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44 Biotecnologia CiŒncia & Desenvolvimento CONSTRUINDO FLORESPESQUISA O controle molecular da arquitetura floral Marcelo Carnier Dornelas phD pela UniversitØ de Paris XI (France) Pesquisador do Departamento de CiŒncias Florestais da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz - USP mcdornel@carpa.ciagri.usp.br A uniformidade estrutural das plantas Uma idØia unificadora em biologia vegetal Ø que a variedade de formas dos vegetais reflete simplesmente variaçıes de um plano de desenvolvimento co- mum. Diferentes permutaçıes de umas poucas características-chave do desen- volvimento vegetal podem gerar um uni- verso de formas distintas. Provavelmente nªo hÆ ilustraçªo melhor deste princípio do que a comparaçªo entre uma flor e um ramo. A noçªo de que estas duas estrutu- ras poderiam ser fundamental- mente equivalentes foi exem- plificada pela primeira vez pelo famoso naturalista e poeta Go- ethe (o mesmo que escreveu «Fausto»), em um tratado sobre a metamorfose, hÆ mais de 300 anos. Goethe concluiu que «As flores que se desenvolvem das gemas devem ser vistas como ramos ou plantas inteiras, inse- ridas na planta-mªe, como esta estÆ inserida na terra» (Goethe, 1790). Comparando-se flores e ramos, quatro detalhes preci- sam ser esclarecidos. Primeiro, as diferentes partes de uma flor (sØpalas, pØtalas, estames e car- pelos) sªo os equivalentes de folhas em um ramo. Segundo, os órgªos de ramos e flores sªo separados por entrenós, mas no caso das flores, estes sªo tªo curtos que raramente sªo visíveis. Terceiro, os órgªos dos ramos e das flores podem ter uma filotaxia distinta, ou seja, sªo diferencialmente arranjados ao redor de um eixo. Finalmente, o crescimento indeterminado que caracteriza um ramo Ø suprimido, no caso de uma flor, tanto apicalmente, porque uma flor, em geral, pÆra de produzir órgªos ao redor do eixo central, quanto lateralmente, pois novos brotos nªo surgem nas axilas dos órgªos florais, como pode acontecer nas axilas das folhas dos ramos. Portanto, a comparaçªo entre flores e ramos aponta quatro variÆveis importan- tes: a identidade dos órgªos produzidos, o tamanho do entrenó, a filotaxia e a determinaçªo do crescimento. Desse modo, as inœmeras formas e hÆbitos visíveis das plantas simplesmente refle- tem variaçıes e permutaçıes desses qua- tro aspectos fundamentais do desenvol- vimento. Quais os princípios criadores e reguladores desses parâmetros? Eles po- deriam ser manipulados pelo Homem? O desenvolvimento de ramos e flores depende do comportamento das regiıes de proliferaçªo celular na planta, os me- ristemas apicais. Na periferia dos meriste- mas, grupos de cØlulas sªo arregimenta- dos para formar meristemas secundÆrios ou primórdios de órgªos. A filotaxia depende do padrªo preciso em que ocor- re essa repartiçªo. A determinaçªo tam- bØm Ø reflexo desta partiçªo, principal- mente se ela favorece a continuidade do meristema ou a formaçªo de primórdios. A identidade dos órgªos formados de- pende das caractísticas do desenvolvi- mento dos primórdios (principalmente de seu padrªo de divisıes celulares). Finalmente, o crescimento da regiªo en- tre os mesmos determina o tamanho dos entrenós. Dessa forma, a grande questªo Ø: como as cØlulas ainda indiferen- ciadas «aprendem» suas posiçıes relativas de tal forma a se dife- renciarem de maneira correta? Esta pergunta tem preocupado, hÆ muito tempo, pesquisadores que estudam a formaçªo de pa- drıes de desenvolvimento em diferentes organismos, na tenta- tiva de compreender como o comportamento de um grupo de cØlulas Ø coordenado. A for- maçªo de padrıes durante o desenvolvimento tem sido mais intensamente estudada em ani- mais, particularmente a mosca- das-frutas, do gŒnero Drosophi- la. Recentemente, entretanto, vÆrios grupos trabalhando com plantas modelo como a boca-de-leªo (Antirrhinum majus) e arabidópsis (Ara- bidopsis thaliana, Figura 1) usaram da- dos genØticos e moleculares para formu- lar um modelo de um processo formador de padrªo de desenvolvimento œnico de plantas: a especificaçªo dos órgªos flo- rais. O modelo ABC do desenvolvimento floral Embora uma vasta gama de mutaçıes genØticas possa alterar o processo de Figura 1: A flor de arabidópsis (Arabidopsis thaliana) do tipo selvagem possui 4 sØpalas (nªo visíveis nesta foto), 4 pØtalas bran- cas, 6 estames e um gineceu com- posto por 2 carpelos unidos Fotos cedidas pelo autor Biotecnologia CiŒncia & Desenvolvimento 45 formaçªo de uma flor, relativamente pou- cos genes foram encontrados que este- jam envolvidos com a especificaçªo dos órgªos florais per se. Mutaçıes em tais genes causam transformaçıes homeóti- cas em dois verticilos adjacentes da flor. Os dois verticilos mais externos de mu- tantes apetala2 (ap2) de arabidópsis, por exemplo, contŒm carpelos e estames no lugar de sØpalas e pØtalas, respectiva- mente. Mutaçıes nos genes APETALA3 (AP3) ou PISTILLATA (PI) de arabidópsis causam a substituiçªo de pØtalas por sØpalas e de estames por carpelos. Final- mente, no mutante agamous (ag; Figura 2) de arabidópsis, os dois verticilos mais internos sªo alterados: estames sªo trans- formados em pØtalas e carpelos em sØpa- las. (Coen & Meyerowitz, 1991; Meyero- witz et al., 1991; Ma, 1998). Em adiçªo ao controle da identidade dos órgªos florais, o gene AG deve suprimir o crescimento do meristema floral uma vez que os carpelos estªo formados, pois a mutaçªo ag tem o efeito adicional de causar a proliferaçªo indeterminada do meriste- ma. Desta forma, o quarto verticilo de uma flor ag constitui o primeiro verticilo de uma nova «flor» mutante, que contØm outras em seu interior. Portanto, o gene AG tambØm Ø responsÆvel pelo hÆbito determinado do meristema floral. As modificaçıes das características dos órgªos florais dos mutantes descritos acima sugerem um modelo combinatori- al simples para a determinaçªo da iden- tidade destes órgªos (Coen & Meyerwitz, 1991; Figura 3). Segundo este modelo, os genes responsÆveis pela identidade estªo ativos em trŒs regiıes sobrepostas, cada uma compreendendo dois verticilos ad- jacentes. Devido à sobreposiçªo das regi- ıes de expressªo de cada gene, uma combinaçªo œnica de genes especifica a identidade de cada verticilo (Figura 3a). Se a regiªo de atividade B (que requer a expressªo dos genes AP3 e PI em arabi- dópsis) estÆ ausente, ambos os verticilos 1 e 2 serªo especificados apenas pela regiªo de atividade A (AP2 em arabidóp- sis) e conterªo sØpalas (Figura 3b). De maneira similar, nesse caso, os verticilos 3 e 4 serªo ambos especificados pela regiªo de atividade C (AG em arabidóp- sis) e conterªo carpelos. Para explicar os fenótipos dos mutantes ap2 e ag, Ø neces- sÆrio adicionar ao modelo a previsªo de que as atividades A e C sªo mutuamente antagonistas. Ou seja, em um mutante para genes do tipo A, a açªo de C se expande para os quatro verticilos e em um mutante do tipo C, dessa vez, Ø a atividade de A que Ø expressa nos quatro verticilos (Figuras 3c, d). Esse modelo, criado para explicar os fenótipos de mutantes simples, passa por uma prova final: ele fielmente prevŒ o fenótipo de mutantes duplos. Por exemplo, o modelo prevŒ que, se as funçıes B e C fossem removidas, C deveria definir a identidade dos quatro verticilos, que se desenvolveriam em carpelos. De fato, todos os verticilos do mutante duplo ap2ap3 contŒm carpelos (Meyerowitz et al., 1991). Similarmente, se as ati- vidades B e C estivessem ausentes, A deveria definir a identidade de todos os órgªos da flor. Como previsto pelo modelo, sØpalas se desenvolvem em todos os verticilos de mutantes duplos agpi. O fenótipo deste duplo mutante apresenta ainda vÆrios verticilos concŒntricos adicionais (todos compostos de sØpalas), devido ao efeito da mutaçªo ag de suprimir a determina- çªo do meristema floral. O que aconteceriase ambas as fun- çıes A e C fossem removidas? A atividade B sozinha definiria a identidade dos ver- ticilos 2 e 3, porØm nenhuma das ativida- des identificadas estaria presente nos verticilos 1 e 4. O modelo nªo faz nenhu- ma previsªo óbvia sobre o fenótipo resul- tante, pois nenhum destes estados ocorre em nenhum verticilo da flor do tipo selvagem. A funçªo B Ø associada à formaçªo de pØtalas e estames; assim, espera-se que, na ausŒncia de A e C, B cause a produçªo de órgªos intermediÆ- rios entre pØtalas e estames. De fato, os verticilos 2 e 3 das flores do mutante duplo ap2ag sªo ocupados por pØtalas estaminoidais. Os verticilos 1 e 4 deste duplo mutante contŒm folhas. Igualmen- te, no triplo mutante ap2ap3ag, no qual as funçıes A, B e C foram desativadas, as «flores» sªo formadas por folhas organiza- das em vÆrios verticilos concŒntricos. Estas observaçıes indicam que a folha seria o «estado basal» a partir do qual a identidade de cada órgªo floral seria determinada. Por meio destes resultados, a equiva- lŒncia de flores e ramos (e portanto de órgªos florais e folhas), clamada por Goethe hÆ mais de 300 anos, foi final- mente demonstrada. O ABC nªo Ø suficiente Durante a dØcada passada, todos os genes descritos acima foram clonados e seqüenciados. A localizaçªo dos respec- tivos RNA mensageiros foi determinada por hibridizaçªo in situ e corresponde, de fato, às regiıes descritas pelo modelo ABC (veja a revisªo de Ma, 1998). Todos os genes do modelo ABC codificam fato- res de transcriçªo, sugerindo que seus respectivos produtos ativam ou repri- mem a transcriçªo de outros genes reque- ridos para a diferenciaçªo de tipos celu- lares órgªo-específicos. Embora o mode- lo ABC explique com sucesso como a combinaçªo de genes homeóticos pode especificar a identidade dos primórdios dos órgªos florais, ele nªo explica como os domínios de expressªo de cada gene homeótico sªo definidos. Outros mutan- tes homeóticos do desenvolvimento flo- ral de arabidópsis, como superman (sup; Figura 4) e leafy (lfy), foram caracteriza- dos e os genes correspondentes, clona- dos. O estudo do fenótipo destes mutan- tes e dos mutantes duplos entre esses e os do modelo ABC, permitiu o aprimora- mento do modelo (Ma, 1998). Assim, SUP, cujo mutante apresenta o desenvol- vimento de anteras no lugar de carpelos, embora possua os verticilos 1, 2 e 3 normais (Figura 4), estaria envolvido na retençªo da expressªo dos genes de funçªo B. O gene LFY faria o papel contrÆrio, ativando os genes de funçªo B. Tanto LFY quanto SUP tambØm codificam reguladores de transcriçªo. Outros fato- res de transcriçªo, como o codificado pelo gene PERIANTHIA (PAN, Figura 5), controlam o nœmero de órgªos florais sem alterar suas identidades (veja a revi- sªo de Baum, 1998). Assim, as flores do mutante pan possuem mais sØpalas e pØtalas que as do tipo selvagem (Figura 5). Em animais, a atividade e a extensªo do domínio de expressªo de fatores de transcriçªo envolvidos no desenvolvi- mento sªo geralmente controladas por cascatas de sinalizaçªo. O exemplo de Figura 2: A flor do mutante agamous de arabidópsis Ø composta por uma sØrie de verticilos contendo apenas sØpalas e pØtalas 46 Biotecnologia CiŒncia & Desenvolvimento estudo mais detalhado deste mecanismo Ø o da cascata iniciada pelo gene WIN- GLESS (WG) de Drosophila. O produto do gene WG Ø utilizado como um sinal na comunicaçªo entre as cØlulas. Como re- sultado desta comunicaçªo, decisıes re- lativas ao destino celular sªo tomadas, tais como a expressªo de genes homeó- ticos. Um elemento chave da cascata de sinalizaçªo de WG Ø o gene SHAGGY (SGG) que codifica uma proteína-kinase. Homólogos de SGG foram recentemente clonados em arabidópsis e denominados ASK (Dornelas et al., 1998; 1999). Os genes ASK formam uma família multigŒ- nica, cujos produtos parecem fazer parte de uma cascata de sinalizaçªo semelhan- te àquela em que SGG estÆ envolvido. Os produtos dos genes ASK controlam o domínio de expressªo de AG e AP3 e, portanto, a arquitetura floral (Dornelas et al., in press). Assim, aparentemente, me- canismos controladores de alguns aspec- tos do desenvolvimento podem ter sido conservados entre animais e plantas. Evoluçªo e biotecnologia Como tanto os genes homeóticos do modelo ABC quanto os genes regulado- res ASK sªo conservados durante a evo- luçªo, espera-se que os mecanismos de desenvolvimento dos órgªos florais se- jam semelhantes entre as diferentes espØ- cies de plantas. De fato, vÆrios homólo- gos dos genes envolvidos na diferencia- çªo floral foram clonados em vÆrios gŒ- neros e famílias, tanto de mono- como de dicotiledôneas, e o princípio de funcio- namento dos mesmos parece conservado pela evoluçªo (Baum, 1998). A obtençªo de plantas transgŒnicas, onde se modifica a expressªo dos genes envolvidos no florescimento, tem de- monstrado que Ø possível a manipulaçªo da arquitetura floral pelo Homem (Ma, 1998; Dornelas et al. in press). As conse- qüŒncias biotecnológicas sªo óbvias. A capacidade de modelar a arquitetura flo- ral artificialmente, eliminando ou adicio- nando verticilos e/ou modificando a iden- tidade e a posiçªo de cada órgªo floral, abre um invejÆvel universo de possibili- dades agronômicas. Assim, com a possibilidade atu- al de «construir» flores por meio da mani- pulaçªo genØtica molecular, a expressªo «engenharia genØtica» ganhou um aspec- to arquitetônico renovado. ReferŒncias Baum, D. (1998) The evolution of plant development. Curr. Opin. Plant Biol. 1:79-86. Coen, E.S.; Meyerowitz, E.M. (1991) The war of the worls: genetic interactions controlling flower development. Nature 353:31-37. Dornelas, M.C.; Lejeune, B.; Dron, M.; Kreis, M. (1998). The Arabidopsis SHA- GGY-related protein kinase (ASK) gene family: structure, organization and evolu- tion. Gene 212:249-257. Dornelas, M.C.; Wittich, P.E.; von Recklinghausen, I.R.; van Lammeren, A.A.M.; Kreis, M. (1999). Characterization of three novel members of the Arabidop- sis SHAGGY-related protein kinase (ASK) multigene family. Plant Mol. Biol. 39:137- 147. Goehte, J.W. (1790). Versuch die me- tamorphose der Plantzen zu erklaren. In: A. Arber (1946) Goethe·s Botany. Chron. Bot. 10:63-126. Ma, H. (1998). To be, or not to be, a flower - control of floral meristem identi- ty. Trends in Genetics 14:26-32. Meyerowitz, E.M.; Bowman, J.L.; Bro- ckman, L.L.; Drews, G.L.; Jack, T.; Siebur- th, L.E.; Weigel, D. (1991). A genetic and molecular model for flower development in Arabidopsis thaliana. Development 112 (Suppl.): 157-169. Figura 3: Modelo ABC para a espe- cificaçªo da identidade dos órgªos florais. O modelo prevŒ os casos em que todos os fatores estªo presentes, como no tipo selvagem (a); quando o fator B estÆ ausente, como no mutante apetala3, de arabidópsis; quando o fator A estÆ ausente, como no mutante apetala2 e quando o fator C estÆ ausente, como no mu- tante agamous. Se: sØpala; Pe: pØta- la; Es: estame; Ca: carpelo Figura 4: A flor do mutante superman de arabidopsis possui estames (órgªos masculinos) no lugar dos carpe- los (órgªos femininos) no verticilo central Figura 5: As flores do mutante perianthia de arabidopsis apresentam um nœmero superior de sØpalas e pØtalas (5 ou mais) que as do tipo selvagem (sempre 4)
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