo popular. O poema começa com a citação de uma cantiga junina, anunciando assim, de chofre, um motivo popular: “Cai cai balão / Cai cai balão / Na Rua do Sabão!”. Predominam os versos brancos, mas se há na abertura uma rima simples e ingênua, é própria de cantigas populares e folclóricas. Observamos ainda que o versinho “Cai, cai balão” ocorre mais três vezes, constituindo-se uma espécie de leitmotiv que exprime a tendência contrária ao acontecimento celebrado no poema. Mas, se é possível falar em acontecimento celebrado no poema, então podemos também inferir daí que este possui um argumento narrativo, e até mesmo, indo um pouco além, que Na rua do sabão está impregnado – a exemplo de outros célebres poemas de Bandeira, como Gesso, Profundamente, O cacto – de elementos épicos, assumindo assim uma atitude para a qual teria a designação de enunciação lírica. Nesse sentido, a primeira aproximação ao poema se poderia dar mediante a consideração de sua estratificação temporal – da dimensão, portanto, em que a narrativa poética é desdobrada. De que 126 Unidade III LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 forma essa exposição lírica de uma história que se desenvolve no tempo (mas também no espaço) concebe e articula entre si os diferentes planos temporais? O primeiro e mais remoto apresenta, de maneira sintética, o trabalho de confecção; ressalta inicialmente a dificuldade que foi “arranjar aquele balãozinho de papel” e estende a descrição até o ajuste do “morrão de pez ao bocal de arame”. O artífice é referido apenas, de forma indireta, como “o filho da lavadeira”, a que se segue complemento introduzido pelo artigo indefinido: “um que trabalha na composição do jornal e tosse muito”. Em nossa análise, novamente, aparece a infância pobre de Bandeira, personalizada no balãozinho de papel, brinquedo que está ligado a crianças de baixa renda. A canção popular também remonta ao discurso oral presente nas sociedades mais pobres. Essa exaltação da música popular confere um momento de criticidade, pois as manifestações populares nascem da oposição à cultura dominante. Essas práticas culturais são um modo de reforçara origem popular e se contrapor ao discurso das elites. 5.2 Cobra Norato Será somente no Modernismo, com Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, que o propósito de construir uma narrativa épica para representar a origem do povo brasileiro será realizado. O autor integra, pela primeira vez, o mito indígena aos mitos africanos para explicar a formação do brasileiro, representado pelo personagem Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, o qual é uma alegoria à cultura brasileira e seu caráter inacabado. A ausência de caráter é sintoma de mentalidade cultural com possibilidades revolucionárias. Enquanto o projeto dos românticos, com o indianismo, consistiu em atribuir qualidades positivas ao índio, fundando a ancestralidade com base no processo de aculturação e desculturação, a criação de Mário de Andrade surgiu como um contradiscurso a essa consistência hegemônica que vinha se firmando ao longo de nossa história. Outro aspecto que colabora nessa criação é a adoção, na obra, de formas orais e populares na narrativa. Nos esclarecimentos de Bernd (2011, p. 62), a identificação desse autor “com a visão do mundo do povo e a adesão à sua concepção mítica [...] se opunha frontalmente ao esquema lógico- racional da tradição europeia”. Vemos aí as marcas da função dessacralizante da literatura, uma vez que esta faz parte da desmontagem do sistema vigente. Surge a emergência de uma consciência crítica e a inclusão sistemática de temas e processos retirados da cultura popular oral. Essa cultura era (ou continua) considerada espúria e até então excluída do círculo da literatura sacralizante, apesar de autores como Machado de Assis e Lima Barreto haverem subvertido rituais discursivos baseados na exaltação e no ufanismo. A exemplo de Macunaíma, narrativa em prosa que superpõe mitos de origens diversas, Cobra Norato, de Raul Bopp, é igualmente o lugar das formas multifacetadas do imaginário oral e 127 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia popular brasileiro. Esse poema épico, de 1931, é constituído de 33 cantos breves e evoca mitos amazônicos. Na obra, o núcleo temático é o mito das cobras, o qual procede da Amazônia e parece ter intersecção com o mito da Teiniaguá, a enorme serpente que se escondia nos subterrâneos da igreja de São Miguel. Há, portanto, níveis de hibridação cultural no poema ao situar em um caminho do meio, subvertendo ao mesmo tempo a interpretação mítico-popular e a interpretação da Igreja Católica para a lenda da Cobra Grande. A obra de Raul Bopp é considerada a melhor atualização de tudo o que o Modernismo, e mais especificamente o Manifesto Antropófago, de 1928, reivindicava: um Brasil sem clichês, a criação de uma arte brasileira, a estabilização de uma consciência criadora nacional. O próprio Bopp explicou a necessidade dessa descida antropofágica ao fundo da mata virgem para o reencontro de um Brasil autêntico, ainda não contaminado pela visão europeia e burguesa da realidade. Fica claro, no começo do poema, o desejo do poeta de penetrar nesse mundo desconhecido. Para tanto, terá de se enfiar na pele elástica da cobra: I Um dia eu hei de morar nas terras do Sem-fim Vou andando caminhando caminhando Me misturo no ventre do mato mordendo raízes Depois faço puçanga de flor de tajá de lagoa e mando chamar a Cobra Norato [...] Brinco então de amarrar uma fita no pescoço e estrangulo a Cobra. Agora sim me enfio nessa pele de seda elástica e saio a correr mundo Vou visitar a rainha Luzia Quero me casar com sua filha – Então você tem que apagar os olhos primeiro O sono escorregou nas pálpebras pesadas (BOPP, 2009, p. 3). O poeta recusa-se a ter uma visão exógena, de turista, e entra na pele da cobra para decifrar o que está decifrado. Ao tomar tal atitude, despe-se de preconceitos e adere a outro modo (mágico-sacral) de interpretação do mundo. 128 Unidade III LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Embora no poema mitos, lendas e crenças populares sejam evocados, basicamente dois deles estruturam o poema: os mitos da Cobra Grande (Boiuna) e da Cobra Norato. Os mitos aquáticos e com cobras remetem, em muitas mitologias, ao mal; porém, também à criação, às origens de uma civilização, portanto à renovação. Por ser um poema épico, embora com muito lirismo, há necessidade de: • um herói: Cobra Norato; • um objeto de busca: a filha da rainha Luzia; • um opositor: a Cobra Grande; • personagens que auxiliem o herói a realizar seu objetivo: o tatu-de-bunda-seca. A viagem de Cobra Norato é para decifrar a floresta cifrada: II Começa agora a floresta cifrada (BOPP, 2009, p. 5) Essa viagem é para encontrar as raízes da cultura popular e é realizada no espaço (“Vou andando caminhando caminhando” – Canto I) e no tempo, sendo preciso retroceder ao âmago do pensamento mágico, pré-Cabral. Os constantes deslocamentos do herói simbolizam a concepção de construção da identidade do poeta. Sendo a identidade permanente processo, perfazendo-se no próprio percurso, não há nunca uma forma acabada de identidade nacional ou cultural. São inúmeros os exemplos desses incessantes deslocamentos na obra: • “sigo depressa machucando areia”, Canto III; • “deixa eu passar que eu vou longe”, Canto III; • “Então vamos”, Canto XVI; • “preciso passar depressa”, Canto XXX; • “siga agora o seu caminho”, Canto XXXIII. O herói tem ainda de passar por provas para alcançar seus objetivos. O primeiro deles já aparece no Canto I e é revelador, porque “apagar os olhos” pode simbolizar despojamento do mundo do poeta para conseguir realmente penetrar e entender a floresta cifrada. Despir-se do aparato de racionalidade que comanda o universo urbano, herança ocidental europeia, cultura dominante, entre outros que não permitiriam o sucesso em sua empreitada. O poeta precisa renunciar ao pensamento coerente, silogístico, geométrico, cartesiano, ou seja, da herança do Iluminismo, do 129 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia século XVIII, chamado Século das Luzes, em que a racionalidade impera. Cobra Norato faz, ao contrário, elogio da obscuridade. Os momentos importantes da obra ocorrem em noites de luar: o herói penetra na pele de Cobra Norato em noite de luar, a Cobra Grande aparece quando começa a lua cheia, o luar amansa o mato, o gosto da lua e da rainha Luzia se confundem, a pororoca ronca em noite de luar. Enfim, o mito lunar percorre o poema do início ao fim, dando-lhe unidade. Como a lua é associada ao ciclo das águas, ela se torna um símbolo de vida e de fertilização, pois transmite às águas virtudes gerativas. XI Acordo A lua nasceu com olheiras O silêncio dói dentro do mato Abriram-se as estrelas As águas grandes se encolheram com sono A noite cansada parou Ai compadre! Tenho vontade de ouvir uma música mole que se estire por dentro do sangue; música com gosto de lua e do corpo da filha da rainha Luzia que me faça ouvir de novo a conversa dos rios que trazem queixas do caminho e vozes que vêm de longe surradas de ai ai ai Atravessei o Treme-treme Passei na casa do Minhocão Deixei minha sombra para o Bicho-do-Fundo Só por causa da filha da rainha Luzia (BOPP, 2009, p. 17). Raul Bopp evoca o mundo mítico e também tecnológico, buscando integração do rural e do urbano. Essa busca pode ser verificada em expressões como: “escola das árvores”, “ouvem-se apitos um bate-que-bate”, “riozinho vai pra escola / estáestudando geografia”, “uma árvore telegrafou para a outra”. Essas expressões não formam ideias binárias, como mundo arcaico/ progresso, floresta/cidade, mas constituem uma tentativa de síntese que vai ser proposta no Canto XXXIII, quando o poeta convoca, para o mundo sem hierarquia, seres mitológicos: Joaninha Vintém, Pajé-pato, Boi-Queixume, artistas e amigos urbanos: Xico, Augusto Meyer (poeta gaúcho), pintora Tarsila. 130 Unidade III LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 XXXIII [...] Haverá muita festa Durante sete luas sete sóis Traga a Joaninha Vintém o Pajé-pato Boi-Queixume Não se esqueça dos Xicos Maria-Pitanga o João Ternura O Augusto Meyer Tarsila Tatizinha Quero povo de Belém de Porto Alegre de São Paulo – Pois então até breve, compadre Fico le esperando Atrás das serras do Sem-fim (BOPP, 2009, p. 57). O autor superpõe referenciais míticos, poéticos e mágicos (dos contos infantis), além dos falares brasileiros, como o erudito e o popular, misturando vocábulos africanos e indígenas. Enfim, pratica o ritual antropofágico da devoração cultural e, especialmente, o congraçamento heterogêneo da festa de casamento, da identidade nacional. Exemplo de Aplicação I. O poema a seguir é do modernista Manuel Bandeira. Após a leitura, discuta no que consiste a identidade tanto nacional quanto literária no poema. Pensão familiar Jardim da pensãozinha burguesa. Gatos espapaçados ao sol. A tiririca sitia os canteiros chatos. O sol acaba de crestar os gosmilhos que murcharam. Os girassóis amarelo! resistem. E as dálias, rechonchudas, plebeias, dominicais. Um gatinho faz pipi. Com gestos de garçom de restaurant-Palace Encobre cuidadosamente a mijadinha. Sai vibrando com elegância a patinha direita: – É a única criatura fina na pensãozinha burguesa. Fonte: Bandeira (1986, p. 70). 131 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia II. A obra Cobra Norato (2009), de Raul Bopp, é considerada a melhor atualização de tudo o que o Modernismo representa, mais especificamente o Manifesto Antropófago. Afinal, quais os pontos de intersecção entre a obra de Bopp e o Manifesto, transcrito a seguir? Manifesto Antropófago Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa. O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará. Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande. Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa- múndi do Brasil. Uma consciência participante, uma rítmica religiosa. Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar. Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls. Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos. 132 Unidade III LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós. Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia. O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores. Só podemos atender ao mundo orecular. Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem. Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. O instinto Caraíba. Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia. Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo. Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses. Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro. Catiti Catiti Imara Notiá Notiá Imara Ipeju A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais. 133 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comia. Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso? Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César. A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue. Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas. Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida. Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti. Se Deus é a consciênda do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais. Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário. As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo. De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia. O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas+ fala de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa. É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci. O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso? Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade. Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz. A alegria é a prova dos nove. 134 Unidade III LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 No matriarcado de Pindorama. Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada. Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimarnos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas. Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI. A alegria é a prova dos nove. A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modus vivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos. Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo. A nossa independência ainda não foi proclamada. Frape típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte. Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama. Fonte: Andrade (1928). 6 POESIA NOVECENTISTA E SUA RELAÇÃO COM O SAGRADO Até o final do século XIX, a relação entre a literatura (a arte, de forma geral) e a religião baseava-se no modelo confrontativo, segundo De Mori et al. (2011), ou seja, acreditava-se que a arte era incompatível com o rigor e a clareza da doutrina. A partir daí, os textos estéticos passaram a ser vistos com base em valores heurísticos, cognitivos e mesmo espirituais, para reflexão e prática teológicas. Nesse novo modelo, o correlativo, a literatura não é julgada como literatura cristã, mas pela relevância que as obras podem ter para a reflexão sobre a religião de maneira geral, com base no lugar e na posição própria em que surgem. 135 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia A literatura é considerada, finalmente, em si mesma e em sua multiplicidade de realização. É respeitada em sua especificidade e autonomia, sem cooptá-la ou instrumentalizá-la para fins religiosos ou teológicos. No entanto, ressalta-se que existe constante confrontação tensa dos textos literários com as tradições religiosas, bem como que esse confronto não pode ser incorrido em falsa estetização da religião nem em sacralização da arte. Diante dessa relação, destacam-se alguns exemplos de autores brasileiros do século XX em cujas obras poéticas a religião é um tema relevante. 6.1 Augusto dos Anjos: um místico com Deus A imagem usual que os leitores brasileiros têm do poeta Augusto dos Anjos é de ele ser um poeta maldito, famoso pelo seu monismo materialista e pelo pessimismo. O materialista é aquele que vê na base material da existência, seja a natureza, o universo, a sociedade, a cultura, o corpo e tantos outros aspectos e realidades, a explicação para tudo (SANTOS, 2008). Lembrete Augusto dos Anjos é listado por muitos historiadores literários na fase pré-modernista. Outros críticos, no entanto, encaixam suas obras no Simbolismo. O materialista opõe-se ao idealista, cujo sentido, no vocabulário filosófico, não é a pessoa com ideais, pois um materialista também os tem, mas aquela que tem visão essencialista, religiosa ou não, do mundo. A forma mais universal de idealismo é a religiosidade e, no caso do materialista, de acordo com o senso comum, é uma pessoa que não acredita em nada ou, especificamente, em Deus. Então, conviria melhor a palavra ateu: do grego a (sem) e theos (Deus). Quando o ateu reconhece a existência de realidades fora do nosso alcance, ele se diz agnóstico: do grego a (sem) e gnosis (conhecimento). Para o ateu agnóstico, respostas absolutas – por exemplo, à questão de quem criou o mundo – são inacessíveis ao conhecimento do homem, não devendo, portanto, ocupar seu tempo. Para o agnóstico, é indiferente se Deus existe ou não. O ateu que não é agnóstico acredita na não existência de Deus e acaba na mesma situação do crente, porque provar a existência de Deus é análogo a provar a sua não existência. O agnóstico reconhece essas duas impossibilidades. Materialista não é sinônimo nem de ateu, nem de agnóstico. Ser materialista é acreditar na materialidade de todas as coisas, mesmo as do espírito, e na possibilidade de explicar os fatos do mundo com ajuda de leis científicas, deixando de fora os fatos que não são deste mundo. Augusto dos Anjos passou a ser identificado como materialista, em cujas obras poéticas assume postura existencial e emprega vocabulário rebuscado e científico, bem como tem alto pessimismo (BOSI, 1991). 136 Unidade III LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 A visão amarga de mundo pode ser exemplificada pelo soneto Versos íntimos, o qual é enfaticamente anticristão: Versos íntimos Vês! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de tua última quimera. Somente a Ingratidão – esta pantera – Foi tua companheira inseparável! Acostuma-te à lama que te espera! O Homem, que, nesta terra miserável, Mora, entre feras, sente inevitável Necessidade de também ser fera. Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja. Se a alguém causa inda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga, Escarra nessa boca que te beija! (ANJOS, 1994, p. 280). Os tercetos, principalmente, opõem-se ao mandamento cristão “ama a teu próximo como a ti mesmo”. Augusto dos Anjos foi supostamente vítima da tuberculose, considerada por Margutti (apud DE MORI et al., 2011) uma explicação para esse fel moral encontrado no poema. Como diz Margutti (2011, p. 26): “Afinal, só um poeta tísico, condenado ao sofrimento e ao desconforto, teria algum motivo para expressar uma visão de mundo tão pessimista”. A presença do divino manifesta-se sob a forma de um sentimento doloroso de privação espiritual diante da explicação meramente materialista do mundo. Essa manifestação dá-se de forma negativa. Ao contextualizar o poema à época de sua produção, encontramos as origens da obra desse poeta nas encruzilhadas do pensamento filosóficobrasileiro do final do século XIX e do início do século XX, em que predominava o sanchismo tanto no Brasil quanto em Portugal. A Península Ibérica assume uma postura filosófica medieval. Como elucida Unamuno (apud DE MORI et al., 2011, p. 27): Sinto que trago em mim uma alma medieval e creio que é medieval a alma de minha pátria [Espanha]; que esta passou à força pelo Renascimento, a Reforma e a Revolução, aprendendo com elas, é verdade, mas sem deixar que lhe tocassem a alma, conservando a herança espiritual daqueles tempos que chamam de a Idade das Trevas. 137 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Francisco Sanches (1552-1623), médico e filósofo, encarna a postura da alma medieval e, em sua obra Quo nihil scitur, de 1581, assume uma postura simultaneamente pessimista, cética e salvacionista, contrária à postura escolástica aristotélica de sua época. Tais características – pessimismo, ceticismo e salvacionismo – são precisamente da cultura medieval. Essa alma medieval lusitana esteve presente em nossa cultura desde os inícios da colonização. Na verdade, a inexistência de universidades no Brasil Colônia permitiu que o sanchismo se manifestasse entre nós de maneira explícita e fosse partilhado pela maioria. No Brasil Colonial, o brasileiro viveu uma contradição entre os ideais morais europeus, defendidos pelos jesuítas, e as mazelas praticadas pelos colonos. Do ponto de vista filosófico, esse conflito gerou a consciência pessimista de caráter cético-estoico-salvacionista. O pessimismo, o estoicismo e o ceticismo estão ligados à constatação da finitude, da inutilidade e da transitoriedade das coisas. Essa constatação aponta em direção à renúncia aos prazeres e às vaidades deste mundo. O salvacionismo, por sua vez, envolve a solução do conflito mediante o recolhimento na interioridade, na contemplação mística, para redimir o homem ibero-tropical de seus pecados. Nessa perspectiva, as obras de Gregório de Matos Guerra, Antônio Vieira, Matias Aires, Nuno Marques, Souza Nunes e Cláudio Manoel expressam o sanchismo medieval no Brasil, cada um à sua maneira. Essa visão de mundo foi predominante até o século XIX. No início da República, a postura sanchista é representada pela poesia de Augusto dos Anjos, pelo fato de ele unir preocupações filosóficas a seus poemas, constituindo uma resposta literária à encruzilhada filosófica em que se encontrava o pensamento brasileiro no fim do século XIX e início do século XX. Saiba mais Augusto dos Anjos nasceu em 20 de abril de 1884, no Engenho Pau d’Arco, na Paraíba do Norte, formou-se em Direito pela Faculdade do Recife em 1907 e casou-se em 1910. No mesmo ano de seu casamento, mudou-se para o Rio de Janeiro e lá lecionou. Publicou quase toda a sua obra poética no livro Eu, em 1912. Morreu em 12 de novembro de 1914. Para conhecer mais sobre o poeta: COUTINHO, A.; BRAYNER, S. Augusto dos Anjos: textos críticos. Brasília: MEC/INL, 1973. A personalidade dividida do poeta entre o cientificismo e o espiritualismo parece ser a chave interpretativa mais adequada para a compreensão da sua poesia. Augusto dos Anjos a expressa no soneto Vítima do dualismo: 138 Unidade III LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Vítima do dualismo Ser miserável dentre os miseráveis, Carrego em minhas células sombrias Antagonismos irreconciliáveis E as mais opostas idiossincrasias! Muito mais cedo do que o imagináveis Ei-vos, minha alma, enfim, dada às bravias Cóleras dos dualismos implacáveis E à gula negra das antinomias! Psiquê biforme, o Céu e o Inferno absorvo... Criação a um tempo escura e cor de rosa, Feita dos mais variáveis elementos, Ceva-se em minha alma, como um corvo, A simultaneidade ultramonstruosa De todos os contrastes famulentos! (ANJOS, 1994, p. 151). O contraste mais sutil encontra-se na oposição entre minhas células sombrias, que aponta para o materialismo, no primeiro quarteto, e minha alma, no segundo quarteto, que aponta para o espiritualismo. As duas são reunidas sem conciliação na expressão psiquê biforme, no primeiro terceto. É verdade que no último terceto as oposições vorazes se alimentam da carne do poeta, parecendo dar ganho de causa ao materialismo, na leitura de Margutti (apud DE MORI et al., 2011). No entanto, o tom geral do soneto demonstra a perplexidade e a inquietação do autor diante dos dualismos que o perturbam. Esse espírito aporético (cético) de Augusto dos Anjos aparece em outros textos do autor, tal como verificamos a seguir: Ceticismo Desci um dia ao tenebroso abismo, Onde a Dúvida ergueu altar profano; Cansado de lutar no mundo insano, Fraco que sou, volvi ao ceticismo. Da Igreja – a Grande Mãe – o exorcismo Terrível me feriu, e então sereno, De joelhos aos pés do Nazareno Baixo rezei, em fundo misticismo: – Oh! Deus, eu creio em ti, mas me perdoa! Se esta dúvida cruel qual me magoa Me torna ínfimo, desgraçado réu. 139 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Ah, entre o medo que o meu Ser aterra, Não sei se viva pra morrer na terra, Não sei se morra pra viver no Céu! (ANJOS, 1994, p. 371). Nesse poema, a dúvida é algo profano que se encontra em um tenebroso abismo, sendo o cansaço e a fraqueza as causas do ceticismo a que a dúvida conduz. Em atitude mística, o eu poético reza aos pés de Cristo, pedindo perdão pela dúvida que não apenas magoa o poeta, mas também o diminui e o torna desgraçado. Fica em evidência um ser humano que, embora espiritualista, se acha atormentado pela dúvida. Um importante soneto, nessa relação cultural literatura e religião, é Amor e crença, de 1901, que trata de Deus e da fé: Amor e crença Sabes que é Deus? Esse infinito e santo Ser que preside e rege os outros seres, Que os encantos e a força dos poderes Reúne tudo em si, num só encanto? Esse mistério eterno e sacrossanto, Essa sublime adoração do crente, Esse manto de amor doce e clemente Que lava as dores e que enxuga o pranto? Ah! Se queres saber a sua grandeza Estende o teu olhar à Natureza, Fita a cúp’la do Céu santa e infinita! Deus é o Templo do Bem. Na altura Imensa, O amor é a hóstia que bendiz a Crença, Ama, pois, crê em Deus e... sê bendita! (ANJOS, 1994, p. 393). Deus é visto como um ser infinito, tendo em si todas as perfeições. Surge como mistério eterno, objeto da sublime adoração do crente. Sua grandeza espelha-se na natureza por Ele criada, de que o céu estrelado constitui um exemplo. Ao homem resta crer em Deus para ser abençoado. Esse soneto é profundamente cristão e, assim como os outros estudados aqui, levam Gilberto Freyre, como aponta Margutti (apud DE MORI et al., 2011, p. 51), a ver no poeta “uma fome mal reprimida de valores espirituais”. Para Freyre, Augusto dos Anjos é um místico que em seus versos substitui o latim mole da Igreja pelo latim duro da história natural. 140 Unidade III LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 6.2 Jorge de Lima: terra sagrada, religião na poesia Na concepção de Luciano Santos (apud DE MORI et al., 2011), ao poeta Jorge de Lima cabe, sem hesitação, a investidura de cristão como poucos escritores do século XX entre os nacionais e estrangeiros, a começar pela influência seminal sobre o poeta exercida pela religiosidade católica de suainfância, haurida junto à paisagem solar de sua terra natal e aos ritos e mitos de seu povo, mas sobretudo ao reencontro com a fé cristã em meio às bruscas transformações sociais e ideológicas do século XX. Jorge de Lima nasceu em 1895, na cidade de União, em Alagoas, a poucos quilômetros do famoso quilombo dos Palmares, república dos negros fugidos, cujas histórias, narradas pelas tias velhas, atiçaram a imaginação do menino Jorge. A visita à Serra da Barriga, quando tinha 8 anos, proporciona a ele a primeira experiência poética de que tem consciência: Sem qualquer exagero, posso dizer que naquele instante pela primeira vez me senti tocado pela poesia. Todo o imenso panorama que descortinei então – o rio Mundaú, que segundo a lenda nascera das lágrimas da Jurema, de um lado a Serra dos Macacos, do outro a planície do Jatobá, os campos verdes da Terra-lavada, o Fundão, a Tobiba, os banguês, a Great Western, as olarias, e lá longe a igreja da minha padroeira e o sobrado em que eu nascera, tudo aquilo entrou pelos meus olhos deslumbrados de menino e nunca mais saiu de dentro de mim (LIMA, 1958, p. 169-170). Essa experiência ali, do alto da Serra da Barriga, leva o poeta à descoberta de seu lugar, a sua primeira morada no mundo e, doravante, qualquer outra experiência guardará alguma referência, ainda que indireta, a esse momento seminal. Não podemos desconsiderar que está presente no povo mestiço latino-americano, com base em suas heranças ameríndias, a experiência de arraigo comunitário na mãe-terra. A paisagem que invade os olhos não é do argonauta nem do astrônomo, mas a do caboclo provinciano, homem da terra. A estupefação do poeta pode ser contemplativa e cósmica, mas é principalmente afetiva e telúrica, constituindo ambas, terra e infância, um mesmo núcleo existencial em torno do qual gravita a memória. A religiosidade presente na fase regional da poesia de Jorge de Lima é telúrica. Nas palavras de Luciano Santos (apud DE MORI et al., 2011, p. 67): Pertencer à terra natal é já partilhar as crenças, as rezas e os ritos do povo nativo e, desse modo, permanecer ligado à Fonte divina da qual a terra é dom e de cuja sabedoria esse povo é o guardião ancestral. Terra e povo formam um campo originário de sacralidade na poesia de Jorge de Lima que não aborda Deus a sós e de frente, confiando a Ele alegrias e inquietações, nem no interior da solidão meditativa. A espiritualidade na poesia é popular, comunitária, pois o poeta assume papel de humilde membro do povo de Deus: Louvado seja N. S. Jesus Cristo E a mãe dele – Nossa Senhora, minha madrinha. 141 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Louvado seja o que é d’Ele e d’Ele vem: ritos, amitos, benditos, são beneditos! Louvadas sejam suas palavras tão bonitas: Gloria Patri, Aleluia, Salve Rainha e também suas palavras misteriosas: per omnia secula, vita eterna, amen. Louvado seja este louvado em nome d’Ele E mais louvado que este “louvado” – Jesus Cristo mais a mãe d’Ele – Nossa Senhora, minha madrinha. Louvadas sejam as virtudes teologais e entre elas três seja louvada a Fé. Louvados sejam os santos nacionais martirizados pelos caetés. Louvadas sejam as coisas religiosas: santas missões e procissões, sermões. Louvado seja o meu país cristão pelo tempo da Páscoa descoberto todo enfeitado como um céu aberto. Louvado seja esse Jesus d’aqui. Jesus camarada, Cristo bonzão, a quem todo brasileiro ofende tanto contando sempre com o seu perdão (LIMA, 1958, p. 306-307). Nos versos “Louvado seja o meu país cristão / pelo tempo da Páscoa descoberto / todo enfeitado como um céu aberto.”, verificamos a inserção de um eu poético em seu povo de origem. Ser cristão é dádiva de nascença e nascer no chão pátrio, em contrapartida, é uma bênção, como ressaltam os versos “Louvados sejam os santos nacionais / martirizados pelos caetés.”. O poeta recorre ao imaginário provinciano nordestino como forma de resistência aos ideais republicanos que separaram definitivamente os campos eclesial e civil. O povo cristão, no poema, concerne ao povo-nação, sujeito coletivo de uma história, língua e estilo de vida, bem como ao povo pobre, excluído dos privilégios do poder e do saber. Nascido em berço cristão, o poeta fez parte das tradições religiosas de seu povo, que lidava com figuras arquetípicas, como santos, profetas, anjos, com narrativas, preces, palavras rituais, cantos, 142 Unidade III LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 conjuntos de gestos, pictóricos e arquitetônicos. Esse cabedal religioso abrange tanto elementos litúrgicos hegemônicos, alguns romanizados, quanto os de matriz popular. Os quatro séculos de hegemonia cristão-católica imprimiram sua marca no imaginário popular nordestino, verificados nos versos: Louvado seja o que é d’Ele e d’Ele vem: ritos, amitos, benditos, são beneditos! Louvadas sejam suas palavras tão bonitas: Gloria Patri, Aleluia, Salve Rainha e também suas palavras misteriosas: per omnia secula, vita eterna, amen. A esse gosto pelas coisas religiosas e seres espirituais encontrados nos poemas de Jorge de Lima associa-se uma exuberante familiaridade com as pessoas de Deus, de Nossa Senhora e dos santos, demonstrada nos versos: Louvado seja N. S. Jesus Cristo E a mãe dele – Nossa Senhora, minha madrinha. O poeta chega a dirigir-se a Deus em segunda pessoa e até em inaudito diminutivo, deixando para trás qualquer resquício de temor, tal como verificamos nos versos de outro poema: Senhor, Címbalos e cítaras não tenho não! Mas vou fazer uma procissão para você, Senhor. Pra seu Menino, vou fazer uma novena! Ladainha pra sua Mamãe, Senhor! Aceite, meu Deusinho! É Abel, quem está lhe dando! [...] (LIMA, 1958, p. 312). Outro poema que emprega diminutivo é Santa Teresinha do Menino Jesus: Santa Teresinha do Menino Jesus Santa Teresinha. Santa Teresinha que ris Só para alegrar Nosso Senhor. Ele te vê do Crucifixo que tu tens E te vendo Teresa Tão nova e bonitinha Ele se lembra de quando 143 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Era também menino e andava nos braços Das Nossas Senhoras De todos os altares do Brasil! – Menino Jesus das Vitórias, Nuzinho, Com a bola do mundo aos pés, Sua bola de borracha, seu brinquedo mais querido (LIMA, 1958, p. 269) Caro aluno, sugere-se que você faça uma pesquisa para confirmar se, de fato, Jorge de Lima foi o primeiro a empregar o diminutivo no nome de Santa Teresa. Trata-se de um poeta de sensibilidade religiosa mestiça, sondando o imaginário popular cristão-afro-ameríndio, passeando pela mitologia do Nordeste caboclo e espraiando-se pelo campo afrodescendente. Sem paralelo na poesia brasileira de filiação modernista, Jorge de Lima faz menção a elementos míticos e rituais sincretizados com o cristianismo, bem como a elementos do candomblé de matriz africana. Observação Poemas de Jorge de Lima que fazem referência ao imaginário religioso popular brasileiro: Olhado, O medo, Santa Dica e Diabo brasileiro, Benedito Calunga, Passarinho cantando, Exu comeu Tarubá, Obambá e batizado, Rei é Oxalá, rainha é Iemanjá, Janaína, Quando ele vem e Para donde que você me leva. A religiosidade litúrgica fortalece o sentimento de arraigo propiciado pelo ritmo regular da natureza e da pacata rotina interiorana, como mostra o poema a seguir: A voz da igrejinha E o sino da Igrejinha com vozfina de menina tem dlins-dlins para o batismo dos pimpolhos. Para os mortos: devagar – DLIM-DLIM... é como um choro de menino, compassado sem fim. Dlin-dlins para as manhãs loucas de luz, para as tardinhas que são como velhinhas passo tardo, xale preto, corcundinhas... 144 Unidade III LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 As andorinhas conhecem esses dlins-dlins e vêm ouvi-los no verão. As ave-marias vêm ouvi-los ao sol-pôr... E a estrela Vésper atrás da torre, e entre a neblina ouve quieta: dlim, dlim, dlim... E há dlins-dlins de esperança, de venturas de saudades e de fé... Todo o pulsar da vila: virgens que morrem, virgens que casam... Viático... Novenas... Comunhões... E nas missas domingueiras que alegria, que repiques argentinos aos namoros das mocinhas... Casamentos... Batizados... Agonias... Meu deus! Dlins-dlins para os que morrem... Dlim-dlim (LIMA, 1958, p. 255-256). O ressoar do sino da matriz avisa todos os acontecimentos da cidade: do dia, da semana, eventos significativos, fazendo do templo uma espécie de ressonância da vida e do estilo dos antigos povoados medievais. Novamente, vemos profusão de diminutivos nos mais diversos afetos e aspirações humanos. De acordo com Luciano Santos (apud DE MORI et al., 2011), o traço animista, de origem afro- ameríndia, empresta vida a bichos e estrelas, bem como expressa a sintonia afetiva do poeta com a natureza. Essa espiritualidade telúrica da poesia de Jorge de Lima também recebe inspiração franciscana, que prega fraternidade entre o ser humano e os seres naturais, saídos do mesmo criador. A partir de 1932, a obra de Jorge de Lima migra cada vez mais para a cidade grande. O poeta se mudou para o Rio de Janeiro em 1930, onde permaneceu até sua morte em 1953. Ele, de repente, defrontou- se com os grandes acontecimentos do século XX, vivendo sua maior experiência de desarraigo, cuja existência é deslocada do eixo província-natureza, com ciclos imutáveis, para o eixo complexo cidade- indústria, regido por demandas de produção, acumulação e consumo. A diferença entre os eixos pode ser estabelecida no quadro a seguir: 145 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Quadro 8 Província-natureza Cidade-indústria Sujeito da história: povo (sua memória, seus valores e estilo de vida). Sujeito da história: indivíduo autorreferente (que se constitui com base nele mesmo). Vida social: ligação da comunidade única (comunhão dos diferentes). Vida social: assimilação a uma massa uniforme (fragmentação dos iguais). Referência do sujeito: tradição e sua sabedoria ancestral. Referência do sujeito: projeto concebido pelo próprio sujeito. Tarefa confiada às gerações: preservar o tesouro espiritual legado. Tarefa confiada às gerações: garantir o indefinido progresso de técnicas e recursos. Passa a atravessar nos poemas de Jorge de Lima um clima de ruptura: • sentimento de vertigem ← e não mais de proteção; • angústia ante o futuro ← e não mais de fruição do presente; • existência dramática abandonada a si mesma ← e não mais o abrigo de uma vida simbólica, em sintonia com fontes perenes. De forma paradoxal, porém, nesse deserto espiritual o poeta encontrou sua mais profunda fonte, verificado no poema Meu país, que é um texto de transição; pois, de um lado, se despede da terra natal, e, de outro, vislumbra outro lugar, refugiando-se a partir daí não em memórias doces do passado, mas na nostalgia resultante da incapacidade de se conciliar com o presente e acreditar no futuro. Um poema contundente, dessa fase de nostalgia, é O filho pródigo: O filho pródigo Nas engrenagens das fábricas bolem como vermes – dedos decepados de operários. Há vaivéns do correame das oficinas. A cor e a alegria das moças empregadas dissolvem-se na algazarra monótona dos teares. O avião comeu a saudade das mães que a distância separou dos filhos vagabundos. Há máquinas que cegam os adolescentes ansiosos de ver o progresso do mundo. Um homem teve medo de enlouquecer perseguido pela força e pelo orgulho das máquinas assassinas. Cadê a luz trêmula de vela pra alumiar o meu poema antigo? O lirismo perdeu a sua liturgia. 146 Unidade III LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 As lâmpadas Osram velam funebremente a poesia. Ah! que existe uma tristeza na terra que nem lágrimas produz de sua esterilidade tão seca. Eu sou um corpo distraído. Boiam os meus olhos pelas superfícies. Mas os meus olhos correm mais perigo do que se andassem em acrobacias contemplativas pulando no céu alto, perto das estrelas. Vovozinha, venho de longe, ando há muitos séculos à pé. Ensina-me de novo a ficar de joelhos, que já é tarde e eu quero me deitar (LIMA, 1958, p. 331). Esse poema é uma síntese do mundo moderno, com sua violência, falta de viço, monotonia, desarraigo e deslumbrada cegueira. Essa falta de hospitalidade pode secar as fontes da poesia. Alijado das fontes, o poeta capitula ao desencanto e erra pelo deserto urbano como um corpo- coisa no tempo-espaço indiferente. Nesse contexto, a quem recorrer e para onde fugir? Ele toma o caminho de volta e pede para ficar de joelhos. A reza, por sua vez, torna-se apenas um rito de regresso à infância. Poucos anos depois, em prolongada crise existencial, Jorge de Lima reconverte-se à fé católica. Na verdade, ele não abandonara o campo religioso, mas a transformação ocorreu, tornando a fé mais profunda e com caráter definitivo. O poeta despregou-se de um de um cristianismo regional (ou uma sensibilidade religiosa herdada com a língua, os costumes, a paisagem etc.) para encontrar de fato a fé ou a concepção cristã católica em sentido próprio. Por haver atravessado o deserto da modernidade, quando os poderosos laços afetivos à terra natal e ao passado foram rompidos, o poeta adquiriu a necessária disponibilidade espiritual para encontrar a transcendência do mistério cristão. Fez parceria com o poeta Murilo Mendes e publicou, em 1935, Tempo e eternidade, sob o inusitado lema Restauremos a poesia em Cristo, causando estranheza no meio literário da época, que vivia em plena estética modernista. Nessa obra, em síntese, a poesia assume a linguagem da fé, e a fé, por sua vez, é a suprema inspiração da poesia. Na síntese de Luciano Santos, a poesia de Jorge de Lima passa de uma teologia da criação a uma teologia da redenção, que revela o estado decaído desse mundo e a urgência de sua regeneração por intervenção divina. 147 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia As características cristãs – reconvertidas – são acentuadas na publicação do livro posterior A túnica inconsútil, em que Jorge de Lima cria o poema mais exponencial da obra, monumento em que há a fusão da estética com a efusão mística, Poema do cristão, considerado uma teopoética: Poema do cristão Porque o sangue de Cristo jorrou sobre os meus olhos, a minha visão é universal e tem dimensões que ninguém sabe. Os milênios passados e os futuros não me aturdem porque nasço e nascerei, porque sou uno com todas as criaturas, com todos os seres, com todas as coisas, que eu decomponho e absorvo com os sentidos, e compreendo com a inteligência transfigurada em Cristo. Tenho os movimentos alargados. Sou ubíquo:estou em Deus e na matéria; sou velhíssimo e apenas nasci ontem, estou molhado dos limos primitivos, e ao mesmo tempo ressoo as trombetas finais, compreendo todas as línguas, todos os gestos, todos os signos, tenho glóbulos de sangue das raças mais opostas. Posso enxugar com um simples aceno o choro de todos os irmãos distantes. Posso estender sobre todas as cabeças um céu unânime e estrelado. Chamo todos os mendigos para comer comigo, e ando sobre as águas como os profetas bíblicos. Não há escuridão mais para mim. Opero transfusões de luz nos seres opacos, posso mutilar-me e reproduzir meus membros como as estrelas-do-mar, porque creio na ressurreição da carne e creio em Cristo, e creio na vida eterna, amém. E, tendo a vida eterna, posso transgredir leis naturais: a minha passagem é esperada nas estradas, venho e irei como uma profecia, sou espontâneo com a intuição e a Fé. Sou rápido como a resposta do Mestre, sou inconsútil como a sua túnica, sou numeroso como a sua Igreja, tenho os braços abertos como a sua Cruz despedaçada e refeita, todas as horas, em todas as direções, nos quatro pontos cardeais, e sobre os ombros A conduzo 148 Unidade III LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 através de toda a escuridão do mundo, porque tenho a luz eterna nos olhos. E tendo a luz eterna nos olhos, sou o maior mágico: ressuscito na boca dos tigres, sou palhaço, sou alfa e ômega, peixe, cordeiro, comedor de gafanhotos, sou ridículo, sou tentado e perdoado, sou derrubado no chão e glorificado, tenho mantos de púrpura, e de estamenha, sou burríssimo como São Cristóvão, e sapientíssimo como Santo Tomás. E sou louco, louco, inteiramente louco, para sempre, para todos os séculos, louco de Deus, amém! E, sendo a loucura de Deus, sou a razão das coisas, a ordem e a medida; sou a balança, a criação, a obediência; sou o arrependimento, sou a humildade; sou o autor da paixão e morte de Jesus; sou a culpa de tudo. Nada sou. Miserere mei, Deus, secundum magnam misericordiam tuam! Fonte: Lima (1958, p. 425). Esse poema (e a obra no geral) foi admirado por filósofos franceses da linha cristã, meditado por monges beneditinos e frades dominicanos do Brasil e da Europa, traduzido e publicado em revistas literárias europeias. No texto, a lógica da contradição, em que ocorre a exclusão dos opostos: isto ou aquilo dá espaço à lógica dos contrastes, em que as diferenças se compõem: isto e aquilo. No que diz respeito ao mistério cristão, a criação é inteira, em que a unidade absoluta de Deus encontra a criatura humana em sua indômita multiplicidade. O poeta não nega o que passou, nem foge; passa a ser contemporâneo do tempo. Por isso, “nasce e nascerá” a cada dia. Não há ser, acontecimento, raça, língua, gesto ou signo que não esteja prenhe de epifania, pois tudo é graça e cristão-poeta é oficiante desse conúbio de eternidade e tempo. Em contrapartida, não há dimensão do humano que de algum modo não pertença, por direito, ao cristão-poeta. O poeta identifica-se com diferentes tipos, em especial à figura do louco, que, desde os tempos iniciais da tradição cristã, se desenvolveu: “loucos de Cristo”. Não se fia no próprio juízo nem obedece à própria vontade, sendo insubmisso à lógica, excluído pelos sábios do mundo. Essa loucura do cristão não constitui uma desmedida, mas a própria medida do Logos divino, pela qual tudo o mais deve medir-se. 6.3 Adélia Prado: poesia materno-teologal Como forma de apresentação da poeta, recorro à notória Eliana Yunes (2004, p. 24): Adélia Luzia Prado de Freitas nasceu para a literatura quando Carlos Drummond de Andrade anunciou, em sua crônica de jornal, que o Brasil tinha uma grande poeta-mulher, prestes a sair do prelo, em 9 outubro de 1975. A moça católica, mãe de filhos que faz pão e reza todo dia, continuava sua lide 149 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia de casa, sem perder a poesia, sem sair das Minas Gerais, mais precisamente de Divinópolis, nome profético para berço de uma poeta a quem seu arauto, ao fazer o anúncio, chamou de “bíblica”: sei que Deus mora em mim, mas esta letra é minha. Bagagem, publicado em 1976, é o primeiro livro de Adélia Prado, considerado original por despontar em um contexto político da ditadura, mas comprometido mais com a lírica doméstico-religiosa do que com o lado político-ideológico. Além disso, a obra não se filia aos ideais feministas nem segue o experimentalismo formal, em voga entre os poetas. Nos poemas de Adélia Prado, perpassam a fé e a crença, as quais atravessam igualmente as correntes mais puramente humanas da vida cotidiana, descobrindo, ali, o transcendente. Para ela, sua poesia é derivada e nascida da mesma fonte de todo Poema que é a Palavra de Deus (BINGEMER apud DE MORI et al., 2011). Antes do nome Não me importa a palavra, esta corriqueira. Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros onde nasce o “de”, o “aliás”, o “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensível muleta que me apoia. Quem entender a linguagem entende Deus cujo Filho é o Verbo. Morre quem entender. A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. Em momentos de graça, infrequentíssimos, se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Puro susto e terror (PRADO, 1999, p. 22). No poema, a inspiração é assumidamente divina. Como o próprio texto diz, antes do nome está o nome que a tudo nomeia e por nada e ninguém pode ser nomeado. Nome apresenta-se impronunciável pelos humanos, mas que de forma misericordiosa faz-se acessível à carne perecível e mortal, destinada à morte e transpassada de finitude. Ao longo da história da humanidade, profetas e poetas têm expressado essa dignidade da condição humana de ser confidente privilegiada do misterioso e “esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros”, onde nascem as preposições, os advérbios, os nomes próprios e comuns. A revelação chega ao ser humano como graça que surpreende e convoca a liberdade. É graça divina não apenas pelo fato de Deus fazer essa proposta ao ser humano, mas também pelo fato de que o homem, limitado e finito, poder ouvi-la, acolhê-la e a ela responder na fé, carente de evidências e comprovações empíricas. A poesia de Adélia Prado parece ser uma dessas respostas à proposta divina. 150 Unidade III LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Assim, o ser humano, além de ser um ouvinte da palavra, é um ser criador e emissor de palavra, um ser de linguagem. A linguagem da fé tem o potencial de criar e transformar a realidade. A palavra pronunciada, antes que tudo fosse nomeado, será a transcrição teografada dessa palavra que era no princípio, quando só existia “o caos esplêndido”. Palavra que um dia se fez carne, o verbo encarnado. Observação A palavra teografia é do professor padre Ulpiano Vázquez, que a emprega para significar a escrita de Deus nos corações humanos, inspirado em 2 Coríntios 3.3 (BINGEMER apud DE MORI et al., 2011, p. 242). O cristianismo não menospreza o corpo; ao contrário, inclui-o em sua reflexão e o situa proeminentemente ao falar sobre o mistério do divino. A transcendência no cristianismo é a experiência de um Deus encarnado. Portanto, é uma experiência que passa pela corporeidade. O leitor verifica esse dado central do cristianismo no poema a seguir: O aprendiz de ermitão É muito difícil jejuar Com a boca decifro o mundo, proferindo palavras, Beijando os lábiosde Jonathan que chama Primora, Nome de amor inventado. Flauta com a boca se toca, Do sopro de Deus a alma nasce, Dor tão bonita que eu peço: Dói mais, um pouquinho só. Não me peça de volta o que me destes, Deus. Meu corpo de novo é inocente. Como a pastos sem cerca amo Jonathan, Mesmo que me esqueça. Ó mundo bonito! Eu quero conhecer quem fez o mundo Tão concertadamente descuidoso. Os papagaios falam, Jonathan respira E tira do seu alento este som: Primora. “Tomai e comei.” Vosso Reino é comida? Eu sei? Não sei. Mas tudo é corpo, até Vós, Mensurável matéria. O espírito busca palavras, quem não enxerga ouve sons, 151 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Quem é surdo vê luzes, O peito dispara a pique de arrebentar. Salva mistérios! Salve mundo! Corpo de Deus, boca minha, Espanto de escrever, arriscando minha vida: Eu te amo, Jonathan, Acreditando que você é Deus e Me salvará a palavra dita por sua boca. Me saúda assim como à Aurora Consurgens: Vem, Primora. Falas como um homem, Mas o que escuto é o estrondo Que vem do setentrião. Me dá coragem, Deus, para eu nascer (PRADO, 1999, p. 422). Tudo que faz parte do humano não causa estranheza ao divino, segundo o cristianismo. Assim, toda tentativa de minimizar a corporeidade e a carne e delas escapar é tentação que descaracteriza a fé cristã. Na explicação de Bingemer (apud DE MORI et al., 2011, p. 244): A partir desta convicção central cristã de que o corpo humano é condição de possibilidade da encarnação e, sobretudo, da experiência do divino, a poesia de Adélia Prado adquire, aos olhos da teologia, uma luminosidade toda especial. Acreditamos mesmo que aí se encontra o eixo central que rege toda a sua obra, seja em poesia ou em prosa. Em sua obra, a poeta não cessa de redimir e louvar o corpo humano, em busca incessante da comunhão com Deus. Adélia Prado faz o leitor recordar que o cristianismo por excelência é a religião da economia dos corpos: no batismo, o corpo é lavado no Sangue de Cristo; na eucaristia, o corpo nutre-se do Corpo de Deus; no matrimônio, os corpos fundem-se em uma só carne. Enfim, a identidade humana é de ser espírito encarnado. Saiba mais Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, a poeta Adélia Prado esclarece sobre a personagem Jonathan, constante em sua poesia. Para saber mais sobre o início da fama da poeta, sua relação com a religião cristã e processo de criação, veja a entrevista no site: <http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/716/entrevistados/adelia_ prado_1994.htm>. 152 Unidade III LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Ao encontrar seu corpo humano e mortal, encontra o corpo do Senhor encarnado, vivo, morto e ressuscitado e dado eucaristicamente em alimento ao povo. O sacrifício Não tem mar, nem transtorno político, nem desgraça ecológica que me afaste de Jonathan. Vinte invernos não bastaram Para esmaecer sua imagem. Manhã, noite, meio-dia, como um diamante, meu amor se perfaz, indestrutível. Eu suspiro por ele. Casar, ter filhos, foi tudo só um disfarce, recreio, um modo humano de me dar repouso. Dias há em que meu desejo é vingar-me, proferir impropérios: maldito, maldito. Mas é a mim que maldigo, pois vive dentro de mim e talvez seja Deus fazendo pantomimas. Quero ver Jonathan e com o mesmo forte desejo quero adorar, prostrar-me, canta com alta voz Panis Angelicus. Desde a juventude canto. Desde a juventude desejo e desejo a presença que para sempre me cale. As outras meninas bailavam, eu estacava querendo e só de querer vivi. Licor de romãs, Sangue invisível pulsando na presença Santíssima. Eu canto muito alto: Jonathan é Jesus (PRADO, 1999, p. 359-360). Esse poema faz parte do livro O pelicano, publicado em 1987, que é todo permeado pela presença de Jonathan, como figura amorosa e apaixonada, constituindo a corporeidade feita poesia. No poema, Jesus é transliterado em Jonathan e é o verdadeiro amor do qual os outros amores são pálidos reflexos. Enfim, para Adélia Prado, Deus e poesia confundem-se, e falar de um é falar de outra e vice-versa. 153 LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Literatura BrasiLeira: Poesia Exemplos de Aplicação I. A. Poema de Jorge de Lima, publicado em 1927: Nordeste Nordeste, terra de São Sol! Irmã enchente, vamos dar graças a Nosso Senhor, que a minha madrasta Seca torrou seus anjinhos para os comer. São Tomé passou por aqui? Passou, sim senhor! Pajeú! Pajeú! Vamos lavar Pedra Bonita, meus irmãos, com o sangue de mil meninos, amém! D. Sebastião ressuscitou! S. Tomé passou por aqui? Passou, sim senhor. Terra de Deus! Terra de minha bisavó que dançou uma valsa com D. Pedro II. São Tomé passou por aqui? Tranca a porta, gente, Cabeleira aí vem! Sertão! Pedra Bonita! Tragam uma virgem para D. Lampião! (LIMA, 1958, p. 326). Sertão do Pajeú localiza-se em Pernambuco. Cabeleira é o apelido de José de Gomes, um dos primeiros cangaceiros de Pernambuco. B. Início do último capítulo de Vidas secas, obra de Graciliano Ramos publicada em 1938: “A vida na fazenda se tornara difícil. Sinha Vitória benzia-se tremendo, manejava o rosário, mexia os beiços rezando rezas desesperadas. Encolhido no banco do copiar, Fabiano espiava a catinga amarela, onde as folhas secas se pulverizavam, trituradas pelos redemoinhos, e os garranchos se torciam, negros, torrados. No céu azul as últimas arribações tinham desaparecido. Pouco a pouco os bichos se finavam, devorados pelo carrapato. E Fabiano resistia, pedindo a Deus um milagre.” Copiar é varanda. Garrancho é ramo tortuoso de árvore. Arribação é tipo de ave. C. Anúncio produzido pela agência de publicidade Integra Comunicações, Fortaleza/Ceará e premiado em concurso no ano de 2000 em Nova York. 154 Unidade III LE T - Re vi sã o: A nd re ia /M ic he l/V irg in ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 6/ 04 /1 3 Figura 5 A seguir, a transcrição do que consta do anúncio, na parte inferior, à direita: Hoje é dia de São José. Reze com a gente. Ó glorioso São José, a quem foi dado o poder de tornar possíveis as coisas humanamente impossíveis, vinde em nosso auxílio nas dificuldades em que nos achamos. Tomai sob a vossa poderosa proteção as causas que vos confiamos, para que tenham uma solução favorável (faz-se o pedido). Ó pai amantíssimo, em vós depositamos toda nossa confiança. Que ninguém possa jamais dizer que vos invocamos em vão. Já que tudo podeis junto a Jesus e Maria mostrai-nos que vossa bondade é igual ao vosso poder. São José, a quem Deus confiou o cuidado com a mais santa família que jamais houve, sede o pai e protetor das nossas e impetrai-nos a graça de vivermos e morrermos no amor de Jesus e Maria. São José do Perpétuo Socorro rogai por nós que recorremos a vós. Amém. Obrigado, São José, por estar atendendo tão bem às nossas preces, mandando a chuva que o Ceará tanto precisa (BANDINI, 2010, p. 171). a) Nos três textos, avulta o drama social e geográfico da região nordestina brasileira. Indique o maior problema da região. b) A religiosidade está presente nos três textos. Especifique como o aspecto religioso é tratado em cada texto, discutindo a relação entre religiosidade e o problema da questão anterior. II. Entre os críticos, acredita-se que o diminutivo dado ao nome de Santa Teresa foi pelo poeta Jorge de Lima. Esse diminutivo foi intertextualizado
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