Buscar

A Filosofia da Composição

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 8 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 8 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

A FILOSOFIA 
DA COMPOSIÇÃO 
Charles Dickens, numa nota que agora está à minha frente, 
a ludindo a uma análise que fiz, certa vez, do mecanismo, de 
Barnaby Rudge. diz: "De passagem, sabe que Godwin escreveu 
seu Caleb Williams de trás para diante? Envolveu primeiramente 
seu herói numa teia de dificuldades, que formava o segundo 
volume, e depois, para fazer o primeiro, ficou procurando um 
modo de explicar o que havia sido feito". 
Não posso pensar que esse seja o modo preciso de proceder 
de Godwin, e, de fato, o que ele próprio confessa não está com-
pletamente de acordo com a idéia do sr. Dickens. Mas o autor 
de Caleb Williams era muito bom artista para deixar de perce-
ber a vantagem procedente de um processo, pelo menos, um tan-
to semelhante. Nada é mais claro do que deverem todas as intri-
gas, dignas desse nome, ser elaboradas em relação ao epílogo. 
antes que se tente qualquer coisa com a pena. Só tendo o epilogo 
constantemente em vista, poderemos dar a um enredo seu aspec-
to indispensável de conseqüência, ou causalidade, fazendo com 
que os incidentes e, especialmente, o tom da obra tendam para 
o desenvolvimento de sua intenção. 
Há um erro radical, acho, na maneira habitual de construir-
se uma ficção. Ou a história nos concede uma tese, ou uma é 
sugerida por um incidente do dia, ou, no melhor caso, o autor 
109 
senta-se para trabalhar na combinação de acontecimentos impres-
sionantes, para formar simplesmente a base da narrat iva, plane-
jando, geralmente, encher de descrições, diálogos ou comentários 
autorais todas as lacunas do fato ou da ação que se possam tor-
nar aparentes , de página a página. 
Eu prefiro começar com a consideração de um efeito. Man-
tendo sempre a originalidade em vista, pois é falso a si mesmo 
quem se arrisca a dispensar uma fonte de interesse tão evidente 
e tão facilmente alcançável, digo-me, em primeiro lugar: "Dentre 
os inúmeros efeitos, ou impressões a que são suscetíveis o cora-
ção, a inteligência ou, mais geralmente, a alma, qual irei eu, na 
ocasião atual , escolher?" Tendo escolhido primeiro um assunto 
novelesco e depois um efeito vivo, considero se seria melhor 
t rabalhar com os incidentes ou com o tom — com os incidentes 
habituais e o tom especial, ou com o contrário, ou com a espe-
cialidade tanto dos incidentes, quanto de tom — depois de pro-
curar em torno de mim (ou melhor, dentro) aquelas combinações 
de tom e acontecimento que melhor me auxiliem na construção 
do efeito. 
Muitas vezes pensei quão interessantemente podia ser escri-
ta uma revista, por um autor que quisesse — isto é, que pudesse 
— pormenorizar , passo a passo, os processos pelos quais qual-
quer uma de suas composições atingia seu ponto de acabamento. 
Por que uma publicação assim nunca foi dada ao m u n d o é coisa 
que eu não sei explicar, mas talvez a vaidade dos autores tenha 
mais responsabil idade por essa omissão do que qualquer outra 
causa. Muitos escritores — especialmente os poetas — preferem 
ter por entendido que compõem por meio de uma espécie de sutil 
frenesi, de intuição estática; e positivamente estremeceriam ante 
a idéia de deixar o público dar uma olhadela, por trás dos basti-
dores, para as rudezas vacilantes e trabalhosas do pensamento, 
para os verdadeiros propósitos só alcançados no último instante, 
para os inúmeros relances de idéias que não chegam à maturi-
dade da visão completa, para as imaginações plenamente amadu-
recidas e repelidas em desespero como inaproveitáveis, para as 
cautelosas seleções e rejeições, as dolorosas emendas e interpo-
lações; numa palavra, para as rodas e rodinhas, os apetrechos de 
mudança no cenário, as escadinhas e os alçapões do palco, as 
110 
penas de galo. a tinta vermelha e os disfarces postiços que, em 
noventa e nove por cento dos casos, constituem a característica 
do histrião literário. 
Bem sei, de outra parte, que de modo algum é comum o 
caso em que um autor esteja absolutamente em condições de re-
constituir os passos pelos quais suas conclusões foram atingidas. 
As sugestões, em geral, tendo-se erguido em tumulto, são segui-
das e esquecidas de maneira semelhante. 
Quanto a mim, nem simpatizo com a repugnância acima alu-
dida nem, em qualquer tempo, tive a menor dificuldade em 
relembrar os passos progressivos de qualquer de minhas com-
posições; e, desde que o interesse de uma análise, ou reconstru-
ção, tal como a que tenho considerado um desiderato, é inteira-
mente independente de qualquer interesse real ou imaginário na 
coisa analisada, não se deve encarar, como falta de decoro de 
minha parte, o mostrar o modus operandi pelo qual uma de mi-
nhas próprias obras se completou. Escolhi " O Corvo", como a 
mais geralmente conhecida. É meu desígnio tornar manifesto que 
nenhum ponto de sua composição se refere ao acaso, ou à intui-
ção, que o trabalho caminhou, passo a passo, ate cumpletar-se. 
com a precisão e a seqüência rígida de um problema matemático. 
Deixamos de parte, por ser sem importância para o poema 
per se. a circunstância, ou digamos, a necessidade que, em pri-
meiro lugar, deu origem à intenção de compor um poema que , a 
um tempo, agradasse ao gosto do público c da crítica. 
Comecemos, pois, a partir dessa intenção. 
A consideração inicial foi a da extensão. Se alguma obra 
literária é longa demais para ser lida de uma assentada, devemos 
resignar-nos a dispensar o efeito imensamente importante que se 
deriva da unidade de impressão, pois, se se requerem duas assen-
tadas, os negócios do mundo interferem e tudo o que se pareça 
com totalidade é imediatamente destruído. Mas, visto como, ceie-
ris paribus. nenhum poeta pode permitir-se dispensar qualquer 
coisa que possa auxiliar seu intento, resta a ver se há, na exten-
são, qualquer vantagem que contrabalance a perda de unidade 
resultante. Digo logo que não há. O que denominamos um poema 
longo é. de fato. apenas a sucessão de alguns curtos; isto é, de 
breves efeitos poéticos. É desnecessário demonstrar que um poe-
111 
ma só o é q u a n d o emociona, intensamente, e levando a a lma; e 
todas as emoções intensas, por uma necessidade psíquica, são 
breves. Por essa razão, pelo menos metade do Paraíso Perdido é 
essencialmente prosa, pois uma sucessão de emoções poéticas se 
intercala, inevitavelmente, de depressões correspondentes; e 1o 
conjunto se vê privado, por sua extrema extensão, do vastamente 
importante elemento artístico, a total idade, ou unidade de efeito. 
Parece evidente, pois, que há um limite dist into, no que se 
refere à extensão para todas as obras de arte literária, o limite 
de uma só assentada, e que, embora em certas espécies de com-
posição em prosa, tais como Robinson Crusoe (que não exige 
unidade) , esse limite pode ser vantajosamente superado, nunca 
poderá ser ele ultrapassado convenientemente poT um poema. 
Dentro desse limite, a extensão de um poema deve ser calculada, 
para conservar relação matemática com seu mérito; em outras 
palavras, com a emoção ou elevação; ou ainda em outros termos, 
com o grau de verdadeiro efeito poético que ele é capaz de pro-
duzir. Pois é claro que a brevidade eleve estar na razão direta da 
intensidade do efeito pretendido, e isto com uma condição, a de 
que certo grau de duração é exigido, absolutamente , para a pro-
dução de qualquer efeito. 
Tendo em vista essas considerações, assim como aquele grau 
de excitação, que eu não colocava acima do gosto popular nem 
abaixo do gosto crítico, alcancei logo o que imaginei ser a exten-
são conveniente para meu pretendido poema: uma extensão de 
cerca de cem versos. De fato, ele tem cento e oi to. 
Meu pensamento seguinte referiu-se à escolha de uma im-
pressão, ou efeito, a ser obtido; e aqui bem posso observar que , 
através de toda a elaboração, tive firmemente em vista o desejo 
de tornar a obra apreciável por todos. Seria levado longe demaisde meu assunto imediato, se fosse demonstrar um ponto sobre o 
qual tenho repet idamente insistido e que, entre poetas, não tem 
a menor necessidade de demonstração: refiro-me ao ponto de que 
a Beleza é a única província legítima do poema. Poucas palavras, 
.contudo, para elucidar meu verdadeiro pensamento , que alguns 
de meus amigos tiveram inclinação para interpretar mal. O pra-
zer que seja ao mesmo tempo o mais intenso, o mais enlevante 
112 
e o mais puro é, creio eu, encontrado na contemplação do belo. 
Quando , de fato, os homens falam de Beleza, querem exprimir, 
precisamente, não uma qualidade, como se supõe, mas um efeito; 
referem-se. em suma, precisamente àquela intensa e pura eleva-
ção da alma — e não da inteligência ou do coração — de que 
venho falando e que se experimenta em conseqüência da contem-
plação do Belo. Ora, designo a Beleza como a província do 
poema, simplesmente porque é evidente regra de arte que os efei-
tos deveriam jorrar de causas diretas, que os objetivos deveriam 
ser alcançados pelos meios melhor adaptados para atingi-los. E 
ninguém houve ainda bastante tolo, para negar que a elevação 
especial, a que aludi, c mais prontamente atingida num poema. 
Quanto ao objetivo Verdade, ou a satisfação do intelecto, e ao 
objetivo Paixão, ou a excitação do coração, são eles muito mais 
prontamente atingíveis na prosa, embora também, até certa exten-
são, na poesia. A Verdade, de fato, demanda uma precisão, e a 
Paixão u m a familiaridade (o verdadeiramente apaixonado me 
compreenderá), que são inteiramente antagónicas daquela Beleza 
que, asseguro, é a excitação ou a elevação agradável da alma. 
De modo algum se segue, de qualquer coisa aqui dita, que a 
paixão e mesmo a verdade não possam ser introduzidas, pro-
veitosamente introduzidas até, num poema, porque elas podem 
servir para elucidar ou auxiliar o efeito geral, como as discor-
dâncias em música, pelo contraste; mas o verdadeiro artista sem-
pre se esforçará, em primeiro lugar, para harmonizá-las, na sub-
missão conveniente ao alvo predominante, e, em segundo lugar, 
para revesti-las, tanto quanto possível, daquela Beleza que é a 
atmosfera e a essência do poema. 
Encarando, então, a Beleza como a minha província, minha 
seguinte questão se referia ao tom de sua mais alta manifestação, 
e todas as experiências têm demonstrado que esse tom é o da 
tristeza. A beleza de qualquer espécie, em seu desenvolvimento 
supremo, invariavelmente provoca na alma sensitiva as lágrimas. 
A melancolia é, assim, o mais legítimo de todos os tons poéticos. 
Estando assim determinados a extensão, a província e o tom, 
entreguei-me à indução normal, a fim de obter algum efeito artís-
tico agudo que me pudesse servir de nota-chave na construção 
113 
do poema, algum eixo sobre o qual toda a estrutura devesse girar. 
Passando cuidadosamente em revista todos os efeitos artísticos 
usuais, ou, mais propr iamente , situações, no sentido teatral, não 
deixei de perceber de imediato que nenhum tinha sido tão universalmente empregado como o do refrão. A universalidade desse 
emprego bastou para me assegurar de seu valor intrínseco e evitou-me a necessidade de submetê-lo à análise. Considerei-o, contudo, em relação à sua suscetibilidade de aperfeiçoamento e vi 
logo que ainda se achava num estado primitivo. Como é comu-
mente usado, o refrão poético, ou estribilho, não só se limita ao 
verso lírico, mas depende, para impressionar, da força da monotonia, tanto no som, como na idéia. O prazer somente se extrai 
pelo sentido de identidade, de repetição. Resolvi fazer diversamente, e assim elevar o efeito, aderindo em geral à monotonia 
do som, porém continuamente variando na da idéia: isto é, decidi produzir cont inuamente novos efeitos, pela variação da aplicação do estribilho, permanecendo este, na maior parte das vezes, 
invariável. 
Assentados tais pontos, passei a pensar sobre a natureza de 
meu refrão. Desde que sua aplicação deveria ser repet idamente 
variada, era claro que esse refrão deveria ser breve, pois haveria 
insuperáveis dificuldades na aplicação de qualquer sentença extensa. Em proporção à brevidade da sentença estaria, naturalmente, a facilidade da variação. Isso imediatamente me levou a 
uma só palavra como o melhor refrão. 
Suscitou-se, então, a questão do caráter da palavra. Tendo-
me inclinado por um refrão, a divisão do poema em estância 
surgia, na tura lmente , como corolário, formando o refrão o fecho 
de cada estância. Não cabia dúvida de que tal fecho, para ter 
força, devia ser sonoro e suscetível de ênfase prolongada; e tais 
considerações inevitavelmente me levaram ao o prolongado, como a mais sonora vogal, em conexão com o r, como a consoante 
mais aproveitável. 
Ficando assim determinado o som do refrão, tornou-se necessário escolher uma palavra que encerrasse esse som e, ao 
mesmo tempo, se relacionasse o mais possível com a melancolia 
predeterminada como o tom do poema. Em tal busca, teria sido 
114 
absolutamente impossível que escapasse a palavra "nevermore". ¹ 
De fato, foi ela a primeira que se apresentou. 
O desiderato seguinte era um pretexto para o uso contínuo 
da palavra "nevermore" (nunca mais). Observando a dificuldade que já encontrara em inventar uma razão suficientemente 
plausível para sua contínua repetição, não deixei de perceber que 
essa dificuldade nascia somente da presunção de que a palavra 
devia ser contínua ou monotonamente pronunciada por um ser 
humano. Não deixei de perceber, em suma, que a dificuldade 
estava em conciliar essa monotonia com o exercício da razão por 
parte da criatura que repetisse a palavra. Daí, pois, ergueu-se 
imediatamente a idéia de uma criatura não racional, capaz de 
falar, e muito naturalmente foi sugerida, de início, a de um papagaio, que foi logo substituída pela de um Corvo, como igualmente capaz de falar e infinitamente mais em relação com o tom 
pretendido. 
Eu já havia chegado à idéia de um Corvo, a ave do mau 
agouro, repetindo monotonamente a expressão "Nunca mais", na 
conclusão de cada estância de um poema de tom melancólico e 
extensão de cerca de cem linhas. Então, jamais perdendo de vista 
o objetivo — o superlativo, ou a perfeição em todos os pontos 
— , perguntei-me: "De todos os temas melancólicos, qual, segundo a compreensão universal da humanidade, é o mais melancólico?" A Morte — foi a resposta evidente. "E quando" , insisti, 
"esse mais melancólico dos temas se torna o mais poético?" 
Pelo que já explanei, um tanto prolongadamente, a resposta 
também aí era evidente: "Quando ele se alia, mais de perto, à 
Beleza; a morte, pois, de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo e, igualmente, a boca mais 
capaz de desenvolver tal tema é a de um amante despojado de 
seu amor". 
Tinha, pois, de combinar as duas idéias, a de um amante lamentando sua morta amada e a de um Corvo continuamente repetindo as palavras "Nunca mais". E tinha de combiná-las tendo 
¹ Na tradução portuguesa para esta edição foi empregada a expressão 
"nunca mais", que também é capaz de produzir efeitos semelhantes aos 
desejados pelo autor. ( N . dos T.) 
115 
em mente meu propósito de variar, a cada vez, a aplicação da 
palavra repetida, mas a única maneira inteligível de tal combinação era a de imaginar o Corvo empregando a palavra, em resposta às perguntas do amante . E então aí vi, imediatamente, a 
oportunidade concedida para o efeito do qual eu t inha estado 
dependente, isto é, o efeito da variação da aplicação. Vi que poderia fazer da primeira pergunta, apresentada pelo amante — a 
primeira pergunta a que o Corvo deveria responder "Nunca 
mais" — , que poderia fazer dessa primeira pergunta um lugar-
comum, da segunda uma expressão menos comum, da terceira 
ainda menos, e assim por diante, até que o amante , a r rancado de 
sua displicência primitiva, pelo caráter melancólico da própriapalavra, pela sua freqüente repetição e pela consideração da sinistra reputação da ave que a pronunciava, fosse afinal excitado 
à superstição e loucamente fizesse perguntas de espécie muito 
diversa, perguntas cujas respostas lhe interessavam apaixonadamente ao coração, fazendo-as num misto de superstição e daquela 
espécie de desespero que se deleita na própria tortura, fazendo-
as não porque propr iamente acreditasse no caráter profético, ou 
demoníaco da ave (que a razão lhe diz estar apenas repetindo 
uma lição aprendida rotineiramente), mas porque experimentaria 
um frenético prazer em organizar suas perguntas para receber, 
do esperado "nunca mais" , a mais deliciosa, porque a mais intolerável, das tristezas. Percebendo a oportunidade que assim se 
me oferecia, ou, mais estr i tamente, que se me impunha no desenrolar da composição, estabeleci na mente o clímax, ou a pergunta 
conclusiva: aquela pergunta de que o "Nunca mais" seria, pela 
última vez, a resposta; aquela pergunta em resposta à qual o 
"Nunca mais" envolveria a máxima concentração possível de 
tristeza e de desespero. 
Aí, então, pode-se dizer que o poema teve seu começo, pelo 
fim por que devem começar todas as obras de arte, porque foi 
nesse ponto de minhas considerações prévias que , pela primeira 
vez, tomei do papel e da pena para compor a estâncias: 
"Profeta!" — exclamo. "Ó ser do mal! Profeta sempre, ave 
[infernal! 
Pelo alto céu, por esse Deus, que adoram todos os mortais, 
116 
fala se esta alma, sob o guante atroz da dor, no Éden 
[distante 
verá a deusa fulgurante a quem, nos céus, chamam Lenora 
— essa, mais bela do que a aurora, a quem, nos céus, 
[chamam Lenora!" 
E o Corvo disse: "Nunca.mais!" 
Compus essa estância, nesse ponto, primeiramente porque, 
estabelecendo o ponto culminante, melhor poderia variar e graduar, no que se refere à seriedade e importância, as perguntas 
precedentes do amante e, em segundo lugar, porque poderia definitivamente assentar o ri tmo, o metro, a extensão e o arranjo 
geral da estância, assim como graduar as estâncias que a deviam 
preceder, para que nenhuma delas pudesse ultrapassá-la em seu 
efeito rítmico. Tivesse eu sido capaz, na composição subseqüente, de construir estâncias mais vigorosas, não teria hesitações em 
enfraquecê-las propositadamente, para que não interferissem com 
o efeito culminante. 
E aqui bem posso dizer algumas palavras sobre versificação. 
Meu primeiro objetivo, como de costume, era a originalidade. A 
amplitude com que esta tem sido negligenciada na versificação é 
uma das coisas mais inexplicáveis do mundo. Admitindo-se que 
haja pequena possibilidade de variedade no ritmo, permanece 
claro, porém, que as variedades possíveis do metro e da estância 
são absolutamente infinitas, e contudo, durante séculos, nenhum 
homem, em verso, jamais fez ou jamais pareceu pensar em fazer 
uma coisa original. A verdade é que a originalidade (a não ser em 
espíritos de força muito comum) de modo algum é uma questão, 
como muitos supõem, de impulso ou de intuição. Para ser encontrada, ela, em geral, tem de ser procurada trabalhosamente, e 
embora seja um mérito positivo da mais alta classe, seu alcance 
requer menos invenção que negação. 
Sem dúvida, não pretendo que haja qualquer originalidade, 
quer no ri tmo, quer no metro, de " O Corvo".¹ O primeiro é tro-
¹ A explicação da forma utilizada refere-se, é evidente, ao original inglês. 
Na tradução portuguesa, de que nos estamos valendo, por motivos óbvios, 
o metro e o ritmo são outros, embora com a preocupação de se aproximar o máximo possível do original. ( N . dos T.) 
117 
caico, o segundo é octâmetro acatalético, alternando-se com um 
heptâmetro catalético, repetido no refrão do quinto verso e terminando com um tetâmetro catalético. Falando menos pedantes-
camente, o pé empregado no poema (troqueu) consiste em uma 
sílaba longa, seguida por uma curta; o primeiro verso da estância 
compõe-se de oito desses pés; o segundo, de sete e meio (de fato, 
dois terços), o terceiro de oito, o quar to de sete e meio, o quinto 
idem, o sexto de três e meio. Ora, cada um desses versos, tomado separadamente , tem sido empregado antes, mas a originalidade 
que " O Corvo" tem está em sua combinação na estância, nada 
já havendo sido tentado que mesmo remotamente se aproximasse dessa combinação. O efeito dessa originalidade de combinação 
é ajudado por outros efeitos incomuns, alguns inteiramente novos, or iundos de uma ampliação da aplicação dos princípios de 
rima e de al i teração. 
O ponto seguinte, a ser considerado, era o modo de juntar 
o amante e o Corvo: e o primeiro ramo dessa consideração era o 
local. Para isso, a sugestão mais natural seria a de uma floresta, 
ou a dos campos ; mas sempre me pareceu que uma circunscrição 
fechada do espaço é absolutamente necessária para o efeito do 
incidente insulado e tem a força de uma moldura para um quadro. Tem indiscutível força moral, para conservar concentrada 
a atenção e, na tura lmente , não deve ser confundida com a mera 
unidade de lugar. 
Determinei , então, colocar o amante em seu quar to — num 
quar to para ele sagrado, pela recordação daquela que o freqüentara. O quar to é apresentado como ricamente mobil iado, isso na 
simples cont inuação das idéias, que eu já tinha explanado, a respeito da Beleza como a única verdadeira tese poética. 
Tendo sido assim determinado o local, tinha agora de introduzir a ave e o pensamento de fazê-lo pela janela era 
inevitável. A idéia de fazer o amante supor, em primeiro lugar, 
que o tatalar das asas da ave contra o postigo é um "ba t ido" à 
porta, originou-se dum desejo de aumentar , pela prolongação, a 
curiosidade do leitor, e dum desejo de admitir o efeito casual, 
surgindo do fato de o amante abrir a porta, achar tudo escuro 
e depois aceitar a semifantasia de que fora o espírito de sua 
amada que ba tera . 
118 
Fiz a noite tempestuosa, primeiro para explicar por que o 
Corvo procurava entrar e, em segundo lugar, para efeito de contraste com a serenidade (física) que reinava dentro do quarto. 
Fiz o pássaro pousar no busto de Minerva, também para 
efeito de contraste entre o mármore e a plumagem — sendo entendido que o busto foi absolutamente sugerido pelo pássaro — 
e escolhido o busto de Minerva, primeiro, para combinar mais 
com a erudição do amante e, em segundo lugar, pela sonoridade 
da própria palavra Minerva. 
Pelo meio do poema, também, aproveitei-me da força do 
contraste, tendo em vista aprofundar a impressão derradeira. Por 
exemplo, um ar do fantástico — aproximando-se o mais possível 
do burlesco — é dado à entrada do Corvo. Ele entra "em tumulto, a esvoaçar". 
Como um fidalgo passa, augusto, e sem notar sequer 
[meu susto, 
adeja e pousa sobre o busto — uma escultura de 
[ Minerva. 
Nas duas estâncias que se seguem, esse desígnio é ainda 
mais evidentemente solicitado: 
Ao ver da ave austera e escura a soleníssima figura, 
desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus 
[ais. 
"Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular" — 
[então lhe digo — 
"não tens pavor; fala comigo, alma da noite, espectro 
torvo, qual é o teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu 
[no inferno torvo!" 
E o Corvo disse: "Nunca mais" . 
Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe, 
misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais, 
pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no 
[presente, 
119 
que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua 
[porta, 
uma ave (ou fera, pouco importa) empoleirada, em sua 
[porta, 
e que se chama "Nunca mais" . 
Sendo assim assegurado o efeito do desenvolvimento, imediatamente troquei o fantástico por um tom da mais profunda 
seriedade, começando esse tom na estância imediatamente seguinte à ultima citada, com o verso: 
Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave 
[sombria etc. 
Daípara a frente, o amante não mais zomba, não mais vê 
qualquer coisa de fantástico na conduta do Corvo. Fala dele como 
"hor rendo , torvo, ominoso e antigo", sentindo "da ave, incandescente, o olhar" queimá-lo "fixamente". Essa revolução do 
pensamento , ou da imaginação, da parte do amante , destina-se 
a provocar uma semelhante da parte do leitor, levar o espírito a 
uma disposição própria para o desenlace, que é agora completado tão rápida e diretamente quanto possível. 
Com o desenlace conveniente, com a resposta do Corvo, 
" N u n c a mais" , à pergunta final do amante , sobre se ele encontraria sua amada em um outro mundo , o poema, em sua fase 
evidente , que é a da simples narrat iva, pode ser considerado 
como completo. Até aí, tudo está dentro dos limites do explicável, do real. Um corvo, tendo aprendido rotineiramente a dizer 
apenas "Nunca mais" e tendo escapado à vigilância de seu dono, 
é levado à meia-noite, em meio à violência de uma tempestade, a 
buscar entrada numa janela, pela qual se vê ainda a luz bri lhar: 
a janela do quar to de um estudante, ocupado entre folhear um 
volume e sonhar com uma adorada amante morta . Sendo aberta 
a janela, ao tumul tuar das asas da ave, esta pousa no sítio mais 
conveniente , fora do alcance imediato do estudante, que, divertido pelo incidente e pela extravagância das maneiras do visitante, pergunta-lhe, por brincadeira e sem esperar resposta, por 
seu nome. O Corvo, interrogado, responde com seu costumeiro 
120 
"Nunca mais", frase que logo encontra eco no coração melancólico do estudante, que, dando expressão, em voz alta, a certos pensamentos sugeridos pelo momento, é de novo surpreendido pela repetição do "Nunca mais" do Corvo. O estudante adivinha então a real causa do acontecimento, mas é impelido, 
como já explanei, pela sede humana de autotortura e, em parte, 
pela superstição, a propor questões tais à ave que só lhe trarão, 
ao amante , o máximo da volúpia da tristeza, graças à esperada 
frase "Nunca mais . Levando até o extremo essa autotortura, 
a narração, naquilo que denominei sua fase primeira ou evidente, 
tem um fim natural e até aí não ultrapassou os limites do real. 
Mas nos assuntos assim manejados, por mais agudamente 
que o sejam, por mais vivas riquezas de incidentes que possuam, 
há sempre certa dureza ou nudez que repele o olhar artístico. 
Duas coisas são invariavelmente requeridas: primeiramente, certa soma de complexidade, ou, mais propriamente, de adaptação; 
e, em segundo lugar, certa soma de sugestividade, certa subcor-
rente embora indefinida de sentido. Esta última, afinal, é que dá 
a uma obra de arte tanto daquela riqueza (para tirar da conversação cotidiana um termo eficaz) que gostamos demais de confundir com o ideal. É o excesso do sentido sugerido, é torná-lo 
a corrente superior, em vez da subcorrente ao tema, que trans-
forma em prosa (e prosa da mais chata espécie) a assim chamada 
poesia dos assim chamados transcendentalistas. 
Mantendo essas opiniões, ajuntei duas estâncias que concluem o poema, sendo sua sugestividade destinada a penetrar 
toda a narrativa que as precede. A subcorrente de significação 
torna-se primeiramente evidente no verso 
"Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa 
[porta!" 
E o Corvo disse: "Nunca mais!" 
Deve-se observar que as palavras "o pei to" envolvem a primeira expressão metafórica no poema. Elas, com a resposta "Nunca mais" , dispõem a mente a buscar uma moral em tudo quanto 
foi anteriormente narrado. O leitor começa agora a encarar o Corvo como simbólico, mas não é senão nos versos finais da última 
121 
estância que se permi te distintamente ser vista a intenção de 
torná-lo um emblema da Recordação dolorosa e infindável: 
E lá ficou! Hir to , sombrio, ainda hoje o vejo, horas 
a fio, sobre o alvo busto de Minerva, inerte sempre em 
[meus umbrais . 
N o seu olhar medonho e enorme o anjo do mal , em 
[sonhos, dorme, 
e a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua 
[sombra. 
Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma e, 
[presa à sombra, 
N ã o há de erguer-se, ai! nunca mais! 
122

Outros materiais