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Introdução Todos os dias, vemos nos meios de comunicação opiniões bastante diversas (em geral opostas) sobre a economia. Quando o Banco Central aumenta a taxa de juros frente a uma situação de instabilidade, só para citar um exemplo, alguns economistas aplaudem a atitude, enquanto outros reprovam-na. Esta é a motivação deste trabalho: tentar entender por quê os economistas discordam na questão monetária. Para isso, decidimos analisar a postura dos economistas sobre dois fundamentos da teoria econômica que, a nosso ver, se encontram no cerne das controvérsias monetárias: a Lei de Say e a Teoria Quantitativa da Moeda. Na primeira seção, vamos definir e explicar o que são Lei de Say e Teoria Quantitativa da Moeda. Na segunda seção, falaremos um pouco sobre a escola ortodoxa, aquela que aceita os dois fundamentos acima, discutindo duas questões: o mecanismo indireto da Teoria Quantitativa da Moeda e a “superneutralidade” da moeda. Finalmente, na última seção, falaremos sobre a escola heterodoxa. Nesta seção, classificamos Marx, os marxistas, Keynes e os pós-keynesianos como heterodoxos, porque, como mostraremos, eles negaram os supostos que fundamentam a Teoria Quantitativa da Moeda e a Lei de Say. A Lei de Say – “A Oferta Gera Sua Própria Demanda” e a Teoria Quantitativa da Moeda “Os produtos são pagos por produtos”. A frase, que soa elementar, esconde raciocínios interessantes. Blaug explica que a curva de oferta de uma indústria independe de sua curva de demanda. Mas é incoerente (em uma economia de trocas simples) falar em excesso generalizado de produção, já que a oferta e a demanda agregada não são independentes. A superprodução deve ser relativa a algo. Esse algo que nos falta na economia de trocas simples é a moeda. Em uma economia monetária, pode ocorrer um excesso generalizado de oferta, se se considera que ele é somente uma procura excedente por moeda. Isso indicaria que a Lei de Say não é aplicável ao mundo real, porque nele o excesso de moeda é logicamente possível e então a “oferta não gerará sua própria demanda”. É preciso, então, eliminar a possibilidade de procura excedente de moeda. Isso se faz supondo que as pessoas retêm moeda sob a forma de reservas de valor, e não vêem razão para alterar essa reserva. (O nome usual dado à essa restrição é Identidade de Say). A primeira consequência disso é que o mercado monetário está sempre equilibrado, porque Independentemente dos preços, as pessoas fornecem bens apenas para “imediatamente” usarem o dinheiro recebido na procura de outros bens. (…) Isso, por sua vez, implica que os próprios mercados de bens não são afectados: uma alteração do nível de preço nunca leva à substituição entre bens. (Blaug) Outra implicação é a de que o lado real da economia é independente do lado monetário. Os preços relativos são determinados no mercado de bens, e os absolutos no mercado monetário, o que pressupõe que a quantidade de moeda disponível para o público seja sempre constante, independentemente dos preços . A Teoria Quantitativa da Moeda está intimamente ligada à Lei de Say, visto que ambas obedecem aos mesmos supostos. A Teoria Quantitativa da Moeda é expressa pela Equação de Trocas MV = Py Onde M representa os meios de pagamento, V a velocidade de circulação da moeda, P o nível de preços e y o produto real da economia. A equação acima nada mais é do que uma identidade contábil. Mas para considerá-la como uma teoria, é preciso acrescentar alguns supostos. 1. Neutralidade da Moeda. Quando dizemos que a moeda é neutra, isso significa que ela não afeta a produção de uma economia (y) de forma permanente – ou seja, podemos considerar que um aumento da quantidade de moeda gere um aumento da produção real no curto prazo, mas esse efeito é de curto prazo e não deixa efeitos permanentes na atividade produtiva real. 2. Velocidade de Circulação Estável ou Previsível. Isso ocorre, por exemplo, quando a função de entesouramento da moeda é considerada irracional ou quando a demanda de moeda é vista como apenas para consumo e dependente da renda, esta também vista como estável. 3. Exogeneidade da Moeda. A Autoridade Monetária tem total controle sobre a oferta de moeda porque controla M e, como V é estável ou previsível, pode com M contrabalançar os movimentos de V e controlar o lado esquerdo da Equação de Trocas. 4. Causalidade de MV para Py. Colocadas estas suposições, vemos que um aumento na quantidade de moeda se refletirá somente e integralmente no nível de preços (já que V é estável ou previsível e M não afeta y). A hipótese 3 implica, então, que a Autoridade Monetária é responsável pelo processo inflacionário. Existem dois mecanismos que mostram como P varia proporcionalmente à variação em M. O primeiro é o chamado mecanismo direto, citado por Cantillon e Hume. A idéia é simples: como as pessoas não desejam entesourar moeda, um aumento da quantidade de moeda se converterá em aumento do consumo. Este, pelas leis da oferta e demanda, conduzirá ao aumento dos preços. O segundo mecanismo é o indireto, enunciado por Thornton e desenvolvido por Wicksell. Um aumento da quantidade de moeda faz reduzir os juros no mercado de fundos de empréstimo, o que levará a um aumento no investimento. Isto levará a um aumento na demanda por fatores de produção, o que aumentará o seu preço e fatalmente aumentará o nível geral de preços algum tempo depois. Quando os preços aumentarem, o nível geral de preços aumentará até alcançar crescimento proporcional ao aumento na quantidade de moeda. Neste momento, a moeda tornar-se-á neutra. A Defesa da Teoria Quantitativa da Moeda A divisão entre os economistas pode ser feita de diversas maneiras. A forma que adotamos neste trabalho para definir o que é ortodoxia e o que é heterodoxia é a aceitação ou não da Lei de Say e da Teoria Quantitativa da Moeda. Os economistas ortodoxos aceitam todos os supostos apresentados na seção anterior. Nesta seção iremos, então, esclarecer o ponto da neutralização dos efeitos reais do mecanismo indireto e tratar da “superneutralidade” da moeda. No mecanismo indireto, existe um efeito real (aumento do investimento) do aumento de preços, o que indicaria a não neutralidade da moeda. Mas o que os ortodoxos dizem (e os heterodoxos depois negarão), é que este efeito é temporário e de transição, não deixando efeitos permanentes na atividade produtiva de longo prazo. É preciso destacar que, para os economistas ortodoxos, os agentes não se preocupam com a quantidade nominal de moeda que possuem (M), mas sim com a quantidade real (M/P). Assim, não importam aos agentes os preços absolutos, mas sim os preços relativos. Com um aumento de M, mudam as relações de preços. Se os preços forem flexíveis (um suposto bastante usual na teoria ortodoxa), eles responderão à variação na quantidade de moeda de forma a manter constante a relação de preços, trazendo de volta a neutralidade da moeda. Os novos-keynesianos acreditam que existem imperfeições de mercado, e estas, ao enrijecerem os preços nominais, dificultam o ajuste natural do mercado, e assim a moeda não consegue ser neutra no curto prazo. A outra divergência dentro da ortodoxia é quanto ao grau de neutralidade da moeda. Alguns economistas acreditam na superneutralidade da moeda, ou seja, que nem a quantidade de moeda nem a inflação afetam a atividade real da economia (Mollo, 2002). Um aumento da quantidade de moeda pode alterar a distribuição de renda. Essa alteração na distribuição pode não ser neutra no curto prazo, aumentando a produção.Mas essa nova repartição da renda também gerará aumento do consumo e conseqüentemente do nível geral de preços – até à proporção do choque inicial. Neste momento, as quantidades afetadas inicialmente já retornaram aos níveis anteriores, e o nível geral de preços maior é só o que resta do processo. (MOLLO, 2002). O Ataque à Teoria Quantitativa da Moeda Marx e o crédito, marxistas e a inflação por dinheiro extra Dizemos que Marx negava a Teoria Quantitativa da Moeda porque ele negou todos os seus supostos. Comecemos pelo suposto nº 02, o da estabilidade de circulação da moeda. Como visto, V é estável porque o entesouramento, naquela concepção, é irracional. Mas não foi assim que Marx enxergou o entesouramento. As mercadorias, para ele, possuem dois valores: o valor de uso, que é a “utilidade”1 que esta mercadoria proporciona, e o valor de troca. A moeda é uma mercadoria especial que tem como valor de uso determinar os valores de troca (a função equivalente geral da moeda). As mercadorias não só podem ser conservadas sob a forma de ouro e prata, ou seja, na matéria do dinheiro, como também ouro e prata já constituem a forma conservada da riqueza. Todo valor de uso serve como tal na medida em que é consumido, isto é, na medida em que é destruído. Todavia, o valor de uso do ouro, que serve de dinheiro, consiste em ser portador do valor de troca, e como matéria-prima amorfa, em ser a encarnação do tempo de trabalho geral. (Marx). 1 O termo está entre aspas para ressaltar que Marx não fala de utilidade com aquela entendida pela escola ortodoxa. Isso dá à moeda, segundo Marx, o importante papel de validadora social da produção (“encarnação do tempo de trabalho geral”). A moeda representa poder social, e por isso, pode ser desejada por si mesma – ou seja, o entesouramento é racional. O suposto nº 04 diz que a causalidade da equação vai de MV para Py. Os preços, na teoria marxista, são determinados pelo valor-trabalho2. E a quantidade de moeda disponível se ajusta a esse nível de preços via entesouramento/desentesouramento. O suposto de neutralidade da moeda é derrubado pela idéia que se faz do papel do crédito na economia capitalista. Aceleração, por meio do crédito, das distintas fases de circulação ou da metamorfose das mercadorias e também da metamorfose do capital e, com isso, aceleração do processo de reprodução em geral. (…) 1) Enorme expansão da escala de produção e das empresas, que era impossível para capitais isolados (…) (Marx, grifo nosso) Finalmente, a moeda marxista não é exógena. O crédito e o entesouramento mostram isso. O entesouramento e o crédito são decisões subjetivas de retenção/criação de moeda, sobre a qual a Autoridade Monetária não tem poder de controle. É claro que ações da mesma na taxa de juros, por exemplo, podem interferir nas decisões de entesouramento e crédito, mas não as controlam. 2 O valor de uma mercadoria, para Marx, é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário (aquele que é realizado nas condições médias da sociedade) para a sua produção. Ana C. S. Ribeiro N’oublie pas! Embora os marxistas aceitem, como já visto, a não neutralidade da moeda, em meados da década de setenta surge o debate sobre a inflação por dinheiro extra. A idéia é de que circunstâncias inerentes aos circuitos de produção e circulação do capital regularmente criam discrepâncias entre a oferta e a demanda de moeda que, em alguns casos, podem gerar inflação. Em essência, isto pode acontecer se uma injeção de dinheiro extra (ou adicional) na economia reduzir a relação entre o valor do produto e a moeda em circulação, sem que esta relação seja subseqüentemente restaurada pelo crescimento do produto ou pela retirada do dinheiro extra de circulação. (Mollo e Saad Filho, 2001) Ao se injetar dinheiro na economia, dois cenários são possíveis: 1. O caso “keynesiano”, onde o aumento de moeda permite que as empresas aumentem a sua produção, o que, após um intervalo de tempo, restituirá a relação entre moeda e valor a um nível mais elevado de produto e renda ou; 2. O caso “monetarista”, que ocorre quando esse aumento de moeda vai para setores saturados ou sem capacidade ociosa (não havendo, então, a possibilidade de aumento de produção), quando não se pode importar ou finalmente quando ela for insuficiente para atender à demanda3, e terá como resultado predominante a inflação. Apesar desta teoria de inflação admitir a hipótese familiar de “P aumentando devido à aumentos de M”, é preciso destacar que esta teoria é incompatível com a Teoria Quantitativa da Moeda. Em primeiro lugar, porque o dinheiro extra é endógeno (vide nota abaixo). A moeda não é neutra, e os efeitos da criação de moeda adicional não podem ser antecipados, não se podendo, então, culpar a Autoridade Monetária pela inflação (Mollo e Saad Filho, 2001). 3 O dinheiro extra surge do desentesouramento, do crédito, de intervenções governamentais em instituições com problemas de insolvência (como no caso do PROER no Brasil), etc. A injeção pode ser insuficiente devido à descentralização das decisões. Ana C. S. Ribeiro verificar se realmente vimos isso no texto! Keynes, os pós keynesianos e a preferência pela liquidez A diferença entre Keynes e os clássicos, como em Marx, começa pela concepção de moeda. Keynes acreditava que vivíamos em um mundo de incerteza radical, onde as decisões dos agentes eram tomadas de forma descentralizada e as decisões que tomamos hoje não apenas afetam o futuro, mas dependem das nossas expectativas em relação a ele. A moeda, então, não tem somente (ou principalmente) a função de meio de transação. Sua função mais importante, enquanto ativo mais líquido da economia, é servir de garantia frente à incerteza. Ela passa então a ser desejada por si mesma, ou seja, o entesouramento é visto como racional, negando-se assim o segundo suposto da Teoria Quantitativa da Moeda. O surgimento do crédito servirá como base para a negação dos três outros supostos. O suposto nº 04, o da direção da causalidade, é assim negado: A idéia é a de que na equação de trocas MV = Py a causalidade vai de Py para MV, na medida em que a renda nominal Py é financiada por aumentos de empréstimos, o que leva residualmente a aumentos de M no outro lado dos balanços bancários. (MOLLO, 2002) Numa economia onde o sistema de crédito foi bem desenvolvido, a poupança não necessariamente financia ou precede o investimento. O crédito financia o investimento, sem associação com a poupança. As rendas que este investimento vai gerar é que vão garantir a igualdade entre poupança e investimento. De acordo com Mollo (1988), a poupança e o investimento são decisões subjetivas tomadas por agentes distintos, e não há nenhum fator que garanta ex-ante a igualdade. Na verdade, a decisão de poupar, para Keynes, não é uma decisão verdadeira, mas sim resíduo da decisão de consumir. Como não é possível para os agentes se posicionarem quanto ao consumo futuro devido à incerteza, o conceito de poupança ex-ante não faz sentido. A decisão de investir é feita a partir da comparação da rentabilidade marginal do capital com a taxa de juros. Se a primeira for maior do que a segunda, o investimento será realizado. Caso contrário, o investidor preferirá comprar títulos. Segundo Keynes, existem duas formas de se verificar a existência de desigualdade entre poupança e investimento, antes deste se realizar: 1. O investimento sendo financiadopelo crédito sem que haja poupança suficiente. Como já vimos, não existe razão para que poupança e investimento sejam iguais ex- ante. 2. A poupança existe, mas não se converte em investimento. Isto pode acontecer em caso de preferência pela liquidez generalizada. A preferência pela liquidez pode ser encarada como uma resistência à ceder o empréstimo, por parte dos bancos, e/ou à compra de títulos por parte dos consumidores, face a uma situação de expectativas negativas quanto ao futuro. É claro, então, que a moeda aqui não é neutra, já que a decisão dos bancos de conceder ou não crédito e a dos demais agentes de preferência pela liquidez impacta a produção real de forma permanente. A noção de preferência pela liquidez também nos permite derrubar o último suposto da Teoria Quantitativa da Moeda, o da exogeneidade da moeda. A criação da moeda é endógena na teoria keynesiana, porque, como vimos, o nível de preferência pela liquidez afeta diretamente a oferta de crédito. A Autoridade Monetária não tem como interferir neste processo, visto que a preferência pela liquidez é uma posição subjetiva de cada agente. Conclusão A Lei de Say e a Teoria Quantitativa da Moeda representam um papel fundamental na teoria econômica. Sua aceitação ou negação implica em visões completamente distintas sobre a economia e conseqüentemente sobre o tipo e a eficácia das políticas monetárias. Os economistas de inclinação ortodoxa, ao aceitarem os supostos de neutralidade e exogeneidade da moeda, acreditam que a Autoridade Monetária tem poder de controlar a oferta de moeda e (como visto na primeira seção), controlar a inflação via ajustes na taxa de juros. O mecanismo é considerado interessante, nessa concepção, porque a moeda é neutra, não tendo efeitos reais permanentes – ou seja, o custo social dos mecanismos de ajuste é visto como baixo ou até mesmo (para os mais ortodoxos) como inexistente. Já os economistas que se identificam com o pensamento heterodoxo em geral não se posicionam de forma favorável a políticas de regulação via taxa de juros. Isso porque eles negam a idéia de endogeneidade e neutralidade da moeda. Ao negar a endogeneidade da moeda, a Autoridade Monetária não tem poder de controle sobre a oferta monetária e não tem, portanto, como controlar totalmente a inflação. E, ao negar a neutralidade da moeda, enxergam como grande o custo social de políticas como essa. Bibliografia BLAUG, M. História do Pensamento Econômico. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1980. FRIEDMAN, M. The Quantity Theory of Money: a Restatement. In: Studies in the Quantity Theory of Money. University of Chicago Press, Chicago, 1956. MARX, K. O Capital. Livros I e III. MOLLO, M. L. R. Ortodoxia e Heterodoxia Econômicas: A Questão da Neutralidade da Moeda. Anais da ANPEC 2002. MOLLO, M. L. R e SAAD FILHO, A. Reconhecimento Social da Moeda: Observações Sobre a Inflação e a Estabilização de Preços no Brasil. In: Revista de Economia Política, vol. 21, nº 2 (82), abril-junho/2001.
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