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2
O conceito de linguagem em Bakhtin
Luis Filipe Ribeiro
Indagar-se sobre os conceitos na obra de Mikhail Bakhtin é 
sempre um desafio, pois sabe-se que aí está tudo em movimento 
permanente e não há terreno sólido para as construções formais. Mesmo 
porque, se há alguma coisa que caracterize o seu pensamento, essa 
alguma coisa é uma adesão inconteste à filosofia do movimento. Nada é, 
em sua obra, definitivo, nada está estabelecido permanentemente, tudo 
oscila com as alterações do quadro histórico, em que as ações humanas 
se desenrolam.
Minha proposta, hoje, é tentar alinhavar em linhas gerais 
como seu pensamento trabalha com a linguagem. 
Este é um terreno minado, pelas muitas teorias e filosofias 
que dele se ocuparam. Mas, tanto melhor, pois será do diálogo de tantas 
vozes discordantes que poderá surgir uma possibilidade de entendimento 
desse fenômeno que é absolutamente central tanto na vida social, como 
na nossa existência pessoal.
Talvez, uma primeira aproximação possa ser feita com 
pensamento com o de Ferdinand de Saussure, fundador da lingüística 
tradicional. Este, ao aproximar-se do fenômeno da linguagem, assim se 
expressa:
Mas, o que é a língua? Para nós ela não se confunde com a 
linguagem, ela é apenas uma parte dela, essencial, é verdade. 
É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da 
linguagem e um conjunto de convenções necessárias, 
adotadas pelo corpo social para possibilitar o exercício de tal 
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faculdade pelos indivíduos. Considerada em sua totalidade, a 
linguagem é multiforme e heteróclita; cavalgando sobre 
diferentes domínios, ao mesmo tempo físico, fisiológico e 
psíquico, ela pertence ainda ao domínio individual e ao 
domínio social; ela não se deixa classificar em nenhuma 
categoria dos fatos humanos, e é por isso que não sabemos 
como determinar sua unidade.
A língua, ao contrário, é um todo em si mesmo e um 
princípio de classificação. Uma vez que nos lhe atribuímos o 
primeiro lugar entre os fatos da linguagem, introduzimos uma 
ordem natural num conjunto que não se presta a nenhuma 
outra classificação.1
O lingüista genebrino faz um movimento epistemológico, no 
mínimo, curioso. Primeiro admite que a linguagem é diferente da língua, 
que ele define como o objeto de estudo da lingüística. A língua é uma 
parte apenas da linguagem que ele admite ser muito mais ampla que a 
primeira. Logo, a lingüística não tem como objeto de estudo a linguagem 
humana, mas de uma parte dela. 
De outra parte, ao afirmar que a língua é um “produto social 
da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, 
adotadas pelo corpo social para possibilitar o exercício de tal faculdade 
pelos indivíduos”, Saussure está nos dizendo que a língua é apenas um 
produto da linguagem e um instrumento que possibilita o seu exercício 
pelos indivíduos, ademais de ser um conjunto de convenções. Trocando 
em miúdos, a língua não pode ser confundida com o uso da linguagem 
humana. Até porque o nosso lingüista vai afirmar, também, que
a linguagem é multiforme e heteróclita; cavalgando sobre 
diferentes domínios, ao mesmo tempo físico, fisiológico e 
psíquico, ela pertence ainda ao domínio individual e ao 
domínio social; ela não se deixa classificar em nenhuma 
categoria dos fatos humanos, e é por isso que não sabemos 
como determinar sua unidade.
Ou seja, Saussure descarta a possibilidade de um 
conhecimento científico da linguagem humana e, em função disto, 
1 Saussure, Ferdinand de - Cours de Linguistique Générale. Paris:Payot, 1966. P. 25
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determina que se estude apenas o seu aparato técnico. É um pouco como 
dizer que “já que não posso entender sistematicamente a música, vou 
estudar o tocador de cds ou a estrutura da orquestra”. 
Isto, em absoluto, não desqualifica a estudo da lingüística 
que, de todo modo, é fundamental. Apenas sublinha claramente que ela 
não foi construída — pelo menos do ponto de vista de seu fundador — 
para entender a linguagem humana, mas o instrumental técnico de sua 
realização, a língua. Isto explica porque o campo da semântica sempre foi 
o primo pobre em estudos e em bibliografia lingüísticas. Exatamente 
porque ele aponta para a única coisa que fica realmente fora da língua, ou 
seja, o mundo. Um clarividente lingüista americano, Edward Sapir, 
afirmou, com propriedade, que a semântica não pertencia à lingüística, 
mas à antropologia. Num gesto que demarca bem claramente o problema 
que estamos tentando desenhar.
O estudo da língua é fundamental, sem ele não avançamos 
muito no campo dos estudos da linguagem; mas, por outro lado, é 
insuficiente, se nosso objetivo é conhecer o exercício efetivo da fala em 
sociedade.
A partir daí, o mais é decorrência deste movimento fundador 
básico. Para Saussure, além da linguagem e da língua, existe ainda a fala. 
A linguagem, para ele, é incognoscível; a língua é o estudo dos signos e 
das suas regras de combinação; a fala é o mero exercício individual 
dentro dos limites da língua e, igualmente, é descartada como objeto de 
estudo da lingüística. Ou seja, nem a linguagem — fenômeno social por 
excelência —; nem a fala — o exercício pessoal da linguagem dentro da 
sociedade — podem ser estudados pela lingüística. Ela vai dedicar-se 
inteiramente ao estudo do instrumental que nos possibilita a fala. Para 
entender melhor tal afirmação — e uso aqui uma gratificante experiência 
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com meu filho caçula de um ano e três meses de idade — uma criança 
que ainda não fala, nem por isso deixa de possuir linguagem. Ela se 
comunica, expressa seus desejos, manifesta seus desagrados, busca seus 
objetivos práticos no dia-a-dia. Mas ela ainda não fala. E não fala porque 
não domina totalmente o instrumental técnico que é a língua. Não a usa 
como emissor, mas a entende, com algum grau de adequação, enquanto 
receptor. Ou seja, dela tem um domínio parcial, com ela se orienta no 
mundo, mas não lhe conhece as manhas e as produções vocais, que há 
de aprender por imitação direta dos falantes que a cercam. Mas não se 
pode dizer que não tenha linguagem! E, recuando um pouco, no seu 
tempo de vida, antes mesmo de que pudesse entender a língua falada, já 
tinha uma linguagem, com a qual se ia inserindo no mundo adulto e 
agindo sobre ele. Não têm os pais que aprender a identificar diferentes 
tipos de choro de um bebê, para poder atendê-lo, quando é o caso, e 
desatendê-lo, quando não?
Isto pode tornar os limites entre os nossos dois teóricos — 
Saussure e Bakhtin — mais claros e mais palatáveis. Ou seja, torná-los 
acessíveis ao maior número. Pois se há uma coisa de que quero afastar-
me é de uma universidade vem desaprendendo gradualmente a falar claro 
e em língua de gente. 
Bakhtin — que é o objeto de minha exposição nesta mesa — 
situa-se quase como antípoda de Saussure e, por isso, nós que o 
estudamos, não o vemos como um lingüista, mas como um filósofo da 
linguagem. E por quê? Porque, para ser lingüista, ele teria que aceitar as 
premissas da lingüística traçadas por Saussure, o que ele absolutamente 
não aceita. Quase contemporâneo de Saussure, Bakhtin critica duramente 
os fundamentos de sua concepção teórica ao longo de sua obra, mas com 
especial atenção em Marxismo e Filosofia da Linguagem.
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E qual é, basicamente, sua proposta teórica? 
Bakhtin pretende, no fundamental, entender o exercício da 
linguagem humana por parte dos indivíduos. Ele escolhe a música e não o 
CdPlayer ou a orquestra, por difícil que seja o caminho a desbravar. O que 
Saussure excluiu do estudo da lingüística é exatamente o que atrai as 
atenções de Bakhtin.
Para ele o único objeto real e material de que dispomos para 
entender o fenômenoda linguagem humana é o exercício da fala em 
sociedade. A língua falada, nas casas e nas feiras, na rua e na igreja, no 
quartel e na repartição, no baile e no bordel, é sempre o que existe de 
materialmente palpável para o estudo. Para ele, a língua — que Saussure 
considera o objeto da lingüística — não passa de um modelo abstrato, 
construído pelo teórico a partir da linguagem viva e real. Coerentemente 
Saussure afirmava que “não é o objeto que precede o ponto de vista, mas 
é o ponto de vista que cria o objeto”. No caso da lingüística é exatamente 
o que ocorre: o seu objeto é criado a partir do ponto de vista de que a 
linguagem humana não pode ser objeto de conhecimento científico, assim 
como o exercício da fala.
Para entender um pouco mais a fundo tal diferença, é 
necessário remontar às origens filosóficas de cada um deles. Saussure 
surge em cena, durante a onda ascendente do positivismo, que balizava, 
de forma muito ampla, a produção da ciência ocidental. E o método por 
excelência do positivismo é o quantitativo. Só é real e material aquilo que 
pode ser medido, pesado, tocado, manipulado. Era uma forma de 
contrapor-se às teses escolásticas e metafísicas que constituíram, durante 
séculos, o cenário do pensamento no Ocidente.
Já Bakhtin surge na cena científica, na Rússia Soviética 
nascente e em que o marxismo, na sua leitura leninista e stalinista, 
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constituía o único pensamento aceitável. Bakhtin se defronta, então, com 
dois problemas ao mesmo tempo. De um lado, pensar o marxismo com 
Marx e não com o Partido Comunista; de outro, discutir o modelo 
ocidental, positivista por excelência. Sua saída foi buscar apoio em uma 
erudição literária invejável e um conhecimento filosófico sofisticado. A 
erudição literária ofereceu-lhe um contacto privilegiado com a linguagem 
humana real e o conhecimento filosófico uma vacina eficaz contra as 
simplificações positivistas seja do marxismo oficial, seja da ciência que se 
fazia no Ocidente. Sua escolha foi decididamente por uma filosofia do 
movimento, que vem de Heráclito aos nossos dias. E, esta opção pelo 
movimento, afasta-o decididamente das filosofias da forma, que 
trabalham com um mundo pronto, acabado e congelado em formas 
imutáveis, cuja origem remonta a Platão com o seu mundo das idéias, 
fora do tempo e fora do espaço.
Bakhtin trabalha com um mundo em movimento e em perene 
transformação, seu objeto está sempre em processo, não se submete a 
uma forma fixa e imutável.
E é exatamente por isso que ele não pode aceitar que a 
linguagem seja um conjunto de formas (signos) e suas regras de 
combinação (sintaxe). Para Saussure, um signo é uma relação entre um 
significante (um som, uma imagem acústica ou um grafema) e um 
significado (um conceito). Para Bakhtin, o significado é uma 
impossibilidade teórica. Um signo, aceitando-o provisoriamente, não tem 
um significado, mas receberá tantas significações quantas forem as 
situações reais em que venha a ser usado por usuários social e 
historicamente localizados. Em uso, a língua é muito diferente do seu 
modelo teórico. Para a lingüística, um signo tem um significado. Sabemos 
entretanto que, ao falar, nós estamos diariamente modificando, 
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acrescentando, excluindo, torcendo os significados codificados pela língua.
Mas, muito mais do que isto, para Bakhtin, já que se trata de 
linguagem e não de língua, a unidade básica não pode ser o signo, mas o 
enunciado. Um enunciado não é um signo pela simples razão de que, para 
existir, ele exige a presença de um enunciador (quem fala, quem escreve) 
e de um receptor ou enunciatário (quem ouve, quem lê). O signo faz 
parte de uma construção teórica que dispensa os sujeitos reais do 
discurso, o enunciador e o enunciatário. Um signo, num dicionário, não é 
e não pode ser um enunciado. Este exige uma realização histórica. Um 
enunciado acontece em um determinado local e em um tempo 
determinado, é produzido por um sujeito histórico e recebido por outro. 
Cada enunciado é único e irrepetível. A mesma frase, exatamente a 
mesma, pronunciada em situações sociais diferentes, ainda que pelo 
mesmo enunciador, não constitui um mesmo enunciado e não pode 
constituir. Imaginem que, daqui a algumas horas, eu leia este mesmo 
texto, palavra a palavra, na Estação Rodoviária de Campos, para um 
público que não esperava ouvir-me. Será o mesmo texto, mas 
seguramente não será o mesmo enunciado. Aqui, leio uma palestra para 
um público que, presumivelmente (eu espero!), deseja ouvir-me dissertar 
sobre as questões da linguagem num teórico de nome estrangeiro e 
complicado. Lá, as pessoas estarão possivelmente esperando as 
chamadas para as suas viagens e sem nenhum interesse pelas coisas que 
eu venha a dizer. Tudo o que conseguirei é uma fama de maluco, maior 
do que a já carrego, por ser professor universitário nesse nosso triste 
país.
O enunciado não é um conceito meramente formal; um 
enunciado é sempre um acontecimento. Ele demanda uma situação 
histórica definida, atores sociais plenamente identificados, o 
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compartilhamento de uma mesma cultura e o estabelecimento necessário 
de um diálogo. Todo enunciado demanda outro a que responde ou outro 
que o responderá. Ninguém cria um enunciado sem que seja para ser 
respondido. Mesmo isto que eu agora leio, ainda que não venha a receber 
respostas exteriorizadas, por certo as provocará interiormente e, desde 
já, esboço as minhas réplicas neste diálogo sem fim. 
Como se vê, cada enunciado é um ato histórico novo e 
irrepetível. E é este enunciado a unidade básica do conceito de linguagem 
de Bakhtin. Toda linguagem só existe num complexíssimo sistema de 
diálogos, que nunca se interrompe. Ao decidir falar sobre este tema, 
nesta mesa, retomei meu já longo diálogo com Mikhail Bakhtin; mas com 
Paulo Bezerra, meu amigo dileto e tradutor da sua obra; mas com minhas 
experiências ao lidar com a linguagem, antes mesmo de conhecer a obra 
de Bakhtin; mas com outros textos que venho escrevendo e lendo ao 
longo de uma vida de estudos. Tudo isto está aqui, neste enunciado que, 
neste momento, centraliza o diálogo com essa coleção tão ampla de 
outros enunciados.
Mas, para que adquira consistência histórica e possa 
acontecer, este enunciado que agora leio precisou, primeiro, dialogar com 
um público ainda virtual, no momento em que foi escrito, e, agora, 
dialogar, ao vivo e em cores, com vocês, seus receptores reais. Dá para 
perceber que não estou me referindo a apenas um enunciado, mas a, pelo 
menos, dois. Quando, no meu escritório, em minha casa do Rio de 
Janeiro, dialogava com um público virtual — que é o único de que 
disponho agora quando escrevo — produzia um enunciado. Agora, quando 
leio este texto — que, para o escritor que está escrevendo, “esse agora” é 
futuro —, dialogando com um público real (e seguramente diferente do 
que poderia imaginar quando escrevia), produzo outro enunciado, ainda 
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quando o texto seja exatamente o mesmo (pelo menos até esta frase, 
pois não posso ainda saber das futuras que chegarão a seu turno). 
Mas, notem bem, para poder escrever o que escrevo tenho 
que construir um receptor muito definido. Sei que vou falar na UENF, em 
Campos, para um público universitário ligado preferencialmente à área de 
Cognição e Linguagem, com a presença inteligente e vigilante do Mário 
Galvão — companheiro de tantas jornadas de vida —, possivelmente com 
a presença de colegas da área que estarão conferindo os meus possíveis 
desvios de rota e assim por diante. Sem construir esta imagem de 
enunciatário, não teria como escrever, pois só os chupadores de nuvens 
são capazes de escreverpara ninguém. Pois mesmo os solilóquios dos 
momentos de crise e solidão pessoal são feitos para um enunciatário que 
construímos, que é um outro eu, capaz de sentir peninha de mim mesmo.
Mas, para poder escrever o que escrevo, tenho que construir 
uma imagem de mim mesmo, uma imagem de autor. Tenho que avaliar 
que expectativa depositam em mim, que imagem construíram desse 
senhor que vem de fora para lhes falar. Tenho que me perguntar se já 
leram algum de meus textos, se já tinham referências prévias ou se serei 
um completo desconhecido. Ou seja, quem lhes escreve também teve que 
se construir como escritor, para que o diálogo pudesse se estabelecer. 
Mas, assim como o púbico real não há de coincidir com aquele que 
imaginei previamente, por outro lado, quem escreve neste momento não 
é a mesma pessoa que será daqui a quatro dias, quando deverá estar 
lendo o que agora escreve. O enunciador de hoje não será o mesmo que 
lerá o texto no dia 1º. No mínimo estará quatro dias mais velho, o que, 
no meu caso, já constitui um sério problema...
Serão enunciados diferentes, unidades de análise distintas.
Por outro lado, todo diálogo — ou seja, todo enunciado — 
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além de um enunciador e de um enunciatário ou receptor, demanda a 
presença daquilo que Bakhtin denominou de o terceiro do diálogo. É que 
todo diálogo (ou todo discurso) sempre pressupõe alguém diante de 
quem se dialoga. Posso supor, neste momento e neste diálogo, que o 
terceiro, para mim, possa ser o próprio Bakhtin (ou seja, a imagem que 
tenho dele, pois não sou espírita), que me olha preocupado com o que 
ando a fazer com suas idéias, ou mesmo seu representante mais 
autorizado nesta mesa, meu amigo Paulo Bezerra. É com a 
responsabilidade de não lhe ser muito infiel que falo diante dessa imagem 
de Bakhtin que, de alguma forma, baliza meu discurso. Ele constitui o 
terceiro diante de quem eu falo. Mas, este é apenas o meu “terceiro”. 
Para quem me ouve, os terceiros poderão e deverão variar. Imagino, por 
exemplo, alguém que tenha alguma intimidade com esses problemas e 
que discorde do pensamento que tento expor aqui. Ele, seguramente, me 
ouvirá com as orelhas do espírito afiadíssimas pelas suas convicções 
filosóficas, buscando os argumentos para me contradizer. O seu “terceiro” 
será constituído por essas mesmas convicções. Já um outro, leitor de 
Bakhtin que com ele possa concordar, estará me ouvindo, tendo como 
“terceiro” a sua imagem de Bakhtin, que será necessariamente distinta da 
minha, já que nascida de outras leituras, e estará atentíssimo, buscando 
concordâncias que o satisfaçam e registrando discordâncias que o 
conduzam ao diálogo.
Resumindo, sempre construímos um enunciado a partir de 
uma referência axiológica, um conjunto de valores que, paradoxalmente, 
dará consistência ao que dizemos e estará vigiando a nossa adequação ou 
não às propostas que dizemos defender. Este conjunto de valores 
constituirá a imagem do “terceiro do diálogo”. É por isso que ele pode ser 
representado por uma imagem de autor, por uma autoridade, religiosa ou 
laica, por uma ideologia, por entidades como classe, história, destino e 
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quejandos.
Ou seja, falamos sempre diante de alguém ou de algo que 
acreditamos respeitar. E, mesmo quando falamos contra alguém, o 
fazemos diante de alguém ou de algo que supomos concordar com nossa 
avaliação. É o terceiro que nos ampara e nos vigia, na difícil tarefa de 
entender o mundo e os nossos semelhantes. 
Dando um passo adiante, na construção do enunciado, pode-se 
observar que existem duas dimensões distintas e complementares: de 
uma lado, existe a materialidade técnica do texto e, de outro, aquilo que 
escapa aos limites da língua, para ascender ao plano da linguagem. Nas 
palavras do próprio Bakhtin:
Portanto, por trás de cada texto está o sistema da 
linguagem. A esse sistema correspondem no texto tudo o que 
é repetido e reproduzido e tudo que pode ser repetido e 
reproduzido, tudo o que pode ser dado fora de tal texto (o 
dado). Concomitantemente, porém, cada texto (como 
enunciado) é algo individual, único e singular, e nisso reside 
todo o seu sentido (a sua intenção em prol da qual ele foi 
criado). É aquilo que nele tem relação com a verdade, com a 
bondade, com a beleza, com a história.2
Vemos assim que aquilo que diz respeito à língua é o que é 
repetível, o que é recorrente, o que é reprodutível. O que, enfim, não tem 
identidade própria. Os fonemas (ou as letras na linguagem escrita), os 
significantes, a sintaxe, enfim, os signos e suas regras de combinação, na 
linguagem de Saussure. Palavras idênticas podem participar de 
enunciados diferentes, as mesmas figuras de retórica, uma mesma 
construção sintática. Tudo isto fica no domínio da língua, do aparato 
técnico da linguagem. Mas o que identifica um enunciado é aquilo que ele 
efetivamente diz, naquele momento, para aquele enunciatário, nas 
condições específicas em que é produzido e recebido. Assim, uma única e 
2 Bakhtin. Mikhail. Estética da Criação Verbal. Tradução de Paulo Bezerra, edição eletrônica.
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mesma palavra dicionarizada — repetível, portanto — pode participar de 
enunciados diferentes. Basta que mudem as condições de sua 
enunciação. Tomemos o clássico exemplo da palavra “fogo”. Se 
pronunciada pelo comandante de um batalhão de fuzilamento para os 
seus comandados, diante de um condenado atado ao muro de execuções, 
constituirá um enunciado completamente diferente, do que enunciada por 
um fumante aflito, com um cigarro apagado na mão, dirigindo-se a um 
possível possuidor de fósforos ou isqueiro. Ou, um passeante noturno 
solitário, flagrando um princípio de incêndio e dirigindo-se a quem possa 
prestar auxílio na emergência. O que se repete é a palavra e esta 
pertence ao plano da língua. O irrepetível em cada caso é a situação que 
confere a essa mesma palavra significações tão distintas em cada um dos 
enunciados.
Mas para que esta construção de enunciados possa ser 
realizada, há que levar em consideração um outro fenômeno 
extremamente rico de possibilidades. É a distinção que Bakhtin vai 
estabelecer entre tema e significação. Aqui, igualmente, pertence à 
significação aquilo que é repetível, reiterável e que portanto se situa no 
plano da língua. O conjunto de palavras de um dicionário está nesta 
situação: elas apresentam uma significação que é socialmente 
compartilhável, que garante à língua a sua continuidade e à comunicação 
a sua possibilidade. Já o tema é único em cada enunciado, corresponde a 
uma significação global daquele enunciado e inclui uma série de 
elementos que, além de não pertencer à língua, podem inclusive ser não-
verbais. Aqui, nesta minha fala, meus gestos, minha entonação, as 
pausas que faço, as expressões faciais que assumo, minha forma de falar 
e de vestir, tudo se inclui no conjunto do tema do enunciado. Um tema 
não pode ser nunca exaustivamente delimitado e não se repete de uma 
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enunciação a outra.
Assim, num enunciado estaremos diante de uma permanente 
dialética entre as significações, já cristalizadas, e o tema, a cada vez 
outro. Na verdade, há uma luta permanente entre o velho e o novo, em 
cada enunciado que pronunciamos. O velho são as significações que 
herdamos ao aprender a falar uma língua e o seu uso ao longo de nosso 
exercício social. O novo, aquilo que cada situação de enunciação 
apresenta de novidade e de ato histórico original. Posso assim afirmar, 
sem medo de erro, que vocês nunca leram duas vezes o mesmo livro. Se 
o livro, materialmente, é o mesmo, o leitor e a situação de leitura não 
podem sê-lo. Numa segunda leitura, o leitor é um leitor quejá conta com 
a experiência da primeira leitura, entre uma e outra, sua vida e suas 
convicções podem e devem ter mudado, e o livro para ele é um livro que 
ele já conhece e do qual já tem uma primeira leitura e, logo, não pode ser 
o mesmo livro.
Este exemplo reafirma a questão do tema e da significação. O 
livro, enquanto objeto material, está dotado de um conjunto de palavras 
cuja significação me é imprescindível conhecer para que a leitura seja 
possível. E aí estamos no plano da língua, no plano da significação. Mas, 
sabemos todos, por óbvio, que conhecer cada uma das palavras de um 
livro não significa havê-lo entendido. A leitura não é um acúmulo de 
significações buscadas num dicionário. Se assim fosse, eu ignorante do 
Alemão, com a ajuda de um bom dicionário e com uma boa dose de 
disciplina germânica, poderia ler o Fausto de Goethe, no original. E, mais 
que isso, um computador, igualmente amparado em um bom dicionário da 
Língua Russa, dispensaria o meu fraterno amigo Paulo Bezerra da tarefa 
hercúlea de traduzir Dostoiévski.
Não. A leitura é adentrar de cabeça no tema e não ficar 
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catando milho nos dicionários, escritos ou não. Ler é tentar entender, 
recriando-as, as circunstâncias em que o livro foi pensado e escrito; é 
adentrar pelas possibilidades culturais da época; é comparar a sociedade 
em que o livro foi escrito com aquela em que ele é lido; é construir um 
mundo imaginário equivalente àquele que habitou o escritor antes, 
durante e depois da escrita. E tudo isto constitui o tema deste grande 
enunciado que é um livro. Se não o alcançarmos, a leitura se frustra e se 
torna um exercício maçante de decodificação de palavras.
Creio que com estas pinceladas, rápidas e superficiais, se 
possa fazer uma idéia, ainda que pálida, de alguns dos conceitos chaves 
com que Mikhail Bakhtin tenta pensar a questão da linguagem. Seria 
inviável, no limite de uma palestra, tentar esgotar um assunto que ele 
não conseguiu esgotar numa longa e produtiva existência pessoal e 
intelectual.
Apenas pretendi trazer algum ordenamento e alguma 
organização às idéias mais gerais desse pensador genial que, com o riso e 
o carnaval, com a galhofa e os destronamentos, tentou nos mostrar que a 
linguagem, como tudo o que é humano, é sempre muito mais complexa 
do que pretende a arrogância intelectual do saber acadêmico.
Para finalizar, bastaria lembrar que a sua tese de 
doutoramento — A Obra de François Rabelais: a Cultura Popular na Idade 
Média e no Renascimento — foi recusada pela Academia de Ciências da 
União Soviética. Para alguém que sempre pensou na contra-mão dos 
discursos oficiais, que valorizou a cultura popular, que resgatou a força da 
oralidade, que valorizou o riso como forma de denúncia, foi realmente 
uma sorte. Se a Academia de Ciências da União Soviética o houvesse 
aprovado como doutor, isto hoje poderia comprometer a força irreverente 
e devastadora de seu pensamento radicalmente revolucionário.
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Rio de Janeiro, 27 a 29 de novembro de 2006.
15
16
Printed with a Demo of Nisus Writer Express
Pri
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