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118 JOSÉ CARLOS MORElRA ALVES 2 - competência judiciária (vide n" 120). Com o domicílio não se confunde a residência, pois esta, ao contrário daquele, e ainda que se prolongue no tempo, não implica a intenção de permanência. Daí a~guns t~x- tos33 acentuarem que os estudantes não possuíam domicílio nas cidades aonde tinham Ido realizar seus estudos. 34 Tanto para o estabelecimento quanto para a mudança de domicílio, não é suficier:~e a simples declaração da pessoa, mas mister se faz sua real fixação, ou sua efetiva mudança." O domicílio pode ser voluntário ou necessário. Voluntário é o escolhido pela pes- soa; necessário, o que lhe é atribuído pela lei, independentemente de sua vontade. Assim, no direito romano, e a título de exemplo, o domicílio necessário do soldado é o lugar onde ele server" o do liberto, o de seu antigo proprietário; o da mulher casada, o de seu marido (e continua a sê-lo quando ela enviúva, até que se tome a casar)." Segundo textos sobre os quais há suspeita de interpolação, discutiam os juristas ro- manos Clássicos se era admissível a pluralidade de domicílios, sendo afirmativa a opinião dominante.38 Demais, admitia-se que uma pessoa não tivesse domicílio algum. 39 33 C. X, 40 (39), 2; e C. X, 39 (38), 4. 34 Tambémnão se confunde com domicílio a origo (origem), embora esta produza, em certos casos, efei- tos quanto a impostos e a competência judiciária. Origo é a vinculação da pessoa à cidade onde nas- ceu, decorrendo-lhe daí direitos e deveres. 35 D. L, 1,20. 36 Ressalvada, porém, a hipótese de o soldado possuir bens em sua pátria (D. L, 1,23, 1). 37 D. L, 1,22, 1; D. L, 1,32; C. X, 40 (39), 9, pr. e I. 38 D. L, 1,5; D. L, 1,6,2; D. L, 1,27,2. 39 D. L, 1,27,2. XII PESSOA FÍSICA OU NATURAL (CAUSAS QUE RESTRINGEM OU EXTINGUEM A CAPACIDADE JURÍDICA) Sumário: 86. Causas restritivas da capacidade jurídica. 87. Causas que extinguem a capacidade juridica. 88. Capitis deminutiones. 89. Capitis deminutio maxima. 90. Capitis deminutio media. 91. Capitis deminutio mínima. 92. A morte da pessoa fisica ou natural. 86. Causas restritivas da capacidade jurídica - Como salientamos anteriormen- te, enquanto a personalidade jurídica é um conceito absoluto que não permite gradação (existe, ou não), a capacidade jurídica a admite: pode ser mais ampla, ou menos. No direito romano, existem diversas causas que restringem a capacidade jurídica da pessoa física. Entre outras, I há as seguintes: a) a condição de liberto; b) a quase-servidão; c) a intestabilidade; d) a infâmia; e) a turpitudo; f) a religião; g) o desempenho de função 011 cargo público; e h) a condição de eunuco ou castrado. Estudemo-Ias separadamente. A) A condição de liberto Os libertos têm capacidade jurídica mais restritas do que a dos ingênuos. No campo do direito público, sofrem os libertos várias restrições: não podem ser se- nadores, nem pertencer à classe dos cavaleiros, nem exercer, nas províncias, o decurionato. No capítulo anterior, vimos que o status ciuitatis e o status familiae têm influência na maior ou menor amplitude da capacidade jurídica, pois a dos estrangeiros (latini eperegrini) e a dos filii familias é me- nor do que, respectivamente, a dos cidadãos romanos e a dos patres famílias. Em razão disso, a capitis deminutio media e a capitis deminutio minima (vide nOs90 e 91) são, também, causas restritivas da ca- pacidade jurídica. 120 JosÉCARLOS MOREIRA ALVES No terreno do direito privado, discute-se se os libertos, desde os tempos primitivos, não podiam casar com ingênua, tendo Augusto abolido essa proibição, embora a manti- vesse com relação aomatrimônio entre libertos e pessoas pertencentes à ordem senatorial (senadores e seus descendentes agnatícios até o terceiro grau); ou se aquela incapacidade não existia até o tempo de Augusto, que a criou com referência apenas ao casamento en- tre libertos e pessoas da classe senatorial. Tais limitações cessavam quando o liberto - o que só foi possível a partir do princi- pado - adquiria a ingenuidade pela concessão, feita pelo imperador, ou do ius aureorum anulorum (o anel de ouro, que, a princípio, era distinção reservada aos senadores, e foi estendido, depois, aos cavaleiros, e, finalmente, a todos os ingênuos),' ou da natalium restitutio (vide n° 83,fine). Justiniano aboliu as limitações que o liberto sofria com relação aos direitos público e privado. B) A quase-servidão Os textos aludem a certas pessoas que, embora juridicamente livres, estão, de fato, em situação que se assemelha à dos escravos, e por isso, em geral.' sua capacidade juridi- . ca é restringi da. São elas o homo liber bona fide seruiens (o homem livre que serve de boa-fé), o addictus (o adjudicado), o redemptus ab hoste (o prisioneiro de guerra resgata- do do inimigo), o auctoratus (o gladiador), as pessoas in mancipioe os colonos. O homo liber bana fide seruiens é aquele que, embora livre, julga que é escravo, e, conseqüentemente, serve, de boa-fé, a alguém. Ele não perde, por isso, a capacidade jurí- dica, mas esta sofre uma restrição: tudo aquilo que ele adquire com o seu trabalho ou com os bens do seu pretenso senhor passa para a propriedade deste. Assim o homo liber bona fide seruiens, quando descobre que é livre, somente pode reivindicar daquele a quem ser- via os bens de origem outra que não as supramencionadas (por exemplo: os que lhe ti- nham sido doados por terceiro). O addictus é o devedor que, tendo confessado o débito ou sido condenado ao seu pagamento, não o solveu dentro do prazo legal (30 dias), razão por que, no processo de execução (a manus iniectio),4 é adjudicado (addictus) pelo magistrado ao credor, que o conduz para casa, onde o mantém preso durante sessenta dias, período em que deve le- vá-Ia a três feiras consecutivas para verificar se, ali, aparece algum parente ou amigo do devedor que lhe pague a dívida. Findos os sessenta dias - durante os quais o devedor eo 2 o ius aureorum anulorum, ao contrário da natalium restitutio, não extinguia os direitos do patronato, nem a restrição no campo do direito privado. 3 Dizemos em geroJ, porque os addicti, em rigor, não têm diminuída sua capacidade jurídica, como se verá, mais adàole,. no texto, 4 Isso ocorre, apenas, nos prímórdios do direito romano. DIREITO ROMANO 121 addictusi conserva sua capacidade jurídica, embora sujeito à escravidão de fato -, o cre- dor pode matá-lo, ou vendê-lo como escravo no estrangeiro.' O redemptus ab hoste é o prisioneiro de guerra resgatado do inimigo por um tercei- ro. Em virtude da ficção dopostliminium, o prisioneiro, ao ingressar em território roma- no, recuperava a liberdade, a cidadania e todos os direitos que tivesse no momento em que fora capturado. O redemptus ab hoste, no entanto, se não tivesse recursos para reem- bolsar quem lhe pagara o resgate (isto é, o redemptor), não readquiria, de imediato, e ple- namente, sua capacidade juridica, pois estava obrigado a servir ao redemptor até solver o débito com o produto do seu trabalho;" pago o valor do resgate, recuperava ele a liberda- de por meio da manumissia/ beneficiando-se, então, do postliminium. Por outro lado, se o redemptus ab haste morresse antes do pagamento do valor do resgate, seus herdeiros não podiam suceder-lhe; demais, podia ser ele vendido a terceiro, assegurando-se-lhe o direito de libertar-se mediante o pagamento do valor do resgate ao comprador. A pouco e pouco, porém, sua condição foi melhorando, graças a constituições imperiais: Dioclecia- no e Maximiano [C, VIII, 50, 17) estabeleceram que o redemptus ab hoste recuperava a liberdade, sem necessidade de manumissão, no instante em que pagasse o valor total do resgate ao redemptor; depois, em 409 d.e., Honório (C. VIII, 50, 20) determinou que cin- co anos era o período máximo durante o qual estaria o redemptus ab hoste obrigado a ser- . vir ao redemptor; finalmente, no direito justinianeu, o redemptusab hoste recuperava, pelo postliminium, todos os seus direitos desde o momento do resgate, ficando, porém, obrigado a trabalhar para o redemptor, que tinha sobre ele o que os textos denominam pignus,8 a fim de ressarcir-lhe o valor do resgate. 5 Discute-se se o addictus se enquadra, ou não, na categoria das pessoas in mancipio, de que nos ocupare- mos, mais adiante, no texto. Segundo tudo indica, a resposta negativa é a certa, porquanto - corno salienta Volterra (Istituzioni di Diritto Privato Romano, p. 97) - o addictus , ao contrário do que ocorre com as pes- soas in mancipio, não necessita de manumissio para libertar-se do credor: basta solver, por um dos meios legais (provavelmente a solutio per aes et libram), o débito, para que recupere sua liberdade. 6 Écontrovertida a situação em que ficava o redemptus ab hoste durante esse período, mas nada indica que se encontrasse na condição de escravo. A propósito, vide Biondi, Istituzioni di Diritto Romano, 3" ed., § 24, pp. II 5 e 116. 7 Cf. Pampaloni, Persone in "causa mancipii" nel diritto romano giustinianeo, in Bullettino dell' Isti- tuto di Diritto Romano, vol.17 (1905), p.134, nota 40. 8 Infelizmente não se conhece o exato sentido jurídico do termo pignus com referência ao redemptus ab hoste .A propósito, vide Pampaloni; Persone in "causa mancipii" nel diritto romano giustinianeo, in Bullettino dell'Istituto di Diritto Romano, voI. 17 (1905), p. 126 e segs. 122 JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES o auctoratus' é a pessoa contratada pelo lanista (empresário) para combater como gladiador. IO Ele se compromete, sob juramento (auctoramentum), a se deixar queimar, prender, açoitar, morrer. De direito, conserva ele a condição de homem livre; de fato, está totalmente subordinado à vontade do lanista, como se fosse escravo. Em virtude disso, sua capacidade jurídica sofre restrições: o auctoratus, que é considerado infamis, suporta as limitações decorrentes da infamia (de que nos ocuparemos mais adiante); o terceiro, que o subtrai ao lanista, comete furtum (furto); e não pode o auctoratus exercer cargos públicos. Os efeitos do auctoramentum cessam com a morte do auctoratus, ou com a ocorrência de termo, ou com o resgate.!' A pessoa in mancipio é o filius famílias (inclusive a mulher submetida à manus do marido) vendido solenemente (por meio da mancipatio) a terceiro pelo pater familias, com um dos seguintes objetivos: a) extinguir apatria potestas, para posterior adoção ou emancipação do filius famílias; b) obter dinheiro com a venda;" ou c) eximir-se da responsabilidade de compor o prejuízo causado pelo jilius famílias a terceiro (nesse caso, o pater familias, que não quer indenizar, entrega o jilius familias - o que se denomina abandono noxal (deditio noxae) - ao terceiro, para que, como pessoa in mancipio, trabalhe em favor deste, até ressarcir o dano). 13 Discutem os romanistas se, primitivamente, as pessoas dadas in mancipio se toma- vam escravas, ou se,juridicamente, eram consideradas livres, embora, de fato, sua situa- ção fosse análoga à dos escravos. O que é certo é que, já na república, as pessoas in mancipio conservam o status libertatis e o status ciuitatis, gozando do ius suffragii e do 9 Sobre o auctoratus, vide Biscardi tNozione classica ed origini dei "auctoramentum ", in Studi in Ono- re di Pietro de Francisci, vol. IV, pp. 109 a 129, Milano, 1956) e Diliberto tRicerche sul! "Auctora- mentum " e sulla condizione degli "auctorati ", Milano, 1981). 10 Os autores, em geral, identificam o auctoratus com o gladiador que não é escravo. Alguns há, no en- tanto - e, entre eles, se encontra Diliberto (ob. cit., p. 7 e segs.) -, que sustentam que há outras causae auctoramenti concernentes a situações de sujeição que não a ligada a combates de gladiadores, embo- ra fosse esta a socialmente mais relevante e, por isso, a que estava sempre presente na consciência so- cial quando se falava em auetoramentum (ato de vontade, que se consubstanciava num juramento, pelo qual alguém se colocava em face de outrem na condição de auetoratus). 11 Vide, a propósito, Biscardi (ob. cit., p. 121). 12 Esse objetivo desaparece no período clássico. 13 Vide n° 277-A. Sendo o ato ilícito praticado por escravo ou fllius familias, a actio ex de!ieto - como acentua Betti (Istituzioni di Diriuo Romano, I, reimpressão (1947), pp. 303, 4) - passa a qualificar-se como actio noxalis, sendo intentada contra o pater famílias, em cujo poder se encontra o ofensor, o qual poderá liberar-se desde que entregue este ao ofendido, mediante a noxae deditio, que se realiza por meio de mancipatio que transfere o escravo para a dominica potestas do ofendido, ou que junto a este constitui oftlius famílias in eausa mancipií. Sobre o regime noscal no direito romano, vide F. de Visscher, Le Régime Romain de IaNoscalité, Bru- xelas,1947. . ~." ((iJ;:) 1;1 123DIREITO ROMANO ius honorum. No campo do direito privado, porém, sofrem restrições, pois sua capacida- de jurídica é mais limitada do que a dosfiliifamilias que não estão in mancipio. Assim, não podem contrair obrigações, e, a menos que tenham sido manumitidas no testamento, não podem, nele, ser instituídas herdeiras. Demais, praticajurtum (furto) o terceiro que subtrai uma pessoa in mancipio. A pessoa in mancipio deixa de sê-lo, mediante manumissão, utilizada uma das anti- gas formas solenes (manumissio censu, uindicta ou testamento). O manumitido, no entan- to, não se toma liberto; conserva a qualidade de ingênuo. Por outro lado, os textos não nos permitem saber, com certeza, se o manumissor adquiria, ou não, o direito de patronato. A da tio in mancipio, da qual ainda se encontram traços, no Ocidente, no século IV d.C., não mais é mencionada no direito justinianeu. O colono (nas fontes, entre outras denominações: colonus tributarius, inquilinus) é a pessoa que está obrigada, perpetuamente, a cultivar um determinado imóvel. A origem do colonato é desconhecida, e o que há, a esse respeito, são somente con- jecturas." O que se sabe de certo é que o mais antigo texto que se refere ao colonato data de 332 d.C.: trata-se de constituição imperial que se encontra no Código Teodosiano (V, 9,1). Mas, como essa constituição mostra que o colonato nessa época já era instituição integral- mente organizada, daí se deduz que ele surgiu e se desenvolveu durante o século III d.C. A finalidade do colonato foi assegurar não só o cultivo do solo, mas também o pa- gamento do imposto imobiliário devido ao Estado (e isso porque, no período em que ele surgiu, muitos proprietários de latifúndios, na impossibilidade de cultivá-los - a época era de grave crise econômica-, preferiam abandonar as terras a pagar-lhes os impostos). A condição jurídica do colono é singular. Ele pode ser homem livre, ou escravo. Mas, seja homem livre, ou escravo, está vinculado à terra: lS é membrum terrae (membro da terra). E a tal ponto que nem sequer o proprietário do imóvel a que está vinculado o co- lono - e o proprietário com relação ao colono se denomina patronus dominus - pode des- Iigá-lo da terra: o mais que lhe é dado fazer é, quando proprietário de dois ou mais imóveis, transferi-lo de um para outro. O colono, mesmo que seja homem livre, está su- bordinado ao patronus quase como se fosse escravo. Por isso, o patronus pode castigá-lo fisicamente; reinvidicá-lo se fugir do imóvel; exigir dele (quase sempre in natura - isto é, em frutos do solo cultivado -, raramente em dinheiro) o pagamento de anuidade (canon). Por outro lado, para que se determinem quais são os direitos dos colonos, é preciso distin- guir se ele é homem livre ou escravo. Se escravo, seu casamento é considerado contuber- nium; seu patrimônio é um pecúlio, do qual o titular é o patronus; e, enfim, ele se encontra sob a dominica potestas do patronus. Se, no entanto, é homem livre - e é essa a 14 Sobre as origens do colonato e bibliografia específica, vide Monier, Manuel Élémentairede Droit Ro- main, I, 6" ed., n° 175, p. 226 e segs. A propósito, vide, também, Gino Segrê, Studio sulta Origine e sullo Sviluppo dei Colonato Romano. in Dalla Radice Pandettistiea alta Maturità Romanistica - Scritti di Diriüo Romano, pp. 227 a416, Torino, 1974. 15 Cf. Puchta, Cursus der Institutionen, fi, 5' ed., § 214, p. 459, Leipzig, 1857. 124 JOSÉ CARLOS MOREIRA AL VES hipótese que interessa mais de perto quando se estuda o colonato entre as causas restriti- vas da capacidade jurídica -, seu casamento é legítimo; seu patrimônio, embora denomi- nado peculium, é de sua propriedade; tem ele, em geral, os direitos de homem livre, porém não possui aqueles que não se conciliam com sua situação de membrum terrae, bem como sofre certas restrições: para alienar seu patrimônio, mesmo sendo homem li- vre, tem de obter, em regra, permissão dopatronus; e Justiniano proibiu o casamento en- tre mulher livre e colono de que ela não fosse patrona. O colono o é por nascimento, ou por fato posterior. Anteriormente a Justiniano, o fi- lho de colona, em geral, é colono; no direito justinianeu, 16 tanto o filho de colona quanto o de colono. Torna-se alguém colono, em três hipóteses: a)por prescrição trintenária (quando a pessoa serve, durante trinta anos, como colona); b) por convenção entre o dono da terra e o que se vai tomar colono; 17 e c)por punição: o mendigo, homem livre e capaz de trabalhar, é atribuído como co- lono, a quem denunciá-lo. ' Até o direito justinianeu, somente se admitia uma causa para a perda da condição de colono: que ele vivesse, durante trinta anos, como se não o fosse. No direito justinianeu, passaram a três as causas: "a)quando o colono ascendia à dignidade de bispo (não bastava, por exemplo, orde- nar-se padre); b) quando era oferecido pelo patronus para servir como soldado; e c) quando adquiria o imóvel a que estava ligado. " C)A intestabilidade . ,. Havia pessoas, em Roma, que não podiam ser testemunhas, nem celebrar negócios J~~ICOS q~e dependessem da presença destas. Eram os intestáveis, que sofriam tal res- trição - muito grave, pois os mais importantes negócios jurídicos do direito romano exi- giam a presença de testemunhas - a título de pena pela prática de certos atos. Assim, segundo a Lei das XII Tábuas, tornava-se intestável o que, tendo sido testemunha ou por- ta-balança num negócio jurídico, se negasse, posteriormente, a dar o seu testemunho so- b t 18 direi 1"re o a o; no eito c assico, também se considerava intestável aquele que fosse autor de escrito difamatório contra outrem. D)A infâmia , .Anteri?rmente a Justiniano, os cidadãos romanos, para gozarem da consideração publica, deviam comportar-se não só de acordo com os preceitos do direito, mas também com os da moral e da honradez. Aqueles que desse modo não se conduziam sofriam,já no 16 17 Vide, a propósi~, Mato~ Peixoto, Curso de Direito Romano, I, 4" ed., n° 165, pp. 301-2, nota 783. Essas pessoas 830, possivelmente, as que integram a categoria dos coloni adscripticü, classe inferior en~ ~s colonos. Os coloni adscripticii são tratados, em regra, mais severamente pelos imperadores; Justiniano (C. X, 48 (47), 21, 1) compara a situação deles com a dos escravos salientando que ambos se acham submetidos ao poder (potestas) do senhor (dominus). ' Tab. vm, 22 (ed. Riccobono).18" II li DIREITO ROMANO 125 período republicano, restrições na capacidade jurídica. Assim, os censores, a seu arbítrio, podiam (anotando na lista do recenseamento o motivo da exclusão - nota censoria) ex- cluir do Senado, ou da ordem dos cavaleiros, ou das tribos, as pessoas que praticassem falta grave contra os costumes romanos; 19 o magistrado que presidia a uma eleição (em ge- ral, o cônsul) podia recusar a inscrição, na lista dos candidatos, daqueles que, por motivos morais, não lhe parecessem dignos; o pretor, com relação às pessoas que se enquadravam em certas causas estabelecidas no Edito (por exemplo: os condenados em ações infamantes, como a ação de furto; os bígamos; os gladiadores; os comediantes), não lhes permitia repre- sentar alguém emjuízo, ou nele ser representadas por outrem; e, finalmente, certas leis (como a Lei JuliaMunicipalis) não admitiam ocupasse alguns cargos administrativos (por exemplo, o de decurião) quem tivesse praticado atos desabonadores nelas enumerados. Note-se, porém, que, até Justiniano, essas pessoas não sofriam nenhuma condena- ção moral imposta pelo Estado, embora a opinião pública as denominasse, em geral, pes- soas ignominiosae. Justiniano é que, mantendo em suas linhas gerais essas causas e esses efeitos, impôs a tais pessoas uma condenação moral, denominando-as infames. Surge, assim, a infamia como categoria jurídíca.é" E)A turpitudo A turpitudo nada mais é do que amá reputação de uma pessoa, em virtude da práti- ca de ações menos dignas que, embora não lhe acarretassem a infamia, traziam sobre ela o desprezo por parte da sociedade. Os autores modernos denominam à turpitudo infamia facti (infâmia de fato), para contrapô-Ia à infamia (que seria infamia iuris, infâmia de di- reito). Aspersonae turpes sofriam restrição em sua capacidade jurídica pela circunstân- cia de não serem designadas, pelo magistrado competente, para exercer certas funções (assim, por exemplo, a de tutor, a de curador) para as quais era necessário levar em conta a dignidade da pessoa. F) A religião21 O paganismo romano era, por índole, tolerante com as demais religiões. Por isso, enquanto ele predominou, apenas não se admitia que se introduzissem, em Roma, reli- 19 A nota censoria só produzia seus efeitos durante o tempo em que o censor, que a impusera, exercia a censura, e podia ser renovada, ou não, pelo que lhe sucedesse (vide, a propósito, Monier, Vocabu/aire de Droit Romain, verbete nota censoria, p, 217, Paris, 1948). 20 Os romanistas distinguem duas espécies de infamia no direito justinianeu: a infamia mediata (a que decorre da condenação por certos atos, como, por exemplo, os condenados em ação de furto, de iniu- ria) e a infamia imediata (a que resulta imediatamente da prática de certos atos, como, por exemplo, da profissão de prostituta, de comediante). Em regra, a infamia perdura por toda a vida. Mas o imperador ou o Senado podem retirá-Ia. Sobre a infamia, vide Pommeray, Études sur l'infamie en droit romain, Paris, 1937. 21 Vide, a propósito, Bouché-Leclercq, L 'Intolérance Religieuse et ia Politique, Paris, 1911. 126 JOSÉ CARLOS MORElRA AL VES giões que causassem perturbação à ordem pública.f O próprio cristianismo não foi per- seguido por motivos essencialmente religiosos, mas, sim, políticos (os cristãos, em geral, eram punidos com pena de morte porque se recusavam a participar do culto ao impera- dor, o que se considerava crime de lesa-majestade). Com o triunfo do cristinianismo, Roma inicia ataque ao paganismo, ao judaísmo e aos cristãos não-ortodoxos (isto é, aos que não seguiam os princípios consagrados nos Concílios Ecumênicos de Nicéia, de Constantinopla, de Éfeso e da Ca1cedônia). No direito justinianeu, cresce o espírito de intolerância e surgem, então. várias res- trições à capacidade jurídica dos não-cristãos. Eram elas maiores ou menores conforme se tratasse de adeptos das antigas religiões admitidas em Roma (isto é, pagãos e judeus; eram eles os menos atingidos, mas não podiam, por exemplo, exercer cargos públicos em geral, nem ter escravos cristãos; e os judeus não podiam casar com cristãos), 23 de após ta- tas (que não podiam fazer doação ou testamento, sendo, portanto, sua herança oferecida sempre aos seus herdeiros legítimos), de heréticos (isto é, os cristãos que não seguiam os princípios consagrados nos quatro supracitados Concílios, e que não podiam exercer car- gos públicos, receber herança ou legado, fazer doação ou deixar legado) e de membros de certas seitas (e eram esses os mais duramente tratados; assim, por exemplo, os maniqueus'"que - além de cometerem crime por seguir tal seita - não podiam receber coisa alguma por testamento ou doação, nem doar, vender, comprar, celebrar contratos, testar). G) Função ou cargo público Certas funções ou cargos públicos acarretavam para os que os desempenhavam res- trições à sua capacidade jurídica. Os senadores, por exemplo, não podiam, no direito clássico, casar-se com mulher de profissão ou costumes reprovados (assim, uma atriz); os governadores de províncias, bem como os funcionários que aí serviam, não podiam casar-se legitimamente com mulheres residentes nas províncias onde desempenhavam eles suas funções. H) Eunucos e castradoi5 No direito pós-clássico (o mesmo não ocorria no período clássico), os eunucos e castrados sofriam, em virtude de seu defeito físico, restrições na capacidade jurídica: não podiam contrair casamento legítimo, nem adotar. 22 23 Paulo, Sententiae, 5, 21, 2; Mos. et Rom. Legum Collatio, 15,3,4. Vide ,a propósito, Solazzi, Fra norme romane antisemite, in Bullettino dell '/stituto di Diritto Roma- no, XLIV (1936-1937), p. 396 e segs. (artigo republicado in Scritti di Diritto Romano, vol. III - 1925/1937 -, ps. 579/586, Napoli, 1960). Sobre a legislação de Justíniano relativa aos judeus, vide Pe- trus Brome S. L, Die Judengesetzbung Justinians, in Miscellanea Juridica Justiniani et Gregorii IX legibus Commemorandis, p. 109 e segs., Roma, 1935. ~ maniqueí~~o ~ra uma seita ~erética, surgida no século III d.C., que procurava unir, numa grande smtese, o crístíamsmo e pagarnsmo oriental. A propósito, vide Danilo Dalla, L 'incapacità Sessuale in Diritto Romano, Milano, 1978. 24 25 DIREITO ROMANO 127 87. Causas que extinguem a capacidade jurídica - Duas são as causas que extin- guem a capacidade jurídica (e, portanto, a personalidade jurídica): a) a capitis deminutio máxima." e b) a morte. Passemos ao exame delas. 88. Capitis deminutionest' - Muitos são os pontos obscuros na teoria das capitis deminutiones. Quanto ao período pré-clássico, discute-se o sentido da expressão capitis deminu- tio. Para alguns romanistas, ela indicava a supressão do indivíduo da lista do censo, acar- retando, em conseqüência, a perda do status libertatis e do status ciuitatis. Para outros, caput, aí, estava empregado no sentido material de indivíduo, e deminutio significava a saída de uma pessoa, voluntária ou involuntariamente, de um Estado ou de uma família?S Por outro lado, é também muito controvertida a questão de saber se, na época pré-clássi- ca, existia apenas uma espécie - ou várias - de capitis deminutio. No direito clássico, há capitis deminutio quando se verifica, relativamente a uma pessoa física, a perda da liberdade (status libertatis), da cidadania (status ciuitatis) ou da posição dentro de uma família (status familiae). Daí as três espécies respectivas de capi- tis deminutiones: capitis deminutio maxima, capitis deminutio media e capitis deminutio minima. Note-se, porém, que nem sempre a capitis deminutio implica a extinção ou a di- minuição da capacidade jurídica de quem a sofre. Se isso ocorre quando se verifica a ca- pitis deminutio maxima (há extinção da capacidade jurídica, pois o indivíduo que perde o status liberta tis passa a ser escravo, e, conseqüentemente, deixa de ser pessoa física e se toma, juridicamente, coisa) ou a capitis deminutio media (há diminuição de capacidade jurídica, porquanto, perdendo-se o status ciuitatis, se perdem as faculdades reconhecidas pelo ius ciuile), o mesmo não sucede necessariamente quando há a capitis deminutio mi- nima. Nesse caso, pode verificar-se uma das três seguintes situações: Ia) haver diminui- ção de capacidade jurídica, quando a pessoa sui iuris passa a alieni iuris, como ocorre, por exemplo, na ad-rogação; 2a) haver acréscimo de capacidade jurídica, no caso inver- so ao anterior: o alieni iuris se toma sui iurii9 e 3') não haver nem acréscimo nem de- 26 Como salientamos na nota 1, as capitis deminutiones media e minima são apenas causas restritivas da capacidade jurídica, Sobre as capitis deminutiones, vide Desserteaux, Études sur Iaformation historique de Ia capitis de- minutio, 3 tomos (em 4 fascículos), Paris, 1909-1928. Vide, a propósito, Monier, Manuel Élémentaire de Droit Romain, I, 63 ed., nO 223, p. 223. Isso ocorre, por exemplo, quando o alieni iuris é emancipado pelo seu pater famílias, tomando-se, en- tão, sui iuris. Note-se, no entanto, que não havia capitis deminutio minima (embora houvesse mudan- ça na posição do individuo dentro da família) quando o filius familias, que em alieni iuris, se tornava sui iuris pela morte do seu pater familias_ 27 28 29 128 JOSÉ CARLOS MORElRA AL VES créscimo de capacidadejurídica: isso sucede - assim, na adoção - quando o alieni iuris sai de sua família de origem e ingressa em outra também na condição de alieni iuris. No direito justinianeu, persistem as capitis deminutiones maxima e media, mas os efeitos decorrentes da capitis deminutio minima se reduzem a quase nada. 30 89. Capitis deminutio maxima - Há capitis deminutio maxima quando a pessoa fí- sica perde o status libertatis. Assim, o ingênuo e o liberto, que são reduzidos à escravi- dão, sofrem capitis deminutio maxima. A perda do status libertatis acarreta, automaticamente, a dos status ciuitatis efami- liae. Com efeito, quando o homem livre se toma escravo, deixa, também, de ser cidadão romano e de ter uma posição dentro da família, pois o escravo, sendo coisa, não tem cida- dania, nem pode ser pater familias ou filius familias. 90. Capitis demlnutio media - Há capitis deminutio media quando a pessoa física perde o status ciuitatis, isto é, quando o cidadão romano deixa de sê-lo, A capitis deminutio media só acarreta a perda do status familiae (quem não é cida- dão não pode ser pater familias oufilius familias de um família romana), e não do status libertatis (aquele que deixa de ser cidadão romano continua a ser homem livre). 91. Capitis deminutio minima - Há capitis deminutio minima quando a pessoa fisi- ca perde sua posição dentro de uma família. Isso pode ocorrer quandó a pessoa alieni iu- ris passa a sui iuris, por ter sido emancipada, saindo, portanto, da família de origem, sem ingressar em outra; ou quando a pessoa alieni iuris muda de uma família para outra onde continua a ser alieni iuris (assim, por exemplo, um alieni iuris é adotado pelo pater famí- lias de outra família; o alieni iuris sai de sua família de origem e ingressa na do adotante, na posição, também, de alieni iuris); ou, finalmente, quando a pessoa sui iuris se toma alieni iuris (o que ocorre na ad-rogação, isto é, quando umpater familias é adotado por outro pater familias; o adotado ingressa na família do adotante como filius familias, e, portanto, como pessoa alieni iuris). Por outro lado, a capitis deminutio minima não acarreta a perda nem do status liber- tatis nem do status ciuitatis." 92. A morte da pessoa fisica ou natural- A capacidade jurídica - e, portanto, a personalidade jurídica - da pessoa física também se extingue com a morte. 30 De fato, a capitis deminutio minima, nesse período, não mais extingue as servidões pessoais, não dis- solve o contrato de sociedade, não tem importância para os iudicia legitima, nem para a agnatio (agna- ção) que foi abolida pela Novela 118. 31 Quanto aos efeitos decorrentes das capins deminutiones - que, aliás, são os resultantes da perda da li- berdade, da cidadania, ou da posição dentro da família -, serão eles estudados adiante, na parte espe- cial, à medida que se fizer oportuno, com referência às diversas relações jurídicas. DIREITO ROMANO 129 fí" b I 32A prova da morte da pessoa sica mcum e a quem a a ega. Para obviar as dificuldades, há textos" que estabelecem presunções sobre o mo- mento exato da morte, quando ela ocorre em acidente, de pessoas ligadas por laços de su-. cessão hereditária (a essa situação se dá o nome de comoriênciaj.Y"Na impossibilidade de determinar-se quem morreu primeiro, os juristas clássicos entendiam que se presumia que elas tivessem morrido simultaneamente, nada herdando, portanto, uma da outra. Já no tempo de Justinianeu, foi introduzi da na legislação romana a regra de que, em se tra- tando de pai e filho, se este fosse púbere se presumia que tinha falecido depois daquele; se impúbere, antes. Por outro lado, não havia, em Roma, obrigação de os parentes do falecido declara- rem a qualquer magistrado a ocorrência do óbito. 32 No direito romano, não havia o instituto da ausêucia, que é de origem medieval. Assim, não conhe- ciam os romanos a morte presumida resultante da ausência. Sobre a ausência em face dos textos roma- nos, vide o amplo estudo de Bruns, Die Verschollenheit, in Iahrbuch des gemeines deutschen Rechts, I (ano de 1857), pp. 92 a 122, bem como o de Tamassia (L 'assenza nella Storia dei Direi/to Italiano, ín Serittí di Storia Giuridica, Ill, pp. 165 e segs., Padova, 1969), onde seu autor conclui que "parece pois que o direito romano tenha diligentemente evitado restringir, dentro de um círculo de presunções le- gais, a declaração de morte de um ausente" e isso porque "a lei romana pensa uo retomo do ausente, e provê, medio tempore, a custódia de seu patrimônio (D. L, 1,4)", ao passo que "as atuais legislações, consideradas em seu conjunto, parece que pensam de preferência na morte do ausente". Clara síntese sobre a questão da ausência no direito romano se encontra em Serrano y Serrano, La Ausencia en el Derecho Espaiiol, pp. 5/13, Madrid, 1943. 33 D. XXXIV, 5, 9, 4; 22 e 23. 34 Sobre a comoriência, vide Renzo Lambertini, La Problematiea delJa Comorienza nell'Elaborazione Giuridica Romana, Milano, 1984. 35 Essa determinação - se for possível fazê-lo, o que as mais das vezes não ocorre - é muito importante para efeito de sucessão hereditária. Eis \UU exemplo: Tício e Caio (este herdeiro necessário daquele) se encontram num navio que naufraga. Ambos morrem. Tício tinha feito testamento em favor de Caio. Se se puder provar que Caio sobreviveu instantes a Tício, aquele herdou os bens deste e, como tam- bém faleceu, esses bens passam para seus herdeiros legítimos; se se provar o contrário (isto é, que foi Tício quem sobreviveu instantes a Caio), quem vai receber os bens de Tício serão seus herdeiros legí- timos, pois, quando o herdeiro instituído no testamento (no caso, Caio) falece antes do testador, o tes- tamento é considerado destitutum ou desertum (vide n° 319) e, portanto, não produz seus efeitos.
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