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Individuo, organismo e doença: a atualidade de "o normal e o patológico" de Georges Canguilhem

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INDIVÍDUO, ORGANISMO E DOENÇA: A ATUALIDADE DE “O NORMAL E O 
PATOLÓGICO” DE GEORGES CANGUILHEM 
Octavio Domont de Serpa Jr. 
 
RESUMO 
O artigo propõe-se a examinar criticamente a tese de medicina de Georges Canguilhem, 
Essais sur quelques problèmes concernant le normal et le pathologique, publicada pela 
primeira vez em 1943, enfatizando o papel desempenhado pela totalidade orgânica 
individual como o ponto de vista privilegiado para a definição da fronteira entre o 
normal e o patológico, percorrendo as direções internas de sua argumentação, e 
destacando a sua relevância e atualidade para os debates contemporâneos em clínica, 
terapêutica e nas ciências da vida. 
PALAVRAS-CHAVE: 
Georges Canguilhem; Normal e Patológico; Saúde; Doença; Cura. 
ABSTRACT 
Individual, Body and Illness: the currency of Georges Canguilhem’s “The Normal and the 
Pathological” 
The article proposes a critical appraisal of Georges Canguilhem´s medical thesis, Essais 
sur quelques problèmes concernant le normal et le pathologique, originally published in 
1943. Emphasizing the role of the individual whole body for the definition of the 
boundaries between the normal and the pathological, it also stresses its relevance and 
currency to contemporary debates on clinical and therapeutical practices, and on life 
sciences. 
KEY-WORDS: 
Georges Canguilhem; Normal and Pathological; Health; Disease; Healing. 
Há cerca de dez anos tivemos a publicação da última edição dos dois principais sistemas 
classificatórios usados internacionalmente em psiquiatria e saúde mental, a CID-10 
(1993) e o DSM-IV (1994). Uma tendência se delineava nestas novas edições dos dois 
principais sistemas classificatórios em âmbito internacional: a expansão do número de 
categorias diagnósticas incluídas em cada uma delas. A CID-10 incluía 100 categorias 
contra 30 na CID-9 (1978), enquanto o DSM-IV incluía 297, contra 292 no DSM-III-R 
(1987), 265 no DSM-III (1980) e – o maior salto – 180 na DSM-II (1968). E o que 
pudemos notar, a medida em que aquelas novas edições entraram em uso, foi que esta 
explosão de diagnósticos se fez às expensas de um processo de patologização do 
normal. 
Este movimento de extensão de um índice de patologia ao universo do normal já seria, 
em si, suficientemente rico para ser tomado como objeto de exame. Que forças e 
interesses estão em jogo neste processo? Como articular este movimento com as 
transformações pelas quais passa o mundo ocidental na modernidade tardia? Como 
relacionar esta pulverização do patológico com as formas contemporâneas de 
subjetivação? Mas talvez em função de um cacoete deixado pelo meu ofício mais 
freqüente nos últimos tempos – professor de psicopatologia, daqueles que não se 
contenta com o papel de mascate da CID e do DSM – optei por um outro caminho. 
Sempre considerei que não se pode honestamente introduzir alguém ao universo da 
psicopatologia sem que se ofereçam simultaneamente ferramentas que capacitem o 
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estudante ou o profissional para uma sólida discussão conceitual e prática acerca da 
fronteira entre o normal e o patológico. Fronteira esta que não é rígida e, como vimos 
acima, está sendo mais uma vez interrogada pela já mencionada patologização do 
normal. E na medida em que é flutuante esta demarcação, o debate acerca do normal e 
do patológico se atualiza constantemente, exigindo daqueles que militam na Clínica um 
esforço permanente de reflexão. A não ser que nos contentemos com algum 
essencialismo de ocasião para considerarmos esta questão para sempre resolvida. No 
intuito de nos imunizarmos contra este risco, vou recorrer aqui à obra de um filósofo, 
também graduado em medicina. Trata-se de Georges Canguilhem, cujo ensaio sobre o 
normal e o patológico completa, este ano, sessenta anos de sua publicação. 
Georges Canguilhem (1904-1995) nasceu no sul da França e percorreu o caminho 
tradicional daqueles que aspiravam à consagração acadêmica: foi para Paris, onde 
prosseguiu seus estudos no liceu Henri IV, matriculado no khâgne – seção literária da 
classe preparatória dos candidatos à École Normale Supérieure (ENS). Canguilhem 
ingressou na ENS em 1924, na mesma turma de Jean-Paul Sartre, Raymond Aron, Paul 
Nizan e Daniel Lagache. Em 1927 ele passou no exame de agrégation de filosofia, o que 
lhe abria as portas do magistério superior. Em 1936 foi nomeado professor de khâgne 
em Toulouse. Foi nesta ocasião que Canguilhem decidiu cursar medicina. Diversamente 
de outros filósofos, não foi pelo viés da psicologia, da psicopatologia e da psiquiatria que 
ele se inclinou para a medicina. Muito pelo contrário, ele execrava as apresentações de 
doentes que Georges Dumas realizava em Sainte-Anne e à qual tradicionalmente 
compareciam seus colegas de ENS. E nem tampouco tinha especial interesse em 
Psicologia, disciplina com a qual ele foi, por sinal, impiedoso no seu exigente comentário 
crítico Qu’est-ce que la Psychologie, de 1956, reeditado posteriormente nos seus Études 
d’histoire et de philosophie des sciences ([1968] 1994), no qual ele a caracteriza como 
uma “filosofia sem rigor”, “uma ética sem exigência”, “uma medicina sem controle”, 
jocosamente deixando aos psicólogos a escolha de, ao sair da Sorbonne pela Rue Saint-
Jacques, escolher para que lado ir: se dirigir ao Panthéon – o templo da Razão - ou à 
Chefatura de Polícia – expressão do controle social. 
O que o levou para a medicina foi um conjunto de circunstâncias pessoais, sociais e 
políticas. Do lado pessoal, foi a conjugação de uma insatisfação com seu trabalho como 
professor com uma necessidade de confrontar o universo abstrato da reflexão filosófica 
com alguma experiência concreta, algo que desse corpo e vida à sua filosofia, o que a 
medicina poderia, literalmente, oferecer. 
Do lado social e político, temos a França ocupada e o Regime de Vichy, o que leva 
Canguilhem, em 1940, a se afastar do ensino universitário, alegando razões de 
conveniência pessoal. Mas o afastamento não durou muito tempo. No ano seguinte, 
Cavaillès, professor de Lógica e Filosofia na Universidade de Strasbourg, deslocada 
durante a ocupação para Clermont-Ferrand, lhe fez dois convites, ambos aceitos. Tendo 
sido nomeado para a Sorbonne, Cavaillès convidou Canguilhem para sucedê-lo em 
Clermont-Ferrand tanto na Universidade quanto na organização das ações da 
Resistência Francesa na região do Maciço Central. No plano intelectual, esta mudança 
para Clermont-Ferrand o permitiu reencontrar seu antigo colega de ENS, Lagache, que 
lhe apresentou um autor – Kurt Goldstein ([1935] 1983) - que seria fundamental no seu 
trabalho. Em julho de 1943, não obstante as dificuldades impostas pela guerra, pela 
resistência e pelo período de clandestinidade, Georges Canguilhem defendeu a sua tese 
de doutorado em medicina sobre o normal e o patológico. Esta tese teve a sua primeira 
edição neste mesmo ano, em Clermont-Ferrand, sob o título Essais sur quelques 
problèmes concernant le normal et le pathologique. A sua terceira edição – da qual 
temos uma tradução brasileira - de 1966, apresenta modificações importantes; a 
começar pelo título, simplificado para O Normal e o Patológico. Além disso, esta edição é 
dividida em duas partes. A primeira contém o texto integral da tese de 1943. A 
segunda, intitulada Novas Reflexões Sobre o Normal e o Patológico, apresenta três 
textos escritos entre 1963-1966 que retomam o assunto à luz de novas contribuições na 
epistemologia e história das ciências – notadamente os trabalhos de Foucault ([1985] 
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Embora fosse a minha intenção inicial, não poderei, por uma questão de espaço, me 
dedicar, neste artigo, a uma apresentação comentada do conteúdo linear da tese de 
1943. Vou privilegiar um aspecto, a meu ver central, da sua argumentação, me 
referindo aos demais elementos desenvolvidos na tese na medida em que estes forem 
indispensáveis à exposição que pretendo realizar. O ponto que pretendo colocar em 
relevo na sua discussão é aquele que ressalta o caráter simultaneamente individual e 
holista da delimitação da fronteira entre o normal e o patológico. 
Reconhecendo, desde a Introdução, a medicina como “uma técnica ou uma arte situada 
na confluência de várias ciências, mais do que uma ciência propriamente 
dita” (Canguilhem, [1966] 1982: 16), e cujo aspecto fundamental, não obstante a 
racionalização científica, é a clínica e a terapêutica, “isto é, uma técnica de instauração e 
restauração do normal, que não pode ser inteiramente reduzida ao simples 
conhecimento” (Canguilhem, [1966] 1982: 16), o autor desenvolve a sua argumentação 
no intuito de explorar duas séries de questões: o problema das relações entre ciências e 
técnicas e o das normas e do normal. Estas questões voltarão a ser abordadas em 
outros artigos e conferências ao longo de sua obra. 
A tese se divide em duas partes, cada uma encabeçada por uma grande questão. A 
primeira parte é conduzida pela pergunta: “Seria o patológico apenas uma modificação 
quantitativa do estado normal?” Nesta parte, Canguilhem faz um trabalho de história da 
ciência no intuito de analisar criticamente uma concepção acerca das relações entre o 
normal e o patológico que foi hegemônica no século XIX e que tomava o patológico 
como uma mera variação quantitativa do normal. Esta concepção quantitativa autoriza 
uma confiança na capacidade de intervenção e resolução do médico, mas ao estabelecer 
uma linha de continuidade entre o normal e o patológico, para melhor conhecer no 
intuito de agir melhor, arrisca a perder qualquer especificidade que o último pudesse 
ter. São examinados alguns autores cuja relevância para esta concepção é assinalada, 
sendo que dois deles serão personagens freqüentes em outros trabalhos de Canguilhem: 
Comte e Claude Bernard. 
A segunda parte é encabeçada pela pergunta: “Existem ciências do Normal e do 
Patológico?”. Neste caso, a maior parte das referências é contemporânea da redação da 
tese e serve como fundamentação para os argumentos que sustentam a posição 
particular de Canguilhem, no máximo insinuada na primeira parte e que neste momento 
se explicita completamente, no debate acerca do normal e do patológico. 
No decorrer da primeira parte da tese, na medida em que examina as incoerências e 
ambigüidades da concepção quantitativa, Canguilhem também demonstra a insistência 
da dimensão qualitativa em retornar pela porta dos fundos sempre que era expulsa 
pelos quantativistas do debate acerca do normal e do patológico. Isto o leva a 
questionar sobre a possibilidade de o conceito de doença ser efetivamente o de uma 
realidade objetiva acessível ao conhecimento científico quantitativo. “A diferença de 
valor que o ser vivo estabelece entre a sua vida normal e a sua vida patológica seria 
uma aparência ilusória que o cientista deveria negar?” (Canguilhem, [1966] 1982: 53). 
Este questionamento serve para Canguilhem introduzir o elemento que podemos dizer 
fundamental na sua análise dos conceitos de normal e patológico. Refiro-me à dimensão 
fenomenológica, experiencial, corporificada numa existência individual tomada em sua 
totalidade orgânica, daqueles conceitos. 
... o fato patológico só pode ser apreendido como tal – isto é, como alteração do estado 
normal – ao nível da totalidade orgânica; e, em se tratando do homem, ao nível da 
totalidade individual consciente, em que a doença torna-se uma espécie de mal. Ser 
doente é, realmente, para o homem, viver uma vida diferente, mesmo no sentido 
biológico da palavra. (Canguilhem, [1966] 1982: 64) 
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É justamente esta dimensão fenomenológica e organísmica que servirá de passagem da 
análise crítica que ele faz das posições de Broussais, Comte e Claude Bernard para o 
exame do último autor discutido por Canguilhem neste trabalho de desconstrução crítica 
da concepção quantitativa. Este autor é René Leriche, um contemporâneo de 
Canguilhem, cirurgião, professor do Collège de France, e autor de diversos livros e 
artigos, dentre os quais um verbete sobre saúde e doença destinado à Encyclopédie 
Française. 
O ponto de partida da análise de Canguilhem são duas frases de Leriche: “A saúde é a 
vida no silêncio dos órgãos” e “a doença é aquilo que perturba os homens no exercício 
normal de sua vida e em suas ocupações e, sobretudo, aquilo que os faz 
sofrer” (Leriche, 1936, citado por Canguilhem, [1966] 1982: 67). Em outros termos, 
saúde é a inconsciência do corpo, sendo a sua consciência despertada pelos limites 
impostos à saúde, ou seja, pela doença, seus sofrimentos e suas dores. Este é um 
entendimento que Canguilhem endossaria, na medida em que esta é uma definição de 
doença que deriva do doente e não do médico. Mas, pergunta Leriche, e se um sujeito 
que ia muito bem obrigado, desconhecendo dores, limitações, incapacidades e/ou 
disfunções morre atropelado e na autópsia se descobre que o seu fígado apresenta 
alterações macro e microscópicas compatíveis com um câncer hepático, desconhecido 
em vida pelo sujeito? Ele estava doente antes de morrer? (é claro, porque depois de 
morto não faria o menor sentido declará-lo doente). Este exemplo hipotético serve para 
Leriche afirmar que “silêncio dos órgãos” não significa ausência de doença, cassando a 
partir daí a autoridade do indivíduo no que se refere à avaliação da presença - ou não - 
de um estado patológico. Contrariando a linha que privilegia Canguilhem, Leriche afirma 
que para definir a doença é preciso desumanizá-la, porque “na doença, o que há de 
menos importante é o homem” (Leriche, 1936, citado por Canguilhem, [1966] 1982: 
68). Para Leriche, a doença não é do doente, mas do órgão, do tecido, e atualizando 
este entendimento, poderíamos dizer, da célula, do DNA. Mas o contra-argumento de 
Canguilhem é convincente. Se na autópsia daquele sujeito hipotético foi encontrado um 
câncer de fígado é porque antes dele outros padeceram de dores, icterícia, ascite, que 
no exame cadavérico foram relacionadas a uma determinada alteração estrutural 
hepática. Se não fosse esta dimensão experiencial valorativa, esta alteração hepática, 
quando encontrada, poderia ter sido relatada como uma mera variação. Por isto 
Canguilhem insiste que “não há nada na ciência que antes não tenha aparecido na 
consciência e que especialmente no caso que nos interessa, é o ponto de vista do 
doente que, no fundo, é verdadeiro” (Canguilhem, [1966] 1982: 68; grifo do autor). A 
medicina só existe porque há pessoas que se sentem doentes e não como um conjunto 
de procedimentos criados para informar aos indivíduos que eles estão doentes. Este 
aspecto do debate nos remete mais precisamente a uma das séries de questões que 
percorrem toda a tese de Canguilhem, aquela que se refere à relação das ciências e das 
técnicas. Embora seja menos explicitamente tematizada do que a outra – a das normas 
e do normal – o problema das ciências e das técnicas acompanha toda esta parte da 
argumentação de Canguilhem, na medida em que este afirma que a terapêutica – 
técnica – decorre muito mais de uma condição vivencial, corporificada, e que só 
secundariamente é recuperada e organizada peloconhecimento – ciência(1). Ou, como 
ele mesmo diz, não se deve ignorar que “as ocasiões de renovação e de progresso 
teórico são encontradas pela consciência humana no seu campo de atividade não-
teórica, pragmática e técnica” (Canguilhem, [1966] 1982: 79). 
Mas se neste aspecto do seu pensamento Leriche é tomado em consideração na 
condição de antagonista, logo em seguida ele será recuperado como um aliado no 
esforço de alavancar uma concepção qualitativa de saúde e doença como a mais 
apropriada. Isto se dá pelo exame que aquele faz da experiência da dor. Para Leriche, 
esta experiência faz da doença uma “novidade fisiológica”. Recorrendo a um outro 
vocabulário, poderia dizer que a dor é um exemplo do que se chama de qualia – 
qualidades sentidas ou fenomênicas associadas às experiências - remetendo, 
conseqüentemente, a um aspecto experiencial, subjetivo, qualitativo. São exatamente 
estes os elementos que Canguilhem privilegia no entendimento do patológico. Uma dor 
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não é sentida por uma terminal nervosa, pela raiz posterior da medula espinhal, nem 
por uma região específica do cérebro. A dor – e a doença – são sentidas e vividas por 
um sujeito em sua totalidade orgânica e biográfica. 
É na segunda parte de sua tese que Canguilhem apresenta e justifica as suas posições 
na questão do normal e do patológico. Ele o faz inicialmente por meio de uma série de 
contrastes que apresentam a utilidade metodológica de permitir destacar a dimensão 
avaliativa e qualitativa do que se chama normal – e por extensão, do patológico. 
Através de uma análise semântica do termo normal, Canguilhem demonstra uma 
ambigüidade no uso deste termo. Ele tanto pode ser usado como se referindo a um fato 
– emprego descritivo – como pode ser usado como se remetendo a um valor – emprego 
avaliativo. Dito de outro modo, normal é aquilo que é como deve ser – valor – ou 
normal é aquilo que se encontra mais freqüentemente ou está na média – fato. Esta 
duplicidade de usos é uma fonte usual de mal entendidos, na medida em que os usos se 
confundem numa mesma circunstância de emprego do termo normal sem que aqueles 
que o empregam se dêem conta disso. A argumentação de Canguilhem vai se 
desenvolver no sentido de colocar como uso primeiro do termo normal o uso avaliativo, 
que é incompatível com uma posição quantitativa, como aquela examinada por ele na 
primeira parte de sua tese. Uma concepção quantitativa, de continuidade e 
homogeneidade entre o normal e o patológico, é descritiva na medida em que deve 
poder informar o quanto de afastamento da posição normal caracteriza o patológico. O 
que Canguilhem demonstra é que este grau de afastamento, mesmo que mensurado de 
forma científica e precisa, é apenas uma medida e só pelo recurso a um valor é que se 
pode avaliar a partir de qual medida de afastamento do normal ingressamos no 
patológico. 
Neste ponto, Canguilhem retoma a inversão realizada na ordem das derivações no que 
diz respeito à relação entre ciência e técnica ao discutir a concepção de Leriche – não há 
nada na ciência que antes não tenha aparecido na consciência – de certo modo a 
justificando, quando ele afirma: 
É certo que, em medicina, o estado normal do corpo humano é o estado que se deseja 
restabelecer. Mas será que se deve considerá-lo normal porque é visado como fim a ser 
atingido pela terapêutica, ou, pelo contrário, será que a terapêutica o visa justamente 
porque ele considerado como normal pelo interessado, isto é, pelo doente? Afirmamos 
que a segunda relação é a verdadeira. (Canguilhem, [1966] 1982: 96) 
Assim, o móvel primeiro para a existência da medicina advém da experiência do ser 
humano que considera como patológicos certos estados, apreendidos sob a forma de 
valores negativos. Canguilhem considera que a atividade terapêutica, elaborada e 
desenvolvida pelos viventes humanos de todas as culturas e épocas, consiste numa 
manifestação específica de um efeito próprio da vida. Mas a técnica vital não é 
considerada normativa por analogia com as técnicas humanas de restauração do 
normal, pelo contrário, é por ser atividade de informação e assimilação que a vida é 
considerada a matriz de toda a atividade técnica humana. Isto porque a vida não 
conhece indiferença, a vida é polaridade dinâmica – normal ou patológico – e um efeito 
espontâneo destas características, do qual a medicina nada mais é do que uma 
extensão, é o de lutar contra tudo que constitui obstáculo à sua manutenção e ao seu 
desenvolvimento. Em última análise, o valor fundamental é a própria Vida. É a Vida que 
torna o normal biológico um valor e não um fato de realidade estatística. 
... a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível, (...) a vida é 
polaridade e por isso mesmo, posição inconsciente de valor, em resumo, (...) a vida é, 
de fato, uma atividade normativa. (Canguilhem, [1966] 1982: 96) 
A passagem acima citada merece destaque porque ela revela mais do que parece. Em 
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primeiro lugar, ela antecipa o conceito-chave da argumentação de Canguilhem: a 
normatividade biológica (normativo sendo aquele que institui normas). E em segundo 
lugar, ela apresenta Canguilhem incidindo no mesmo equívoco que ele denuncia, o de 
confundir fatos e valores. Isto porque ele faz da normatividade da vida um fato que 
fundamenta as escolhas e preferências dos viventes. Ou seja, ele faz de um valor um 
fato, quer dizer, procura fundamentar uma atividade avaliativa – como deve ser – em 
outra descritiva – como é. Isto fica reforçado quando se percebe que naquela mesma 
página ele critica um dicionário de filosofia que dá a entender que o valor só pode ser 
atribuído a um fato biológico por um falante – um ser humano – ao passo que 
Canguilhem acredita que quando um ser vivo reage a uma doença, uma lesão, uma 
incapacidade, isto revela um fato fundamental, o da normatividade vital. E isto se 
estende da ameba – “Viver é, mesmo para uma ameba, preferir e excluir” (Canguilhem, 
[1966] 1982: 105) – ao homem. Pode-se dizer que Canguilhem incide aqui em uma 
falácia naturalista(2). Mesmo que normativamente estendamos esta prescrição de 
inteligibilidade dos fenômenos biológicos para todos os seres, esta atribuição de valor só 
poderia ter sido feita por um ser falante. 
Como anunciei acima, Canguilhem recorre ao emprego de termos contrastantes para 
explicitar melhor as confusões decorrentes da oposição de base que é a do 
entendimento do normal enquanto fato e do normal enquanto valor. O primeiro par de 
termos reúne anormal e anomalia. Recorrendo mais uma vez a uma análise semântica, 
e agora também etimológica, de validade maior na língua francesa, ele indica que, 
naquela língua, anomalia é um substantivo sem adjetivo e que anormal é um adjetivo 
sem substantivo, o que fez com que as respectivas carências fossem suprimidas pelas 
articulação de um e de outro, de modo que anormal tornou-se o adjetivo de anomalia e 
este o substantivo daquela. Do ponto de vista etimológico, anomalia deriva do grego 
omalos, que significa liso, uniforme, regular, logo an-omalos significa áspero, rugoso, 
desigual. Já anormal deriva do grego nomos, do latim norma, que significam lei, regra. 
Esta análise etimológica indica que o primeiro termo – anomalia – é na origem um 
termo descritivo, ao passo que o segundo – anormal – é valorativo, mas a articulação 
de ambos acabou produzindo o equívoco já mencionado de tomar por descritivo o que é 
avaliativo e vice-versa. Seguindo estas indicações é possível então afirmar que a 
anomaliaindica apenas uma variação, uma diferença, uma descontinuidade espacial no 
plano morfológico da espécie. Enquanto mera variação poderia ser ignorada pela ordem 
vital. Mas se esta variação implica algum impedimento ou obstáculo ao exercício de 
funções ou ao pleno desenvolvimento da vida, ela será valorizada negativamente pela 
própria vida e constituirá o patológico ou o anormal, entendido este último não como a 
ausência de normas ou de normatividade – o que seria incompatível com a continuidade 
da vida – mas como uma restrição de normatividade. Se a anomalia não apresentar 
repercussão experimentada pelo indivíduo, ela será ignorada ou concebida como uma 
variedade indiferente. 
Uma conseqüência fundamental desta distinção é a indicação de que diversidade, em si 
mesma, não é doença. Patológico, etimologicamente, deriva de pathos, afecção, 
“sentimento direto e concreto de sofrimento e de impotência, sentimento de vida 
contrariada” (Canguilhem, [1966] 1982: 106). Nem toda diversidade traz isto como 
conseqüência. Voltando à anomalia, ela é variação e diferença, podendo ou não ser 
patológica. O que decide qual das duas possibilidades vai prevalecer é a relação 
particular que vai se estabelecer entre aquele organismo e o meio em que se encontra. 
Isto coloca em contexto a questão do normal. Este não é um atributo só do organismo, 
nem tampouco só do meio, mas do resultado da interação entre eles. Nota-se, portanto, 
que não faz o menor sentido falar de um organismo ou de um meio normal, se forem 
tomados isoladamente. Um meio é normal exclusivamente tomado com relação a um 
organismo, ou conjunto de organismos, se nele for possível para aquele, ou aqueles, 
desenvolver melhor a sua vida e manter a sua própria norma. Com isso, uma variação 
que poderia ser menos normativa em um determinado meio pode vir a tornar-se a mais 
normativa se alguma modificação se suceder naquele meio. É por isso que podemos 
falar, como alguns evolucionistas, em monstros promissores. Ou seja, é a variação, e 
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não a eterna repetição, que representa uma espécie de seguro da Vida, aumentando as 
suas possibilidades de perpetuação. A anomalia exprime uma outra norma de vida. Se 
esta for inferior à norma anterior quanto à estabilidade, fecundidade e variabilidade da 
vida, a anomalia é patológica. Se for igual ou superior, é normal. É neste sentido que o 
patológico não é a ausência de norma biológica, mas a presença de uma norma 
diferente, mas comparativamente recusada pela vida. 
O outro par que Canguilhem examina para discutir o uso ambíguo do termo normal 
como valor ou como fato é aquele composto por norma (valor) e média (fato). Não raro, 
pelo contrário, até muito freqüentemente, encontramos como resposta para a pergunta: 
“O que é o normal?” o enunciado: “a maior freqüência estatística”. É como se o conceito 
de média fosse “um equivalente objetivo e cientificamente válido do conceito de normal 
ou de norma” (Canguilhem, [1966] 1982: 118). Mas como decidir, só com base em 
procedimentos estatísticos, dentro de que intervalos de variação com relação à uma 
posição média teórica os indivíduos ainda podem ser considerados normais? Reaparece 
a questão da subordinação da média – objetiva, descritiva – à norma – individual, 
avaliativa. Como afirma Canguilhem, numa inversão desconcertante para o senso 
comum, “Um traço humano não seria normal por ser freqüente; mas seria freqüente por 
ser normal, isto é, normativo num determinado gênero de vida” (Canguilhem, [1966] 
1982: 126). 
É a atividade normativa biológica dos organismos que avalia e prefere certos estados e 
comportamentos com referência a determinados meios e por isso os escolhe, tornando-
os mais freqüentes. Deste modo, as médias fisiológicas não registram objetivamente o 
normal tal como ele é, sempre foi e sempre será. O que elas registram são as “latitudes 
funcionais” conquistadas pela espécie humana. O Fisiologista só indica o normal 
resultante da atividade normativa dos organismos, atividade que rompe as normas para 
criar novas normas, a serem mais uma vez registradas em seu conteúdo instável pela 
fisiologia. 
Toda esta reflexão precedente serve como base para a discussão fundamental e de uma 
atualidade surpreendente que Canguilhem desenvolve no capítulo IV - Doença, Cura e 
Saúde - da segunda parte de sua tese, e que é o aspecto de sua obra que me interessa 
destacar neste artigo. É extraordinário notar a pertinência e a relevância do material de 
reflexão sobre aquelas três noções, contido neste capítulo, quando ele é transportado 
para a configuração atual da prática e da pesquisa médica, completamente 
transformadas com relação ao que eram há sessenta anos atrás. Basta citar a crescente 
molecularização das doenças; todo arsenal tecnológico de diagnóstico, especialmente no 
que concerne à produção de imagens; o aumento da eficácia associada à diminuição dos 
efeitos colaterais dos tratamentos farmacológicos, entre outros. 
É neste capítulo que é afirmada a incidência individual do processo de estabelecimento 
das fronteiras entre o normal e o patológico. É apenas o ser vivo individual que pode 
dizer onde começa a doença. Isto pode sugerir um quê de relativismo na concepção de 
Canguilhem, tendo em vista que o normal não tem um conteúdo rígido, 
indiferentemente aplicado a todo e qualquer indivíduo. É claro que este tipo de 
consideração acarreta uma imprecisão quanto aos limites entre o normal e o patológico. 
Mas só se tomarmos o conjunto dos indivíduos e exigirmos a definição de uma mesma e 
invariável fronteira válida para todos eles. 
O lugar central do indivíduo nesta avaliação tem sido destacado por diferentes 
comentadores da obra de Canguilhem(3). É somente através do ponto de vista 
individual que se pode avaliar se uma norma de vida é superior à outra. Se 
considerarmos que enquanto há vida há normatividade, logo a vida é normal. Mas uma 
norma será considerada superior à outra quando aquela comporta o que esta permite e 
o que esta não permite. Sendo assim, o patológico não é o anormal, mas o normal de 
uma normatividade inferior. Isto é, regido por uma norma que não tolera desvios das 
suas condições de validade e também não consegue se transformar em outra norma. O 
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doente, enquanto vive, está normalizado por uma norma conservadora, que se repete 
idêntica a si mesma, quaisquer que sejam as circunstâncias. O doente é aquele ser que 
perdeu a capacidade normativa. Uma conseqüência deste viés individual na delimitação 
da fronteira entre o normal e o patológico é que a doença também é individualizada. O 
que interessa primariamente ao clínico é o indivíduo doente muito mais do que a 
doença. 
A centralidade da experiência individual, que se revela ao longo de toda a tese de 
Canguilhem, é o resultado da marcante presença do pensamento de Goldstein ([1935] 
1983) na sua reflexão. Este autor, que quase simultaneamente já havia marcado 
presença de forma significativa na tese de Merleau-Ponty (La Structure du 
Comportement, 1942), é outro que merece uma retomada contemporânea. Juntamente 
com Jackson e Head, todos três partindo de uma clínica de doenças neurológicas 
afetando funções cognitivas, Goldstein ([1935] 1983) oferece a matéria-prima empírica 
e conceitual que proporcionarão a Canguilhem a elaboração de sua teoria acerca da 
doença, da cura e da saúde. 
O entendimento acerca da doença que daí ressalta não é mais o de uma situação de 
privação, da falta de algum atributo ou capacidade que faz do doente umser diminuído. 
O que aparece é um ser modificado em sua individualidade, que mesmo quando está 
apto a chegar aos mesmos desempenhos de que era capaz antes da doença, agora o faz 
percorrendo caminhos diferentes dos anteriores. A doença aparece assim, em um 
primeiro momento, como um imperativo de criação. Ou seja, ao doente é exigido o 
estabelecimento de novas normas que permitam a continuidade da vida. Mas é uma 
vida que não continua idêntica ao que era antes, apesar de não ser só uma simples 
variação qualitativa, senão não seria doença, seria anomalia. Se for doença é porque 
esta variação é experimentada negativamente. Isto porque em um segundo momento a 
doença é um imperativo de conservação, perde-se a possibilidade criativa. Ou seja, o 
doente só é normativo se a norma permanecer sempre a mesma, o que o torna 
vulnerável às possíveis modificações do meio em que vive. 
A doença passa a ser uma experiência de inovação positiva do ser vivo e não apenas um 
fato diminutivo ou multiplicativo. O conteúdo do estado patológico não pode ser 
deduzido – exceto pela diferença de formato – do conteúdo da saúde: a doença não é 
uma variação da dimensão da saúde; ela é uma nova dimensão da vida. (Canguilhem, 
[1966] 1982: 149) 
Já a saúde é “uma margem de tolerância às infidelidades do meio” (Canguilhem, [1966] 
1982: 159). É claro que infidelidade aqui tem um sentido figurado, mas não deixa de 
marcar o caráter relacional do entendimento acerca do meio. A infidelidade do meio é 
justamente a sua história, a contingência de suas transformações. E a margem de 
tolerância que caracteriza a saúde advém justamente da indeterminação inicial dos 
limites à normatividade. 
Parece haver aqui uma inversão do que acredita um certo senso comum – melhor 
informado por um entendimento do normal enquanto média - que atribui à saúde uma 
posição fixa e definida dentro de certos limites fisiológicos e à doença uma indefinição 
quanto àqueles marcos do funcionamento do corpo. O entendimento que decorre do que 
expomos nos parágrafos acima atribui a necessidade de conservação à doença e a 
possibilidade de expansão à saúde. 
Mas se a doença é conservadora, seria a cura o retorno ao estado anterior de abertura 
de possibilidades? Na verdade, encontram-se duas perguntas em uma na interrogação 
anterior. Uma sobre a restauração de normatividade, outra sobre a reversibilidade à 
situação anterior. A posição de Canguilhem e de Goldstein ([1935] 1983) é a de que é 
possível a primeira sem se acompanhar da segunda. Mais do que isso, a segunda 
possibilidade, a chamada restitutio ad integrum, nunca acontece. “A vida não conhece 
reversibilidade” (Canguilhem, [1966] 1982: 158). O que não significa que não sejam 
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possíveis reparações que correspondam a inovações fisiológicas que podem ser 
eventualmente até mais normativas que a situação prévia à doença e sua cura. De 
qualquer modo, a renúncia à ambição de restituir o estado anterior ao período da 
doença pode ter um efeito liberador para a cura, que pode, portanto, resgatar as 
possibilidades existentes de criação e instituição de novas normas que, se não repetem 
a do período prévio ao adoecimento, podem expandir a normatividade restringida pela 
situação mórbida. Retomando este tema trinta e cinco anos depois, em um texto 
destinado à publicação em uma revista de psicanálise, Canguilhem conclui indicando a 
posição ética do terapeuta na cura: 
Aprender a curar é aprender a conhecer a contradição entre a esperança de um dia e o 
fracasso no fim. Sem dizer não à esperança de um dia. Inteligência ou simplicidade? 
(Canguilhem, [1978] 2002: 99) 
Finalizando, mesmo que a Clínica esteja escorada por procedimentos científicos, ela não 
é uma ciência. Ela é uma técnica de instauração ou restauração do normal. Logo, ela 
não pode objetivamente se pronunciar sobre a cura, mas deve se contentar com a 
satisfação subjetiva que decorre do retorno de normatividade. Isto não torna a prática 
terapêutica um procedimento subjetivista, de ordem mística ou esotérica. Como indica 
Canguilhem na última frase da tese, 
Pode-se praticar objetivamente, isto é, imparcialmente, uma pesquisa cujo objeto não 
pode ser concebido e construído sem referência a uma qualificação positiva e negativa; 
cujo objeto, portanto, não é tanto um fato, mas, sobretudo, um valor. (Canguilhem, 
[1966] 1982: 189) 
Em tempos de retomada triunfal de um objetivismo médico de alta performance, 
pretendendo definir a verdadeira configuração de corpos e mentes considerados normais 
e patológicos, acredito ser da maior relevância encontrar a permanência da 
argumentação de Canguilhem em favor de uma atividade normativa inerente à própria 
vida e vivenciada na individualidade de cada organismo humano. Não que isto deva nos 
servir ao propósito de colocar ao abrigo das imposições do tempo e da história os 
conceitos e práticas terapêuticas. Mas sim para nos recordar que os indivíduos 
singulares, em sua experiência de sofrimento, são aqueles que estão na melhor posição 
para indicarem, a nós terapeutas, a existência e a extensão de suas limitações e o 
alcance e variedade de suas possibilidades. 
 
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279-285. 
NOTAS 
1- O tema da relação entre as ciências e as técnicas, argumentado no sentido de uma 
fundamentação vital para as técnicas, secundariamente recuperadas teoricamente pela 
ciência, é melhor desenvolvido por Canguilhem em um artigo de 1946 (1992), Machine 
et Organisme. Ele abordou também esta questão, em termos que nos são bastante 
presentes, em uma conferência de 1980, Le Cerveau et la Pensée (Canguilhem, [1980] 
1993). Em comentário sobre este último texto, Varela (1993) aponta para um aspecto 
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datado dele – a crítica que Canguilhem faz à Inteligência Artificial é dirigida ao modelo 
serial, há muito ultrapassado pelo modelo conexionista – e um aspecto extremamente 
atual – a questão da circularidade e da circulação entre a exterioridade de um 
mecanismo e a interioridade da experiência vivida. 
2- “Suposta falácia, identificada por Moore nos Principia Ethica (1903), que consiste em 
associar um conceito ético com um conceito ‘natural’, ou com uma descrição das 
características que as tornam, de modo hipotético, boas ou más” (Blackburn, 1997: 
142). 
3- Ver: Badiou (1993), Lecourt (1993), Prochiantz (1993), Dagonet (1997), Gayon 
(2000), le Blanc (2000) e Lefève (2000). 
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