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THUILLIE - Espaco e Perspectiva no Quatrocento - Capitulo II

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CAPÍTULO II 
ESPAÇO E PERSPECTIVA 
NO QUATTROCENTO 
A perspectiva linear parece-nos hoje 
um instrumento matemático de fácil 
manejo. E a idéia de que as linhas 
paralelas possam se encontrar "no 
infinito" praticamente dispensa 
explicações ... Mas não foi sempre 
assim; muitas etapas foram 
necessárias para que, pouco a 
pouco, uma geometrização coerente 
da representação espacialfosse 
assegurada, com base em princípios 
enunciados claramente. Foi em 
Florença, no início do século XV 
(o Quattrocento) que pintores e 
arquitetos formularam a primeira 
teorização da perspectiva, 
teorização que teria mais tarde 
inúmeras repercussões sobre o 
pensamento cientifico. Ela não só 
tomava possível a geometria 
projetiva, como "preparava" o 
conceito de espaço sobre o qual se 
apoiaria a mecânica clássica. A 
geometrização do espaço deve ser 
compreendida do ponto de vista 
histórico, em relação a um contexto 
sócio-cultural extremamente rico. 
PC-WIN7-SALA-09
Carimbo
58 DE ARQUIMEDES A E!NSTEIN 
Todas as histórias da arte ocidental parecem concordar quanto -a um 
ponto: em Florença, nas primeiras décadas do século XV, as técnicas de 
representação do espaço sofreram uma mutação absolutamente notável. 
Graças, em particular, aos novos métodos da perspectiva linear, os 
artistas tomaram-se capazes de dar .. profundidade" a seus afrescos e 
baixos-relevos. Para defmir a natureza dessa inovação, o historiador da 
arte Erwin Panofsky utilizou uma comparação que se tomou clássica. 
As obras tipicamente medievais - explica - nos oferecem um espa-
ço-agregado, isto é, um espaço onde os objetos se justapõem sem que 
suas relações espaciaffi sejam levadas em conta (ilust. p.60). Os floren-
tinos do século XV, por sua vez, criaram um espaço-sistema, no qual os 
objetos se relacionam segundo situações precisas e se organizam de 
maneira ordenada e unitária. Ainda hoje essa concepção nos é familiar: 
-o espaço é uma espécie de receptáculo transparente, que se pode carac-
terizar como tridimensional, homogêneo, isótropo e infinito. Para repre-
sentá-lo corretamente, convém recorrer à .. geometria", ao estudo das 
.. proporções", ao cálculo das .. dimensões aparentes". É esta, em resumo, 
a contribuição dos arquitetos e pintores florentinos, contribuição que foi 
a partir daí detalhada, teorizada e explorada de várias formas, em 
particular no domínio da ciência. 
A ARTE COMO PREPARAÇÃO PARA A CIÊNCIA 
Às vezes nossa memória é curta: para que as brilhantes teorias de 
Galileus e Newtons pudessem se desenvolver, as noções de tempo e 
espaço já deviam ter adquirido um certo rigor. Só sob esta condição 
tomava-se possível uma física ao mesmo tempo matemática e experi-
mental. É claro que filósofos e homens de ciência participaram da 
elaboração desses conceitos fundamentais. Mas a tarefa já lhes fora 
enormemente facilitada pelos artistas. Como veremos, foram estes que 
elaboraram-concretamente a noção .. moderna" de espaço, desenvolven-
do certas técnicas de representação. 
Fig .9 Foi por volta de 1425 que Tommaso di Giovanni Guidi, o Masaccio, pintou 
sobre uma parede da igreja de Santa Maria Novella de Florença a sua Trindade. 
Obra essencial para a história da perspectiva, pois os historiadores admitem que, 
pela primeira vez, um pintor renascentista usava de modo consciente e sistemático 
a perspectiva linear (na escultura, Dona te li o é considerado o iniciador). Nela há um 
--
ESPAÇO E PERSPECTIVA NO QUATTROCENTO 59 
ponto de fuga único, situado no meio da linha do horizonte; esta, conforme os 
cânonas ideais encontra-se aproximadamente no nível dos olhos de um observa-
dor de pé dia~te do afresco. Leon Battista Alberti, uma década depois (1435). 
explicitará esse método para os pintores.(Giraudon) 
60 D E ARQUIMEDES A ErNSTEIN 
Estudar o nascimento de uma nova organização espacial é, portanto, 
fazer história da arte; mas é também indagar sobre as origens de uma 
nova maneira de perceber e de conceber a natureza, ou seja, sobre um 
momento essencial na pré-história da física clássica. Pintores, esculto-
res e arquitetos operaram de fato uma espécie de revolução silenciosa 
ao imaginar e representar um espaço homogêneo e, depois, ao geome~ 
trizá-lo. Para Aristóteles, havia o centro absoluto do mundo e ~lugares" 
diferenciados, para os quais tendiam respectivamente o elemento terra, 
o elemento fogo etc. O novo espaço, ao contrário, não é mais qualitativo 
e heterogêneo: ele é sem limites e dotado de unidade; anterior aos 
Fig.1 O ~sta jlumi~ura,. da Alta Idade Média, é um bom exemplo da concepção de 
espaço a ~ual o histonador da a~e Erwin Panofsky denominou de espaço agrega-
do. Os obj~tos e as pessoas estao justapostos sobre um plano, sem que o artista 
procure cnar de modo metódico a ilusão de profundidade ou se preocupe em 
relacionar as grandezas aparentes. Não só "o ar não circula", mas também 0 
castelo parece muito pequeno, e esquematizado de maneira bem pouco "realista". 
o_s tamanhos dos diversos personagens nada devem à perspectiva geométrica: 
sao determinados pelo status social. Um senhor feudal é, por natureza, maior que 
um pedrei~o .. . No fim da Idade Média, o desejo de representar o espaço "profundo" 
e verdadeiramente tridimensional se manifestará gradativamente.(Chantilly, Museu 
Condé) 
ESPAÇO E PERSPECTIVA NO QUATTROCENTO 61 
objetos que nele encontrarão lugar. Como declara Pomponius Gauricus 
no início do século XVI, ao tratar da perspectiva: ~a lugar, existindo 
antes do corpo que nele é colocado, deve ser necessariamente desenha-
do primeiro." 
Trata-se do ponto de vista de um pintor; mas encontramos o equi-
valente em Galileu. Pois este, segundo certos testemunhos, teve primei-
ro vontade de se dedicar à pintura mais do que à física ... Ele se 
interessava muito por essa arte e pelo problema da representação da 
profundidade. Colocando a escultura em lugar secundário, escreveu, 
por exemplo, o seguinte: ~A imitação mais artística é a que repre-
senta a tridimei!Sionalidade em seu oposto, que é a superfície pla-
na."1 Hoje, em virtude de uma rígida divisão de trabalho, a história 
da arte e a história das ciências caminham quase sempre separadas. 
Mas a geometrização do espaço efetuada do século XIV ao século 
XVII pertence a ambas. 
Uma armadilha, contudo, deve ser evitada. A expressão ~geometri­
zação do espaço", de fato, evoca especialmente a perspectiva, e poderia 
levar a crer que a nova concepção do espaço se reduzia a uma inovação 
puramente matemática, à invenção do ~ponto de fuga" (onde as parale-
las se unem po infinito). Do ponto de vista da história sócio-cultural, 
esta é uma interpretação muito estreita. A técnica e a teoria da perspec-
tiva linear certamente têm grande importância (e uma parte deste estudo 
lhes será consagrada). Mas é essencial ver que, por trás dos raciocínios 
matemáticos, havia alguma coisa mais espontânea e mais intuitiva: 
uma nova maneira de olhar o mundo, de -sentir" sua organização, de 
imaginar suas estruturas. Se as questões puramente geométricas se 
revestiram de tanta importância, foi em função de preocupações 
extremamente variadas, que iam da estética e da óptica à artilharia e 
à teologia ... 
Pierre Francãstel, historiador e sociólogo da arte, assinalou com 
ênfase: o Renascimento não descobriu de uma vez por todas o espaço 
absoluto tal como elf .existe em si e por toda a eternidade ... É melhor 
dizer que inventou uma certa ordem espacial aproveitando uma série de 
experiências de caráter social e cultural. Foi ~a própria natureza do 
espaço humano" que se transformou.2 E, portanto, não se trata simples-
mente do surgimento de uma teoria (no sentido intelectual do termo), 
mas de um episódio do domínio da antropologia cultural. Concretamen-
te, isso quer dizer que é preciso tentar entender como um conjunto 
complexo de tradições e mudanças históricas favoreceuo nascimento 
de um novo -sentido espacial". Cada civilização, de fato, criou seu 
62 DE ARQUIMEDES A EINSTEIN 
próprio sistema de percepção e de representação; qualquer pessoa que 
tenha contemplado algumas obras da pintura chinesa clássica, por 
exemplo, percebe muito bem que o espaço ali é diferente, tributário de 
uma outra .. visão do mundo". São essas as diferenças, às vezes difíceis 
de definir com palavras, que seria preciso explicar. 
Do TRECENTO AO QUATTROCENTO: ALGUMAS PISTAS 
Examinemos primeiro alguns pontos de referência cronológicos. Os 
especialistas são quase sempre unânimes em reconhecer que o pintor 
Giotto (1267-1337) ocupa um lugar importante na pré-história do espa-
ço '"moderno". Ele não usou a perspectiva de modo sistemático, mas nas 
Núpcias de Canaã (1304-1306) o efeito de profundidade é evidente 
(ilust. p. 63). Contudo, por mais notáveis que sejam os .. precursores" do 
século XIV, é preciso esperar o início do século XV para que as 
pesquisas sobre perspectiva se tomem precisas e metódicas. É em 1425, 
ou logo depois, que se produz em Florença um acontecimento duplo e 
decisivo. 
Em primeiro lugar, Brunelleschi (1377-1446) se entrega a verdadei-
ras "experiências" ópticas. Ele não era pintor, mas ourives, escultor e 
arquiteto; um dos seus maiores títulos de glória foi ter construído a 
catedral de Florença, Santa Maria del Fiore. Querendo mostrar que era 
possível criar sobre uma superfície plana a ilusão da profundidade, fez 
dois painéis representando respectivamente o batistério e apiazza delta 
Signoria, duas paisagens familiares aos florentinos. Essas obras se 
perderam. Mas houve historiadores que tentaram reconstruí-las; e acre-
dita-se que Brunelleschi, para produzir seus efeitos de perspectiva, teria 
utilizado recursos de desenho arquitetônico. Uma das suas idéias essen-
ciais era que o pintor devia manter uma posição fixa em relação aos 
objetos a serem reproduzidos. Era a partir de um .. ponto de vista" 
perfeitamente defmido que se poderia construir geometricamente a 
ilusão da terceira dimensão; e, para observar o quadro assim obtido, 
devia-se, evidentemente, considerar esse "ponto de vista" privilegiado. 
Brunelleschi chegou até a utilizar um dispositivo curioso mas não muito 
complicado: o espectador tinha que olhar por trás do painel pintado, no 
qual havia um furo, e apreciá-lo por meio de um espelho (ilust. p. 64). 
Em segundo lugar, sempre por volta de 1425, Masaccio pintou, na 
igreja de Santa Maria Novella de Florença, um afresco - a Trindade 
- que é considerado como a primeira aplicação rigorosa do .. ponto de 
ESPAÇO E PERSPECTIVA NO QUATTROCENTO 63 
Fig.11 Giotto (1267-1337) é freqüentemente considerado um dos principais inicia-
dores de uma nova concepção do espaço pictórico. Esse afresco da capela 
Scrovegni, de Pádua; pintado em 1304-1306, representa as Núpcias de Canaã. A 
mesa e sobretudo a paisagem arquitetônica criqm a nítida impressão de profundi-
dade, graças ao desenho e aos efeitos de luz e sombra. Mesmo nesta obra, na 
qual a busca da ilusao espacial é particularmente nítida, Giotto não seguiu um 
método geométrico estrito. Torna-se, porém, manifesto que o pintor tem algum 
"sentido do espaço". (Giraudon.) 
I , 
fuga". Por causa mesmo do conteúdo da obra, que representa um nicho 
bastante profundo; o efeito de relevo é muito acentuado. É bem possível 
que Masaccio tenha aproveitado os conselhos de Brunelleschi, seu 
antecessor. Um pouco mais tarde, em um afresco que ornamenta a igreja 
de Santa Maria della Carmine de Florença, ele utiliza a perspectiva de 
maneira mais sóbria, mas com menor eficácia (ilust. p. 65). 
64 DE ARQUIMEDES A EINSTEIN 
ALBERTI, PRIMEIRO TEÓRICO DA PERSPECTIVA 
É bom lembrar que a palavra -perspectiva" designava, na Idade Média, 
a ciência da óptica (perspectiva communis). Depois, no Quattrocento, 
acabou servindo para indicar mais precisamente o conjunto de especu-
lações e técnicas referentes à representação racional do espaço (pers-
pectiva artijicialis). Um homem ocupa lugar central nessa evolução: 
Leoii Battista Alberti (1404-1472). Há nisso um certo paradoxo, pois 
não existe, escrita por sua mão, a palavra prospettiva ... Mas, se o termo 
está ausente, os princípios fundamentais são, por sua vez, claramente 
definidos e justificados. Brunelleschi e Masaccio, artífices antes de 
tudo, não deixaram escritos que explicassem seus métodos. Alberti 
preenche essa. lacuna escrevendo em 1435 seu tratado Sobre a pintura . 
. Ele era padre e fora sucessivamente secretário de um cardeal e titular 
de um posto na corte pontifícia. À primeira vista, tal carreira não parece 
conduzir à prática das artes e da perspectiva ... Mas Alberli, além de ter 
Fig.12. Este esquema permite 
apreender o princípio das "experi-
mentações ópticas" realizadas por 
Brunelleschi em Florença, por volta 
de 1425. Ao mesmo tempo artista e 
engenheiro, conhecido principalmen-
te por suas obras arquitetônicas, ele 
queria mostrar que era possível pin-
tar, ·segundo um método, painéis que 
davam a ilusão de profundidade es-
pacial. l:Jm dos dois painéis que pin-
tou (e que hoje não existem mais) 
representava o batistério de Florença 
observado a partir da entrada da ca-
tedral. Brunelleschi certamente lan-
çou mão de recursos do desenho 
arquitetônico para "racionalizar" a 
elaboração de suas paisagens expe-
rimentais. Para apreciá-las, devia-se 
utilizar um espelho e, por trás do 
painel, olhar através de um buraco 
feito nele. O céu podia também se 
refletir no espelho, o que aumentava 
o efeito "realista': (desenho a partir de 
Samuel Edgerton) 
ESPAÇO E PERSPECTIVA NO QUATTROCENTO 65 
uma vasta cultura, interessava-se por numerosas questões de ordem 
prática e tinha experiência como artista -engenheiro. Sem ser propriamente 
um arquiteto ou um mestre-de-obras, dirigiu a construção de diversos 
edifícios (igrejas e palácios). Pode-se portanto considerá-lo como um 
personagem articulador, responsável pela ligação entre a prática e a teoria. 
O tratado Sobre a pintura era essencialmente didático e apresentava 
aos pintores uma concepção absolutamente genérica sobre sua arte. A 
perspectiva, contudo, nele ocupava um lugar importante. A exposição 
Fig.13 O Pagamento do tributo, que Masaccio pintou por volta de 1427 na igreja 
de Santa Maria della Carmine de Florença, é uma das grandes obras em que se 
concretiza a nova representação do espaço. A linha do horizonte está colocada no 
nível dos olhos dos personagens; o ponto de fuga, no afresco, situa-se atrás da 
cabeça de Cristo. Esta organização não só assegura a coerência da cena, como 
também reforça sua "mensagem" espiritual. Pois esta geometrização do espaço 
óptico, de acordo com uma longa tradição, tem um significado religioso. No século 
XIII, vários teólogos afirmavam o caráter privilegiado da luz: por um lado, ela é uma 
das mais puras criações de Deus, por outro, evoca a maneira pela qual a Graça 
divina se propaga no mundo. Mesmo no Renascimento, esta sensibilidade às 
conotações espirituais da óptica ainda era muito viva.(Scala) 
66 DE ARQUIMEDES A E!NSTEIN 
é concebida expressamente dentro de um espírito matemático e se baseia 
em conhecimentos sólidos de geometria e óptica: é pela análise dos 
triângulos e outras figuras formadas pelos raios visuais que convém 
estudar a representação do espaço. Mas Alberti se preocupa em assinalar 
que se expressa na linguagem dos pintores e não na dos matemáticos. 
Quando Brunelleschi representou o batistério de Florença, ele se 
colocou no eixo da porta da catedral, um pouco para dentro dela. As 
bordas do portal constituíam assim uma espécie de moldura, através da 
qual observava a paisagem reproduzida. Alberti retoma e elabora esta 
idéia que será fundamental para a pintura clássica: daqui para diante 
será preciso conceber o quadro ou o afresco comoa transcrição das 
formas observadas através de "uma janela aberta". Mais precisamente, 
essas formas são o objeto de uma projeção sobre o plano ideal definido 
pelas bordas da "janela". Daí a defmição: "O quadro é uma interseção 
plana da pirâmide visual." A base dessa pirâmide é a moldura da 
"janela" e seu vértice é o olho do pintor. A perspectiva lhe ~o~ece, e~ 
particular, os meios para "geometrizar" corretamente as projeçoes mats 
importantes das linhas retas (verticais, ortogonais ao plano do quadro etc.). 
O apelo à construção teórica, na verdade, não é indispensável. 
Porque, como explica Alberti, é possível recorrer a uma tela muito fina 
e quadriculada de forma regular ("velo") para reproduzir empiricamente 
os contornos observados. Basta marcar por leitura direta as posições de 
alguns pontos fundamentais sobre esse quadriculado que é colocado 
sobre a "janela". Métodos semelhantes foram utilizados com freqüên-
cia. Dürer, em um tratado escrito em 1525, indicou, por exemplo, que 
é possível utilizar-um fio tensionado e munido de .um visor, uma haste 
vertical com um óculo na extremidade etc. (ilust. p. 72). Mas esse 
empirismo não parece suficiente para Alberti. As estruturas espaciais 
do quadro devem ser controladas, embora muitas vezes seja difícil fazer 
isso (a simples projeção de um círculo constitui um problema teórico 
delicado!). Além disso, para representar paisagens e cenas imaginárias, 
a perspedlva teórica é necessária. Em suma, o ideal é chegar a uma 
geometrização perfeita. 
Em seu tratado, Alberti não definiu explicitamente o estatuto do 
"ponto de fuga" (que ele chama de "'ponto central"). Trata-se de uma 
ficção matemática, de um ~ponto" que tem realidade fís~ca~ de ~n:! 
símbolo do infinito? Como observa Samuel Edgerton, Albertr nao o drz. 
Isso não significa que seja incapaz de abordar o assunto. Mas deve-se 
notar que a idéia de paralelas "'se encontrando no infinito" não é tão 
simples. O próprio Leonardo da Vinci, no fmal do século XV, dará um 
ESPAÇO E PERSPECflVA NO QUATfROCENTO 67 
testemunho dessa dificuldade: ~a olho entre duas linhas paralel(l$ não 
as verá nunca a uma distância bastante grande para que elas se 
encontrem em um ponto ... "4 Como observa L. Brion-Guerry, ~será 
preciso esperar Kepler para que a convergência das paralelas em um 
ponto no infinito seja reconhecida, e mais ainda Descartes, para que isso seja 
explicitamente analisado':-5 Para os pintores, essas lacunas não constituíam 
um obstáculo; a prática do ~ponto de fuga", em todo caso, precedeu a teoria! 
UM PRIMEIRO SISTEMA DE COORDENADAS: O QUADRICULADO 
Muitos autores, nas décadas seguintes, redigiram tratados de perspecti-
va (nos quais propunham às vezes métodos um pouco diferentes da 
~costruzione legittima" de Alberti). Mencionemos apenas o de Filareto 
(composto em 1460-1464), o de Piero della Francesca (cerca de 1474) 
e o de Pomponius Gauricus (1504), sem falar nos inúmeros textos de 
Leonardo da Vinci sobre o assunto. Mas. é, antes de mais nada, do 
nascimento da perspectiva moderna que tratamos aqui. Vale mais, 
então, apurar o esquema histórico que acaba de ser sumariamente 
apresentado. Porque talvez ele enfatize demais as descontinuidades da 
história da perspectiva e do ~sentido do espaço". É importante lembrar 
que, mesmo antes de Giotto, os mosaicos, os afrescos e os painéis 
pintados testemunhavam uma certa pesquisa de profundidade. Existem 
obras, tanto da época bizantina como do período carolíngio, que apre-
sentam detalhes muito significativos. As decorações dos tetos, sobretu-
do quando acompanhadas de vigas ou de almofadas, se prestam facil-
mente a uma geometrização sugestiva. É verdade que esses esboços de 
representação em perspectiva levariam os teóricos modernos a mergu-
lhar em uma grande perplexidade! Pois mostram com freqüência vários 
pontos de fuga, dispersos um pouco ao acaso ou dispostos sobre uma 
linha vertical (ilust. p. 73). Este último procedimento, designado como 
~do eixo de fuga", tem talvez origem bizantina; embora lhe faltem 
fundamentos racionais, ele apresenta o que se pode chamar de ~uma 
quase-perspectiva". 6 
A geometrização do espaço podia, portanto, ser mais ou menos 
completa, mais ou menos coerente. O tabuleiro de xadrez, também tão 
fácil de estruturar, dava uma outra oportunidade para os efeitos de 
perspectiva. Assim, Ambrogio Lorenzetti, em sua Anunciação (1344), 
representou cuidadosamente um tabuleiro, recorrendo a um ponto de 
fuga único (ilust. p. 75.). O espaço não é totalmente unificado, mas 
68 DE ARQUIMEDES A EINSTEIN 
assim mesmo, como escreve Panofsky, tem "uma escala de valores 
espaciais". Basta, de fato, contar os quadrados para ter uma medida, no 
sentido estrito, da profundidade ~objetiva". Para a história do pensa-
mento científico, o fato não é desprovido de interesse. "Não é um 
exagero afirmar que, utilizado desta maneira, esse motivo ( ... ) repre-
senta de algum modo o primeiro exemplo de um sistema de coordenadas 
que, na esfera da concretude artística, toma visível materialmente o 
'espaço sistemático' moderno, antes mesmo que o pensamento abstrato 
matemático o tivesse postulado ". 7 Em seguida, Alberti sintetizou e 
conceitualizou essas conquistas, e no século XVII a geometria foi mais 
longe ainda. Esses grandes sucessos, entretanto, só foram possíveis 
graças a um longo trabalho de preparação, a uma longa série de pesqui-
sas preliminares. 
Os florentinos, como se diria hoje, fizeram uma brilhante jogada. 
Mas não se pode esquecer que os flamengos igualmente inovaram, com 
seu estilo propr~o (que em geral se considera mais empírico). O primeiro 
tratado de perspectiva impresso na Europa (Toul, 1505) está inserido 
nessa tradição do Norte e seu autor é um francês, Jean Pelérin Viator. 
Todos esses detalhes nos recordam que, no plano das técnicas, as 
explorações foram numerosas (mencionemos, por exemplo, o ~método 
bifocal", utilizando dois pontos de fuga laterais). E que a pesquisa de 
um espaço homogêneo e unificado correspondia certamente a uma 
preocupação geral das sociedades ~avançadas" da época. Mais adiante 
refiro-me às novas atividades que então se desenvolveram nessa cidade 
dinâmica que era Florença. Mas gostaria antes de evocar uma tradição 
cuja influência sobre Alberti foi indubitável: a longa série de especula-
ções (tanto científicas como teológicas) sobre a óptica. Mais do que à 
Idade Média, é aos gregos que devemos voltar. 
A ÓPTICA ANTIGA: EUCLIDES E PTOLOMEU 
Euclides, por volta do ano 300 a.C., escreveu uma Óptica, essencial-
mente geométrica, fundamentada na idéia de que o tamanho aparente 
dos objetos era determinado pelo ângulo sob o qual eles eram olhados. 
Mas não se preocupou com o problema da representação do espaço; e 
não foi, portanto, levado a tratar de questões relativas ao que chamamos 
ponto de fuga . Ptolomeu, no século 11 d.C., também escreveu uma 
Óptica, mas com preocupações mais próximas das dos físicos e dos 
pintores. Deu grande importância à noção de -raio central", o qual serve 
l 
ESPAÇO E PERSPECHV A NO QUATTROCENTO 69 
de eixo ao cone visual. É esse raio que mais tarde Alberti chamará de 
~príncipe dos raios" ... Sobre um ponto essencial, Ptolomeu atenua as 
idéias de Euclides: em vez de se importar apenas com o ângulo visual, 
leva em consideração os comprimentos. De acordo com essa concepção, 
a grandeza aparente do objeto é inversamente proporcional à sua dis-
tância do olho. Nos renascentistas, precisamente, a prioridade dos 
comprimentos sobre os ângulos será firmada claramente. Em termos 
mais simples, um objeto ~duas vezes maior" será um objeto cuja medida 
no plano de projeção é duas vezes maior; enquanto que, na concepção 
angular de Euclides, um objeto duas vezes maior é um objeto que se vê 
por um ângulo duas vezes maior. Toca-se aqui num problema funda-
mental, que diz respeito não só à análisegeométrica, mas também à 
psicofisiologia da percepção. 
A propósito da influência exercida pelos gregos, as apreciações 
variam de acordo com a maneira pela qual se definem as concepções de 
grandeza aparente. Erwin Panofsky estabeleceu uma oposição radical 
entre os gregos e os renascentistas. "A óptica dos antigos - escreve -
se encontrava, portanto, uma vez colocados os princípios de seu proce-
dimento, engajada numa via decididamente oposta à perspectiva pla-
na". 8 Se dermos atenção a Ptolomeu, este julgamento merece sem 
dúvida ser atenuado. De qualquer forma, Ptolomeu não elaborou uma 
teoria sistemática da perspectiva; se ele influenciou os pintores do 
Renascimento, como teremos ocasião de ver, foi por outras vias. Parece, 
aliás, que os pintores da Antiguidade jamais utilizaram a perspectiva 
de modo absolutamente rigoroso. Mas este é um ponto já bastante 
discutido. 
O Ocidente medieval ignorou por muito tempo a herança teórica dos 
gregos. Apenas no século XII os tratados de Euclides e de Ptolomeu 
foram traduzidos para o latim a partir de versões árabes anteriores. Os 
próprios árabes deram importantes contribuições, especialmente graças 
a Alkindi (século IX), Avicena e Alhazen (séculos X-XI). Todas essas 
obras influenciaram os< teóricos medievais. Alhazen, entre outras coisas, 
estabeleceu que os raios visuais emanavam dos objetos e estimulou de 
modo especial as especulações sobre óptica que se desenvolveram no 
século XIII (Robert Grosseteste, Roger Bacon, John Pecham). Não é 
possível esboçar aqui a relação das idéias formuladas durante esse 
período sobre a natureza e a propagação das imagens. Essa área de 
estudos, entretanto, era muito ativa; através do que hoje veríamos como 
passos vacilantes, preparava-se uma síntese cada vez mais ajustada 
entre a análise geométrica e o estudo da visão dos objetos. 
70 DE ARQUIMEDES A ElNSTEIN 
ÓPTICA E TEOLOGIA NA IDADE MÉDIA 
De modo direto ou indireto, Alberti e seus contemporâneos conheceram 
essa tradição medieval. Não só o tratado de John Pecham teve ampla 
difusão, como Blaise de Parma escrevera, por volta Cle 1390, um tratado 
de óptica (Quaestiones perspectivae). Mais ainda, na década de 1420 
circulara um tratado, Della prospettiva, escrito diretamente em italiano, 
cujo autor foi, sem dúvida, Paolo Toscanelli. Ele foi muito provavel-
mente um dos personagens-chave do século XV; seus conhecimentos 
abrangiam os domínios mais diversos e muitas idéias novas que lançou 
influenciaram tanto Cristóvão Colombo como Brunelleschi. Infeliz-
mente, a figura de Toscanelli é ainda muito mal conl;lecida, o que 
dificulta a interpretação de um período no qual se misturam, de maneira 
às vezes muito sutil, idéias antigas e novas. Mas· as inovações do século 
XV devem ser compreendidas com relação a um plano de fundo teórico 
muito rico. É impossível, em todo caso, aceitar-se a lenda (ainda muito 
difundida) do '"obscurantismo medieval". 
É certo, em troca, que os autores medievais se interessaram pela 
óptica dentro de um enquadramento teológico que espantaria os homens 
de ciência do século XX. Samuel Edgerton sublinha com insistência: o 
estudo dos raios luminosos tinha motivações religiosas e uma significa-· 
ção simbólica. Assim, Roger Bacon (1220-1292) explica longamente, 
em seu Opus majus, por que um conhecimento surgido da estrutura 
geométrica das formas é necessário no plano religioso. Pois não basta 
ler a Bíblia para descobrir os princípios espirituais; é preciso também 
representar literalmente seus relatos. A arca de Noé e o templo de 
Salomão - afirma Bacon - devem ser percebidos com a intermediação 
da visão. Analisar as linhas, os ângulos, as superfícies e os volumes, 
com o auxílio de Euclides, é uma forma de percel:Jer melhor como a 
sabedoria divina se manifesta no mundo visível. Robert Grosseteste, 
anterior a Bacon, praticamente integrou a óptica à teologia.9 A luz, de 
fato, foi cr!ada por Deus no Primeiro Dia; ela se identifica portanto com 
uma forffia privilegiada da energia divina; mais ainda, ela faz compreen-
der por analogia como a Graça se difunde entre os homens. Entrando 
nos detalhes, essa comparação ia muito longe. Bacon, por exemplo, 
explicava que o raio luminoso, ao atingir o olho ~direta e perpendicu-
larmente", era a imagem perfeita da Graça ... Tais considerações podem 
parecer estranhas, mas nem por isso deixavam de constituir um encora-
jamento para se trabalhar seriamente com a óptica. 
No Renascimento, esse modo de interpretar os fenômenos ópti-
cos, atribuindo-lhes um sentido simbólico, continuará atuante . Pois 
EsPAÇO E PERSJ;>ECfiV A NO QUA TTROCENTO 71 
o ideal da ~imitação da natureza", freqüentemente formulado, não 
exclui a preocupação com os valores; uma obra de arte, mesmo '"realis-
ta", se apresenta como uma mensagem elaborada segundo um determi-
nado código que atribui significações especiais às formas, às cores e aos 
elementos propriamente espaciais. Na pintura religiosa, a representação 
do espaço se presta, portanto, a mil nuances, graças às quais cada artista 
exprime sua interpretação de tal ou tal cena do Evangelho. 10 
O próprio Alberti, embora tenha sido mais um humanista do que um 
católico fervoroso, reteve alguma coisa dos ensinamentos do século 
XIII. Segundo ele, as obras de arte devem contribuir para o equilíbrio 
moral dos homens. Um afresco tem por fmalidade contar uma história 
e propor uma mensagem (a noção de istoria é essencial em Alberti); o 
próprio modo pelo qual a ordem espacial se organiza tem então um valor 
didático. Por mais ~moderna" que seja a perspectiva em Alberti, ela 
ainda está associada a preocupações éticas e espirituais. 11 Mesmo em 
Newton encontraremos especulações desse gênero. Em sua Óptica, por 
exemplo, ele explica que o espaço é o sensorium Dei, modo de dizer 
que Deus é onipresente e pode, em todos os momentos, agir em todos 
os lugares. Certamente uma herança das tradições medievais relativas 
à óptica. 
Ü NOVO MUNDO DOS ENGENHEIROS E DOS EMPREITEIROS 
Outros fatores, porém, e muito mais prosaicos, também tiveram influên-
cia. É toda uma evolução técnica, econômica e social que se deve ter 
em mente para compreender por que uma nova concepção do espaço, 
mais '"racional", acabou se impondo. Tal linguagem, apresso-me a dizer, 
não significa que o capitalismo dos florentinos seja a '"causa" única e 
direta da elaboração sistemática da perspectiva! Sob esta forma, o 
recurso aos '"fatores sociais" se arrisca a ser ilusório. Mas, de modo mais 
dialético, é certamente indispensável considerar o surgimento de certos 
esquemas de pensamento estreitamente vinculados a novas práticas 
industriais, comerciais e políticas. 
Pois, a partir dos séculos X e XI, o Ocidente conheceu uma expansão 
muito acentuada das técnicas e um importante movimento de urbarliza-
ção. Moinhos d'água, moinhos de vento e máquinas diversas multipli-
caram-se; um novo personagem, o engenheiro, fez sua aparição e 
desempenhou um papel de crescente importância; a produção e o co-
mércio tomaram-se mais eficientes; e logo os bancos concretizaram de 
72 DE ARQUIMEDES A EINSTEIN 
modo dinâmico essa grande mutação que conduzia à época moderna. 
Progressivamente, os empreiteiros afirmaram-se como criadores de um 
novo mundo, animado pela busca do rendimento e do lucro. E, correla-
tivamente, uma nova mentalidade se instaurou, marcada por um ~rea­
lismo" e um .. racionalismo" totalmente favoráveis ao estudo sistemático 
Fig.14 Num tratado escrito em 1525, Albrecht Dürer ensina vários métodos que 
permitem reproduzir fielmente as formas mais complexas. As duas gravuras ilus-
tram perfeitamente a concepção de Alberti: os contornos observados são projeta-
dos sobre um plano definido pela janela, enquanto o olho do observador se mantém 
fixo em um ponto determinado. Na figura B, é a extremidade de uma haste que 
materializa a posiçãodo olho; na ilustração A, o vértice da "pirâmide visual" se 
concretiza por meio de um aro fixado na parede, através do qual passa um fio 
estendido. O fio, representando o raio luminoso, permite determinar empiricamente 
a projeção de cada ponto observado. (Reger Viollet) 
ESPAÇO E PERSPECTIVA NO QUATTROCENTO 73 
Fig.15 Tempos depois, foi possível resgatar nas obras antigas certos elemen-
tos que parecem anunciar a perspectiva moderna. O motivo do teto, por 
exemplo, prestava-se bem a certos efeitos. Na Santa Ceia de Duccio (pintada 
em 130.1-1308), constata-se uma organização muito nítida do espaço, concre-
tizada particularmente no desenho do teto. A perspectiva, estritamente do 
ponto de vista geométrico, não é rigorosa: vários pontos de fuga irregulares se 
situam sobre uma vertical central. Essa técnica, denominada "do eixo de fuga", 
pode ser aplicada de modo mais ou menos sistemático e era conhecida muito 
antes do século XIV; os especialistas a chamam de "espinha de peixe". Foi 
utilizada, por exemplo, n~ Bíblia de Alcuíno (Londres, entre 825-850), na 
representação de um teto. No período carolíngió, esses exemplos tornam-se 
raros, e não indicam nenhum conhecimento explícito dos princípios da perspec-
tiva linear. Mas seu uso confirma que diversos procedimentos técnicos, às 
vezes muito antigos, preparavam progressivamente as grandes conquistas do 
século XV.(Duccio, Scala) 
74 DE ARQUIMEDES A ErNSTEIN 
da natureza. Para que esse novo ideal fosse plenamente explicitado, 
seria preciso esperar pelo século XVll (Descartes: tornar-se .. como um 
mestre e senhor da natureza"). Parece certo, contudo, que desde o século 
Xll ou Xlll uma nova orientação fora tomada, e que era mais cômodo 
defmi-la com a ajuda das noções de secularização e de laicização. Toda 
uma série de normas e de hábitos adequados ao mundo feudal começava 
a desmoronar, mesmo se as velhas instituições ainda se mantinham. No 
domínio da arte, assim como no do saber, essa evolução geral se traduzia 
pela aparição de novos objetivos e de um novo estilo. O nascimento da 
perspectiva também deve ser vinculado a esse movimento histórico (ver o 
capítulo sobre .. Leonardo da Vinci e o nascimento da ciência moderna", 
além de meu estudo intitulado .. No começo havia a máquina"). 
Uma objeção preliminar merece contudo atenção: não é paradoxal 
(ou até contraditório) que eu me refira a um condicionamento sócio-
econômico depois de ter admitido a influência de certos temas teológi-
cos? De fato, nada há de estranho nisso: para empregar um termo 
cômodo, digamos que o desenvolvimento da perspectiva pode ter sido 
sobredeterminado pela conjugação de ~fatores" de ordem religiosa ou 
filosófica e de ~fatores" mais diretamente ligados à prática. Samuel 
Edgerton nos previne, a esse respeito, contra a tentação de atribuir aos 
contemporâneos do Renascimento um .. agnosticismo"' que não lhes é 
próprio. Havia, de resto, um crescente movimento de "laicização"', mas 
"o novo capitalismo dos italianos viveu, pelo menos até o final do 
século XV, em estreita simbiose com a fé religiosa legada pela Idade 
Média ". 12 É portanto legítimo indagar sobre as implicações das novas 
atividades técnicas e comerciais. Pode-se, aliás, imaginar que mesmo 
os teólogos, até na qualidade de opositores, também foram marcados 
pela nova maneira de viver, pelas novas exigências de ~realismo", pelo 
novo estilo de pensamento. A abertura dos franciscanos ao estudo da 
natureza é certamente tributária de uma evolução geral; e o filósofo e 
teólogo Nicolau de Cusa, quando faz em 1450 o elogio da medida (no 
sentido mátemático do termo), testemunhará simplesmente a importân-
cia alcançada por certas técnicas intelectuais em um mundo de emprei-
teiros, artilheiros e banqueiros ... 13 
A EXPLOSÃO DAS "MATEMÁTICAS PRÁTICAS" 
As matemáticas, de fato, mudaram de status social no fim da Idade 
Média. Antes, a aritmética e a geometria não eram ignoradas, mas era 
l ESPAÇO E PERSPECTIVA NO QUATTROCENTO 75 
essencialmente no quadro de um ensino teórico, na universidade, que 
se podia empreender um estudo um pouco mais consistente dos números 
e das formas geométricas. As matemáticas, em outras palavras, não 
faziam parte da vida cotidiana; e os ideais de rigor e de exatidão que 
' ' 
Fig.16 A partir do século XIV, o motivo geométrico do chão foi usado metodica· 
mente para organizar o espaço. Segundo Erwin Panofsky, "é principalmente aos 
irmãos Lorenzetti que devemos esse grande passo para a frente". Na Anunciação, 
pintada em 1344, Ambrogio Lorenzetti realiza o que é chamado de perspectiva 
parcial: a parte superior da obra é destituída de profundidade, mas o desenho 
rigoroso do chão, como um tabuleiro de xadrez e com um ponto de fuga único, 
oferece "de algum modo o primeiro exemplo de um sistema de coordenadas". Mais 
tarde, evidentemente, matemáticos e físicos aperfeiçoariam essas primeiras tenta-
tivas de geometrização do espaço. (Giraudon) 
76 DE ARQUIMEDES A E!NSTEIN 
associamos às matemáticas eram muito pouco dignificados. Com a 
ascensão dos empreiteiros, essa situação evoluiu consideravelmente. A 
arte de medir e calcular, daí em diante, ganhou uma importância cres-
cente. Os homens de negócios deviam determinar corretamente seus 
estoques e manter as contas em ordem; os banqueiros, manipulando o 
dinheiro sob formas cada vez mais variadas e mais ~abstratas", precisa-
vam de diversas técnicas de cálculo; quanto aos engenheiros, eles eram 
levados a utilizar concretamente as matemáticas para tomar suas ativi-
dades mais "racionais" (e portanto mais eficazes). Não há dúvida de 
que nos arsenais, nos ateliês de mecânica e entre os artilheiros o 
emprego das medidas e o sentido de quantidade se desenvolveram 
sensivelmente. Assim é explicada a criação de escolas especiais 
(escolas de ábaco) onde os futuros comerciantes, em particular, 
podiam se instruir. Este ensino era laico e prático; dava uma certa 
cultura literária, mas (como provam os manuais que nos chegaram) 
dava ênfase sobretudo às matemáticas. 
A regra de três, especialmente, era objeto de repetidos exercícios. 
Não é por acaso que merecia o nome de ~regra de ouro" ou de ~chave 
do comerciante"! Graças a ela, podia-se distribuir lucros, repartir heran-
ças, converter os valores em função das taxas de câmbio etc. Mas a 
geometria não era menos útil. Não só se tomou comum medir as alturas 
ou as distâncias graças a métodos baseados em triângulos semelhantes, 
como, numa época em que os pesos e os volumes não eram padroniza-
dos, era essencial dispor de boas técnicas de medição. Graças a instru-
ções precisas, o negociante italiano era capaz de determinar, por exem-
plo, o volume de um barril. Piero della Francesca, pintor e autor de 
um tratado sobre perspectiva, escreveu no século XV um manual para 
comerciantes (De abaco), onde tais problemas eram explicados. 
Como mostra Michael Baxandall, a análise das formas geométricas 
tomou-se uma preocupação comum aos comerciantes, aos engenhei-
ros e aos artistas (que eram freqüentemente engenheiros também)Y 
Esse des-envolvimento das matemáticas práticas, na Itália dos sécu-
los XIV e XV, ajuda a compreender por que e como o ~olhar" dirigido 
às coisas se transformou, e de algum modo se ~geometrizou". Des-
cobrir as proporções, identificar os triângulos, os cones ou os cilin-
dros passou então a ser uma espécie de ~hábito cultural" amplamente 
difundido. 
Parece que Brunelleschi, artista e engenheiro, foi aluno de uma 
escola de ábaco. Alberti, embora tenha recebido uma educação mais 
clássica, estava bastante próximo do universo dos práticos. Como ob-
EsPAÇO E PERSPECfiVA NO QUATTROCENTO i? 
serva Joan Gadol, ele escreveu um livro sobre jogos matemáticos (Ludi 
mathematici), que divulgava para as ~classes médias" um certo número 
de receitas matemáticas.1s Não há muito exagero em dizer que a pers-
pectiva,muito mais do que uma ciência especulativa, era a expressão 
de uma ~filosofia prática", uma espécie de ~projeto" visando a reorga-
nizar "ao mesmo tempo o espaço real e a representação desse espaço". 
Alguns detalhes são muito significativos a esse respeito. Mesmo o 
campo florentino, por exemplo, foi "posto em ordem" ... Refiro-me ao 
novo sistema (mezzadria) que permitiu que as terras cultiváveis fossem 
melhoradas e exploradas de modo mais eficaz. Em 1434, quando 
Alberti voltou a Florença, de onde sua família fora banida, ficou sem 
dúvida impressionado - escreve Edgerton - com a disposição 
regular das plataformas que flanqueiam as colinas toscanas, onde 
cresciam oliveiras em fileiras perfeitamente alinhadas e paralelas às 
vinhas. -os intelectuais e os negociantes do tempo de Alberti apre-
ciavam essa geometrização do solo, não apenas porque era bela, mas 
porque estavam convencidos de que esse tipo de ordem matemática 
traria mais lucros ." 16 
Um outro fato confirma essa sensível evolução do "sentido do 
espaço": na d~ada de 1420, após um conflito entre Florença e Milão, uma 
fronteira retilínea, totalmente "abstrata", foi estabelecida entre os dois 
estados. ~Foi talvez a primeira vez na história que uma linha matemática 
imaginária -em lugar de um ponto de referência físico- foi reconhecida 
como limite territorial." 17 Giovanni Cavalcanti, exaltando esse aconteci-
mento num texto de 1440, estava consciente de sua originalidade: o olho, 
ele constata, tomou-se "a régua e o compasso", graças aos quais as terras 
são divididas; "tudo se submete à doutrina geométrica ... " Leonardo da 
Vinci retomará também o elogio da visão, decretando que o olho possui 
uma ~nobreza" superior. ~o olho - diz - é a principal via pela qual 
· nosso intelecto püde apreciar plenamente e magnificamente a obra da 
natureza." Compreendemos com isso que, pelo sentido da visão, uma 
nova ciência do espaç9 se tomou possível. Porque a perspectiva, sempre 
segundo Leonardo, se fundamenta em ~demonstrações naturais". 
ESPAÇO TÁTIL CONTRA ESPAÇO MANUAL 
W.M. Ivins, mesmo dando à sua tese um caráter um pouco rígido, opõe 
judiciosamente o universo dos gregos, ~tátil e muscular", ao dos renas-
centistas, essencialmente "visual". No primeiro, cada objeto é conside-
78 DE ARQUIMEDES A E.!NSTEIN 
rado isoladamente, como se a sua forma individual só fosse conhecida 
pelo toque; isso praticamente impede que se conceba um espaço unitá-
rio. Os objetos representados podem estar justapostos, mas não relacio-
nados uns aos outros por meio de um entrelaçamento matemático ao 
mesmo tempo abstrato e onipresente. No segundo caso, ao contrário, os 
objetos situam-se e se organizam uns em relação aos outros em um 
espaço homogêneo que se prolonga indefinidamente em todas as dire-
ções. Segundo lvins, o espaço -tátil-muscular"' dos gregos impunha 
estreitos limites à sua geometria. Esta, com efeito, era métrica e baseada 
antes de tudo em noções de congmência e paralelismo. Somente nesse 
espaço -visual" inventado pelo Renascimento a geometria projetiva pode-
ria se constituir e seria então possível (usando um atalho) considerar a 
parábola como uma elipse cujo segundo foco se encontra no infmito. 18 
Existe, entretanto, um notável traço de união entre a Grécia antiga 
e o Renascimento, como mostraram brilhantemente Joan Gado! e, 
depois, Samuel Edgerton: a cartografia ptolomaica. 19 O primeiro portu-
lano conhecido (1275) vem possivelmente da Toscana; e desde o início do 
século XV Florença teve um papel de primeiro plano no desenvolvi-
Fig. 17 É bem provável que a Geografia de Ptolomeu, que os florentinos conhece-
ram no início do século XV, tenha estimulado as pesquisas sobre a representação 
do espaço. Este esquema permite compreender um dos métodos propostos por 
Ptolomeu (e que ele próprio não chegou a utilizar). Um observador ideal se coloca 
diante da esfera terrestre, cuja parte em cinza quer reproduzir. Seu olho está no 
mesmo plano que uma paralela criteriosamente escolhida numa posição "central"; 
a partir dessa posição bem determinada, é possível desenhar sobre um plano, por 
projeção, as formas observadas. A perspectiva linear do Renascimento pode ser 
considerada como uma aplicação particular desse método. (Desenho a partir de 
Samuel Edgerton .) 
ESPAÇO E PERSPECTIVA NO QUATTROCENTO 79 
mento da geografia e da cartografia. Entre essas ciências e a perspec-
tiva a relação é estreita. O próprio Ptolomeu já fizera a aproximação 
entre a arte da pintura e a da cartografia. Nos dois casos, trata-se de 
construir a imagem de um determinado conjunto, respeitadas as pro-
porções dos elementos. Num certo sentido, a topografia, a cartografia 
e a perspectiva se parecem com os ramos de uma ciência geral da 
representação espacial. 
f ' 
Fig. 18 A gravura de Brueghel, o Velho (século XVI), intitulada Primavera, nos 
lembra que, através de su.as atividades agrícolas, os homens podem modificar e 
"racionalizar" a natureza. E significativo ver os toscanos, no in ício do Renascimen-
to, desenvolvendo um sistema de cultivo que, graças a seus alinhamentos rigoro-
s~s, geometrizava a paisagem rural. Esse fato, evidentemente, não explica por si 
so o gosto dos florentinos pela perspectiva ... Mas é inegável que uma certa 
mudança de mentalidade operou-se no final da Idade Média, mudança que condu-
zia à valorização das noções de proporção, de medida e de ordem matemática em 
todos os domínios.(Bibl. Nationale, J. L. Charme!.) 
80 DE ARQUIMEDES A El:NSTEIN 
Em 1400, uma cópia da Geografia de Ptolomeu chegou a Florença 
e logo foi traduzida. Tudo leva a crer que essa obra, compreendendo um 
texto teórico e um atlas, foi muito estudada. Brunelleschi (talvez por 
intermédio de Toscanelli) e Alberti se beneficiaram com isso. A idéia 
de utilizar sistematicamente um .. quadriculado" para decompor, medir 
e representar o espaço já estava praticamente expressa naquela obra (para-
lelas e meridianos); ela correspondia perfeitamente a certas técnicas já 
utilizadas e à nova sensibilidade da qual falei anteriormente. Em duas 
palavras, a redescoberta da Geografia ptolomaica tomava possível o aperfei-
çoamento ou a invenção de diversos processos .. racionais" de representação. 
Ptolomeu propunha vários modelos de projeção cartográfica. O 
terceiro e último, que ele próprio não havia utilizado, se apresentava 
como uma construção perspectiva bem caracterizada. Suponhamos um 
observador ideal colocado a uma determinada distância do globo terres-
tre, cujo olho estivesse no plano de uma paralela judiciosamente esco-
lhida. O procedimento de Ptolomeu consistia em representar sobre um 
plano a superfície terrestre observada desta forma, graças a uma proje-
ção comparável àquela que seria mais tarde preconizada por Alberti 
(ilust. p. 78). Era a primeira vez, declara Edgerton, que se formulavam 
instruções precisas com o objetivo de construir uma imagem desse tipo 
a partir de um ponto fixo, representativo do olho do observador.20 
Ptolomeu queria representar o "mundo habitado" familiar aos gregos. 
Mas bastava extrapolar esse método para que novas possibilidades se 
abrissem aos pintores. Olhando para trás, as análises cartográficas de 
Ptolomeu parecem conduzir diretamente às noções fundamentais da 
perspectiva clássica. . 
A tentação de atribuir uma importância decisiva à Geografia de 
Ptolomeu é maior ainda quando se sabe que Leon Battista Alberti se 
interessou muito pela cartografia. Durante sua permanência em Roma, 
entre 1432 e 1434, ele fez um mapa da cidade. Este mapa se perdeu, mas 
num texto (Descriptio urbis Romae), datado da década de 1440, ele nos 
informa sobre sua técnica, que certamente devia muito a Ptolomeu. O 
princípio geométrico é límpido: Alberti, tomando como ponto central o 
alto da colina do Capitólio, mirava os diferentes monumentos de Roma 
e determinava sua direção com relaçãoao Norte; depois, media a 
distância entre cada monumento e o ponto central; bastava-lhe então 
transportar para uma folha de papel essas indicações, depois de escolher 
uma ~escala", para obter um mapa fiel. Alberti utilizava, portanto, o que 
chamamos atualmente de sistema de coordenadas polares; a partir çlos 
dados que reuniu, seu mapa pôde ser reconstituído (ilust. p. 82). Conhe-
ESPAÇO E PERSPECfiVA NO QUATTROCENTO 81 
cemos igualmente o tipo de instrumento com o qual fazia suas 
medições. Era um "horizonte", composto de um disco horizontal 
graduado (48 graus, cada um dividido em quatro '"'minutos") e um 
.. raio" móvel, igualmente graduado, que concretizava a linha de 
mirada. 
As MIRADAS DOS ARTILHEIROS E DOS MARUJOS 
As duas grandes idéias que servem de base a esse sistema são, por um 
lado, a de analogia, que implica o respeito absoluto às proporções, por 
outro, a de mirada, que acompanha uma "geometrização óptica" do 
espaço. É extremamente interessante que, nos Jogos matemáticos, Al-
berti tenha afirmado o parentesco entre seu "horizonte" e os instrumen-
tos empregados pelos artilheiros e pelos especialistas em cartografia 
marítima. De fato, ele tinha utilizado um astrolábio, isto é, o instru-
mento que permitia aos astrônomos e aos navegadores medir a ele-
vação do sol ou das estrelas. Para adaptá-lo à cartografia terrestre, 
bastou fixá-lo horizontalmente e usar a régua móvel como "raio". (O 
"raio" do círçulo, menciono de passagem, deve seu nome ao raio 
luminoso cuja direção era determinada.) Desta forma se operava, bem 
concretamente, uma unificaç~o geral dos diversos "espaços": espaço 
dos cartógrafos, espaço dos artilheiros, espaço dos marujos, espaço dos 
astrônomos ... Idéia de grande futuro, pois abria as portas a uma "mecâ-
nica geral" válida tanto para as balas de canhão como para os corpos 
celestes! 
A influência da navegação merece ser assinalada; Alberti indiCa 
expressamente que a mirada é uma operação familiar aos marinheiros. 
Em seus Jogos matemáticos, aliás, ele explica como se pode montar um 
mapa usando quase que somente miradas e recorrendo apenas a algumas 
medidas diretas. O maravilhoso instrumento que é o teodolito, tão útil 
não só aos astrônomos mas também aos topógrafos, nascerá da combi-
nação de um "círculo;, ·. horizontal e um "círculo" vertical. Quanto à 
gênese da concepção albertiana da perspectiva, é indiscutível que a 
geometria prática dos cartógrafos exerceu um papel importante. Em 
suma, como mostrou Joan Gado!, Alberti operou a síntese entre a 
"janela" de Brunelleschi e as técnicas .. geográficas" de Ptolomeu. No 
tratado Sobre a pintura, a perspectiva é às vezes explicada com a ajuda 
das noções cartográficas de "paralelas", "longitude", '"'latitude", e é ao 
pé da letra que esse vocabulário deve ser lido.21 Bem entendido, não se 
82 DE ARQUIMEDES A EINSTEIN 
deve subestimar a importância de outras tradições pictóricas ou especu-
lativas, que contribuíram para ~amadurecer" o sistema da representação 
perspectiva. Não é a redescoberta de um texto antigo que, por si só, pode 
~explicar" a evolução que vai de Giotto a Alberti. Mas parece incontes-
tável que Ptolomeu, freqüentemente visto como o símbolo da ~ciência 
ultrapassada", tenha participado (ainda que a despeito de si mesmo) da 
racionalização do novo espaço ... 
/ · ···· i·; . • "'·· .•... ~, 
Fig.19 Alberti, a quem devemos a primeira exposição sobre a perspectiva "clássi-
ca" (1435), interessou-se muito pela cartografia. Antes de escrever aquela obra, 
morou algum tempo em Roma e fez um mapa da cidade utilizando o que chamamos 
hoje de coordenadas polares. O princípio desse método era simples: depois de 
escolher como "centro" do mapa a colina do Capitólio, ele determinou a direção de 
cada ponto importante graças a um instrumento de mirada; para definir a posição 
exata desses pontos, bastava medir a distância entre cada um deles e o centro. O 
mapa original não existe mais, porém D. Gnoli e Capannari o reconstituíram a partir 
dos dados que foram conservados. Os trabalhos de cartografia certamente ajuda-
ram Alberti a elaborar seu sistema de perspectiva.(J.-L. Charme!.) 
EsPAÇO E PERSPECTfV A NO QUATTROCENTO 83 
Concluo com duas observações. A primeira diz respeito a esta 
questão: qual é o ~valor objetivo" da perspectiva albertiana enquanto 
representação do espaço visual? Que esse sistema tem uma racionalida-
de própria e permite organizar a percepção, está fora de dúvida. Mas 
certamente convém não identificar pura e simplesmente essa reconstru-
ção com o .. espaço real". Porque se trata precisamente de uma recons-
trução, fundada em pressupostos que, no máximo, chegam a umá sim-
plificação de nossos processos perceptivos. As análises são conduzidas 
como se o observador fosse cego de um olho, e como se esse olho único 
fosse imóvel... Esses dois postulados, em geral, não ocorrem na prática, 
e de saída surgem diversos problemas que deram lugar a múltiplas 
discussões. A esfericidade da imagem retiniana, que seria preciso levar 
em conta num estudo sério da psicofisiologia da visão, complica ainda 
mais as coisas. Observemos apenas que a visão espacial é um fenômeno 
muito complexo, que envolve a aprendizagem, a memória, os processos 
de "compensação", as relações com as informações táteis etc. A pers-
pectiva linear clássica, a despeito de seu interesse, não pode ser consi-
derada como dotada de valor absoluto. Ela é cômoda, ela dá uma certa 
satisfação ao intelecto; mas outros sistemas são possíveis (como a 
pe<rspectiva d\ta "curva" ou "curvilinear", cujo princípio é conhecido 
desde muito tempo). 
HISTÓRIA DA ARTE E HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS 
Tradicionalmente são os historiadores da arte, sobretudo, que estudam 
o nascimento da perspectiva. Daía minha segunda observação: será 
grandemente desejável que os historiadores da ciência, ao abordarem o 
problema do espaço na aurora da ciência moderna, abram, eles 
também, um lugar para as contribuições dos '"artistas". Erwin Panofs-
ky e Samuel Edgerton assinalavam com justa causa o que deveria ser 
evidente: a elaboração da perspectiva linear constitui um episódio 
importante na históri~ do pensamento científico. No momento preci-
so em que arquitetos e pintores descobriam uma "espacialidade 
infinitamente extensa", escreveu Panofsky em 1927, ~o pensamento 
abstrato consumava publicamente e de maneira decisiva a ruptura, 
até então velada, com a visão aristotélica do mundo, abandonando a 
noção de um cosmos edificado em tomo do centro da Terra, consi-
derado como um centro absoluto, e encerrado na esfera do céu, que 
era o limite absoluto".22 
84 DE ARQUIMEDES A ErNSTEIN 
Fig.20 Foi rio século XIV que a artilharia começou a ganhar importância no 
Ocidente. Seu início foi modesto e mais barulhento que mortffero. Mas a partir do 
século XV essa situação evoluiu, e logo os engenheiros responsáveis pelas 
fortificações precisaram levar em conta os progressos realizados pelos metalúrgi-
cos e pelos químicos. Para a balística, essa inovação militar constituiu um estímulo 
poderoso; e os artilheiros, para começar, foram obrigados a dominar de modo 
cada vez mais preciso todas as técnicas relativas à medida do espaço. De fato, 
para melhorar os tiros, era necessário saber medir com exatidão os ângulos e as 
distâncias. De um modo praticamente espontâneo, o artilheiro é levado a utilizar 
as coordenadas polares, isto é, a definir a posição do seu alvo por meio de uma 
ESPAÇO E PERSPECTIVA NO QUA TTROCENTO 85 
Alexandre Koyré, em uma obra escrita precisamente sobre esse 
assunto, negligencia quase totalmente o vasto trabalho de .. racionaliza-
ção" empreendido pelos artistas, engenheiros, cartógrafos e outros 
práticos.23 No índice de seu livro não figuram sequer os nomes de 
Brunelleschi, Masaccio e Alberti. Este preconceito puritano pode ser 
compreendido quando parte de um filósofoidealista, mas do ponto de 
vista da história das idéias e da antropologia cultural é de uma pobreza 
extrema. Filósofos e homens de ciência certamente conceitualizaram e 
refinaram as descobertas dos iniciadores da perspectiva, mas essa ini-
ciativa, justamente, teve efeitos decisivos para a geometrização do 
espaço. Seria uma ingratidão esquecê-lo. 
BIDLIOGRAFIA 
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( ed. original: 1927). 
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(ver especialmente o ensaio ~ Artiste, savant, génie .. , 1962). 
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L. Brion-Guerry, Jean Pélerin-Viator, Les Belles Lettres, 1962. 
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direção e de um "alcance". Essa geometrização do espaço era concretamente 
operada (como pelos marinheiros) graças a instrumentos de mirada cada vez mais 
aperfeiçoados. A técnica da perspectiva contribuiu, a seu modo, para essa tarefa 
de racionalização espacial. (Gravura alemã, Rogar Viollet) 
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Fig.21 A Uma vez constituída a perspectiva linear, diversas realizações tornaram-
se possíveis, tanto no domínio da arte como no da matemática. Esta gravura, tirada 
de um tratado do desenhista francês Georges Huret (1606-1670) , evoca algumas 
aplicações da perspectiva e, especialmente, apresenta esquemas de anamorfoses. 
Estas consistem em deformações geométricas das figuras, de forma tal que, vistas 
ESPAÇO E PERSPECTIVA NO QUATTROCENTO 87 
E. H. Gombrich, L 'art et l'illusion, trad. francesa, Ga!limard, 1971 (ed. original: 
1959). 
L.B. Alberti, On painting, tradução, introdução e notas de J.R. Spencer, Yale 
University Press, 1966 . 
sob um determinado ângulo, ofereçam o aspecto normal. Em matemática, Gérard 
Desargues (1593-1662) merece menção especial. Engenheiro e arquiteto (como 
Brunelleschi), ele procedeu a uma racionalização muito avançada da perspec-
tiva e formulou em 1639 as noções fundamentais da geometria projetiva (que 
estuda as propriedades das figuras mantidas por transformação homográfica). 
(J.-L.Charmet.)

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