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Perrault e Basile

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Contos de fadas
Charles Perrault
Marisa Mendes (2000), em Em busca dos contos perdidos, relata que os contos de fadas mais conhecidos de Basile, Perrault e dos irmãos Grimm retomam motivos de “Eros e Psiquê”, de Apuleio (II.d.C). A gata borralheira, de Perrault apresenta os seguintes pontos em comum com a narrativa do filósofo romano:
- a inveja das irmãs;
- duras tarefas impostas às protagonistas;
- presença de forças mágicas que irão auxiliar as protagonistas;
- casamento como recompensa pelos desafios enfrentados.
Giambatistta Basile (1566- 1632) escreveu O conto do conto (Lo cunto de li cunti) (1634) ou Pentameron com cinquenta histórias emolduradas semelhantes ao Decameron (1351) , de Boccaccio (1313-1375). As histórias de Basile versam sobre a mitologia, histórias de bruxas e fadas, animais falantes e outras entidades sobrenaturais. O famoso incipit “Era uma vez” foi primeiramente usado pelo escritor napolitano.
 
O conto do conto, de Basile
“A história que enquadra as outras quarenta e nove narrativas, conta a trama da princesa Zoza, uma jovem que nunca sorria. Seu pai, o rei de Vallepelosa, depois de tantas tentativas, faz construir, diante do palácio real, uma fonte, da qual jorra óleo, na esperança que os que ali passassem dessem saltos acrobáticos ou escorregassem no óleo, fazendo a princesa sorrir. Um dia uma velha está na fonte enchendo um pote com o óleo que jorrava dela, quando um serviçal que passava por ali derruba, propositalmente, o pote. Irrompe entre eles uma série de insultos e gestos obscenos que provocam, finalmente, o riso na melancólica princesa.” 
O conto do conto, de Basile
“Esse riso lhe custou uma maldição: Zoza não se casará com ninguém, senão com Taddeo, o príncipe de Camporotondo, que está sepultado em uma tumba fora da cidade, vitimado por um encantamento e só será acordado quando uma jovem, num período de três dias, encher de lágrimas um jarro que se encontrava ao lado da tumba. Zoza parte para encontrar o príncipe, e no caminho as fadas lhe dão três objetos mágicos: uma castanha, uma noz e uma amêndoa. Depois de sete anos de peregrinação, Zoza chega à tumba de Taddeo, e começa a encher o vaso de lágrimas. “
O conto dos contos, de Basile
“Quando está quase cheio, adormece. Lucia, uma escrava, que a observava, com pouco esforço, termina de encher o jarro; o príncipe acorda do encantamento e casa-se com ela. Zoza não desiste; a sua felicidade depende do príncipe. A jovem aluga uma casa em frente ao palácio do príncipe e em três diferentes ocasiões abre os frutos que ganhou das fadas: da castanha sai um gnomo cantor, da noz saem doze pintinhos de ouro e da amêndoa, uma boneca que tecia com fios de ouro chamando, assim, a atenção do príncipe e da escrava. A escrava se encantou com os três objetos e obrigou Taddeo a procurar Zoza, que lhe dá de presente os três objetos. 
O conto dos contos, de Basile
O último desses objetos suscita na princesa impostora um desejo incontrolável de ouvir histórias. Taddeo chama ao palácio dez velhas, as melhores contadoras de histórias, todas com um defeito físico, as quais contam, em cinco dias, dez histórias, cada uma. No quinto dia, Zoza substitui Iacova e narra sua própria desventura e casa-se finalmente com Taddeo, fechando, assim a moldura da narrativa principal.” (p.19-20)
COAN, Rozalir Burigo. A PRESENÇA DE GIAMBATTISTA BASILE NAS NARRATIVAS POPULARES DE CHARLES PERRAULT E DOS IRMÃOS GRIMM: OS VULTOS DE CINDERELA. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina, 2009.
Cinderela ou o sapatinho de vidro
Cinderela ou o sapatinho de vidro
“Poucos contos de fadas gozaram de tão rica sobrevivência literária, cinematográfica e musical quanto Cinderela” (Tatar, 2013, p.44)
“A primeira Cinderela que conhecemos chamava-se Yeh-hsien, e sua história foi registrada por Tuan Ch’engshih por volta de 850 d.C. Yeh-hsien usa um vestido feito de plumas de martim-pescador e minúsculos sapatos de ouro. Ela triunfa sobre sua madrasta e a filha desta, que são mortas a pedradas. Como as Cinderelas ocidentais, Yeh-hsien é uma criatura humilde, que faz os serviços domésticos e sofre tratamento humilhante nas mãos da madrasta e da filha desta. Sua salvação aparece na forma de um peixe de três metros de comprimento que a cumula de ouro, pérolas, vestidos e comida. 
 
“O apelo duradouro de Cinderela provém não só da trajetória dos trapos ao luxo da heroína do conto, mas também do modo como a história se conecta com conflitos de família clássicos que vão desde a rivalidade entre irmãos e ciúmes sexuais. O pai de Cinderela pode não ter grande participação nesta historia, mas o papel da mãe (substituta) e o das irmãs (de criação) assumem grande relevo.” (Tatar, 2013, p. 45)
“Se a mãe de Cinderela está morta, seu espírito reaparece como doador mágico que dá a heroína os presentes de que ela precisa para fazer uma aparição esplêndida no baile. Com a mãe boa morta, o controle passa à mãe má -viva e ativa, - que boicota Cinderela de todas as maneiras possíveis, embora não consiga impedir seu triunfo final. Nessa cisão da mãe em dois opostos polares, psicólogos viram um mecanismo para ajudar as crianças a elaborar os conflitos criados quando começam a amadurecer e se desligar de seus primeiros guardiões. A imagem da mãe boa é preservada em toda a sua glória, ainda que sentimentos de desamparo e ressentimento ganhem expressão através da figura da madrasta exploradora e perversa.” (Tatar, 2013, p.45)
Comparação entre a versão do conto Cinderela de Basile e a de Perrault 
- na versão de Basile, Zezoulla é filha de um príncipe viúvo e tem uma mestra costureira que a incita a matar a madrasta má.
- há uma ironia de a mestra Carmosina ser quem ensina Zezoulla a assassinar a madrasta;
- vários elementos mágicos, pomba que avisa Zezoulla sobre as fadas da ilha da Sardenha; a fada que avisa o capitão do navios sobre os motivos que não deixam o barco zarpar,
- Carmosina revela que tem seis filhas e o príncipe se afeiçoa a elas e torna-se indiferente à filha de sangue;
- Zezoulla tem uma triste sorte, passa a se chamar Gata Borralheira. Há uma reviravolta, da felicidade para a infelicidade.
- ao viajar para Sardenha, o príncipe só pergunta o que Zezoulla quer de presente por brincadeira. A filha lembra o pai o significado da palavra honrada: “Escuta bem o que te digo: quem à palavra falta, falta à honra e não faz falta”
- os presentes concedidos pelas fadas da Sardenha não aparecem na versão de Perrault: “deu-lhe uma tâmara, uma sachola, um balde de ouro e uma toalha de seda: a tâmara para ser plantada e as restantes coisas para a cultivar e cuidar”.
- há três momentos em que Zezoulla pede à fada que mude sua roupa e a prepare para ir às festas onde encontrará o rei.
- o criado que persegue Zezoulla não aparece na versão de Perrault;
 
- as palavras do rei assumem um forte teor sexual: «Se a fundação já é assim tão bela, o que não será a casa? Ó belo candelabro, onde foi colocada a vela que me consome! Ó tripé do belo caldeirão onde ferve a minha vida! Ó cortiça bela presa à linha de pesca do amor com que apanhou esta alma! Vede, eu vos abraço e vos aperto e, se não posso chegar à planta, venero as raízes; se não chego aos capitéis, beijo as bases!”
- na versão de Basile o final moral é sobre a inveja das irmãs: «louco é aquele que se mede com as estrelas».
- Há a passagem da infelicidade para a felicidade a partir do reconhecimento do Rei em relação à verdadeira identidade de Zezoulla.
Versão de Perrault
- Pai de Cinderela é apenas um gentil-homem que se casa novamente com uma mulher que tinha duas filhas.
- os ciúmes da madrasta em relação à Cinderela, que era muito mais bela que suas filhas, ficam realçados. Os trabalhos árduos impostos à menina são fruto da inveja da madrasta.
- pai é apenas passivo e dominado pela mulher, não é indiferente à filha;
- há um baile oferecido pelo filho do rei;
- há descrições de vestimentas e hábitos da época, como os penteados, as fitas para deixar
a cintura mais fina;
Versão de Perrault
- Cinderela é um exemplo de virtude e de passividade, mas, por outro lado, mente para as irmãs e para a madrasta sobre sua outra identidade. (- Tem razão, todos cairiam na gargalhada ao ver uma Gata Borralheira indo ao baile/ Se fosse outra, em vez de Cinderela, as deixaria de todo despenteadas, mas como ela era boa, as penteou muitíssimo bem).
- Cinderela tem uma madrinha, que é uma fada. Ela precisa ser obediente à madrinha para conseguir ir ao baile.
- a fada madrinha transforma a abóbora em carruagem, ratos em cavalos e cocheiro, os lagartos transformam-se em lacaios;
- Perrault acrescenta detalhes sobre a vestimenta de Cinderela e os sapatinhos de vidro;
 
Versão de Perrault
- há somente dois bailes;
- Cinderela perde o sapatinho de vidro e não as chinelas, como em Basile;
- há um número menor de elementos mágicos. 
- Ao final, Cinderela assume uma atitude passiva em relação às irmãs. 
- quase não há a conotação sexual presente no conto de Basile.
- Marc Soriano aponta também o humor e a ironia refinados de Perrault.
Anete Abramovicz, em “Contos de Perrault, imagens de mulheres”, considera que as mulheres variam entre boas e más nos contos de fada de Perrault.
“Quando más,, as habitam a inveja, o ressentimento, a feiúra, a velhice, a perversão, e, obviamente, a maldade, e são aquelas retratadas nas bruxas e nas madrastas. [...] Tais mulheres são castigadas no final, morrem.” (p.91)
“As qualidades consagradas por Perrault às mulheres exemplares são: bondade, submissão e obediência, paciência, aceitação de uma situação dada, compaixão, generosidade, graça. Esses atributos femininos estão “à disposição” de um homem que os reconheça e se case com aquela que os porte.” (p.91)
O Pequeno Polegar
- episódio do Ciclope Polifemo, de Odisséia.
“Já o ogro voltou a beber, satisfeito por ter com o que regalar muito os amigos. Bebeu uma dúzia de copos a mais do que costumava, o que lhe subiu um pouco à cabeça, e o obrigou a ir deitar-se” (p.164)
O Pequeno Polegar
“O Pequeno Polegar narra o triunfo do pequeno e humilde sobre um adversário poderoso. Sem nenhuma ajuda, o Pequeno Polegar derrota o ogro e volta par casa como um herói, salvando os pais da pobreza que os levara a abandonar os filhos na mata.” (Tatar, 2013, p.269)
“Na França de Perrault, a vida era uma luta contra a pobreza, a doença e a fome. Nas palavras de Robert Darnton, uma mulher naquela época “não podia imaginar ter algum domínio sobre a natureza; assim, concebia como Deus queria – e como fez a mãe do Pequeno Polegar”. Bocas a mais para alimentar podiam significar a diferença entre sobreviver e morrer de fome, e o abandono de crianças por razões econômicas, embora raro, acontecia.” (Tatar 2013, p.269)
O Pequeno Polegar
“O Pequeno Polegar, apesar de trair a mulher do ogro, mostrar-se ingrato por sua hospitalidade e roubar o que pertencia ao marido, continua sendo encantador. O desfecho da história, narrando a sorte do menino depois da derrota do ogro, revela o profundo cinismo de Perrault em relação aos códigos sociais da época em que vivia.” (Tatar, 2013, p.269)
O pequeno polegar
“Muitos pais eram obrigados a abandonar os filhos, ou mandá-los a mendigar, por causa da extrema miséria. [...]. Se existem madrastas [nestas histórias] é porque a morte no parto era muito comum e os viúvos, cheios de filhos, eram obrigados a se casar novamente, embora soubessem que as madrastras maltratariam suas crianças. Para os camponeses, a vida era uma luta pela sobrevivência, situação que Perrault retrata magistralmente em O Pequeno Polegar. Convém lembrar que seu manuscrito é de 1695 e, um ano antes, a França tinha vivido uma de suas piores crises de miséria e fome da população. [E], se reis, rainhas, príncipes e princesas são personagens constantes das histórias é porque eles estavam nos sonhos de felicidade dos oprimidos, eram a própria imagem da riqueza, do luxo e da opulência (Mendes, 2000, p. 57).
MENDES, Mariza. Em busca dos contos perdidos. São Paulo: UNESP, 2000.
 
 
Desfecho moralizante
Com a moral das histórias, Perrault “evidencia, em primeiro lugar, a intenção de mostrar que contar uma história e acrescentar-lhe uma lição de moral são coisas distintas. Separada estruturalmente do conto, a moral não o contamina e pode mesmo ser suprimida, sem que se altere o texto da narrativa. Outra evidência é o desejo de atualizar as histórias, dando-lhes um contexto social contemporâneo. E a ironia que permeia os preceitos morais deixa claro o distanciamento que o poeta burguês pretendia imprimir ao modo ―culto e erudito de tratar as histórias do povo (MENDES, p.119, 2000).
MENDES, Mariza. Em busca dos contos perdidos. São Paulo: UNESP, 2000.
E o príncipe dançou...O conto de fadas, da tradição oral à dança contemporânea
Katia Canton
Os contos de fadas como artefatos culturais
 
Canton questiona o modelo eurocêntrico dos contos de fadas, ou seja, “as histórias de Cinderela, A bela adormecida, Chapeuzinho Vermelho, como as conhecemos, foram escritas na Europa cerca de duzentos anos atrás e ainda continuam sendo as histórias universais, “clássicas”. (p.25)
Canton retoma o conceito de mitificação de Roland Barthes (Milogogias – 1954-1956), que “define o mito como uma representação coletiva que é socialmente determinada e então invertida, para que não pareça um artefato cultural. A mitificação ocorre quando um certo objeto ou evento é esvaziado de seus aspectos morais, culturais, sociais e estéticos, sendo, assim, apresentado como algo “neutro” ou “natural”.
 
“O conto de fadas pertence à categoria dos mitos contemporâneos que foram mitificados ideologicamente, desistoricizados e despolitizados para representar e manter os interesses das classes dominantes. Isso pode se aplicar tanto à corte francesa do século XVII, da época de Perrault, quanto ao seu uso contemporâneo na indústria de entretenimento. Ao longo dos anos, esses contos foram reescritos em coleções familiares publicadas no mundo todo e transformados em filmes “clássicos” de Walt Disney. Assumiram diferentes formas na publicidade e nos comerciais de tevê. Em todas essas produções, foram apresentados como textos anônimos, universais e atemporais.” (p.25)
 
“Os contos de fadas têm uma história. Suas diferentes versões têm autores que, por sua vez, criaram sob a influência de valores sociais, políticos e culturais de seu meio. Em outras palavras, o conto de fadas possui uma ideologia. E o processo de “mitificação” ao qual Barthes se refere consiste no ocultamento dessa mesma ideologia.” (p.25)
“Uma forma de libertar os contos de fadas de seu status “mitificado” é restaurar a historicidade dos textos e levar em conta revisões pessoais e reinterpretações das histórias.” (p.26)
 
Jacqueline Held
De fato, o perigo de escravidão do pensamento reside não no fantástico, mas em qualquer pedagogia que desenvolve, na criança, atitude de respeito sem exame pessoal prévio. Perigo dos preconceitos e dos ídolos recebidos., sejam esses ídolos a própria ciência. (Held, 1999, p.176)
 
Com relação aos clássicos contos de fadas, às tradicionais histórias de bruxas, gigantes, fantasmas, dragões ou lobos, contadas de modo sério e horrífico – que, aliás, têm também sua função e são, às vezes, catárticas, desde que não sejam propostas prematuramente – certa mudança desses temas aguça o espírito crítico, extirpa do interior a credulidade, o trágico e a angústia. (Held, p.177).
Os contos de fadas
Da interpretação oral à literatura, de Kátia Canton
“O conto popular de magia faz parte de uma tradição oral pré-capitalista que expressa os desejos das classes inferiores de obterem melhores condições de vida, enquanto o termo conto de fadas indica o advento de uma forma literária que se apropria de elementos populares para apresentar valores e comportamentos das classes aristocrática e burguesa. O mundo oral do conto popular de magia é habitado por reis, rainhas, soldados e camponeses, e raramente
contém personagens da burguesia. Além disso, em suas origens, os contos de fadas eram amorais e abordavam a luta de classes real e a competição pelo poder, apresentando uma dura realidade de miséria, injustiça e exploração. Atos de canibalismo, o favorecimento do primogênito, a venda e o rapto de uma noiva, assim como a transformação de humanos em animais ou plantas faziam parte da realidade social e das crenças de muitas sociedades primitivas.” (p.30)
“Em contraste, os contos de fadas são produtos literários elaborados pelas classes superiores.” (p.30)
 
“Na mesma medida em que os contos orais mudam constantemente por meio de narrações sucessivas, os contos de fadas literários são expressos de maneiras diferentes, conforme condições sócio-históricas, culturais e estéticas particulares:
Charles Perrault – França do século XVII;
Irmãos Grimm – Alemanha do século XIX;
Walt Disney – pós-Depressão dos Estados Unidos do século XX
“Branca de Neve e os sete anões (1937), [...] Cinderela (1951) e A bela adormecida (1959) encarnam uma mentalidade de classe média patriarcal e capitalista.” (p.31)
“Assim, num comercial de tevê, Cinderela não se queixa da exploração que sofre em casa, já que pode usar o produto certo para encerar o chão, o que facilita o seu trabalho. E a Bela Adormecida de Disney aceita e aguarda pacientemente o seu destino de ter de dormir durante cem anos, cantando de antemão: “Um dia o meu príncipe virá””. (p.32)
Canton explica que os contos de fadas surgiram como literatura infantil no século XVII: “Isto aconteceu numa época em que o absolutismo francês ditava os padrões de civilização para o resto da Europa. Na corte de Luís XIV, o conto de fadas representava e legitimava as normas do absolutismo e, por conseguinte, criou-se um verdadeiro fanatismo por esse gênero literário no mundo da aristocracia.” (p.33)
Para Canton, o termo conto de fadas originou-se do francês Contes de fées, “estranhamente inapropriado, já que nem sempre existem fadas nas histórias. Na verdade, ele foi criado para distinguir o que pertencia aos incultos e camponeses do que era culto e aristocrático. Formulando um termo distinto, “conto de fadas”, os escritores também estabeleceram a distinção entre o que vinha diretamente da experiência e da luta social e o que se transformou em fantasia.” (p.33)
“Baseados em histórias orais constantemente remodeladas em diferentes épocas históricas pela interação viva entre narradores e audiência, os contos de fadas se tornaram produtos literários disponíveis apenas aos ricos e às poucas pessoas com acesso à leitura. Embora às vezes criticassem alguns aspectos do status quo, o conteúdo global dos contos de fadas literários filiava-se a uma ideologia que atuava em favor da classe superior.” (p.34)
Canton defende que alguns contos de fadas foram inventados pelos próprios escritores, como o Barba Azul, de Perrault, o que corrobora sua tese de que os contos de fadas são, “na verdade, produtos da criação pessoal do autor, por sua vez pertencentes a contextos sócio-históricos específicos.” (p.35)
Charles Perrault e as lições de civilização.
Canton, citando Zipes, mostra que os contos de fadas de Perrault possuem características nacionalistas, com o intuito de mostrar que a língua e os costumes franceses possuíam valor em detrimento da valorização irrestrita da cultura grega.
Canton mostra como a suntuosa corte de Luís XIV foi inundada pela moda dos contos de fadas.
Kátia Canton
“A moda dos contos de fadas do final do século XVII também indicava grandes alterações comportamentais na civilização ocidental. As maneiras feudais começaram a ser consideradas selvagens e naturais, vistas como bárbaras e não-civilizadas. O homme civilisé, idealizado por Luís XIV e pela corte francesa, empregava maneiras sociais intrincadas, usava peruca e pó de arroz e falava om um estilo discursivo barroco.” (p.37)
“Assim, práticas como a de beber sangue e sacrifícios de corpos, que faziam parte das experiências ritualísticas documentadas em contos populares orais, foram banidas e consideradas grotescas e escandalosas na tradição literária europeia. As referências sexuais foram descartadas ou suavizadas.” (p.38)
Charles Perrault
“Embora a moda dos contos de fadas literários incluísse contos para adultos, muitos escritores começaram a moldá-los para agradar especificamente às crianças. Assim, tornaram-se veículos úteis para a civilité, já que a ideologia das histórias preparava as crianças aristocráticas para seus futuros papeis sociais, garantindo a manutenção do status quo. Charles Perrault foi o principal criador dos contos de fadas para crianças, embora não se dirigisse exclusivamente para elas.” (p.39)
 
Perrault “apesar de ter-se educado para a profissão de advogado, em 1660, aos 32 anos, iniciou-se na carreira de “poeta público”, devotando-se às glórias do reinado de Luís XIV, escrevendo odes e obras alegóricas narrando as realizações do monarca.” (p.40)
Perrault assume uma enorme importância no meio aristocrático como o homem de confiança de Colbert, ministro de Finanças e superintendente das construções da realeza.
Em 1963, quando Colbert morre, Perrault passa a se dedicar à educação de seus três filhos e à escritura de contos de fadas.
Embora Charles Perrault fosse o autor da coleção, assinou-a com o nome do seu filho mais novo, Pierre, na época com 18 anos. Isso ocorreu, em grande parte, devido ao envolvimento de Perrault na chamada “Querela dos antigos e modernos”, onde defendeu a incorporação do folclore na literatura, em oposição aos escritores eruditos Boileau e Racine, que pregavam a fidelidade à literatura grega clássica.” (p.41)
“Em primeiro lugar, dando a autoria dos contos a Pierre, Perrault estaria a salvo das acusações literárias de Boileau contra a sua falta de refinamento. Em seguida, usando a figura de seu filho mais novo, poderia injetar nas histórias uma ingenuidade típica que as tornaria mais atraentes às crianças. A maior preocupação de Perrault era transformar os contos em lições de civilité, sem que, ao mesmo tempo, perdessem a atração sobre as crianças.” (p.41-42)
“Perrault iniciou o seu movimento de doutrinação com o interesse especial de educar os próprios filhos. Pretendia elevar os contos populares à categoria de grande arte, impregnando-os de finesse literária e de lições morais que penetrariam nas mentes infantis de um modo divertido.” (p.42)
“As origens dos oito contos em prosa podem ser encontradas em motivos da tradição popular francesa, mas, principalmente, nas obras literárias de Straporola, Basile e escritores franceses que já haviam utilizado material proveniente dos contos populares, adaptando-os. Perrault alterou novamente as perspectivas narrativas desses contos, mudando personagens, cenários e tramas, de modo a se adequarem às ideias aristocrático-burguesas de civilização.” (p.42)
“Chapeuzinho Vermelhor, baseada num conto popular de magia francês, recebeu tratamento drasticamente diferente por parte de Charles Perrault.
 
Conto popular, originariamente, narrava a história de uma menina camponesa que ia visitar a avó carregando uma cesta de pão com manteiga. Um lobisomem come a avó, colocando seu sangue numa garrafa e a carne numa arca. Quando a menina chega, ele se veste como a avó e lhe diz para jogar suas roupas no fogo. Quando a menina percebe que vai ser comida pelo lobisomem, ela o engana. Insiste em que precisa sair para fazer suas necessidades. O lobisomem consente, mas amarra uma corda em torno da perna da menina. Ela sai, amarra a corda no tronco de uma árvore e corre de volta para casa. (p.45)
Perrault manteve a história, mas retirou passagens ritualísticas que faziam parte da tradição camponesa. Por exemplo, o ritual que incluía beber sangue e comer carne, na história, indicava, na verdade, que a menina havia adquirido maturidade para substituir a avó. A menina camponesa corajosa e esperta que está aprendendo a se defender do perigos externos é transformada, na versão de Perrault, numa
menina burguesa ingênua de Chapeuzinho Vermelho. (p.44)
Perrault dá ênfase à desobediência da menina, que, por não obedecer os conselhos da mãe, é punida, devorada pelo lobo: “o alerta aqui é claro, as meninas devem obedecer a seus pais e aprender a controlar seus impulsos naturais.” (p.44-45)
“Num contexto de absolutismo patriarcal cristão, as mulheres estavam no centro das atenções de Perrault. Seus contos refletiam o ideal da femme civilizée, que deve ser bela, dócil, polida, passiva, laboriosa e saber como se controlar.” (p.45)
“Os heróis masculinos de Perrault são totalmente diferentes de suas mulheres bonitas e passivas. São ativos, inteligentes e civilizados, refletindo o homem da alta burguesia aceito na corte de Luís XIV, talvez semelhante ao próprio Perrault.”
Ver Ricardo do topete
“Os contos de Perrault aconselham as mulheres a aprender a controlar seus anseios sexuais e a se subordinarem aos homens de bom senso, que sabem o que é bom parra elas. Esta era uma lição útil num tempo em que as mulheres mais jovens dos círculos burgueses e aristocráticos eram constantemente forçadas a casamentos de conveniência com homens idosos que nem sempre eram especialmente atraentes. Jack Zipes chama a atenção para o fato de que as mulheres eram consideradas bruxas em potencial, o que garantia que seus pretensos poderes sexuais de sedução fossem vinculados pela igreja e pelo Estado a forças diabólicas.” (p.48)

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