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ECONOMIA POLÍTICA DA COMUNICAÇÃO: DIGITALIZAÇÃO E SOCIEDADE Juliano Maurício de Carvalho Antonio Francisco Magnoni Mateus Yuri Passos (organizadores) Economia política da comunicação: digitalização e sociedade São Paulo, 2013 Conselho editorial: Dasniel Oliveira Perez Universidad de La Habana, Cuba Francisco Sierra Caballero Universidad de Sevilla, Espanha Martín Alfredo Becerra Universidad Nacional de Quilmes, Argentina Economia política da comunicação : digitalização e sociedade [recurso eletrônico] / Juliano Maurício de Carvalho, Antonio Francisco Magnoni e Mateus Yuri Passos (organizadores). - São Paulo: Cultura Acadêmica, 2013 220 p. ISBN 9788579834653 Inclui bibliografia 1. Comunicação. 2. Economia política. 3. Digitalização dos meios. I. Carvalho, Juliano Maurício de. II. Magnoni, Antonio Francisco. III. Passos, Mateus Yuri. 070.449 E22 Índice Digitalização e Sociedade Antonio Francisco Magnoni Juliano Maurício de Carvalho Mateus Yuri Passos 7 Prefácio César Bolaño 16 A integral digitalização das indústrias culturais: tensões e reestruturações em andamento Luis A. Albornoz 20 A convergência digital e os desatinos do sistema mundo capitalista Ruy Sardinha Lopes 42 Indústria Cultural, Economia Política da Comunicação e Televisão Pública Vivianne Lindsay Cardoso Juliano Maurício de Carvalho 51 Possibilidades da interatividade da TV digital no campo da educação Valério Cruz Brittos Nadia Helena Schneider 78 A Economia Política do Coronelismo Eletrônico: categorização dos líderes políticos proprietários de radiodifusão em Minas Gerais Luiz Felipe Ferreira Stevanim Suzy dos Santos 92 A reedição do difusionismo diante da brecha digital: o desafio das regiões na sociedade da informação Francisco Javier Moreno Gálvez 110 O local é o diferencial O papel do rádio na era da conexão planetária Leandro Ramires Comassetto 138 A digitalização, a convergência e as novas interfaces do Rádio Antonio Francisco Magnoni Juliana Gobbi Betti 153 Clivagem da democracia no plano digital da esfera pública Juliano Maurício de Carvalho André Luís Lourenço 172 Sistema Público de Comunicação: por uma mídia de todos Adilson Vaz Cabral Filho 192 Gestão Pública de Informação do Governo Federal Angela Maria Grossi de Carvalho 205 Biografia dos autores 215 7 Apresentação: Digitalização e Sociedade Não é possível pensar em características da espécie humana sem considerar a capacidade de produzir artifícios e artefatos, que ela desenvolveu durante seus vários trajetos evolutivos. A diferença mais visível em relação aos demais seres da Natureza é a capacidade inata que o Homem adquiriu, de pensar, de falar, de criar relações sociais perenes e, sobretudo, de criar artefatos e de produzir continuamente bens culturais, materiais e simbólicos. A atual espécie Homo sapiens sapiens foi sendo talhada em seu longo caminho pelo Homo loquens, o primeiro hominídeo falante, depois pelo Homo faber, um hominídeo habilidoso que aprendeu a usar as mãos para fazer objetos práticos e abstratos. Ao conseguir desenvolver as primeiras ferramentas, os indivíduos humanos puderam multiplicar a força e a agilidade corporal e foram aprendendo a sistematizar as técnicas que lhes deram poder crescente sobre o mundo natural. Ao manejar o fogo, puderam resistir ao frio, iluminar a escuridão, cozer os alimentos e a argila e, mais tarde, forjar metais. Graças aos artefatos desenvolveram a agricultura, domesticaram animais e processaram recursos minerais e biológicos. Também puderam resguardar o futuro, com o domínio estratégico de sistemas de armazenagem e de processos de conservação de víveres. Com a produção e a conservação de excedentes começaram a realizar trocas, inventaram o comércio e também o dinheiro. A criação da escrita deu início ao ciclo de aperfeiçoamento de suportes para registro de informações, das tecnologias e sistemas de comunicação. O domínio da escrita inaugurou a comunicação não presencial e permitiu que os conhecimentos e culturas rompessem as barreiras da distância e do tempo. Com a escrita, o armazenamento e a circulação das informações tornaram-se independentes da memória, da presença e da existência dos indivíduos. O homem da era moderna conseguiu juntar a ciência e as técnicas amadurecidas desde o Renascimento europeu para produzir máquinas e motores mais poderosos do que qualquer ferramenta criada em eras anteriores, pelas diversas sociedades humanas estabelecidas ao redor do planeta. Desde as últimas décadas do século XVIII, período que Milton Santos denominou de “momento da criação do meio técnico, que substituiu o meio natural”, começaram a ser instaladas as primeiras indústrias modernas na Inglaterra. A industrialização acelerou a urbanização Economia política da comunicação: digitalização E sociEdadE 8 populacional, as cidades industriais em pouco tempo foram transformadas em metrópoles caóticas. Dos teares aos primeiros motores a vapor, a indústria moderna iniciou o século XIX com a incorporação de maquinário e força motriz ao trabalho coletivo das fábricas, ação sistemática e evolutiva que revelaria, desde a segunda revolução industrial, a surpreendente capacidade técnica da burguesia para liderar a produção a uma diversidade inumerável de bens materiais e, mais tarde, simbólicos. A educação, a cultura e o entretenimento adquiriram crescente importância nas sociedades urbano-industriais e houve um rápido aumento do número de pessoas alfabetizadas e de trabalhadores assalariados, fatores que estimularam um maior consumo de mercadorias e de informações baratas e atualizadas sobre o cotidiano social. A imprensa e a publicidade viabilizaram a proliferação de uma nova e lucrativa atividade de produção e oferta de bens simbólicos para as diferentes camadas populacionais urbanas. A tecnologia de mecanização e motorização desenvolveu novas impressoras, que aposentaram a prensa tipográfica manual, utilizada desde Gutenberg. Também estimulou a organização empresarial de gráficas e de editores de jornais. A expansão do trabalho não material ocorreu em um tempo simultâneo ao desenvolvimento do trabalho industrial e de outras atividades urbanas. Serviu para atender aos contingentes modernos, cujas necessidades cotidianas já não podiam ser atendidas com casa, roupa, comida e reprodução. Os meios de comunicação de massa serviram como ferramentas modernas para a transformação do trabalho abstrato, literário, plástico, musical, educativo, publicitário, jornalístico etc., em produtos culturais, que alimentariam o extraordinário mercado simbólico, desde o cinema mudo até a internet. Na segunda metade do século XIX, as redes ferroviárias rasgaram os continentes seguindo todos os pontos cardeais. Antes das ferrovias, o telégrafo elétrico significou a primeira rede de comunicação por fios, que foi completada, a partir de 1880, pela rede telefônica e pela radiotelegrafia. Daquela época em diante, as redes elétricas passaram a recortar todas as paisagens das regiões mais desenvolvidas do planeta. Com a invenção do automóvel, as redes de transporte rodoviário retalharam em apenas algumas décadas a superfície inteira dos continentes: tornaram insignificante a façanha dos antigos romanos, que, durante vários séculos, abriram 80 mil km de precárias estradas. No entanto, a moderna epopeia da máquina-ferramenta fabril e as linhas de montagem das antigas indústrias analógicas já fazem parte do passado. Hoje, 9 os insumos essenciais da autodenominada “nova ordem” ou da “nova economia” mundial são as tecnologias digitais. Digitalizar é a palavra de ordem da nova era pós- moderna (??), que, mesmo fustigada por uma sucessão de crisesintercapitalistas, segue neste início de século de XXI, ampliando sua nova plataforma acumulativa em redes binárias. O atual movimento tecnológico e econômico manifestou-se gradativamente, desde a segunda metade do século passado, em duas vertentes distintas: a primeira, de abrangência mais privada, foi caracterizada principalmente pela extraordinária atualização tecnológica havida com a robotização da produção em grandes indústrias de bens materiais de consumo e em setores produtores de máquinas e insumos para todas as plataformas produtivas. A segunda despontou com o desenvolvimento e a propagação mundial de sucessivas gerações de hardwares e de programas para computadores pessoais concebidos para dinamizar o trabalho profissional nas atividades produtivas, comerciais, de entretenimento, de publicidade e também de pesquisa e de serviços. Os japoneses foram pioneiros na utilização do computador e do conceito de rede informacional com a intenção de superar a crise do modelo taylorista-fordista e aposentar a velha linha de montagem, que havia significado a transformação produtiva mais revolucionária, até os anos 1960 do século passado. A disseminação dos robôs acelerou a capacidade produtiva, reduziu custos, melhorou a qualidade da produção e avolumou imensamente o processo de automatização do trabalho produtivo manual e a destruição de postos de trabalho, um fenômeno que Marx apontou em meados do século XIX, como crescente ameaça para a classe operária. A informatização da sociedade retoma, de acordo com a nova racionalização capitalista, o espaço doméstico e os espaços vivenciais da educação, da cultura, do entretenimento e da comunicação interpessoal. O teletrabalho reocupa estes espaços, que se tornaram domínio privativo dos trabalhadores e de suas famílias, desde que a classe trabalhadora conquistou limites de jornadas e direitos trabalhistas. O capital se reapropria com nova aparência, forma e ferramentas, do espaço doméstico e do tempo livre dos trabalhadores, mas com o mesmo objetivo acumulativo que fazia no início da revolução industrial. Assim, preserva sua capacidade de manter globalmente a hegemonia do antigo liberalismo, mesmo que se utilize de postulados pós-modernos. Para os incluídos, as relações se reorganizam com a possibilidade de se desempenhar um papel mais ativo e menos assimétrico em relação à informação do que o que vinha ocorrendo nos últimos séculos. Teorias como a do agendamento e a da tomada da função de esfera pública de debates pelos meios de comunicação Economia política da comunicação: digitalização E sociEdadE 10 de massa, novos definidores da representação da realidade e da intermediação dos diversos segmentos da sociedade, de modo a favorecer interesses burgueses, devem ser revistas com o surgimento de redes sociais em que, cada vez mais, o discurso autorizado passa a ser questionado e o cidadão não certificado tem direito à voz, com novas negociações em torno da credibilidade de fala e a fragmentação de espaços de discussão de acordo com os campos de interesse. O sistema digital, não mais linear, mas em rede, torna-se mais complexo, com maior dificuldade no controle da circulação de informação sem que se firam princípios liberais ainda caros à sociedade burguesa – constituindo-se, portanto, um fértil meio de cultura para que vicejem e se propaguem opiniões contra- hegemônicas. Independentemente dos embates conceituais que o atual contexto suscite, parece-nos que a percepção coletiva já se convenceu de que o novo modo de convívio e de trabalho dependerá, sempre mais, de ferramentas e informações digitais. No entanto, sem medidas abrangentes de inclusão social e cultural, uma eventual “sociedade da informação” poderá será mais assimétrica que a atual e apartará os indivíduos despreparados para operar os novos sistemas informáticos de produção e de interação interpessoal. A exclusão digital aprofundará a lógica vigente de apartação cultural e material. Ao difundir suas ferramentas computacionais por todos os espaços vivenciais e produtivos, a ordem informacional requer para o desempenho do trabalho intelectual ou material, conhecimentos e habilidades técnico-científicas advindos de uma sólida e contemporânea formação educacional. Nesse aspecto, as tecnologias digitais tornam-se novos elementos extremamente importantes para todos os modos de produção atuais, mas elas servem muito mais, para a constituição de opinião pública em tempos de predomínio da informação em todos os níveis de relações sociais. O barateamento dos aparatos e o desenvolvimento de interfaces comunicativas inteligíveis aos leigos trouxeram em um curto período de tempo os computadores para o espaço doméstico e daí eles se espalharam por todas as atividades humanas. O principal atrativo do computador foi a profusão incessante de novos programas, linguagens e possibilidades de trabalho, apresentados em suportes gráficos e audiovisuais, capazes de mimetizar as interfaces comunicativas dos conhecidos veículos de imprensa e de radiodifusão. Com o desenvolvimento da internet, o computador rompeu seu vínculo remoto com a máquina-ferramenta. Deixou de ser um processador estanque de dados, mera extensão mecânica do corpo e do trabalho orgânico do homem, para se tornar de fato uma máquina “inteligente”, uma extensão da memória humana. Negroponte 11 observava em 1995 que as pessoas tinham em casa vários eletrodomésticos com microprocessadores, mas que não estavam unificados. Por isto não era possível a comunicação eletrônica entre eles, ou mesmo quando era possível haver interconexão entre diferentes equipamentos, a interface estabelecida era bastante primitiva e peculiar em cada um deles. Ele advertia que só haveria uma tecnologia de fato inteligente e convergente quando todos os equipamentos presentes em nosso cotidiano pudessem compartilhar dos recursos disponíveis para comunicar entre si e com o usuário. O que mudou de lá para cá foi a imensa progressão do ciberespaço, que vem agindo como o agente catalisador que motiva a convergência tecnológica e a digitalização (por razões comerciais), entre todas as tecnologias eletroeletrônicas existentes. A disseminação da internet sem fio, “portátil”, liberta da dependência do computador, deverá multiplicar universalmente o número de usuários. Os computadores on-line tornaram-se, ao mesmo tempo, terminais de geração, abastecimento e acesso à imponderável memória virtual pública, com capacidade inesgotável de armazenar, selecionar e transmitir informações sobre qualquer área de atividade e de interesse humano, tanto de aspecto individual quanto coletivo. O ciberespaço torna-se mais e mais uma hiperinteligência artificial, um imenso arquivo de memória e de conhecimentos alojados fora do cérebro humano. Ele serve para ampliar de modo inorgânico a capacidade humana de reter e de trocar informações. Ao mesmo tempo, pode ordenar e classificar o fluxo imensurável de dados para os sistemas de processamento e armazenamento e evitar que os indivíduos entrem em colapso mental em decorrência do excesso de informações presentes no cotidiano do homem. Pierre Lévy sustenta a tese de que a “emergência do ciberespaço é fruto de um verdadeiro movimento social” que possui segmentos líderes, programa de ação e palavras de ordem. Para o autor, o crescimento do ciberespaço corresponde ao desejo de comunicação recíproca e de inteligência coletiva, porque visa a “um tipo particular de relação entre pessoas”. Ele toma como exemplo a evolução social do correio, comparada à motivação coletiva que sustenta a ascensão do ciberespaço. No ambiente informatizado e interligado, tempo e espaço perdem o significado físico e cultural que havia sido instituído desde a Modernidade. O espaço virtual da internet utiliza um tempo global determinado pela velocidadedos fluxos de informação. Conforme aumenta a capacidade de transporte de dados e a velocidade de tráfego da rede, a relação espaço-tempo vai encurtando no “território” virtual. Os povos que não dominarem os novos conhecimentos e o meio técnico- científico-informacional estarão condenados “ao tempo lento dos pobres”, como Economia política da comunicação: digitalização E sociEdadE 12 dizia Milton Santos. De acordo com a economia clássica, os novos instrumentos também constituem bens de capital, insumos indispensáveis para que haja alimentação do ciclo produção-oferta-consumo-acumulação. A fonte principal de prosperidade da “livre iniciativa” continua sendo a extração de mais-valia do antigo trabalho manual ou das atuais formas de trabalho automático, seja material de produção material ou simbólica, acrescida da especulação financeira em tempo real e alcance mundial. Certamente, o capitalismo tradicional ou digital não sobreviveria sem a manutenção desses processos assimétricos de produção e acumulação. Enquanto os Estados, organizações oficiais e não governamentais discutem a melhor forma de gestão política, administrativa e econômica da internet, os registros, os fluxos de bens e riquezas e o próprio dinheiro perdem a materialidade de celulose e assumem o formato de arquivos e pacotes binários, que transitam mundialmente ao ritmo atômico da digitação em um teclado. A transição ocorre em sintonia com os interesses imediatos de um mercado global articulado por um pequeno grupo de nações hegemônicas. No entanto, a internet não é um refúgio idílico, isento da sedução do capital, nem é totalmente imune ao autoritarismo político, religioso, militar e policial. A rede pode absorver as contradições que os indivíduos, as culturas e sociedades, os sistemas políticos e econômicos trazem em seu interior. É por tais razões que a gestão e o uso público da internet mobilizam em muitos países as organizações e interesses sociais, governamentais e privados. A gestão do ciberespaço deverá alimentar um debate demorado para estabelecer uma legislação internacional que assegure o desenvolvimento, a manutenção e o uso coletivo das tecnologias e meios de informação mundiais. É preciso garantir a participação simétrica dos países na web, de acordo com suas necessidades in ternas. O grande desafio é promover a inclusão de todas as camadas sociais nas “facilidades” do ciberespaço. Este volume apresenta onze artigos originados nas exposições e debates gesta dos nos painéis do segundo encontro da seção brasileira da União Latina de Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura (ULEPICC-Brasil), realizado em Bauru (SP) pelo Laboratório de Estudos em Comunicação, Tecnologia e Educação Cidadã (LECOTEC) de 13 a 15 de agosto de 2008 na Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (UNESP). O percurso traçado pelos capítulos delineia o panorama das discussões acerca do tema-chave do evento, “Digitalização e sociedade”. No primeiro, Luiz Alfonso Albornoz, presidente da Ulepicc-Federação na gestão 2007-2011, aborda o impacto 13 da digitalização sobre as indústrias culturais, especialmente no setor musical. Os diversos elos da cadeia de distribuição de conteúdos passam por momentos de resistência e adaptação a transformações que parecem irreversíveis, nas quais os papéis e funções são revistos e novos modelos de negócio propostos. A reestruturação do capitalismo tomou a informação e tecnologias vinculadas a sua produção, organização e disseminação como um dos territórios privilégios para sua expansão. Em “A convergência digital e os desatinos do sistema mundo capitalista”, Ruy Sardinha Lopes estabelece relações entre a convergência midiática e os modos de regulação contemporâneos do sistema capitalista, discutindo até que ponto as novas tendências de regulação infraestruturais das Tecnologias de Comunicação e Informação (TIC) constituem privilegiados de expansão da acumulação capitalista, como a lógica rentista influi em sua gestão e a Economia Política pode contribuir para analisar o processo. A seguir, Vivianne Lindsay Cardoso e Juliano Maurício de Carvalho propõem uma reflexão sobre a valorização da televisão pública e a ampliação de suas potencialidades com a utilização da multiprogramação, de modo a fazer contraponto ao modelo de negócio arraigado e hegemônico das televisões comerciais brasileiras. Os autores defendem que a televisão pública pode se tornar um importante instrumento para a democratização e o despertar da consciência crítica, autônoma e individualizada do espectador, viabilizando sua participação direta no processo de comunicação midiática. O quarto capítulo, de Valério Brittos e Nádia Helena Schneider, discute a tensão televisão-educação e políticas públicas a ela relacionadas, apontando possibilidades, na televisão digital interativa, para sua contribuição no processo ensino-aprendizagem e construção de novos conhecimentos; apontam, no momento presente de revoluções tecnológicas, a intersecção entre instituição escolar e meios de comunicação de massa como espaço estratégico de ação e reflexão, com papel primordial no desenvolvimento e legitimação de valores e a formação de cidadãos conscientes. “A Economia Política do Coronelismo Eletrônico: categorização dos líderes políticos proprietários de radiodifusão em Minas Gerais”, de Luiz Felipe Ferreira Stevanim e Suzy dos Santos, parte de uma genealogia dos atores políticos ligados ao setor comunicacional no Brasil traçada com base nos deputados federais mineiros detentores de outorgas de radiodifusão para demonstrar uma continuidade e novas significações do coronelismo eletrônico, observando um controle dos veículos fundamentado no poder político, com o enfraquecimento da distinção entre interesses público e privado. Economia política da comunicação: digitalização E sociEdadE 14 Na sequência, “A reedição do difusionismo diante da brecha digital: o desafio das regiões na sociedade da informação”, de Francisco Javier Moreno Gálvez, resgata a historicidade das rupturas e continuidades ideológicas ocultas por trás do modelo denominado “sociedade da informação”, surgido como resposta à crise do capitalismo na década de 1970, e ao processo atual em que uma descentralização aparente convive com uma efetiva recentralização, apontando reflexões sobre o possível desenvolvimento das regiões periféricas nesse cenário, em especial aquelas que ocupam lugar subalterno na divisão internacional do trabalho. No sétimo capítulo, Leando Ramires Comassetto, ao considerar a aptidão histórica do rádio para trabalhar questões de proximidade, estabelecendo empatia entre emissora e audiência, promovendo valores e discutindo problemas da localidade em que atua, traça considerações sobre a importância do suporte frente ao curso globalizador, descrevendo um modelo de programação mais adequado às emissoras que pretendam sobreviver e manter relevante sua atuação local, chamando atenção para a necessidade de renovação da linguagem tendo em vista recursos proporcionados pelas TIC. O rádio brasileiro chega aos 90 anos em meio a um cenário de profundas transformações dos meios de comunicação de massa. Com essa questão em mente, Antonio Francisco Magnoni e Juliana Gobbi Betti refletem sobre a vagarosa e indefinida digitalização do suporte radiofônico, oriunda em parte de uma concepção ultrapassada, de caráter ainda getulista, sobre o modelo nacional de radiodifusão e, a partir dos conflitos entre rádio, TICs e a rede mundial de computadores, apontam possibilidades para sua efetiva modernização e incorporação na convergência de plataformas, assim como assimilação dos novos recursos na radiodifusão. A seguir, André Luís Lourenço e Juliano Maurício de Carvalho, em “Clivagem da democracia no planodigital da esfera pública”, propõem uma sistematização do conceito de arena ou microesfera pública, na qual se imbricam as noções de democracia e deliberação, para pensar contribuições, assim como limites, ofertados pelas TICs para estender, em caráter incremental, a participação política da população para o meio digital, notoriamente a internet, considerando a experiência do website Observatório de Botucatu, focado na discussão de questões políticas de ordem municipal. Em “Sistema Público de Comunicação: por uma mídia de todos”, Adilson Vaz Cabral Filho discute a implantação de um sistema de comunicação brasileiro que adotasse efetivamente o modelo público, o qual se entende como plural, polifônico, a partir do que se discute sobre o tópico na academia e organizações sociais, 15 apresentando a forma como o conceito é compreendido em ambos os meios e recapitulando os principais marcos regulatórios do setor da comunicação social. Finalmente, “Gestão Pública de Informação do Governo Federal”, de Angela Maria Grossi de Carvalho, traça considerações sobre a gestão da informação por parte do aparelho estatal, tendo em vista as ações públicas de transparência informacional e políticas de inclusão digital do governo federal, discutindo tanto o provimento de acesso quanto de serviços e efetivo conteúdo, a partir da noção de direito e da verificação de efetivas necessidades de informação da população brasileira. Boa leitura! Antonio Francisco Magnoni Juliano Maurício de Carvalho Mateus Yuri Passos Economia política da comunicação: digitalização E sociEdadE 16 Prefácio A publicação deste volume representa uma vitória importante da Economia Política da Comunicação brasileira. A União Latina de Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura (ULEPICC) nasceu com o século XXI, por obra de um pequeno grupo de pesquisadores, organizados em torno da rede de Economia Política das Tecnologias da Informação e da Comunicação (EPTIC) e da revista Eptic On Line, frutos do ativismo político-epistemológico dos grupos de Economia Política da Comunicação (EPC) da Associação Latino-americana de Investigadores da Comunicação (ALAIC) e da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (INTERCOM), ambos coincidentemente sob minha coordenação em 1999. A luta epistemológica no campo da Comunicação no Brasil impingira ao coletivo uma derrota inesperada com o fechamento, por decisão unilateral da diretoria da INTERCOM, do núcleo original de organização da EPC brasileira, que se reuniu pela última vez no ano 2000, em Manaus. Questionada no interior do campo da Comunicação em nível nacional, a legitimidade da EPC brasileira ficaria demonstrada ao longo dos anos 2000, culminando com o retorno do GT da INTERCOM, dez anos após o fechamento. Entre 2001 e 2002, três encontros, em Buenos Aires, Brasília e Sevilha, terminaram com a constituição da ULEPICC. Dois movimentos importantes seriam então realizados. Um de continuidade da realização dos encontros internacionais, cuja periodicidade passaria a ser bianual a partir de 2003. Aos três primeiros, seguiram-se Caracas, Salvador, México e Madrid. O segundo movimento foi o de constituição de alguns capítulos nacionais, tendo em vista a necessidade de organização legal da entidade como federação internacional. A ULEPICC-Brasil nasce desse propósito e, a partir de então, passaria a tomar uma série de iniciativas que a transformariam numa referência incontornável do pensamento crítico no campo da Comunicação no Brasil. A mesma legitimidade foi conquistada pela ULEPICC-Espanha, que desempenhou, aliás, um papel de primeiro plano na própria criação da Associação Espanhola de Investigadores da Comunicação (AE-IC). Nos dois casos, optou-se pela realização de encontros nacionais bianuais, nos anos pares, para não coincidir com os encontros da federação. Sob a presidência de Valério Brittos, dois eventos nacionais desse tipo foram realizados, um em Niterói, coordenado por Adilson Cabral, outro em Bauru, organizado por Juliano Mauricio de Carvalho e o grupo de pesquisadores do LECOTEC - Bauru. Depois viria o encontro de Aracaju, sob a presidência de Anita Simis e coordenado por Verlane Aragão Santos, e o do Rio de Janeiro, sob a presidência de Ruy Sardinha Lopes e coordenação de Marcelo Kirchinevsky, marcado para outubro de 2012. Este é o segundo livro publicado como decorrência desses eventos nacionais. O primeiro, fruto do encontro de Niterói, este do de Bauru. Estão de parabéns 17 os organizadores. Trata-se da nossa memória coletiva. Quem observar apenas o sumário desta obra notará claramente duas coisas importantes. Em primeiro lugar, constata-se que a EPC brasileira soube definir-se de forma aberta, procurando organizar um conjunto amplo de pesquisadores ligados ao pensamento crítico e de esquerda no campo da Comunicação, entre os quais se incluem muitos vinculados aos antigos grupos de EPC e de Políticas de Comunicação (que também havia sofrido solução de continuidade em 2000), mas também de outras comunidades, como a dos estudos de rádio, ou de comunicação popular e alternativa. Em segundo lugar, nota-se a preocupação em incidir no debate nacional sobre uma questão tão importante como é a da digitalização. É claro que outros eventos tratarão prioritariamente de outros temas, mas o fundamental é que, em cada um deles, esse grupo heterogêneo de pesquisadores, mas todos interessados em fazer avançar o pensamento crítico em Comunicação, se organiza para pensar os grandes temas do campo, numa perspectiva realista e socialmente engajada. A unidade do campo que se vai construindo é, portanto, política no sentido de que epistemologia é política, conforme a enfática definição de Carlos Pérez Soto, mas também no sentido de que o pesquisador, como trabalhador intelectual que é, tem uma responsabilidade política a cumprir, neste caso, com a democratização da comunicação. Pouca dúvida haverá de que a EPC brasileira, e o capítulo brasileiro da ULEPICC em particular, conquistou o seu espaço e a legitimidade que lhe fora questionada em passado não tão distante. Veja-se a sua participação crucial na construção da SOCICOM, em nível nacional, e da CONFIBERCOM, em nível internacional. Veja-se a importância que acabaram por adquirir no campo, vários dos seus fundadores, nacional e internacionalmente. Mas como tudo que é sólido se desmancha no ar, como a luta epistemológica não deixa de pertencer à luta de classes, não se pode descuidar do caráter duplamente político da nossa atividade acadêmica. De um lado, nossa responsabilidade histórica nos exige posicionamento claro e justo em relação aos grandes temas da agenda democrática que envolve a comunicação, em especial aqueles relacionados à construção de uma sociedade mais justa e igualitária. De outro, a posição que acabamos por conquistar no campo acadêmico exige um cuidado muito especial com a construção coletiva da unidade do paradigma da EPC, entendido, por certo, no sentido mais amplo e inclusivo acima referido, e de forma, portanto, flexível e interdisciplinar, mas com a devida vigilância epistemológica que nos afaste da vala comum do ecletismo pós-modernista. Nesse sentido, defenderei com todas as forças a necessidade incontornável de aprofundar o estudo da fonte geral, evidentemente, da crítica da economia política, americano. É preciso ter clareza inclusive, nessa perspectiva, das especificidades da EPC brasileira, em relação às visões europeias ou norte-americanas e isso só se consegue retomando o debate em torno da nossa própria formação. Se ao funcionalismo, que está na origem da chamada Ciência da Comunicação, cedo se contraporia a perspectiva crítica da Escola de Frankfurt, que influenciaria, Economia política da comunicação: digitalização E sociEdadE18 ao lado do estruturalismo althusseriano e das chamadas teorias da dependência, as primeiras contribuições latino-americanas ao campo, inadaptadas, pela própria especificidade do subcontinente, ao modelo originário da sociologia americana, é nossa obrigação lembrar que o pensamento marxista, desde o início, esteve presente no debate. Assim, à contribuição fundadora de Baran e Sweezy, seguir- se-ão, ainda na América do Norte, as análises de Dallas Smythe, de um lado, e de Herbert Schiller, de outro, que formarão, ao lado de colegas europeus, como Kaarle Nordenstreng e Tapio Varis, autores da antológica pesquisa sobre os fluxos internacionais de informação, o núcleo da tradição principal da EPC de língua inglesa, organizada no interior da International Association for Media and Communication Research (IAMCR). Em diálogo com a tradição frankfurtiana, aparecerão também, no rastro dos trabalhos de Enzensberger e de Raymond Williams, as atuais escolas inglesa e francesa, de grande impacto no campo internacional, surgidas ambas ao final dos anos 1970 e início dos 1980, ao mesmo tempo em que várias contribuições isoladas apareciam também na América Latina, em diálogo, estas, com as teorias da dependência cultural, que tanta importância tiveram no diálogo global dos anos 1960 e 1970, em favor de uma Nova Ordem Internacional da Informação e da Comunicação (NOMIC) e na Comissão Mac Bride, da UNESCO, aliados na linha de frente com os intelectuais do grupo da IAMCR citados, através inclusive da Asociación Latino Americana de Investigadores de la Comunicación (ALAIC), que hoje tenho a honra de presidir. A EPC se apresenta, em todos os três casos citados (Inglaterra, França e América Latina), como uma espécie de “recuo crítico” em relação às respectivas tradições de esquerda, propondo entender a Comunicação a partir de uma leitura mais detida da obra de Marx. No caso latino-americano, tratava-se essencialmente de uma crítica às limitações das teorias da dependência e do imperialismo cultural, em parte coincidente com as críticas de autores do campo dos Estudos Culturais. Neste último caso, entretanto, embora, especialmente no início, a perspectiva marxista estivesse presente, predominará um enfoque basicamente sociológico e especialmente antropológico, que frequentemente renegará a EPC, acabando por adotar uma ideologia pós-modernista incompatível com o pensamento crítico. Os primeiros trabalhos que se poderia classificar de EPC, nesse sentido de recuo crítico, serão os de Hector Schmucler, parceiro de Armand Mattelart, Eriberto Muraro, Diego Portales, Patricia Arriaga, Javier Esteinou Madrid e o meu próprio, que datam todos do final dos anos 1970 e início dos 1980. Os primeiros intentos efetivos de organização desse grupo se darão bem mais tarde, e já em diálogo com o resto da EPC e do pensamento crítico comunicacional, com a criação dos referidos GT de Economia Política da ALAIC e da INTERCOM, da rede EPTIC e da revista Eptic On Line. Não tenho por que renegar o orgulho que tenho de haver convocado, mas não posso deixar de citar uns poucos entre inúmeros nomes que se envolveram nessa construção nos anos 1990: Guillermo Mastrini, Francisco Sierra Caballero, 19 Délia Crovi, Luis Albornoz, Valério Brittos, Alain Herscovici, Ancizar Narvaez, Daniel Hernandez, Murilo Ramos, Othon Jambeiro. E ainda deveria falar de Pasquali, Faraone, Marques de Melo, representantes da geração anterior que nos apoiaram sempre que convocados. Também fora da América Latina encontramos importantes apoios: os Mattelart, Janet Wasko, Gaetan Tremblay. Não é possível citar todos. A ULEPICC é fruto desse esforço organizativo para o qual vêm contribuindo outros inúmeros jovens e novos pesquisadores em diferentes países, entre os quais os autores e organizadores deste belo livro, a quem agradeço a oportunidade de registrar esta mensagem num espaço tão nobre, mais uma peça a ser preservada para a história da organização do campo crítico da Comunicação no Brasil. César Bolaño, junho de 2012. Economia política da comunicação: digitalização E sociEdadE 20 A integral digitalização das indústrias culturais: tensões e reestruturações em andamento1 LUIS A. ALBORNOZ Minha intenção, nas próximas páginas, é abordar as relações entre os suportes e redes digitais e as indústrias culturais, por entender que a integral digitalização é um dos principais vetores de transformação das indústrias culturais. Concretamente, vou iniciar por uma tentativa de descrever as mudanças que atravessam o setor da distribuição, comparando aquela feita tradicionalmente com produtos físicos com a realizada por meio das redes digitais. Posteriormente, vou centrar minha atenção na indústria musical para comentar algumas tensões e reestruturações que estão se dando neste setor, um dos mais convulsionados pela inovação tecnológica. Antes de tudo, advirto, devemos ser precavidos, pois estamos diante de um cenário em construção, tanto em nível tecnológico, como, sobretudo, em nível econômico e social. Consequentemente, qualquer conclusão a que possamos chegar deve ser matizada. Uma pesquisa coletiva desenvolvida na Espanha durante o período 2000-2002 sobre a convergência entre as indústrias culturais e redes digitais deu lugar à publicação do livro Hacia un nuevo sistema mundial de la comunicación. Las industrias culturales en la era digital (Bustamante, 2003). Naquela oportunidade, analisamos desde setores tradicionais como o da imprensa diária ou o televisivo, até um novo setor como o dos videogames, porta de entrada dos conteúdos simbólicos digitais das novas gerações. Nos propusemos então a identificar as transformações fundamentais em curso; descobrir quais eram as problemáticas transversais crescentes e os desafios essenciais levantados; e, finalmente, caracterizar o papel dos diferentes agentes, tanto públicos como privados. Constatamos e argumentamos naquele trabalho, que “as mudanças digitais não supõem uma revolução, uma ruptura com a história anterior, mas uma linha de continuidade necessariamente contextualizada e determinada pelas grandes transformações experimentadas pela cultura industrializada, especialmente nos anos 1980 e 90” (Bustamante, 2003: 333). A pesquisa chegou à conclusão de que “o estudo dos diferentes produtos e serviços culturais e comunicativos não avaliza em nenhum 1 Texto baseado na conferência inaugural do II Congresso da União Latina de Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura do capitulo Brasil (ULEPICC-Brasil), 13 de agosto de 2008, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da UNESP, Bauru, São Paulo. 2121 A integrAl digitAlizAção dAs indústriAs culturAis: tensões e reestruturAções em AndAmento caso uma visão substitutiva dos antigos suportes e redes pelos novos até onde o horizonte experimental possa indicar, mas uma passagem de longa coexistência, com amplos reajustes que mal acaba de começar” (Bustamante, 2003: 334). Apesar de essas conclusões renegarem o uso da palavra “revolução” para definir a atual etapa das indústrias culturais, atestamos, sim, importantes mudanças, em diferentes níveis, que estão transformando a paisagem na qual estas se desenvolvem. DISTRIBUIÇÃO: UM CENÁRIO COMPLEXO Uma das transformações fundamentais se dá na fase de distribuição de bens e serviços produzidos pelo conjunto das indústrias culturais. Análises provenientes tanto do setor acadêmico como profissional sobre o modo de funcionamento das indústrias culturais ressaltam o papel desempenhado nessa fase. Geralmente concentrada em poucos agentes, a distribuição vem ganhando protagonismo, ao ponto de ser considerada o “gargalo” das indústrias culturais. Esta metáfora alude ao fato de que são criados e produzidos mais conteúdos do que aqueles que efetivamente chegam a ser distribuídos. Alémdisso, o poder do distribuidor é determinante para as condições de promoção e emissão/exibição de um determinado produto. Para os criadores de produtos culturais, o fato de dar à luz às suas criações não é suficiente. Eles precisam contar com canais de distribuição/ exibição adequados para que suas obras possam ser conhecidas e, potencialmente, consumidas. Portanto, a distribuição se converteu, ao longo do século passado, em uma fase estratégica para que as obras simbólicas possam chegar ao encontro de seus públicos. Neste sentido, a análise dos monopólios/oligopólios e dos processos de concentração que se situam no nível de distribuição tem sido uma das tradicionais preocupações da economia política da comunicação. Se observarmos a paisagem cultural e comunicativa atual, veremos que nos encontramos frente a um cenário complexo no qual coexistem as clássicas redes de distribuição física junto às novas redes de distribuição digitais (me refiro à internet, evidentemente, mas também às redes digitais de rádio e televisão e de telecomunicações de celulares, complementadas por uma série de dispositivos de armazenamento, produção e reprodução de conteúdos como telefones celulares, agendas eletrônicas pessoais, iPod, pen-drives, mp3 e mp4, etc.). É verdade que atualmente a maioria dos conteúdos é distribuída por meios físicos, mas temos que admitir que a distribuição e a oferta de serviços por meio das novas redes digitais estão em permanente crescimento. Elas oferecem conteúdos Economia política da comunicação: digitalização E sociEdadE 22 digitais de diferentes tipos (filmes, séries de televisão, livros, músicas, fotografias, jornais, etc.) e oferecem a possibilidade de potencializar a oferta das produções existentes que se encontram plasmadas em suportes físicos. Essa disponibilização heterogênea está sujeita a diversas condições de acesso: desde a gratuidade até distintas modalidades de pagamento. No entanto, alguns estudos realizados em países como a Espanha estão sinalizando a fragilidade da internet como um canal comercial para as vendas online, tanto de conteúdos digitais como de conteúdos em suportes físicos. Esta fragilidade deve ser estudada com certo cuidado, pois são numerosas as variáveis que entram em jogo. À desconfiança que os métodos de pagamento via internet despertam em muitos consumidores, se somam, por exemplo, a existência de uma grande diversidade de sites que oferecem conteúdos livremente ou o estendido emprego de redes p2p (peer-to-peer) que permitem descargas gratuitas de todo tipo de conteúdos. DISTRIBUIÇÃO FÍSICA VS. DISTRIBUIÇÃO DIGITAL A seguir, apresentarei uma série de variáveis a considerar que podem nos ajudar a encontrar semelhanças e diferenças entre a distribuição física e a digital da produção cultural e informativa. CUSTOS IMPLICADOS Ao computar os custos relacionados com a distribuição tradicional, observamos que, em primeiro plano, existem altos custos na fase de produção derivados da inscrição das distintas criações nos próprios suportes materiais, e de seu posterior armazenamento. Num segundo plano, encontram-se os custos relacionados com a fase de distribuição desses produtos físicos – por meio do transporte rodoviário, por barco e/ou avião – até os diferentes pontos de acesso público (redes de venda, aluguel e empréstimo). Em último lugar, há os custos relacionados com o armazenamento nos diferentes pontos de acesso ao público. O fato de os produtos inseridos em um suporte físico ocuparem espaço e terem um peso específico fez com que os principais agentes das indústrias culturais passassem a desenvolver poderosos aparatos logísticos de grande alcance e rápida operacionalidade. Pensemos, por exemplo, no caso da editora de um jornal que a cada dia deve movimentar grandes volumes de papel por meio de um determinado espaço geográfico, ou na estreia cinematográfica de um blockbuster 2323 A integrAl digitAlizAção dAs indústriAs culturAis: tensões e reestruturAções em AndAmento hollywoodiano com cópias distribuídas simultaneamente em nível internacional. Evidentemente, frente a este sistema de distribuição que apresenta custos que poderíamos qualificar como “altos”, a distribuição por meio de redes digitais, ao prescindir de suportes físicos, oferecem custos extremadamente baixos. Nesse sentido, “uma consequência teórica do fenômeno da distribuição online é a assimilação do conjunto das indústrias culturais à natureza econômica assinalada já há alguns anos na cultura do fluxo rádio-televisivo: custos fixos elevados, mas os custos por consumidor são marginais ou nulos (desviando os custos da rede)” (Bustamante, 2003: 336). Assim, partindo do ponto do ponto de vista dos custos envolvidos em um e outro sistema de distribuição, torna-se evidente uma vantagem significativa a favor da distribuição digital. CARACTERÍSTICAS DO SUPORTE No mundo da distribuição física os conteúdos se encontram materializados em um suporte físico determinado: papel, filme de 35 milímetros, VHS, DVD, etc. Estes suportes são afetados em diferentes graus pela própria passagem do tempo, pelas condições de armazenamento às quais estão submetidos e pelo tipo de uso e cuidados que se lhes dá. Neste caso, a possibilidade de usufruto de um mesmo conteúdo por parte do consumidor está ligada à “durabilidade” ou à vida útil do respectivo suporte físico. Assim, é possível distinguir entre aqueles suportes “mais nobres”, ou seja, que oferecem uma menor alteração com o passar do tempo e seu consumo (pensemos, por exemplo, nos papiros egípcios com mais de 4.000 anos), e aqueles suportes “menos nobres”, cujo uso intensivo pode chegar à sua própria destruição, impossibilitando, consequentemente, o consumo de conteúdos a ele ligados (pensemos, por exemplo, nas quase extintas fitas cassete). No caso da distribuição online, os conteúdos informativos e culturais prescindem de suportes físicos. Alojada em dispositivos e redes digitais, a produção desmaterializada (arquivos cujo peso se mede em bits, acrônimo plural das palavras inglesas binary digit) apresenta uma vida útil que tende ao infinito e que não se altera a partir de uma reprodução e consumo intensivos. No entanto, encontramos vozes de alguns criadores – como a do fotógrafo húngaro Balazs Gardi, ganhador da edição 2008 do prêmio do World Press Photo (Perea, 11 jul. 2008), na categoria notícias – que alertam sobre a fragilidade do armazenamento de conteúdos em discos rígidos, pendrives ou cartões de memória, e assinalam as possibilidades de perda de conteúdos devido a falhas técnicas. As novas possibilidades tecnológicas estão propiciando a digitalização de acervos Economia política da comunicação: digitalização E sociEdadE 24 históricos que se encontram em diversos suportes físicos (livros, jornais, filmes, gravações sonoras, etc.). Dessa forma, os distintos agentes implicados perseguem a preservação e difusão do patrimônio informativo e cultural. Enquanto alguns destes estão interessados em salvaguardar o acervo das diversas expressões culturais para as próximas gerações, outros veem nas redes e suportes digitais um canal para a renovada exploração comercial de conteúdos. Neste aspecto se destaca o trabalho da UNESCO por meio de seu “Programa memória do mundo” que inclui, entre outros recursos, a digitalização das gravações originais de Carlos Gardel (1913-1935); a “Coleção Teresa Maria Cristina”, de fotografias do século XIX pertencentes ao imperador Dom Pedro II (doadas à Biblioteca Nacional do Brasil); ou o “Arquivo do fonograma de Berlim”, composto por documentos sonoros (em cilindros de Edison) de música tradicional do mundo de 1893 a 1952. No caso das empresas comerciais, podemos citar o polêmico projeto da companhia Google Inc. que, em dezembro de 2004, anunciou um acordo com cinco grandes bibliotecasanglo-saxãs (Harvard, Stanford, Michigan, Oxford e New York Public Library) para digitalizar a parte mais valiosa de seus respectivos acervos. AMPLITUDE DO MERCADO No caso da distribuição física, esta se encontra limitada a uma região geográfica determinada, fato que se relaciona diretamente com a particular economia das indústrias culturais. A relação custo-benefício faz com que a distribuição física de conteúdos e a implantação de uma rede de pontos de acesso público sejam economicamente inconvenientes para além de uma determinada área geográfica. Este fato deu lugar a uma particular geografia cultural-informativa: por um lado, grandes centros urbanos que aglutinam milhões de potenciais consumidores em reduzidas áreas geográficas e que concentram uma rica oferta de bens e serviços informativos e culturais, logo, com um maior grau de diversidade de expressões; por outro, localidades de tamanho médio e pequeno e zonas rurais que têm, em diferentes medidas, acesso a uma oferta mais restrita. Em decorrência dessa patente assimetria, verificada em diferentes países e em diferentes períodos históricos, as administrações públicas passaram a fazer intervenções com a finalidade de reduzir a brecha existente entre as distintas áreas. Tendo em vista este panorama, as redes digitais, em geral, e a internet, em particular, amplificam a oferta de conteúdos a uma escala internacional. Dessa forma, é possível ler as notícias da Folha de São Paulo ou escutar as músicas da 2525 A integrAl digitAlizAção dAs indústriAs culturAis: tensões e reestruturAções em AndAmento Rádio UOL de qualquer lugar do planeta onde exista conexão à internet. No entanto, devemos ser cautelosos. Potencialmente em condições de viabilizar uma oferta de conteúdos para todos, para além do lugar geográfico onde uma pessoa se encontre, as atuais condições e dados relativos à expansão da internet demonstram um reforço da desigual situação analógica, tanto ao nível das regiões e países, como ao das grandes metrópoles e demais localidades. DISPONIBILIDADE DE CONTEÚDOS A forma tradicional de distribuição física tem se concentrado em tornar disponíveis aqueles produtos que têm um maior consumo efetivo e potencial (hits, best-sellers, blockbusters, etc.), relegando a espaços marginais os que não apresentam um consumo massivo por considerá-los abaixo do mínimo economicamente viável. Por sua vez, a concentração em vendas em escala massiva que apontam para um fluxo de consumo rápido e contínuo, somada aos custos de armazenamento nos pontos de venda ao público, dá lugar a uma alta rotatividade de conteúdos. A distribuição e os pontos de acesso público são, em geral, segmentados, apresentam uma quantidade determinada de títulos, pois não existe possibilidade financeira nem física de oferecer todas as criações que são produzidas periodicamente. Por exemplo, no setor editorial “em espanhol são produzidos anualmente cem mil títulos (…) nenhuma livraria pode acumular essa quantidade de textos” (Palapa Quijas, 30 jan. 2006). Já no caso da distribuição online, os baixos custos de empacotamento favorecem uma maior disponibilidade de conteúdos e com larga duração. Ainda assim, esta disponibilidade de conteúdos reforça o processo de fragmentação do consumo informativo e cultural: trata-se de múltiplos mercados minoritários ou de nichos em escala internacional. No entanto, não podemos esquecer a existência de fatores linguísticos e culturais que podem limitar o consumo efetivo. Nos últimos anos o setor empresarial e os meios de comunicação popularizaram a expressão the long tail - a cauda longa, em português - (Anderson, 2006) para referir-se à demanda de produtos culturais nas redes digitais. Esta expressão, criada por Chris Anderson, editor-chefe da revista Wired, é uma referência à forma gráfica da curva de distribuição da demanda de conteúdos culturais no contexto digital, tendo em consideração duas variáveis: consumo e conteúdo. O resultado gráfico é uma prolongação inferior e muito longa em relação à cabeça: the long tail. Nesse sentido, o setor empresarial captou a mensagem de que a soma do Economia política da comunicação: digitalização E sociEdadE 26 conjunto de produtos minoritários pode formar um mercado significativo e, por conseguinte, comercialmente atrativo. Assim, as redes digitais estão, ao mesmo tempo e por meio de distintas formas, disponibilizando o acesso tanto aos conteúdos de consumo massivo como aos de conteúdo de nicho. Isto se traduz em agentes que apresentam catálogos online, associados a potentes motores de busca, formados por milhares de referências. Por sua vez, conteúdos e redes digitais também abrem as portas ao consumo sob encomenda (on demand), uma possibilidade até o momento pouco explorada. Assim, por exemplo, “uma vantagem óbvia é a de recuperar livros esgotados e fora de catálogo, que não voltarão a ser publicados. A Amazon adquiriu há algum tempo uma empresa gráfica, com a escala ajustada para publicar cópias únicas, sob pedido, de livros que, de outra forma, estariam condenados” (Bullón, 2007). PONTOS DE ACESSO PÚBLICO No caso da distribuição física, a oferta de conteúdos informativos e culturais está disseminada em diferentes pontos de acesso público: grandes superfícies, pequenas lojas generalistas e especializadas, quiosques, bibliotecas, midiatecas, locadoras de filmes, etc. É nesses espaços onde se estabelecem relações de contato direto, cara a cara, entre quem oferta produtos e entre os potenciais consumidores. É nessa relação onde a assessoria que o consumidor recebe pode chegar a ser chave para aplacar a incerteza que existe na escolha de qualquer produto cultural. No caso dos locais de venda de produtos, esse encontro é um dos pontos mais sensíveis e chave para orientar a compra. O estudo do espaço e das relações aí incide na elaboração e planejamento de estratégias empresariais. As companhias mais importantes do setor distribuição-venda investem na formação e treinamento de seus trabalhadores (força de vendas), e impulsionam o desenvolvimento do marketing no ponto de venda (merchandising), com a gestão da variedade de produtos. A distribuidora multinacional francesa FNAC2 (que em 1999 abriu em São Paulo sua primeira megastore fora da Europa) é um bom exemplo do que dissemos acima: oferece treinamento aos seus vendedores (que não recebem comissão 2 O grupo FNAC (Fédération Nationale d’Achat des Cadres), criado em 1954, faz parte do Grupo PPR (Pinault-Printemps-Redoute), também formado pelas multinacionais Conforama, Redcats, CFAO e pelo Grupo Gucci. Atualmente é o maior distribuidor europeu de produtos técnicos e culturais com mais de uma centena de lojas em todo o mundo. Presente em oito países europeus, e ainda no Brasil e em Taiwan. Em 2005, a FNAC faturou 4.400 milhões de euros. 2727 A integrAl digitAlizAção dAs indústriAs culturAis: tensões e reestruturAções em AndAmento pela venda), serviço pós-venda para produtos eletrônicos e cartões de fidelidade que permitem financiar compras e obter descontos, convites para shows e pré- estreias de cinema e de teatro; e também fazer reservas de entradas por telefone. No caso dos pontos de acesso virtuais, existe uma grande variedade de websites, comerciais e não comerciais, e programas que oferecem conteúdos de todo tipo. Desde portais agregadores de conteúdos (cujos direitos de exploração comercial estão em mãos de outros agentes) até sites alimentados de forma colaborativa por usuários. Nesse sentido, a relação com o consumidor à margem das tradicionais distribuidoras permite, ao menos potencialmente, “um renascer do papel de novos agentes e de pequenos e médios atores econômicos, criadores incluídos” (Bustamante, 2003: 337). De todas as formas, na paisagem digital o contato está mediado pela tecnologia. Nessesentido, são dois os problemas principais que qualquer agente enfrenta na internet. Em primeiro lugar, devem atrair e facilitar o contato de potenciais consumidores com diferentes conhecimentos de informática. Em segundo, devem apresentar de forma atrativa um catálogo amplo de produtos sem saturar seus visitantes e potenciais consumidores. Nos níveis internacional (iTunes, de Apple; o Amazon) e também nacional, é possível identificar uns poucos operadores consolidados que abarcam a maior quantidade de consultas e vendas na internet. Produtores e empacotadores de conteúdos são protagonistas de uma intensa concorrência, tanto no terreno analógico, como no digital. Conseguir entrar no círculo virtuoso do esquema notoriedade-prestígio-confiança-vendas é o objetivo de todos eles. PAPEL DO CONSUMIDOR Do ponto de vista do consumidor de produtos informativos e/ou culturais, no terreno analógico é preciso investir/gastar uma determinada quantidade de tempo e energia vital, até que ele adquira o produto de seu interesse. Tempo e energia que podem ser medidos no deslocamento físico aos pontos de acesso público ou no tempo empregado na escolha e busca de um determinado conteúdo. Uma prática dos consumidores habituais é o desenvolvimento de rotinas de busca. Frequentar lugares como livrarias, bancas ou lojas de discos, somado à consulta de determinadas publicações, permite aos consumidores estar a par das novidades. Do contrário, a oferta e distribuição de conteúdos por meio das redes digitais implicam para os consumidores uma economia de tempo e energia vitais. No Economia política da comunicação: digitalização E sociEdadE 28 entanto, uma oferta ampla “a um clique de distância” – como costumamos escutar – estimula comportamentos extremamente voláteis, que constitui um problema para as empresas interessadas. Em contraposição, devemos assinalar a desvantagem para amplos setores populacionais que carecem de falta de manejo das ferramentas de gestão adequadas. A busca na internet ou os downloads de programas informáticos que permitem ler, escutar ou ver os conteúdos, são tarefas que não estão ao alcance de amplos setores da população. Nesse sentido, o setor informático – com uma lógica de inclusão comercial – trabalha na elaboração de programas com interfaces amigáveis que, pela sua simplicidade tornam-se de fácil uso. Por sua vez, o setor público – às vezes de maneira aleatória – programa planos de alfabetização digital destinados aos diferentes coletivos sociais. FORMAS DE CONSUMO Por fim, cabe destacar que as indústrias culturais trabalham desde sempre na estandardização de formatos da produção simbólica com a finalidade de facilitar sua comercialização massiva. De forma tal que, tradicionalmente, o consumo de conteúdos se dá por pacotes: um filme, uma série de televisão dividida em capítulos sequenciais, um jornal com suas editorias fixas, uma gravação fonográfica com determinadas músicas, etc. Por sua vez, o consumo por meio das redes digitais apresenta uma flexibilidade muito maior. Assim, o consumidor pode optar por um consumo enquadrado nos cânones tradicionais ou optar pelo consumo de formatos variáveis (uma cena, a aparição de um ator em diferentes filmes, uma música, etc.). Ainda assim, o alto grau de maleabilidade dos conteúdos digitais possibilita sua modificação, mescla e cópia. Por outra parte, a compressão digital, unida às redes e suportes digitais, aumenta consideravelmente a portabilidade e ubiquidade de conteúdos. Todo esse conjunto de mudanças está na base da ameaça que sofrem os tradicionais distribuidores que operam no marco analógico. O SETOR MUSICAL: LABORATÓRIO DE DEBATES Depois de arrolar as principais semelhanças e diferenças existentes em nível teórico entre a distribuição física de produtos culturais e informativos e a digital, 2929 A integrAl digitAlizAção dAs indústriAs culturAis: tensões e reestruturAções em AndAmento gostaria de me referir às mudanças que atingem o setor musical. No interior dos diferentes efeitos das redes digitais, segundo os diversos setores culturais ou comunicativos, a indústria fonográfica revela um “caráter pioneiro nas batalhas entre agentes culturais e de outros setores (informática, telecomunicações) e paralelamente de novos modelos de negócio”. Ainda assim, “o duplo problema dos direitos autorais e os hábitos dos usuários se evidenciam aí de forma crua, adiantando a pugna geral futura de interesses particulares e interesses públicos” (Bustamante, 2003: 14). Chegado a este ponto, devemos fazer uma ressalva importante. As apreciações gerais que apresentarei a seguir versarão sobre o setor musical denominado “música popular” que concentra a maior parte dos recursos, é a mais consumida e está sendo afetada com mais força pelos suportes e redes digitais. Para dar dois exemplos, distinta é a situação de nichos de mercados muito definidos como podem ser os da “música erudita”, pouco marcada pelas mudanças atuais, ou a “música eletrônica”, cuja história, sim, está intimamente ligada às novas tecnologias3. O tradicional mercado musical se assenta sobre a base de dois pilares que geram os mais destacados ingressos econômicos desta indústria: a comercialização massiva de obras gravadas em diferentes suportes físicos (discos, cassetes, CD), reproduzíveis em distintos equipamentos, e os direitos econômicos que incidem sobre o uso público dos fonogramas. O mercado de obras gravadas em suporte físico é um oligopólio no qual a distribuição é controlada por grandes conglomerados multinacionais: Universal Music Group, Sony / BMG Entertainment, EMI Group e Warner Music Group. Estes quatro grupos fonográficos controlam mais de 70 por cento do mercado de suportes físicos da música e possuem catálogos formados por centos de selos próprios e associados. Por sua vez, os direitos econômicos que incidem sobre o uso público dos fonogramas estão em mãos de sociedades privadas de âmbito nacional. Trata-se, geralmente, de organizações sem fins lucrativos que gerenciam o pagamento e a distribuição dos direitos autorais de compositores e intérpretes, e que também 3 Estas diferenças também se verificam em outras indústrias culturais; por exemplo, no interior do setor editorial, até o momento, o impacto causado pela internet no subsetor das publicações científicas não tem sido o mesmo que no das novelas. Enquanto as publicações acadêmicas têm encontrado na internet novas dinâmicas de trabalho e uma oportunidade de maior impacto na comunidade científica internacional, em que muitos editores até cogitam a conveniência de abandonar a edição em suporte papel e investir esses recursos em outros aspectos; os cimentos da distribuição tradicional e as estratégias mais correntes (campanhas promocionais de best sellers, listas de mais vendidos ou prêmios literários) ligados aos romances, não se vêm alterados. Economia política da comunicação: digitalização E sociEdadE 30 cuidam dos interesses dos editores musicais. No entanto, o modelo comercial e jurídico de propriedade intelectual, forjado durante o século passado está sendo atualmente alterado principalmente por três fatores: 1) o aumento da distribuição online por meio de redes (telecomunicações, internet) e programas informáticos (p2p) que se servem destas; 2) as mudanças nas tecnologias, entre as quais cabe assinalar as redes digitais com uma maior banda larga e; 3) a melhora dos dispositivos terminais móveis: telefones celulares e dispositivos portáteis digitais vários (mp3, mp4, iPod, etc.). RESISTÊNCIA ÀS MUDANÇAS Diante das mudanças pelas quais o setor atravessa, as grandes companhias fonográficas e as sociedades gestoras de direitos autorais se apresentam como os principais agentes conservadores, que se colocam contra algumas das mudanças em curso. Estes atorespretendem uma translação automática das relações e das condições que sustentaram ao longo do século XX o desenvolvimento em escala massiva da indústria fonográfica. A prova mais palpável destas mudanças é o fato de que “a música está em todos os lados” enquanto as vendas de fonogramas gravados em suportes materiais caem. Na Europa ocidental, caiu de 14,03 bilhões de dólares de ingressos em 2001, para 11,53 bilhões em 2005, uma queda de mais de 2,5 bilhões de dólares. As causas desta queda são atribuídas tanto às vendas de cópias digitais de música fora do mercado legal como aos intercâmbios e downloads gratuitos de fonogramas. Portanto, o combate contra a compra-venda de cópias “piratas” e os downloads gratuitos por meio da Internet se apresenta como uma prioridade para aqueles agentes com uma posição dominante no mercado fonográfico. A postura sustentada pelo setor coorporativo e por governos é que “a generalização da gratuidade ilegal tem um custo coletivo para as indústrias culturais, para os criadores e para a nação” (Oliviennes, 2008: 24). Em consequência, os principais atores da indústria musical vêm investindo valiosos recursos materiais e humanos, e articulando esforços em escala internacional (por exemplo, temos a celebração do Fórum Ibero-americano da Propriedade Intelectual, FIPI, auspiciados pela Secretaria Geral Ibero-americana, SEGIB, no qual participam jornalistas, juristas, legisladores e acadêmicos experts em propriedade intelectual de países ibero-americanos) na luta contra a “pirataria”. São quatro as frentes de ação identificáveis onde se desenvolvem as estratégias de luta contra a denominada “pirataria”: a) a educativa, b) a legislativa, c) a judicial 3131 A integrAl digitAlizAção dAs indústriAs culturAis: tensões e reestruturAções em AndAmento e policial, e d) a tecnológica. No plano educativo pretende-se fomentar entre os usuários o “uso responsável da Internet” e conseguir a “colaboração” dos provedores de serviços digitais. Nessa direção foram criadas campanhas de sensibilização social sobre os efeitos perniciosos da “pirataria digital”, campanhas que utilizam múltiplos suportes publicitários (televisão, imprensa diária e publicações especializadas, vídeo, cinema, rádio, outdoor, cartazes, etc.). Muitas destas campanhas criminalizam a estendidos usos sociais, como o download de fonogramas ou de outros conteúdos por meio da internet. Atualmente, com os dados do crescimento dos downloads gratuitos, algumas vozes interessadas nessa questão se perguntam se este tipo de campanha agressiva não teve o efeito contrário ao desejado. Na ordem legislativa, o objetivo das grandes companhias fonográficas e das sociedades gerenciadoras de direitos é o de exercer influência na promulgação de leis “adaptadas às novas tecnologias”. Isto se traduz, por exemplo, na tributação dos suportes e dispositivos, mais conhecido como “cânon digital”. A carga impositiva foi-se estendendo dos CDs virgens aos reprodutores mp3 e aos pen drives, entre outros dispositivos. Os beneficiários deste imposto são os autores e as sociedades de gestão de direitos, enquanto um amplo conjunto de fabricantes de equipamentos e de usuários de equipamentos de informática se manifesta contra. No entanto, a imposição de um “cânon digital”, uma tributação que é motivo de controvérsia, já que não existe em todos os países nas regiões que desejam ajustar as suas legislações nacionais. É o caso da União Europeia, onde não existe uma política comum a respeito. No nível judicial-policial, busca-se um maior protagonismo do aparato repressivo do Estado, tanto por meio de uma maior rapidez nas ações judiciais como de um aumento do corpo policial envolvido na luta contra a “pirataria”. As demonstrações públicas de destruição de cópias não autorizadas de CDs e DVDs se converteram em cartões postais do início deste século. A estes singulares encontros organizados pelos corpos policiais, não faltam jornalistas de distintos meios e membros das diretorias de sociedades gestoras de direitos autorais e industriais. Finalmente, no plano tecnológico se defende a necessidade de empregar as tecnologias vigentes com o fim de estabelecer um “mercado limpo e livre de concorrência”. Isto se traduz no desenvolvimento, por parte de provedores de conteúdos offline e online de dispositivos tecnológicos, conhecidos como sistemas de gestão de direitos digitais ou DRM (siglas de Digital Right Managment) cuja finalidade é impedir a cópia de conteúdos musicais e/ou a utilização de um mesmo conteúdo em diversos dispositivos. No entanto, na prática, os sistemas de DRM foram derrotados quando utilizados por muitos consumidores. Economia política da comunicação: digitalização E sociEdadE 32 Como é possível perceber, as ações que se desdobram nesses quatro diferentes planos inter-relacionados não diferenciam aquelas práticas com fins lucrativos e aquelas que não perseguem benefícios econômicos. Portanto, se criminalizam práticas sociais de distribuição e consumo musical que se expandem em escala internacional, à medida que a internet aumenta seu grau de penetração. Refiro- me, por exemplo, ao intercâmbio de conteúdos por meio das redes p2p. Para termos uma ideia da magnitude das referidas práticas, no setor musical só cinco por cento dos 20 mil milhões de arquivos musicais que circulam anualmente são vendidos (Attali, Oliviennes, 2008: 4). ADAPTAÇÃO AOS CÂMBIOS É perceptível que a redução do mercado tradicional vem acompanhada de uma forte ascensão da importância das novas tecnologias. Na renovada paisagem tecno-cultural encontramos novos agentes e práticas sociais que se beneficiam das mudanças em marcha. Entre os defensores do novo cenário da música digital encontramos tanto agentes tradicionalmente alheios ao setor (como empacotadores de conteúdos ou empresas de telecomunicações) como criadores e intérpretes não inseridos no mercado. Por sua vez, são também defensores das transformações que está sofrendo o mercado musical amplos setores dos públicos que experimentam a “sensação” de ter ao seu alcance uma oferta de conteúdos ampla, diversa e gratuita (ou a um preço baixo). Nesse caso, sublinho a palavra “sensação”, pois não podemos esquecer que parte substancial dos custos associados ao funcionamento das redes e outros dispositivos digitais recai sobre os usuários: custos de conexão, equipamento de informática, software adequado e atualização do mesmo, proteção antivírus, etc. No caso dos criadores ou intérpretes musicais fora do mercado tradicional, ou seja, que não passaram pelas mãos de uma discográfica nem tenham pisado um estúdio de gravação “profissional”, a difusão de suas obras se encontra vinculada a websites como MySpace ou YouTube, para citar dois dos mais conhecidos e utilizados. Em consequência, a difusão dessas criações não se vê limitada pelas restrições e custos próprios da distribuição física de suportes e tem um alcance internacional. Se no modelo tradicional era necessário primeiro ser um “campeão nacional” para depois tentar ultrapassar as fronteiras, na era das redes digitais, as coisas não funcionam assim. Na Europa ocorre um fenômeno particular: a internet e as companhias aéreas de baixo custo (conhecidas como companhias low cost) se unem para influir na 3333 A integrAl digitAlizAção dAs indústriAs culturAis: tensões e reestruturAções em AndAmento cena musical ao vivo em várias cidades. Artistas que colocam suas criações na rede sem nunca ter editado um álbum, são contatados e contratados diretamente por produtores de espetáculos musicais para realizar suas performances. Estas, por sua vez, são divulgadas normalmente por meio de mensagens via e-mail e redes sociais que incluem links para músicas e vídeos que o artista em questão possui na internet. Dessa forma, os conteúdos alocados na redeservem para ativar um duplo mecanismo de promoção: em função de gestores e programadores de espaços culturais, e em função de públicos consumidores. Por sua vez, as companhias de telecomunicações são um bom exemplo de novos agentes beneficiados pelo novo cenário digital da música. A banda larga de celular está contribuindo para a consolidação de um novo canal alternativo: a distribuição wireless. O informe On Media. Recorded Music – Who benefits from digital (George; Bell, 2008) da consultora PricewaterhouseCoopers (PwC), que foi dado a conhecer em abril de 2008, revela que os downloads de música por meio de telefones celulares se converteram na principal fonte de ingressos para a indústria discográfica europeia. No novo cenário, o telefone celular abriu as portas do mercado da música às empresas de telecomunicações ou companhias criadas recentemente, dedicadas aos conteúdos para telefones celulares. A passagem do download de ringtones a canções standard parece ser o prelúdio de novos tipos de conteúdos, como a retransmissão de atuações musicais ao vivo em alta definição. Enquanto em alguns países a provisão de serviços audiovisuais por parte de empresas de telecomunicações continua proibida – não sem polêmica –, em outros contextos nacionais (como o espanhol), a concorrência entre operadoras de televisão hertziana, por satélite ou por cabo com as empresas telefônicas é moeda corrente. A retransmissão ao vivo a cargo de uma operadora de telecomunicações (como Orange) de um concerto musical se realiza simultaneamente para os clientes de sua rede de telefonia móvel, de seu pacote de sinais de televisão e de seu website. A MÚSICA AO VIVO: MERCADO EM ALTA Frente à queda das cifras de venda de fonogramas em suporte físico, os “mercados derivados” vêm ganhando força. É o caso da música ao vivo. As turnês continentais de músicos e a celebração de festivais multinacionais se multiplicaram, enquanto Economia política da comunicação: digitalização E sociEdadE 34 os preços das entradas sofreram um aumento significativo4. No funcionamento tradicional da indústria fonográfica, a maior parte dos benefícios obtidos por atuações ao vivo iam parar nas mãos dos artistas, enquanto as gravadoras alimentavam suas vendas de gravações em suportes físicos. Esta clássica divisão também está se desfazendo: os termos estipulados entre as empresas e os músicos estão sendo redefinidos. Tendo em vista a crise do suporte físico de gravação, as companhias denominadas “fonográficas” ou “gravadoras” (ambos os termos são hoje questionados) estão desenvolvendo áreas de negócios ou empresas “irmãs” a cargo da gestão de carreiras artísticas. Isto inclui tanto a promoção de artistas e intérpretes em diferentes níveis (inserção de publicidade, contato com os tradicionais meios de comunicação, presenças na internet, meios especializados, etc.) como o planejamento de suas agendas (atuações ao vivo, solo e em festivais) e a estrutura técnica dos shows. Ainda assim, hoje as gravadoras estão incluindo cláusulas nos contratos segundo os quais os artistas têm que ceder às companhias um percentual do lucro de seus shows. Assim as companhias se transformaram em gestoras dos artistas, cuidando de tudo aquilo que gera lucro: merchandising, direitos de imagem, CDs, DVDs e, principalmente, shows. As discográficas tradicionais e novas não são as únicas que estão tomando conta do novo filão das atuações ao vivo. Entidades financeiras e fundações de grandes empresas vêm ganhando espaços no terreno do marketing cultural e entrado com força no mundo das atuações ao vivo. Para alguns destes novos agentes, as esferas da informação e da cultura são meros “mercados” onde aplicar “estratégias de êxito” com a finalidade de obter benefícios simbólicos. Alguns festivais se transformaram em marcas e deram início à sua peculiar transnacionalização. Rock in Rio é um bom exemplo. Em julho de 2008 ocorreu em Arganda del Rey, cidade de 50.000 habitantes situada a 30 quilômetros de Madrid, o maior festival de música jamais celebrado na Espanha. Com um orçamento de 30 milhões de euros, o Rock in Rio foi qualificado pelo diário espanhol de maior circulação, El País, como “o grande negócio da música”. Nesta “outra Disneylândia”, quem pagou a entrada de 65 euros por dia (algo em torno de 160 reais) teve à sua disposição “um amplo leque de atividades: gravar um disco financiado por uma marca de rum, ver desfilar Martina Klein ou Verónica Blume, comprar roupa nos dois centros comerciais (existentes na cidade do rock), comer um creme de ervilhas 4 Durante o período compreendido entre os meses de janeiro e junho de 2008, as turnês musicais nos Estados Unidos, principalmente as de pop e rock, tiveram uma renda bruta de 1,05 bilhões de dólares. 3535 A integrAl digitAlizAção dAs indústriAs culturAis: tensões e reestruturAções em AndAmento com lâminas de parmesão no restaurante VIP, ou casar-se ‘ao estilo Las Vegas’ em uma igreja patrocinada por uma marca de preservativos” (Portela, 27 jun. 2008). Mediante às críticas que advertiam que as empresas comerciais e suas marcas primavam sobre a música – o mercado sobre a cultura –, o criador e diretor do festival, Roberto Medina (organizador da apresentação de Frank Sinatra no Brasil, em 1980, para 144 mil pessoas) explicava: “A marca Rock in Rio é um evento entre o marketing e a música. Sempre foi assim. Desde o princípio. Eu não sou um promotor de concertos nem um roqueiro”. Complementarmente, as autoridades locais festejavam: “Será uma ocasião perfeita de promoção, mas também de impulso econômico da cidade”. Do ponto de vista do consumidor, a presença em atuações de artistas ao vivo está ligada à produção de vivências e de experiências únicas. Como assinala Herschmann (2007: 16): (…) a música ao vivo vem crescendo em importância dentro da indústria da música e isso está relacionado ao valor que esta ‘experiência’ tem no mercado, isto é, à sua capacidade de mobilizar e seduzir os consumidores e aficionados: a) a despeito do preço a se pagar (muitas vezes bastante alto) para assistir ao vivo às performances; b) e da alta competitividade que envolve as várias formas de lazer e entretenimento na disputa de um lugar junto ao público hoje no cotidiano). Por outra parte, associados às atuações ao vivo temos as gravações e posterior comercialização material e imaterial, como a retransmissão ao vivo por meio de múltiplos suportes. Um exemplo: em 2007, o site Medici.tv (filial da sociedade estadunidense Medici Arts, proprietária de um catálogo importante de DVD, com 1.500 horas de vídeo, e de fundos de arquivos musicais) retransmitiu ao vivo o Festival de Verbier, anualmente realizado na Suíça. Este ano se repetiu a experiência empregando câmeras automatizadas e de alta definição. A qualidade das retransmissões torna possível que se possa conectar a equipamentos de som ou televisores para desfrutar completamente dos conteúdos. DOS TRADICIONAIS “GUIAS” DE CONSUMO ÀS “COMUNIDADES VIBRANTES” Tradicionalmente a rádio, as publicações periódicas e a televisão (ainda antes da chegada da MTV) eram os canais mais habituais para promover carreiras artísticas Economia política da comunicação: digitalização E sociEdadE 36 e publicitar obras musicais. Hoje, a irrupção dos dispositivos e as redes digitais estão pondo em dúvida a relação habitual entre artistas e audiências, minando o poder de prescrição dos tradicionais meios de comunicação; ou seja, limitando a incidência destes no consumo de criações musicais. Além disso, o contato entre artistas e públicos, ao menos potencialmente, é simplificado e a criação de comunidades interpretativas, sem a participação dos meios tradicionais, é cada vez mais comum (Gallego, 2008). Frente aos meios de informação usuais têm surgido espaços na internet
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