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67
texto
Professor Dr. César Augusto RCésar Augusto RCésar Augusto RCésar Augusto RCésar Augusto Ramosamosamosamosamos
Departamento de Filosofia - UFPR
A Concepção Política de Pessoa
no Liberalismo de J. Rawls
A obra Uma Teoria da Justiça de John Rawls, publicada em 1971,1 foi
saudada como uma obra magistral no campo da filosofia política e da
ética. Ela propõe um novo paradigma para a justiça em oposição à supre-
macia do utilitarismo ético e do positivismo jurídico, particularmente no
mundo anglo-saxão. Uma das razões da crítica ralwsiana prende-se à
necessidade ético-política incondicional dos direitos e das liberdades indi-
viduais, ligados à pessoa, que o utilitarismo é incapaz de propor.
No Prefácio à edição francesa desta obra, Ralws declara a impossibilidade
do utilitarismo “fornecer uma análise satisfatória dos direitos e das liberda-
des de base dos cidadãos enquanto pessoas livres e iguais, o que no en-
tanto, é uma exigência absolutamente prioritária para uma análise das
instituições democráticas”.2 Ao estabelecer um conceito não normativo de
justiça, o utilitarismo propõe apenas o uso instrumental para a mesma. A
justiça, nessa perspectiva, tem por objeto a maximização do bem estar
coletivo. Consequentemente, a satisfação de um maior número possível de
pessoas tem prioridade sobre a liberdade individual.
O anti-utilitarismo de Ralws é tributário da concepção kantiana de pessoa
definida segundo a máxima exposta na Fundamentação da Metafísica dos
Costumes: o homem existe como fim em si, e não simplesmente como meio,
donde se extrai o valor absoluto da dignidade da pessoa, pelo qual ela
deve ser respeitada. Cada pessoa possui direitos inalienáveis que não
podem ser transacionados em troca do bem estar da sociedade. A ênfase
na justiça como virtude básica das instituições sociais - assim como a ver-
dade é para os sistemas do pensamento - repousa sobre o irrenunciável
direito individual radicado na dignidade moral: “cada pessoa possui uma
inviolabilidade fundada na justiça que, mesmo em nome do bem-estar do
conjunto da sociedade, não pode ser transgredido”.3 As instituições são
justas quando, tendo por fundamento esse princípio moral, não fazem
“nenhuma distinção arbitrária entre as pessoas na fixação de direitos e
deveres de base.”4
68
O passo seguinte de Ralws consiste em dizer que os princípios de justiça
que regem a “estrutura de base da sociedade” - “a constituição, as prin-
cipais estruturas sócio econômicas, a proteção legal da liberdade de pen-
samento e de consciência, a existência de mercados concorrenciais, a pro-
priedade privada dos meios de produção, a família monogâmica”5 - são
válidos se eles resultarem de um acordo (contrato) original. Esses princípios
são das próprias pessoas livres e racionais e definem as formas fundamen-
tais da associação, servindo de regra para todos os acordos ulteriores.
Eles têm a seguinte formulação:
“1°. Cada pessoa tem um direito igual a um sistema plenamente
adequado de liberdades de base iguais para todos, que seja com-
patível com um mesmo esquema de liberdade para todos, e nesse
esquema, o justo valor das liberdades políticas iguais, e só dessas
liberdades, deve ser garantido.
2°. As desigualdades sociais e econômicas devem preencher duas
condições: a) - elas devem estar ligadas a funções e a posições
abertas para todos, em condições de uma eqüitativa igualdade de
chances, e ; b) - elas devem redundar no maior benefício dos
membros menos privilegiados da sociedade”.6
A forma de considerar esses princípios a partir de uma justa posição das
partes no acordo original, constitui o que Ralws chama de justiça como
eqüidade (fairness). Para que essa justiça seja viável, Ralws recorre ao
artifício de uma “posição original” de igualdade das partes. Trata-se de um
recurso hipotético semelhante “ao estado de natureza na teoria tradicional
do contrato social”.7
Na “posição original”, os princípios de justiça são escolhidos sob um “véu
de ignorância”: os parceiros, colocados na situação de representantes dos
cidadãos da sociedade, ignoram o seu lugar nesta mesma sociedade, sua
posição e estatuto social e o que será reservado a cada um na repartição
dos bens e cargos. Enfim, ignora-se o contexto social e particular de cada
pessoa, abstraindo-se o aspecto psicológico e histórico dos indivíduos. O
objetivo dessa idealidade do sujeito no “véu de ignorância” é impedir a
constituição de interesses e vantagens pessoais, razão pela qual as circuns-
tâncias particulares são abstraídas, uma vez que os princípios de justiça
são análogos aos imperativos categóricos no sentido kantiano.
A idéia da “posição original” associada ao “véu de ignorância” constitui
para Rawls um recurso, o mais razoável, para se estabelecer os termos
justos da cooperação social, dispondo as pessoas em bases justas, eqüitativas
não permitindo que elas obtenham vantagens na negociação. Deve-se
encontrar uma situação de tal forma que as características e circunstâncias
69
particulares e sociais não afetem este marco inicial. Se todos os cidadãos
estão representados segundo uma justa (fair) igualdade na situação origi-
nal, todos receberão a mesma proteção dos princípios de justiça. Assim, a
expressão “justiça como eqüidade” refere-se a princípios extraídos de um
acordo realizado numa situação inicial, ela mesma considerada justa. Ralws
define essa justiça qualificando-a de procedimental (procedural), isto é “um
procedimento correto e eqüitativo que determina se um resultado é igual-
mente correto ou eqüitativo, qualquer que seja o conteúdo, desde que o
procedimento tenha sido corretamente aplicado”.8
Não há dúvida de que o pensamento de Ralws operou com dois compo-
nentes tradicionais da filosofia política: o compromisso à liberdade indivi-
dual ¾ na versão da liberdade negativa corporificada no valor liberal de
sustentação das liberdades civis ¾ e a defesa da igualdade. Esse segun-
do elemento resulta da exigência de uma distribuição mais igualitária dos
recursos de que dispõe uma sociedade, complementando a unilateralidade
da análise liberal da liberdade por uma concepção da igualdade da tradi-
ção democrática, o que conduz ao elemento da justa igualdade das chances.
A presença desses dois componentes releva uma tensão entre a ênfase à
liberdade individual, consignada na prioridade que Rawls atribui ao pri-
meiro dos seus princípios, e as exigências distributivistas e igualitaristas
presentes no segundo princípio.
Com a publicação de Uma Teoria da Justiça, segue-se a publicação da
obra de R. Nozick, (Anarchy, State and Utopia 1974) e, mais tarde, a de R.
Dworkin, (Taking Rights Seriously 1977), todas elas na perspectiva da re-
novação do liberalismo. A partir da década de 80 nos Estados Unidos da
América, surge uma reação contra o individualismo liberal, provocada
pelas críticas de autores denominados comunitaristas.9 Dirigida particular-
mente contra Ralws, a crítica comunitarista reconhece, contudo, que a obra
deste pensador alterou os princípios da teoria liberal contemporânea, par-
ticularmente a concepção das liberdades individuais, pensada numa pers-
pectiva política fora do quadro moral do individualismo possessivo e
utilitarista.
Para os comunitaristas, a concepção liberal de justiça procedimental revela
a prioridade equivocada do justo sobre o bem a partir de princípios
abstratos, baseados numa noção individualista da pessoa e da socieda-
de10 . A prioridade dos direitos individuais (particularmente a chamada li-
berdade negativa na análise que I.Berlin lhe dá) na afirmação incondicio-
nal da liberdade sem nenhum vínculo e obrigação para com a sociedade e
para com o bem comum que essa sociedade veicula, constitui um ponto
importante do ataque comunitarista ao individualismo liberal.
70
A série de artigos que Ralws escreve após a publicação de Uma Teoria da
Justiça, culminandona obra Liberalismo Político (1993), reflete a intenção
do autor de insistir numa interpretação liberal do seu pensamento a partir
da explicitação política dos seus principais conceitos. Procurando tematizar
os princípios de justiça a partir de uma concepção política de pessoa e das
liberdade básicas que as sociedades democráticas modernas historicamen-
te universalizaram, a obra posterior de Rawls intenta mostrar que o fim da
teoria da justiça como eqüidade é elaborar uma concepção da justiça po-
lítica e social em harmonia com “as convicções e as tradições as mais
enraizadas de um Estado democrático moderno”. O autor não pretende
elaborar uma teoria metafísica da justiça, desconsiderando das diversas
concepções do bem que caracterizam as sociedades liberais pluralistas, e
nem relativizar os princípios de justiça, deixando-lhe de atribuir uma “cer-
ta” validade universal.
Essa tendência do pensamento ralwsiano já é evidente nas três conferênci-
as (Dewey Lectures) intituladas Kantian Constructivism in Moral Theory.
(1980). Nelas, Ralws afirma que os bens primários (primary goods) são
vistos agora na dependência de uma concepção de pessoa que não se
coloca num plano histórico, sociológico ou psicológico, mas político. A
partir dessas conferências, e sob a pressão de críticas que se seguiram à
publicação de Uma Teoria da Justiça, o autor procedeu gradualmente im-
portantes revisões na sua posição presente nos artigos: Justice as Fairness:
Political not Metaphysical. (1985), The Primity of Right and Ideas of the
Good (1987), The Domain of the Political and Overlappnig Consensus.
(1989). Nestes textos, propõe uma interpretação política da justiça enquanto
eqüidade (fairness). Na obra mais recente (Political Liberalism) retoma os
vários artigos já publicados, sistematizando e ampliando a argumenta-
ção.
O conjunto da obra de Rawls caminhou no sentido da elaboração de um
idealismo político adequado a uma visão liberal da sociedade que passa a
usar categorias políticas marcadas pela fundamentação procedimental da
justiça e da ética.
O idealismo político está presente no uso de esquemas de pensamento,
pelos quais uma teoria da justiça torna-se “ideal” ao elaborar “princípios
que caracterizam uma sociedade bem ordenada num contexto favorável.
Ela desenvolve a concepção de uma estrutura de base perfeitamente justa e
os deveres e as obrigações de pessoas que lhe correspondem, nos limites
fixados da vida humana”.11 Essa justiça deve ser “realizada”, e as institui-
ções existentes são julgadas como injustas na medida que se afastam desse
ideal. Além de apresentar-se como um ideal regulador, o idealismo da
71
teoria da justiça está presente, também, na afirmação de Ralws de que uma
concepção política da justiça deve ser autônoma, enquanto filosofia políti-
ca, de um regime constitucional. Ela deve guardar a “pureza” de um “es-
quema normativo de pensamento”.12 Suas idéias fundamentais não po-
dem ser analisadas segundo categorias psicológicas, biológicas, e nem
políticas (sociais e econômicas) de uma realidade histórica concreta. As-
sim, a “irracionalidade” produzida pela disputa, pela concorrência, en-
fim, pelo conflitos que ocorrem na sociedade, particularmente na esfera
econômica e política, não deve afetar o mecanismo regulador da justiça.
O idealismo político de Ralws, que ele prefere chamar de “construtivismo
político”, transparece, ainda, na concepção de que “os princípios da jus-
tiça política (conteúdo) podem ser elaborados como o resultado de certo
procedimento de construção, pelo qual os agentes racionais, representan-
tes dos cidadãos, selecionam na posição original “os princípios públicos
de justiça que devem governar a estrutura básica da sociedade”.13 Esse
procedimento de construção se funda “essencialmente na razão prática, e
não segundo a razão teórica”.14 Apesar da afinidade com os conceitos
kantianos, o autor procura marcar a diferença entre o seu construtivismo
político (da justiça como eqüidade) e a filosofia moral de Kant.
O que se constrói? São os princípios da justiça. Para que isso seja possível,
Ralws deve pressupor os seguintes elementos: a) a idéia de uma sociedade
que possa ser bem ordenada e possa funcionar como um sistema justo de
cooperação. A unidade da sociedade, possível pela cooperação social, é
uma idéia presente na cultura política de uma sociedade democrática, na
qual a cooperação decorre do fato de que os indivíduos aceitam publica-
mente uma concepção política da justiça para reger a estrutura de base da
sociedade; b) que esse sistema seja operado por cidadãos livres e iguais
que agem segundo fins racionais, superando, entre eles, as divergências e
diferenças através de um consenso por justaposição (overlapping consensus).
Dado que as pessoas vivem segundo uma pluralidade de concepções, va-
lores e de bens incomensuráveis entre si, mas compatíveis com a
racionalidade dos seres humanos, o consenso por justaposição possibilita
o acordo, viabilizando a cooperação social e a estabilidade da sociedade;
c) a idéia política de pessoa. Esse aspecto é o mais importante na constru-
ção do idealismo político rawlsiano, pois os outros elementos (sociedade
bem ordenada concebida como um sistema justo de cooperação, o pressu-
posto da existência de cidadãos livres e iguais que podem chegar a um
acordo pelo consenso justaposto) dependem da concepção política de
pessoa.
O uso político da noção de pessoa significa dizer que os “bens primários”
são, agora, definidos não em função dos “fatos naturais da psicologia
72
humana”, e nem de uma concepção metafísica de pessoa, mas “pelas
necessidades das pessoas em razão do seu estatuto de cidadãos livres e
iguais...”.15 Esses bens são assegurados aos indivíduos enquanto cida-
dãos e não por causa das preferências e dos desejos.16
O destaque à concepção de pessoa exposta na Uma Teoria da justiça,
fortemente elaborada segundo a concepção kantiana da dignidade e auto-
nomia da pessoa, possibilitava uma interpretação metafísica da mesma,
tal como os comunitaristas, com razão, apontaram. Para Ralws, é crucial
compreender a “concepção de cidadão como uma concepção política e
não como uma concepção que pertence a uma doutrina exaustiva”.
Com o objetivo de evitar a proximidade da sua teoria com qualquer con-
cepção moral abrangente, a análise rawlsiana procede por deslocamentos,
aprofundamentos e reformulações da concepção de pessoa, , , , , com vistas à
elaboração de um conceito político da mesma, rejeitando aquelas teorias
que compreendem de forma exaustiva o valor moral da pessoa e da sua
liberdade, quer seja na visão do individualismo de S. Mill, quer seja na
perspectiva da autonomia da vontade de Kant. A concepção de pessoa
livre como ideal moral é um princípio compreensivo que deve comandar
todos os aspectos da vida humana. Tal concepção seria incompatível com
o princípio liberal da pluralidade das concepções de bem e da tolerância.
Num Estado democrático existem necessariamente concepções em conflito.
Apegado a esse princípio da tradição liberal, Ralws quer limitar o alcance
do ideal da autonomia da pessoa: “enquanto ideais morais completos, a
autonomia e a individualidade não convém a uma concepção política da
justiça”. Se assim fosse, o liberalismo tornar-se-ia um regime político sec-
tário na defesa desse ideal moral exaustivo e excludente.
A concepção política de pessoa está assegurada de início pela natureza
racional do sujeito humano. Ralws afirma que “uma pessoa age de manei-
ra autônoma quando os princípios de sua ação são escolhidos por ela
como sendo a expressão a mais adequada possível de sua natureza de ser
racional, livre e igual aos outros”. Ora, o véu de ignorância exclui qual-
quer interferência heterônoma na ação moral. Nele, os parceiros fazem as
suas escolhas como “pessoas racionais, livres e iguais entre elas”. Se as
pessoas agem segundo essesprincípios, elas agem de forma racional
(rational) e a escolha é razoável (reasonable).
Essa concepção retrata o homem como um ser racional indiferente ao con-
teúdo empírico da sua condição. Ela não é afetada pelas mudanças no
tempo, pelas concepções de bem que cada um possui. Apesar dessa
idealidade, a pessoa na posição original não pode ser compreendida
segundo uma doutrina metafísica, mas pelo estatuto político da mesma. O
73
cidadão (identidade pública) - implícito na posição original como recurso
de representação que assume uma condição ideal - torna-se o sujeito que
reivindica direitos legítimos e assume a responsabilidade de seus fins.
Um artifício que Rawls usa para evitar o mal-entendido do uso político da
noção de pessoa, diz respeito à retomada mais consistente e elaborada do
conceito de representação como recurso metodológico para caracterizar a
situação das partes na posição original. No Liberalismo político, Ralws
relata que muitas das críticas à sua Teoria da Justiça - a acusação de que
ela se apoia sobre uma concepção abstrata de pessoa e opera com uma
idéia individualista, não social, da natureza humana - decorrem do fato de
não se ver “na idéia da posição original um método de representação”. As
partes devem ser consideradas como “representantes de cidadãos livres e
iguais”. Elas são “criaturas artificiais”. Não são pessoas reais de uma so-
ciedade. As pessoas, na posição original, são “meros personagens artifici-
ais que habitam nosso mecanismo de representação”.
O recurso da representação significa descrever a posição original e a con-
cepção de pessoa que ela manifesta como o resultado de um artifício: é um
ponto de vista que o homem adota para observar o seu papel e a maneira
que ele pode se representar numa possível posição original. As partes são
“agentes racionais da construção”, “pessoas artificiais que idealizamos para
que habitem uma posição original, como um recurso de representação.”
A psicologia que se aplica à pessoa nessas condições “não é uma psicolo-
gia que se origina da ciência da natureza humana, mas é um esquema de
conceitos e princípios para expressar certa concepção política da pessoa e
um ideal de cidadania.”17 As instituições sociais de base devem respeitar a
liberdade e a igualdade dos cidadãos considerados como pessoas. Por isso
que a “concepção de pessoa é considerada parte integrante de uma con-
cepção de justiça política e social”.18
Essa concepção é corroborada por duas faculdades morais da pessoa ¾ a
capacidade de ter um sentido da justiça e a capacidade de ter uma con-
cepção de bem ¾ as quais, são também políticas, isto é, são condições
necessárias para que os cidadãos sejam considerados livres e iguais. A
capacidade de ter um sentido da justiça, ou seja, de respeitar os termos
justos da cooperação, remete à razoabilidade das pessoas; enquanto que
a capacidade de ter uma concepção do bem para a vida, de ser capaz de
formar e de realizar racionalmente tal concepção, refere-se à racionalidade
das mesmas. A primeira dessas duas faculdades dota as pessoas de uma
qualidade de agir a partir de princípios de justiça enquanto “termos justos
da cooperação social”. A segunda significa o uso da racionalidade para
formar, aceitar e seguir a realização de um determinado bem, aquele que
74
consideramos válido e digno de ser vivido. Essas duas faculdades morais
são necessárias e suficientes para que as pessoas sejam tratadas como
iguais em questões de justiça. Junto com a liberdade, elas constituem a
base da concepção política da pessoa. A partir dessas faculdades, as pes-
soas podem fazer escolhas razoáveis e, certamente, escolherão os princípi-
os de justiça na formulação ralwsiana como os mais razoáveis e racionais
Essa “politização” da concepção de pessoa, tomada na idéia fundamental
da liberdade e da igualdade, de um lado e, de outro, pelas faculdades da
racionalidade e razoabilidade, ocorre por duas razões. Primeiro, porque
essa concepção constitui um ideal razoável para que a convivência huma-
na seja possível, independente do julgamento ético dela ser um valor moral
(metafísico) para a sociedade. Segundo, porque esse ideal reflete ideais
implícitos ou latentes na cultura pública (política) das sociedades democrá-
ticas. Ora, somente uma perspectiva idealista (formalista, procedimental)
permite sustentar as duas razões acima formuladas sem recorrer ao conteú-
do social do “eu”, da liberdade e da igualdade. Isso porque o papel polí-
tico da pessoa na concepção do liberalismo de Ralws, é distinto do seu
papel segundo um ideal coletivo, quer ele seja moral, religioso, metafísico,
etc.
A ênfase na concepção política da pessoa deve envolver a idéia da priori-
dade do justo sobre o bem. O cidadão como pessoa livre e igual não é um
ideal moral, mas um ideal que pertence à justiça (política) enquanto pres-
suposto da sociabilidade. Uma sociedade democrática e pluralista não deve
ser regulada pelo ideal de bem (comunitário), mas por uma concepção
pública (política) de justiça, tornando-se uma sociedade na qual todos
sabem e aceitam os mesmos princípios de justiça.
Assim, o significado e o alcance da noção política de pessoa e a sua
importância para uma compreensão mais precisa da Teoria da Justiça é
fundamental para a elaboração de uma filosofia política liberal com base
no consenso por justaposição. A tolerância e o pluralismo devem ser vistos,
também, como conceitos políticos. São idéias que resultam da tradição
liberal do pensamento político e que se manifestam publicamente nas soci-
edades modernas, constituindo uma espécie de “ideal liberal da razão
política”.
Apesar do aprofundamento e da correção dos elementos que sustentam o
construtivismo em bases políticas, e que justificam a teoria rawlsiana da
justiça como um liberalismo político, dúvidas e questões permanecem, ain-
da suscitadas pela crítica comunitarista. Até que ponto a noção de pessoa
e dos poderes morais a ela inerentes não se constitui numa idéia (intuitiva)
de fundo natural? Ou seja, o idealismo de ralwsiano não se constitui numa
75
espécie de direito natural (formal) mais elaborado, tal como Hegel, mutatis
mutandis, já tinha criticamente observado na teoria do direito natural de
Kant denominando-a de “formalismo científico?” O uso de “idéias intuiti-
vas” (como, por exemplo, “a sociedade como um sistema de cooperação
eqüitativo entre pessoas livres e iguais”) não constitui um recurso para
evitar o vazio do formalismo abstrato?
O liberalismo político de Ralws não seria uma formulação mais elaborada
do otimismo liberal sobre a natureza humana, desconsiderando a radical
dimensão do conflito na política? Nesse sentido, não estaria a concepção
ralwsiana operando uma nova versão da tendência liberal de despolitização-
neutralização do político, tendência essa já criticada por C. Schmitt? Como
conciliar a realização pública da justiça como um valor comunitário com a
perspectiva individualista de Ralws, presente na concepção política de pes-
soa? Esta concepção não estaria supondo, de forma implícita, o uso de
noções comunitaristas? Tais como a idéia de que o consenso é possível,
que os homens podem construir uma concepção razoável de justiça e que
é possível realizá-la na comunidade, e que a escolha dessa idéia de justiça
é soberana, exprimindo uma “vontade geral” acima da vontade individual.
O comunitarismo afirma que determinados valores (liberdade, tolerância,
etc...) são construídos historicamente na tradição dos valores democráticos
ocidentais, o que lhes impede a neutralidade política, como quer o libera-
lismo. O contratualismo de Ralws remete à questão da cooperação social e
da unidade da sociedade. Como explicar a solidariedade, a sociabilidade
cooperativa do homem sem invocar princípios morais prévios, e sem recor-
rer à prioridade da idéia de um bem comunitário (que não pode ser objeto
de escolha nos termos de umcontrato) que se sobrepõe aos interesses dos
indivíduos?
São essas questões e outras que tornam o debate entre o chamado indivi-
dualismo liberal de Rawls (fundamentado na concepção política de pes-
soa) e a filosofia dos comunitaristas (baseados no enraizamento comunitá-
rio do indivíduo) extremamente fecundo para a filosofia política nos tempos
atuais. Em que pese a sua atualidade, esse debate acaba repondo, numa
perspectiva contemporânea, a velha tensão entre o indivíduo como zoon
politikon, membro da comunidade política, e o indivíduo como sujeito pordor
de direitos, na defesa da sua liberdade individual.
76
1 RALWS, John. A theory of justice. Harvard, 1971. Trad. Francesa. Théorie de la
justice. Trad. Catherine Audard. Paris: Seuil, 197l.
2 RALWS, J. Théorie de la justice, p. 10. Ralws diz que o Prefácio à edição francesa
foi o primeiro e o único que ele escreveu para uma edição estrangeira da obra
publicada em 1971. Nesta edição, o autor faz alguns “ remanejamentos” (presentes
de forma detalhada nos artigos posteriores) que atestam não só ampliação ou a
correção de determinados conceitos, considerados deficientes no texto original,
como também a necessidade de esclarecimentos para precisar a sua teoria. As
reformulações a que Ralws se refere (sobre as liberdades de base, por exemplo)
demonstram a importância de uma concepção política de justiça que se torna
decisiva na evolução do seu pensamento, culminando na obra Liberalismo Político
de 1993.
3 RALWS, J. Théorie de la justice., op. cit., p. 29-30.
4 Ibid., p. 31.
5 Ibid., p .33.
6 RALWS, J. Libéralisme politique. Trad. C. Audard . Paris: PUF, 1995. p. 29-30. Esses
princípios de justiça foram citados segundo a versão modificada que Ralws lhes dá
no Liberalismo Político (1993). A mudança em relação à versão original exposta na
Teoria da justiça, envolve a reelaboração de algumas expressões e a introdução de
alguns termos. Mas a estrutura conceitual e a ordem de prioridade dos princípios
permanecem as mesmas.
7 RALWS, J. Théorie de la justice., op. cit., p. 38. Na crítica ao predomínio utilitarista
e ao positivismo jurídico, o contratualismo de Ralws não resvala para a alternativa
do universalismo das verdades éticas e jurídicas naturais. Ao evitar o formalismo do
direito natural racional, Rawls evita, também, o relativismo historicista. Para o
primeiro, o que é justo deve ser derivado da natureza racional do homem segundo
princípios naturais que valem para todos. Para o último, a justiça e as regras morais
são o reflexo sócio cultural ou econômico de uma determinada configuração his-
toricamente constituída.
8 RALWS, J. Théorie de la justice., op. cit., § 14, p. 118.
9 Dentre esses autores destacam-se: Alastair MacIntyre. After Virtue (1981), Michael
Sandel. Liberalism and the Limits of Justice (1982), M. Walzer. Spheres of Justice:
Defense of Pluralism and Equality (1983), C. Taylor. Philosophy and the Human
Sciences: Philosophyical Papers (1985) e Sources of the Self (1990), J. Raz. The
notas
77
Morality of Freedom (1986). A crítica ao liberalismo dos anos 80 inspira-se não só
em Marx. Sobretudo recorre à filosofia política de Hegel e de Aristóteles. Nitida-
mente de fundo hegeliano é a crítica de C. Taylor no seu ataque ao “atomismo”
liberal que coloca o indivíduo como valor absoluto. Taylor reatualiza a prioridade
da Sittlichkeit hegeliana sobre a Moralität. De certa forma, o debate comunitarismo
versus individualismo repõe na década de 80 e 90, principalmente no pensamento
político norte americano, o debate entre kantianos e hegelianos suscitado a partir
da crítica de Hegel a Kant.
10 Para Sandel, por exemplo, liberalismo de Ralws acaba lançando mão de uma
concepção metafísica do eu na tentativa de dar uma absoluta prioridade aos prin-
cípios de justiça. Ralws não admite, observa Sandel, que a identidade da pessoa
seja determinada pelos enraizamentos comunitários. Para os comunitaristas, os
direitos individuais, embora básicos e primários, não podem ser deslocados da
comunidade e encontrar sua ancoragem numa concepção abstrata de pessoa.
11 RALWS, J. Théorie de la justice., op. cit., p. 282.
12 RALWS, J. Libéralisme polítique., op. cit., p. 121.
13 Ibid., p. 123.
14 Ibid., p. 127.
15 O artigo Basic liberties and their priority (1982), visa justamente esclarecer as
lacunas da Teoria da justiça no que se refere à análise das liberdades de base e a
forma como elas garantem o exercício das duas faculdades morais da pessoa: o
“sentido da justiça” e a “concepção do bem”.
16 Essa correção encontra uma elaboração mais ampla em Social unity and primary
goods. In: Sen, A. and Willians, B. (ed.) Utilitarism and Beyond. Cambridge: 1982.
17 RALWS, J. Libéralisme polítique., op. cit., p.120. (grifo nosso)
18 Ibid., p. 357.
78
RALWS, John. A theory of justice. The Belknap Press of Harvard University Press,
1971. (trad. franc. por C. Audard sobre um texto revisto em 1975 : Théorie de la
Justice, Paris : Seuil, 1987).
_____. Uma Teoria da Justiça. . . . . Trad. Almiro Pisetta e Lenita M.R. Esteves, São Paulo,
Martins Fontes, 1977.
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