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Figuras de Linguagem na Retórica de Hugh Blair

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Hugh BLAIR (Edimburgo, 1718-1800), pregador presbiteriano e depois catedrático de 
retórica na Universidade de Edimburgo, foi uma das figuras destacadas do iluminismo escocês, 
tendo participado do círculo integrado por Hume, Adam Smith, Carlyle. Sua obra mais conhecida 
— Lectures on Rhetoric and Belles Lettres (1783) — consiste na sistematização das aulas 
ministradas na universidade, compilando a tradição retórica, sobretudo a partir de Quintiliano e 
Cícero, mas procurando atualizá-la segundo as preocupações do seu tempo — daí a presença de 
questões como gosto, razão, natureza humana, aperfeiçoamento moral —, bem como 
instrumentalizá-la didaticamente não só para a prática da oratória, mas também para a técnica das 
composições escritas. Indício dessa associação entre a tradição e a modernidade de então 
encontra-se no próprio título da obra, que combina a velha palavra “retórica” com a expressão 
“belas-letras”, em alta no século XVIII e vinculada à estética, disciplina filosófica em processo 
de consolidação na mesma época. O tratado foi extraordinariamente influente, sendo traduzido 
nas principais línguas européias e atingindo a impressionante marca de 130 edições só em língua 
inglesa, no período compreendido entre 1783 e 1911.1 
 
 
ORIGEM E NATUREZA DA LINGUAGEM FIGURADA 
(1783) 
 
 Tendo agora terminado o que se relaciona com a construção de sentenças, vou adiante, 
para outras regras concernentes ao estilo. Minha divisão geral das qualidades do estilo foi em 
clareza e ornamento. A clareza, tanto em palavras isoladas quanto em sentenças, já considerei. O 
ornamento, até o ponto em que surge de uma construção de palavras graciosa, forte ou melodiosa, 
também já foi tratado. Um outro e grande ramo do ornamento do estilo é a linguagem figurada, 
que agora há de ser o assunto de nossa consideração, e requererá uma completa discussão. 
 
1 Cf. MARTINS, Wilson. A crítica literária no Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. V.l , p. 158. 
 
 In: BIZZEL, Patricia & HERZBERG, Bruce, ed. The Rhetorical Tradition; Readings from Classical Times to the 
Present. Boston: Bedford Books of St. Martin’s Press, 1990. p. 810-818. 
 
Trecho inicial da Lecture XIV (“Origin and Nature of Figurative Language”) da obra Lectures on Rhetoric and 
Belles Lettres. 
 
Tradução de Roberto Acízelo de Souza. 
 
 Nossa primeira inquirição deve ser: o que significa figuras de linguagem?2 
 Em geral, elas sempre de algum modo implicam partir da simplicidade de expressão; a 
idéia que pretendemos transmitir, não apenas enunciada para outros, mas enunciada de um modo 
particular, e com o acréscimo de algumas circunstâncias, que se destina a tornar a impressão mais 
forte e vívida. Quando digo, por exemplo, “Que um bom homem desfruta de consolo em meio à 
adversidade”, apenas expresso meu pensamento do modo mais simples possível. Mas, quando 
digo “Para o justo surge luz na escuridão”, o mesmo sentimento é expresso num estilo figurado; 
uma nova circunstância é introduzida; “luz” se coloca no lugar de “consolo”, e a palavra 
“escuridão” é usada para sugerir a idéia de “adversidade”. Do mesmo modo, dizer “É impossível, 
por qualquer busca que possamos empreender, explorar plenamente a natureza divina” é fazer 
uma simples proposição. Mas, quando dizemos “Podes tu, procurando, descobrir Deus? Podes 
descobrir o Todo-Poderoso para a perfeição? É alto como o céu, o que podes fazer? mais 
profundo que o inferno, o que podes conhecer?”, isto introduz uma figura no estilo, a proposição 
sendo não apenas expressa, mas admiração e espanto sendo expressos juntamente com ela. 
 Mas, embora as figuras impliquem um desvio do que pode ser reconhecido como a forma 
mais simples de discurso, não devemos daí concluir que elas impliquem algo incomum ou não 
natural. Isso está longe de ser o caso, tanto que em muitas e muitas ocasiões elas são o método 
mais natural e mais comum de articular nossos sentimentos. É impossível compor qualquer 
discurso sem usá-las freqüentemente; pelo contrário, há poucas sentenças de qualquer tamanho 
em que não ocorra uma ou outra expressão que possa ser nomeada como figura. De que causas 
isso provém deverá depois ser explicado. O fato, por enquanto, demonstra que devem elas ser 
consideradas parte daquela linguagem que a natureza ditou aos homens. Elas constituem não 
invenção das escolas, nem mero produto do estudo; ao contrário, o mais iletrado fala por figuras, 
tão freqüentemente quanto o mais instruído. Sempre que as imaginações do homem vulgar são 
intensamente despertadas, ou suas paixões inflamadas, um contra o outro, eles despejarão uma 
torrente de linguagem figurada, tão enérgica quanto a que seria empregada pelo mais artificial 
dos declamadores. 
 
2 Sobre o assunto das figuras de linguagem, todos os escritores que tratam da retórica da composição insistiram 
bastante. Fazer pois referências sobre este assunto seria interminável. Sobre os fundamentos da linguagem figurada, 
em geral, um dos escritores mais sensíveis e instrutivos me parece ser M. Marsais [Nota do organizador: César 
Chesneau du Marsais (1676-1756).], no seu Traités des tropes pour servir d’introduction à la rhétorique, et à la 
logique. Para observações sobre figuras específicas, os Elements of Criticism [Nota do organizador: obra publicada 
em 1762, de Lord Kames Henry Home (1696-1782).] podem ser consultados, onde o assunto é trabalhado e ilustrado 
com grande variedade de exemplos. (Nota do autor.) 
 O que é então que chamou a atenção de críticos e retóricos para estas formas de discurso? 
É o seguinte: eles assinalaram que nelas consiste muito da beleza e da força da linguagem; e 
acharam que elas sempre apresentam alguns traços, constituídos por sinais distintos, mediante os 
quais poderiam reduzi-las a classes separadas e a compartimentos. A isso, talvez, se deve o nome 
de figuras. Assim como a figura ou o padrão de um corpo o distingue de outro, estas formas de 
discurso têm, cada uma delas, um aspecto ou jeito que lhe é peculiar, que tanto a distingue das 
demais quanto a distingue da expressão simples. A expressão simples apenas torna nossa idéia 
conhecida pelos outros; mas a linguagem figurada, além disso e sobretudo, confere uma 
roupagem específica àquela idéia; uma roupagem que tanto a torna digna de reparo quanto a 
adorna. Por isso, este tipo de linguagem cedo se tornou um objeto capital de atenção para aqueles 
que estudavam os poderes do discurso. 
 As figuras, em geral, podem ser descritas como aquela linguagem que é movida ou pela 
imaginação ou pelas paixões. A justeza da descrição emergirá da exposição mais específica que 
depois devo fazer. Os retóricos comumente as dividem em duas grandes classes: figuras de 
palavras e figuras de pensamento. Estas, figuras de pensamento, são comumente chamadas 
tropos, e consistem em uma palavra ser empregada para significar algo que é diferente de seu 
significado original e primitivo, de modo que, caso se altere a palavra, destrói-se a figura. Assim, 
no exemplo que dei antes: “Luz surge para o justo na escuridão”. O tropo consiste em “luz e 
escuridão”, não significando literalmente, mas substituindo “consolo” e “adversidade”, em 
função de alguma semelhança ou analogia que devem apresentar com essas condições de vida. A 
outra classe, nomeada figuras de pensamento, pressupõe que as palavras sejam usadas no seu 
significado próprio e literal, e que a figura consista no jeito do pensamento; como é o caso das 
exclamações, interrogações, apóstrofes e comparações; onde, embora façamos variar as palavras 
que são usadas, ou as traduzamos de uma língua para outra, ainda assim, contudo,preservamos a 
mesma figura no pensamento. Esta distinção, entretanto, não é de grande utilidade, uma vez que 
nada pode ser construído com ela na prática, nem ela é sempre muito clara. É de pouca 
importância se damos a certo modo de expressão específico o nome de tropo ou o de figura, 
desde que lembremos que a linguagem figurada sempre importa certo colorido da imaginação, ou 
certa emoção de paixão, expressa no nosso estilo; e, talvez, figuras de imaginação e figuras de 
paixão possam constituir uma distribuição mais útil do assunto. Mas, sem insistir em quaisquer 
divisões artificiais, será mais útil inquirir sobre a origem e a natureza das figuras. [...] 
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 Na ascensão primeira da linguagem, os homens teriam começado dando nomes aos 
diferentes objetos que discerniam ou sobre que pensavam. Essa nomenclatura, no começo, teria 
sido muito estreita. À medida que as idéias dos homens se multiplicavam, e crescia seu 
conhecimento dos objetos, seu estoque de nomes e palavras teria crescido também. Mas, para a 
infinita variedade de objetos e de idéias, nenhuma língua é adequada. Nenhuma língua é tão 
copiosa a ponto de ter uma palavra específica para cada idéia específica. Os homens naturalmente 
buscaram abreviar seu labor de multiplicar palavras in infinitum; e, a fim de colocar menos carga 
na memória, fizeram que uma palavra, que já tinham ajustado a certa idéia ou objeto, 
representasse também alguma outra idéia ou objeto, entre o qual e o primeiro achavam, ou 
imaginavam, certa relação. Assim, a preposição em foi originariamente inventada para expressar 
a circunstância de lugar: “O homem foi morto em casa.” Com o tempo, palavras foram 
demandadas para expressar a conexão dos homens com certas condições do destino ou certas 
situações do espírito;3 e, sendo imaginadas entre estas e o lugar dos corpos alguma semelhança 
ou analogia, a palavra em passou a ser empregada para expressar tais circunstâncias dos homens, 
como “alguém estar em paz, em segurança, em perigo, em dúvida”. Aqui vemos esta preposição 
em assumindo plenamente um sentido de tropo, ou afastada de seu significado original, para 
significar algo mais, que se relaciona ou parece com o significado original. 
 Tropos desse tipo abundam em todas as línguas, e se devem claramente à demanda por 
palavras apropriadas. As operações do espírito e dos afetos, especialmente, são, na maioria das 
línguas, descritas com palavras tomadas aos objetos sensíveis. A razão é clara. Os nomes dos 
objetos sensíveis constituíram, em todas as línguas, as palavras introduzidas mais cedo; e foram, 
gradualmente, estendidas aos objetos mentais, de que os homens tinham concepções mais 
obscuras, e para as quais acharam mais difícil atribuir nomes distintos. Tomaram emprestado, por 
conseguinte, o nome de alguma idéia sensível, onde a imaginação deles achou alguma afinidade. 
Assim, falamos de um julgamento penetrante, e de uma cabeça clara, de um coração duro ou 
mole, de um comportamento áspero. Dizemos inflamado de cólera, aquecido pelo amor, inchado 
 
3 O substantivo inglês mind apresenta diversas acepções, entre as quais “mente”, “espírito”, “entendimento”, 
“pensamento”, “intelecto”, “inteligência”, “memória”. Na presente tradução, nesta e nas demais ocorrências do 
termo, verteu-se sistematicamente mind para “espírito”. (Nota do tradutor.) 
 
de orgulho, mergulhado em tristeza; e estas são quase as únicas palavras significativas que temos 
para tais idéias. 
 Mas, embora a pobreza da linguagem e a demanda por palavras sejam sem dúvida uma 
causa para a invenção de tropos, ainda assim ela não é a única, nem, talvez, a principal fonte 
dessa forma de discurso. Os tropos surgiram mais freqüentemente, e se expandiram mais 
amplamente, da influência que a imaginação possui sobre a linguagem. Tentarei explicar o 
encadeamento segundo o qual isso se processou entre todas as nações. 
 Todo objeto que causa alguma impressão no espírito humano é constantemente 
acompanhado de certas circunstâncias e relações que nos atingem ao mesmo tempo. Ele nunca se 
apresenta à nossa visão isolé, como se diz em francês, isto é, independente e separado de 
qualquer outra coisa, mas sempre ocorre de algum modo relacionado com outros objetos: 
antecedendo-os ou os seguindo; como efeito ou como causa deles; parecendo com eles ou a eles 
se opondo; distintos por certas qualidades ou cercados de certas circunstâncias. Por esses meios, 
toda idéia ou objeto leva no seu encadeamento algumas outras idéias, que podem ser 
consideradas como seus acessórios. Esses acessórios freqüentemente atingem a imaginação mais 
do que a própria idéia principal. Constituem, talvez, idéias mais agradáveis, ou são mais 
familiares às nossas concepções, ou relembram à nossa memória maior variedade de 
circunstâncias importantes. A imaginação permanece mais disposta a demorar-se em algumas 
delas; e por conseguinte, em vez de usar o nome próprio da idéia principal que pretende 
expressar, emprega, em seu lugar, o nome da idéia acessória ou correspondente, embora a idéia 
principal tenha um nome próprio e bem conhecido que lhe pertence. Por conseguinte, uma vasta 
variedade de palavras figuradas ou que constituem tropos tornam-se correntes em todas as 
línguas, mediante escolha, não por necessidade; e os homens de imaginação vívida todos os dias 
estão aumentando o seu número. 
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 O que se disse sobre esse assunto tende a projetar luz sobre a natureza da linguagem em 
geral, e levará às razões por que os tropos ou figuras contribuem para a beleza e a graça do estilo. 
 Em primeiro lugar, elas enriquecem a linguagem, tornando-a mais copiosa. Por elas, 
palavras e expressões são multiplicadas para expressar todos os tipos de idéia, para descrever até 
as menores diferenças, os mais sutis matizes e cores do pensamento, o que nenhuma língua 
poderia possivelmente conseguir apenas por palavras próprias, sem a assistência dos tropos. 
 Em segundo lugar, elas conferem dignidade ao estilo. A familiaridade das palavras 
comuns, com as quais nossos ouvidos estão muito acostumados, tende a degradar o estilo. 
Quando queremos adaptar nossa linguagem ao tom de um assunto elevado, ficaríamos muito 
prejudicados se não pudéssemos tomar emprestada a assistência das figuras, as quais, 
apropriadamente empregadas, têm sobre a linguagem efeito similar ao que é produzido pela 
roupa rica e esplêndida de uma pessoa de classe: criar respeito e dar um ar de magnificência a 
quem a usa. Assistência dessa espécie é sempre necessária nas composições em prosa; mas a 
poesia não poderia subsistir sem ela. Por conseguinte, as figuras modelam a característica 
linguagem da poesia. [...] 
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 Em terceiro lugar, as figuras nos dão o prazer de fruir dois objetos apresentados juntos à 
nossa vista, sem confusão: a idéia principal, que é o assunto do discurso, em companhia da sua 
acessória, que fornece a ela a roupagem figurada. Vemos uma coisa na outra, segundo a 
expressão de Aristóteles, o que é sempre agradável ao espírito. Pois não há nada que mais deleite 
a fantasia do que as comparações e semelhanças dos objetos; e todos os tropos se fundamentam 
em alguma relação ou analogia entre uma coisa e outra. Quando, por exemplo, no lugar de 
“juventude”, digo “aaurora da vida”, a fantasia é imediatamente entretida com todas as 
circunstâncias parecidas que efetivamente aproximam esses dois objetos. Por um momento, tenho 
diante dos olhos certo período da vida humana e certa hora do dia, tão relacionados um com o 
outro que a imaginação brinca entre eles com prazer, contemplando dois objetos similares, em 
uma única visão, sem embaraço ou confusão. Não apenas isso, porém. 
 Em quarto lugar, as figuras são servidas com a seguinte vantagem adicional: dar-nos 
freqüentemente uma visão do objeto principal mais clara e mais impactante do que aquela que 
teríamos se ele fosse expresso em termos simples e despido da sua idéia acessória. Esta é, na 
verdade, sua principal vantagem, em virtude da qual muito propriamente se diz delas que ilustram 
um assunto, ou que projetam luz sobre ele. Pois elas exibem o objeto, ao qual são aplicadas, 
numa forma pinturesca; até certo ponto, podem transformar uma concepção abstrata num objeto 
sensível, envolvendo-o com certas circunstâncias, de modo a capacitar o espírito a agarrá-lo com 
firmeza e a contemplá-lo plenamente. [...] 
 Além disso, se estivermos tentando suscitar sentimentos de prazer ou de aversão, sempre 
podemos aumentar a emoção pelas figuras que introduzimos, conduzindo a imaginação a um 
encadeamento, agradável ou desagradável, de idéias elevadas ou deprimentes, correspondentes à 
impressão que procuramos causar. Quando queremos tornar belo ou grandioso um objeto, 
tomamos emprestadas as mais belas ou as mais esplêndidas cenas da natureza, e assim jogamos 
brilho no nosso objeto; vivificamos o espírito do leitor, dispondo-o a nos acompanhar nas alegres 
e encantadoras impressões que lhe oferecemos do assunto. 
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