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O imaginário no poder

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O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica (1977)
Jacqueline Held
Texto: “Fantástico, espírito crítico e desmistificação”
“É preciso devolver à razão humana sua função de turbulência e de agressividade e ir o mais rápido possível nas regiões da imprudência intelectual (...). À imaginação criadora pertence essa função do irreal, que é psiquicamente tão útil quanto a ‘função do real’, tão frequentemente citada pelos psicólogos para caracterizar a adaptação de um espírito a uma realidade marcada pelos valores sociais”.
Bachelard
Held inicia seu texto com os questionamentos: “em que medida a criança menor já se coloca, à sua maneira e talvez sob formas particulares, as questões que o adulto estará inclinado a qualificar de ‘filosóficas’?” (p.09)
“Que certo tipo de fantástico seria capaz de enriquecer a reflexão da criança? Seria impondo-lhe conteúdos dogmáticos para que sejam aceitos tais e quais (a obra literária se confundiria então, com o manual, no sentido estrito e negativo do termo, isto é, receptáculo de conhecimentos ou de pseudo-conhecimentos fixos...) ou seria propondo-lhe elementos, referências, pontos de partida capazes de auxiliá-la a refletir, a dialogar, a elaborar, por si mesma, pouco a pouco, suas respostas?” (p.164)
A criança e os problemas humanos
O adulto, geralmente, prefere ignorar o olhar às vezes muito lúcido e precocemente crítico que uma criança lhe lança. No entanto, se é verdade que pais e professores aparecem, muita vezes, à criança ainda pequena, como oniscientes e revestidos com qualidades às vezes fictícias, se é verdade que a distância, o questionamento do adulto se tornarão mais agudos durante a fase de pré-adolescência e de adolescência, a criança, muito mais cedo, já se interroga e julga: “O que é uma pessoa grande? Seria melhor ser criança ou adulto?” (p.164)
A criança e os problemas humanos
“Os seres humanos, com idades diferente da sua, são sempre, para a criança, fonte de perplexidade e de perguntas.” Ler página 164-165
Held, por meio do exemplo da consideração de Luc, sete anos e meio, (Não sei, não! Se me tivessem perguntado, acho que não queria ter nascido”), mostra que há vários problemas sobre a existência que preocupam as crianças.
“O mundo da criança jamais foi, não pode ser, hoje muito menos do que ontem, esse verde paraíso poético e desencarnado, que estaria longe do mundo e do ruído, ao abrigo dos tormentos e das lutas do homem. Educar a criança num universo fechado, almofadado, neutro, vazio e passivo é impossível, por mais que o queiramos. Querer afastá-la, a todo custo, dos problemas de seu tempo e da vida humana em geral é maneira, entre outras, de condicioná-la, de fazer dela uma egoísta que se desinteressará pelo mundo e pelos outros, que sempre procurará apenas livrar a sua cara e que sempre dirá “após mim, o dilúvio”” (p.166).
Isabelle Jan considera sobre a importância de contrabalançar um “condicionamento total da criança entregue sem defesa ao falatório publicitário e aos mecanismos repetitivos de uma literatura anestesiante.” (p.166)
 
Daí a “necessidade, importância capital também de obras profundamente ancoradas na vida e nos problemas de sua época, na seriedade humana com toda sua densidade, mas onde, no entanto, ‘o sonho se mistura naturalmente com o real como se isso se passasse na imaginação da criança’” (p.166)
Held cita várias obras que entremeiam o fantástico e temas contundentes como a educação repressiva, o fascismo...
A pesquisa de Held sobre a relação das crianças com estas obras mostra que elas são atraídas pelos problemas humanos abordados.
Em seguida, Held afirma que o fantástico deixa a crítica muito mais lúcida: “E esse efeito aumentativo conduz a sátira a grau que dificilmente o modo de abordagem puramente realista poderia atingir sem cair no esquematismo e numa facilidade melodramática.” (p.167)
Função complexa e ambígua do fantástico
A tenaz desconfiança que o fantástico muitas vezes encontra, especialmente entre muitos educadores, deve-se à sua própria dualidade: o conto tem sido, desde sempre, aquilo que tem por função responder ao desejo fundamental do homem. Expressão e prolongamento do desejo humano, resposta a esse desejo, o conto fantástico apresenta, incontestavelmente, um lado compensatório. É válvula de segurança. Quando o homem sofre muito, ele se aliena, sonha. Seríamos então tentados a ver apenas um aspecto possível do conto: essa satisfação simbólica dada a nossos desejos impediria o homem de agir, de procurar mais longe, de lutar, de inventar o futuro. (p.168)
(...) A alienação fácil não é, certamente, apanágio do fantástico. Para Held, as histórias banais e falsamente realistas não libertam do fantástico.
Held afirma que “o homem inventa, cria, descobre, precisamente porque está insatisfeito e porque sonha” (p.168) e existem várias formas de sonhar. Os melhores livros fantásticos possuem um enorme poder de questionamento, de desmistificação. Isso é a prova de que “a história fantástica pode perfeitamente, às vezes sob falsa aparência de frivolidade, tocar em problemas graves, tornar a criança atenta e crítica, conduzi-la a interrogação mais experimentada e crítica sobre os dramas do mundo que a cerca.” (p.169)
Segundo Bernard Epin, “Ao nível dos contos, percebemos que as obras clássicas das quais as crianças, há muito tempo, se apropriaram, quer também tenham sido escritas ou não para elas, não são nem as histórias moralizantes (...) nem as histórias cobertas com açúcar. Atrás dos contos perfilam conflitos políticos, sociais, referência à sexualidade, à realidade trágica e, muitas vezes, cruel das relações humanas. Se essas obras pertencem à literatura infantil, certamente não é por seus temas enfadonhos ou pela imagem idílica que propõe do mundo da infância.” (p.169)
Contos de fadas: João e Maria; Cinderela; cantigas de roda.
Assim, não é só por motivos pueris que a criança se aproxima dessas histórias. Além disso, ela está no mesmo nível das sátiras fantásticas que misturam sonho e realidade.
Questionamento próprio do fantástico
“Quer se dirija à criança, que ao adulto, certo tipo de crítica, de sátira, de questionamento só é verdadeiramente chocante, e às vezes possível, pela natureza e pelos próprios processos do fantástico: usos e costumes de outro planeta, olhar de seres estranhos sobre nós, comicidade corrosiva do absurdo; aumento de nossos ridículos e de nossas taras, repentinamente percebidos com ingenuidade ao microscópio...”(p.172)
Ler página 172
“Assim, o autêntico imaginário não nos distancia da realidade, mas no-la restitui, especialmente porque nos ajuda a transpor a parede de esquecimento, a tela de esquecimento do hábito.” (p.173)
O que tememos, pois, no fantástico? Que escravize o espírito ainda maleável da criança, a impeça de pensar “logicamente”, ser mais racional? Mas fantástico e ciência verdadeira, isto é, dinâmica, em constante procura, não esclerosada, seriam opostos?” (p.174)
Vamos mais longe: diante de cartomantes, horóscopos e predições de todo gênero, diante de charlatães de toda espécie, quem será mais vulnerável? Aquele a quem se propõe muito cedo uma dinâmica do sonho e da imaginação? Talvez. Não seria antes aquele adulto que, desde pequenino, sempre ouviu, e consequentemente sempre falou, unicamente uma linguagem “séria”? Estaria então ingenuamente pronto para receber qualquer informação e entende-la ao “pé da letras”.
A criança, para se desenvolver de maneira equilibrada, harmoniosa, tem necessidade de sonho, de imaginário. O problema todo, de fato, está em alimentá-la com imaginário são, autêntico, de qualidade real. Pois, na verdade, quando a imaginação humana não foi, não é formada e alimentada de maneira válida, ela se perverte e procura, em compensação, sucedâneos, formas de substituição deploráveis, aviltantes e degradantes (horóscopo, loteria federal).” (p.174)
O fantástico estimula a criança, a incita pela própria distância que cria, a uma interrogação, a um questionamento.
Esse tipo de fantástico ocupa, no crescimento da criança, lugar capital.
De fato, o perigo de escravidão do pensamento reside não no fantástico, mas em qualquer pedagogia que desenvolve, na criança, atitude de respeito sem exame pessoal prévio. Perigo dos preconceitos e dos ídolos recebidos., sejam esses ídolos a própria ciência.
Com relação aos clássicos contos de fadas, às tradicionais histórias de bruxas, gigantes, fantasmas, dragões ou lobos, contadas de modo sério e horrífico – que, aliás, têm também sua função e são, às vezes, catárticas, desde que não sejam propostas prematuramente – certa mudança desses temas aguça o espírito crítico, extirpa do interior a credulidade, o trágico e a angústia. (p.177).

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