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O Acontecimento - Tchekhov

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o ACONTECIMENTO
Manhã.A rutilanteluz do sol penetrano quartodas
crianças,atravésdorendadodegeloquecobreosvidrosdas
janelas.Vânia,meninode uns seisanos,cabelocortadoe
narizquelembraumbotão,e suairmãNina,meninadequa-
tro,decachinhos,rechonchudae pequenaparaa idade;acor-
dame olhamzangadosum parao outro,atravésdasgrades
dascamas.
:- U-u-u,gente.sem,vergonha!- resm)Jngaa babá.-
Aspessoasdecentesjá tomaramchá,e vocêssemabrirosolhos
atéagora.. .
Os raiqsdesol fazemtravessuras'alegressobreo tapete,
asparedes,a orlada saiada babá,e parecemconvidarpara
quesebrinquecom'eles,masas criançasnãoo~percebem.
Acordaramdemau~humor.Ninainflaos lábios,faz umacara
azedae começa,arrastandoaspalavras:
- Chá-á!Babá,chá-ál
Vâniafranzea testae pensanumpretextopararomper
,empranto.Começoujá a piscarosolhose abriua bdca,mas,
nesseinstante,ouve-seda salade visitasa voz de mamãe:
- Não se esqueçade dar leiteà gata,ela já temga-
tinhosl ,
Vâniae Nina alongamos rostose olhamperplexos1Jm
parao outro;emseguida,soltamaomesmotempoumaexcla-
mação,pulamparaforadascaminhase, enchendoo ar com
seusgritinhosagudos,corremde camisolae qescalçospara
a cozinhá..
- A gatadeucria!-' gritam.- A gatadeucria!
145
Na cozinha,sobumbanco,há umcaixotinho,o mesmo
emqueStiepancarregao coque,paraacendera lareira.A
gataespiaparaforadocaixote.Suacarinhacinzentaexpressa
um cansaçoextremo,os olhosverdes,'depupilasestreitase
negras,têmumaexpressãolânguida,sentimental...Vê-se
por suacaraque,paraa plenitudede suafelicidade,falta
apenas,no caixote,a presençadele,do pai deseusfilhos,a
quemela se entregoude modotãocabal!Temvontadede
miarumpoucoe abredesmesuradamentea boca,masapenas
um roncolhe sai da garganta...Ouvem-seos piosdosga-
tinhos.
As criançasficamde cócorasao ladodo caixote,sem
semexer,derespiraçãopresa,e olhama gata... Estão'súr~
preendidas,perplexas,e nãoouvem'os resmungosda babá,
queselançouemsuaperseguição.A alegriamaissincerafulge
nosolhosde ambos.'
Os animaisdomésticosdesempenhamum papelquase
imperceptível,masindiscutivelmentebenévolo,na educaçãoe
na vidadascrianças.Quemde nósnãoselembradoscães
fortes,masgenerosos,dos lulus-parasitas,dos pássarosque
morrem'no càtiveiro,dosperusestúpidos,masvaidosos,das
humildesgatas-velhotas,quenos,perdoavam,quando,apenas
pordivertimento,pisávamosseusrabose lhescausávamosuma
dor cruciante?Tenho,às vezes,a impressão,até,de quea
paciência,a fidelidade,a capacidadedeperdoare a sinceri-
dade,inerentesaosnossosbichoscaseiros,atuamsobreo cé.
rebroinfantilde modomuitomaisfortee positivoqueas
longashomiliasdosecoe pálidoKarl Kárlovitchou'asdigres-
sõesnebulosasdagovernante,procurandodemonstrarà garo-
tadaquea águaé compo~tadehidrogênioe oxigênio.
- QuepequenosquesãoI - diz Nina,arregalandoos
olhos e sacudindoO - corpo,numaalegrerisada.- Parecem
ratinhos!
- Um,dois,três.. .' - contaVânia.- Trêsgatinhos.
Querdizer,umparamim,um paravocêe um paramais
alguém. '
146
'i-
t
---
- Murrum... murrum...- ronronaa parturiente,li-
sonjeadacoma atençãoquelhe dispensam- Ínurrum.
Depoisdeolharporbastantetempoos filhotesqueapa-
recemsoba gata,ascriançasretiram-nose começama amas-
sá-Iosnasmãos;emseguida,nãosesatisfazemcomisso,colo-
cam-nosna fraldada camisolae corremparaos quartos,da
casa.
- Mamãe,a gatadeucria!- gritam.
A mãeestáse~tadana sala:,devisitas,comum senhor
desconhecido.Vendoas crianças'por lavare por vestir,de
fraldasarregaçadas,fica encabuladae seusolhosadquirem
expressãosevera.
- Abaixemacamisola,desavergonhados!-diz.- Saiam
daqui,senãovou castigarvocês.
Masascriançasnãoligamimportância,queràs ameaças-
maternas,querà presençade uma'pessoaestranha.Põem
os gatinhossobreo tapetee fazemum alaridoesganiçado,
ensurdecedor.A parturientevai andandoaoladodeles,mian-
do súplice.Umpoucodepois,as criançassãoarrastadaspara
o quarto,vestidas,colocadaspararezare servidasde chá"
enquantodesejamardentementelivrar-sedessasobrigaçõespro-
saicase corrernovamentepataa cozinha.
As ocupaçõese jogoshabituaissãorelegadosa umplano
bemsecundário.
Os gatinhos,comsuaaparição,ofuscamtudoe'surgem
comoumanotíciaviva,de últimahora.Se Vâniaou Nina
recebessem,por gatinho,a oferta:deumpuddebalasou de
mil moedasdedezcopeques,recusariamtal barganha,sema
menorvacilação.Ape~ardosvivosprotestos"~a'babá~ da
cozinheira,elesficamsentadosnacozinha,aoladodocaixote,
atéa'hora,do jantar,entretidoscomos-gatinhos.Seusrostos
sãosérios,'concentrados,e refletempreocupação.O queos
inquietanãoé apenaso presente,mastambémo futurodos
gatinhos.Resolveramqueumgatinhoficaráemcasa,coma
velhagata,paraconsolara mãe,outroirá paraa casade
campoe o terceirovai vivernaadega,ondehámuitosratos~'
147
_ Mas, por que eles não enxergam?- surpreende-se
Nina.- Têmolhoscegos,comoosmendigos.
Vâniatambémficapreocupadocomessaquestão.Tenta
abrirosolhosdeumdosgatinhos,passamuitotemposoprano
do, resfolegando,masa operaçãonãolograêxito.Outromo-
tivo de considerávelpreocupaçãoresiden9 fato de queos
gatinhosrecusam,teimosamente,a carnee o leitequelhessão
oferecidos.Tudo o quese colocadiantede seusfocinhosé
comidopelamãecinzenta.
_ Olha,vamosconstruircasinhasparaos gatinhos-.
propõeVânia.- Elesvãomorarnascasase a gatavai fazer
visitaa eles.. .
. Chapeleirasdepapelãosãocolocadasnoscantosdaco-
zinhae instalam-senelasos gatinhos.No entanto,aqueladis-
tribuiçãofamiliarresultaprematura:conservandono rosto
umaexpressãosúplicee sentimental,a gatapassapor todas
aschapeleirase carregaosfilhosparao localprimitivo._A gataé mãedeles,- diz Vânia- mas,quemé
o pai?_ Sim,quemé o pai?- repeteNina.
_ Elesnãopodemviversempai.
Vâniae Ninaficampor muitotemporesolvendoquem
seráo paidosgatinhose,porfim,a escolharecainumgrande
cavalo,vermelho-escuro,derabocortado,quejaznadespensa,
soba escada,.ao ladode outrosbrinquedos,queterminarão
ali suavida,comotrastesvelhos.Arrastam-noparaforada
despensae colocam-noaoladodocaixote. ._ Olha! - ameaçam-no.- Ficaaquie cuidaparaque
elessecomportemdireito.
Tudo i.stose diz e executado modomaissérioe com
umaexpressãopreocupadanorosto.Vâniae Ninanãoquerem
saberdeoutromundo,a nãosero caixotecomos gatinhos.
Suaalegrianãotemlimites.Mas,torna-seprecisovivertam-
bémmomentosdifíceis,penosos.
Poucoantesdo jantar,Vâniaestásentadono escritório
do pai e olhasonhadorpara.a mesa.Um gatinhoespoja-se
sobrepapeltimbrado,ao ladodo abajur.Vâniavigia-lheos
148
~
---
.f~
..t
movimentose cutuca-lheo focinho,ora comum.lápis,ora
comum fósforo... De repente,comose b)."otasseda terra,
o paiaparecejuntoà mesa.
- O queé isto?- escutaVâniaumavozzangada.
- Isto... isteé umgatinho,papai...
- Vou-temostrarum gatinhoI Veja o que vocêfez,
meninoimpossível!.Vocêmesujoutodoo papel!
ParagrandeestranhezadeVânia,papainãopartilhasua
simpatiapelosgatinhose,emvezdesealegrare entusiasmar,
puxaa orelhadeVânia,gritando: .
- Stiepan,tira daquiestaporcaria!
Ao jantar,outroescândalo,.. Quandoseserveo segundo
prato,os presentesouvem,de repente,uns pios.Pesquisan-
do-seascausasdoruído,encontra-seumgatinhosobo avental
deNina.
- Ninka, já para foraI - irrita-seo pai.- Joguem
imediatamenteosgatinhosnalatadelixo!Quenãohalamais
dessaporcariaemcasal...
Vâniae Nina ficamhorrorizados.A mortena.latade
lixo, alémde seucaráterimpiedoso,ameaçatirar os filhos
à.gatae ao cavalinhode pau,esvaziaro caixote,destruir
osplanosdefuturo,aquelefuturomagnífico,emqueumdos
gatosficaráconsolandoa velhamãe,o outromorarána casa
decampoe o terceirocaçaráosratos,daadega... As crianças
põem-sea chorare implorammiserlcórdia.paraos gatinhos.
O paiconcorda,mascoma condiçãodequeascriançasnão
seatrevammaisa ir paraacozinhaemexerQosbichos.. .
Depoisdo jantar,Vâniae Ninaficamvagando,desalen-
tados,por todosos quartos.Enche-osde tristezaa proibição
de ir à cozinha.Recusamdoces,fazemmanhae respondem
à mãecoro.grosseria.Quando,à noite,o tio Pietrucha1vem
devisita,eleso.chamamparaumcantoe fazemqueixado
pai,que.pretendeuatirarosgatinhosna latadelixo.
1. DiminutivodePiotr(Pedro).
149
- Tio Pietrucha'- pedem- digaà mamãeparaa
empregadalevaros gatinhosnonossoquarto.Di-iga!
- Ora,ora... estábem!- respondeo tiolprocurando
livrar-sedeles.- Muitobem.
Geralmente,tioPietruchanãovemsozinho.Acompanha-o
Nero,'cãodinamarquês,grande,negro,de orelhaspendentes
e caudaduracomoumpau.Essecachorroé silencioso,de
ar sombrioe convictoda própriadignidade.Não prestaa
mínimaatençãoàs criançase, passandoao lado,batenelas
coma cauda,comosefossemcadeiras.As criançasodeiam-no
de todoo.coração,mas,dessavez,consideraçõesde ordem
práticasobrepujamaquelesentimento.
- Sabe,Nina?- diz Vânia,arregalandoos olhos.-
Nerovai sero pai,emlugardo cavalo!O cavaloé morto
e eleé vivo.
O anoitecertranscorrena esperado n1'Omentoemque
papaivaisesentarparao uístee sepoderáconduzir.imper-
ceptivelmente,Neroparaa cozinha." Finalmente,papaisen-
ta-seà mesacom o baralho,mamãe.estáocupadacomo
samovare nãovêascrianças... Chegao momentofeliz.
- Vamos!- murmuraVâniaparaa irmã.
Mas,nessemomento,Stiepanentrana salae exclama,
rindo:
- Patroa,Nerocomeuos gatinhos!
Nina e Vâniaempalideceme olhamhorrorizadospara
Stiepan.
- Juropor Deus." - ri o criado.- Foi atéo caixot~
e devoroutodos.
As criançasesperamque todasas pessoasda casase
agiteme se atiremsobreo criminosoNero.Mas as pessoas
permanecemsentadascalmamentee ápenasse admiramdo
apetitedo enormecão.Papaie mamãeriem... Nero vai
caminhandojuntoà mesa,agitaa caudae lambe-se,satisfeito
consigomesmo...Unicamentea gataestáintranqüila.An-
dandopelosquartos,deraboespichado,olhacomdesconfiança
paraaspessoase miatristemente.
150
Crianças,já sãomaisdenovehoras!
gritamamãe.
Vâniae Nina deitam-separadormir,
muitotempopensandona gataofendidae
impuneNero.
-....
i
I
Horadedormir!
chorame passam
no cruel,pérfido,
(1886).
151

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